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RELIGIÃO E SOCIEDADE EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS: O ESPAÇO DA CRÍTICA

Philippe Delfino Sartin

INTRODUÇÃO

Memórias de um Sargento de Milícias – ou seja, de como a personagem principal, Leonardo, malandro inveterado, filho do burlesco Leonardo Pataca, tornou-se um sargento de milícias. E como isso foi possível na sociedade carioca à época de Dom João VI.

Publicando aos capítulos num suplemento de jornal, Manuel Antônio de Almeida elaborou uma narrativa crítica sobre os costumes de seu tempo. A obra é uma atualização de determinado aspecto considerado definidor da sociedade de então. Dessa perspectiva, as conclusões morais adquirem um caráter secundário. O livro lança mão de determinado recurso estético para expressar as condições da ação humana nos interstícios do Rio de Janeiro.

Conta a tradição, que o romance de 1854 é fruto do trabalho do autor sobre os relatos de um velho sargento de polícia, quando das suas peripécias no âmago das relações de poder, sua convivência com conflitos e, sem dúvida, uma visão particular a respeito do agir.

É uma crítica da relação entre os homens e seus valores. Possui, sobretudo, um caráter universal.

Da oscilação. Em artigo por diversas vezes citado, Antônio Cândido coloca as Memórias como o primeiro romance genuinamente brasileiro, imune a visões do tipo elitista que até então predominavam – se não intencionais, ao menos ao nível da linguagem.

E, aplicando à obra sua teoria crítica1, chega à seguinte conclusão:

“O seu caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existência que por isso contribuem para atingir essencialmente os leitores.” (1970, p. 12)

Tais circunstancias definidoras da ação humana representam para ele, uma dialética entre ordem e desordem que constrange a personagem principal, Leonardo, que, sendo o eixo narrativo, agrupa à volta de si estereótipos de cada um dos pólos. Assim teríamos, simetricamente, Luisinha, objeto dos primeiros amores de Leonardo e Vidinha (o nome é significativo, talvez irônico), uma aventura de nosso memorando:

Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo herança, parentela, posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graça e da sua curiosa família sem obrigação nem sanção, onde todos se arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer ” (1970, p. 15).

O predomínio da primeira situação como desfecho da narrativa, representa um compromisso romântico típico – marcando inclusive uma posição sintética em relação ao conjunto da obra, que, em seu início, não aderia sequer às imposições formais de um romance, correspondendo mais a uma

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descrição em quadros e núcleos relativamente independentes (se assemelhando mais a uma novela), da sociedade joanina. Voltaremos a esse ponto adiante.

Citando mais uma vez Antônio Cândido,

“Poderíamos dizer que há, deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois pólos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo” (1970, p.13).

Por outro lado, a idéia de um “mundo sem culpa” advém da equivalência dos dois tipos de ações – ordeiras e desordeiras, conforme o plano social em que as personagens principais se encontrem.

Como se vê, é uma argumentação extremamente sólida. Mas eu gostaria de fazer duas perguntas que Antônio Cândido não fez: o que significa, dentro de Memórias de um Sargento de Milícias, este “oscilar entre dois pólos”? E, num segundo momento, qual o sentido das críticas religiosas do seu autor? Este artigo tenta responder a tais indagações.

HISTÓRIA E CRÍTICA

Um livro – um mundo, uma perspectiva sobre o mundo, uma perspectiva. Sobretudo, uma unidade. Pressuposto indispensável à interpretação, e no entanto certamente fragilizado no caso de Manuel Antônio de Almeida, onde se nos afigura, não dissociado de um certo esforço ordenador, duas posições, ou dois momentos. Não considero que essa divisão obedeça a limites internos de composição rígidos.

O primeiro desses momentos remete à escolha do referencial da narrativa, ou seja, a delimitação de um tempo e um espaço onde há a comunicação entre a ficção e a História2. Quando o autor se refere à sociedade carioca que podemos situar entre 1808 e 1821, ele está na realidade falando de sua própria época, ou seja, por volta da década de 1850.

“Era no tempo do rei”, na primeira página, a primeira linha. Frase definidora, porque breve e direta, abre remetendo a um sentido, causa além disso uma impressão3. Não se trata de qualquer tempo. O laconismo se autoriza pela suposição da comunidade de juízos a respeito do período joanino no Brasil por parte dos leitores, “certa atmosfera cômica e popularesca” (CÂNDIDO, 1970, p. 5). Época alvo das invectivas do autor – “bela época” (p. 11), “abençoada época” (p. 12), “devotos tempos” (p. 24), e de seus grifos irônicos; época que concorre como instrumento das críticas de Manuel Antônio de Almeida.

Críticas cujo alvo são, digamos sem rodeios, não as relações dialéticas entre ordem e desordem, ou o embate entre uma classe dominante e uma camada baixa – e isso bem notou Antônio Cândido - tampouco da obtenção de juízos morais sobre as transgressões das personagens. Ela ocorre na relação entre o público e o privado.

O autor está teorizando sobre a sua realidade social, histórica. E ele o faz destacando determinado aspecto que permeia as relações entre as personagens bem como as suas caracterizações, isto é, a distância entre as motivações individuais e as justificações sociais. O tempo do rei é pleno de significações porque é propício historicamente – por ser origem, por assim dizer – desse aspecto sobre o qual o autor se conscientizou e se propôs a retratar.

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O tempo do rei estaria carregado de comportamentos regidos pela plasticidade das performances num nível público (note-se o destaque dado a influência da condição física dos meirinhos de “outrora” na sua imponência, no primeiro capítulo), os compromissos com certa camada social e a contradição causada entre os imperativo da vontade popular. O caso do batismo de Leonardo é ilustrativo: “Fazia um belo efeito cômico vê-lo (o Leonardo pai) em trajes de ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando um monótono zunzum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria” (parte I, capítulo I, p. 14).

É notável, mesmo nas composições humorísticas – o humor é sem dúvida um objetivo explícito -, a preocupação do autor com o aspecto formal, a conduta, as representações corporais, os gestos, o que parece falso, o que transgride; ele critica as aparências, a formalidade, o drama, o ritual, a pompa, a caricatura, o inautêntico.

O Leonardo Pataca, enquanto meirinho, uma classe que “gozava então de não pequena consideração” (parte I, capítulo I, p. 11), constitui o romântico, meloso, “romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha” (parte I, capítulo IV, p. 26), supersticioso, que dá mais badaladas no sino da Igreja à hora do nascimento da filha só por precaução, que tira fortuna, enfim: o tipo decadente do romântico.

Talvez a frase definidora do romance seja uma a respeito de um José Manuel, pretendente ardiloso com ares de golpista que se coloca entre Leonardo e Luisinha: “Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara” (parte I, capítulo 21, p. 89). Eis aqui a matéria para um livro.

RELIGIÃO

Matéria que exige diversas considerações. Que se tornarão mais justificadas quando tratarmos da religião. Há pelo menos três eventos religiosos que eu pretendo destacar.

O primeiro deles se passa no início da narrativa (capítulo IV). Leonardo Pataca, doido de amores por uma cigana, adentra um mangue nos arredores da cidade em busca de um mago, para “tirar fortuna”, isto é, para conseguir os favores amorosos da cigana, agora fora de seu alcance. São-lhe receitadas um sem-número de práticas mágicas e, não surtindo o efeito desejado, decide-se à submissão a um ritual que constituiria, palavras do autor, a “última prova”, interpretemos, o ápice das técnicas dominadas pelo mago. Acontece que durante a cerimônia, são todos surpreendidos pela chegada do major Vidigal “o árbitro supremo” que “exercia enfim, uma espécie de inquisição policial” (parte I, capítulo V, p. 28), e o meirinho é preso, sendo depois alvo constante das piadas.

O segundo evento abre a segunda parte do romance. Oura vez Leonardo Pataca é o protagonista. Desta vez, trata-se do nascimento de sua filha e das práticas da sua comadre – parteira, beata de mantilha, benzedeira de quebranto. São narrados os procedimentos rituais para a execução da operação especializada – com certo exagero, certamente – que envolve o que muitas vezes é chamado de sincretismo religioso. Aqui não há qualquer ridicularização de nenhuma das ações.

Algumas considerações devem ser feitas sobre esses dois episódios. Ambos mantém um vínculo estreito com práticas mágicas.

“Decidiu-se finalmente a sujeitar-se à última prova, que foi marcada para a meia-noite em ponto na casa que já conhecemos. À hora aprazada lá se achou o Leonardo; encontrou na porta o nojento nigromante4, que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava, e obrigou-o a pôr-se primeiro em hábitos de Adão no paraíso, cobriu-o depois com um manto imundo que trazia, e só então lhe franqueou entrada. A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro,

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que não nos cansaremos em descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira. Começando a cerimônia o Leonardo foi obrigado a ajoelhar-se em todos os ângulos da casa, e recitar as orações que já sabia e mais algumas que lhe foram ensinadas na ocasião, depois foi orar junto da fogueira. Neste momento saíram do quarto três novas figuras, que vieram tomar parte na cerimônia, e começaram então, acompanhando-os o supremo sacerdote, uma dança sinistra em roda do Leonardo (parte I, capítulo IV, pp. 26-27).”

Por outro lado, no caso da comadre:

“A padecente estava, porém a morrer de susto: nem se moveu à exortação da comadre. Entretanto o tempo ia passando, e a pobre rapariga a sofrer; já lhe tinha a comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito, já tinha inclinado mais sobre a cama a palma benta, e ainda nada de novo (...) Continuava o tempo a passar: a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a Nossa Senhora, e depois de uma breve oração voltou ao seu posto. Tirou então do bolso da saia uma fita azul comprida e passou-a em roda da cintura a Chiquinha; era uma medida de Nossa Senhora do Parto” (parte II, capítulo I, pp. 98-99)

Observemos os adjetivos do primeiro caso: nojento, imundo... implicam sem dúvida um juízo do autor. Ainda temos a fogueira, de significado obscuro num suposto ritual de necromancia5, sem falar da nudez de Leonardo; a dança “sinistra”. Tudo parece muito supérfluo, muito desnecessário. Do ponto de vista da prática religiosa certamente. Mas não da narrativa, pois o suor que caracterizava o Leonardo após repetir o ritual por ordem do Vidigal, certamente tinha origem no seu esforço em dançar e na fogueira. São elementos religiosos se prestando ao destaque do ridículo.

Vejamos mais um trecho:

“Naquele tempo acreditava-se muito nestas coisas, e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os industriosos! E não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições” (parte I, capítulo IV, p. 25)

Há sempre os que abusarão da boa fé, como caso do nigromante ou da D. Maria, tia de Luisinha, sempre com suas demandas; também José Manuel consegue impressiona-la com seu desempenho em processos judiciais, visto que a mulher era louca por uma “demanda”. Tanto o ritual quanto o processo, são criticados por serem performances, encenações, ritos desnecessários, que eram costume inclusive:

“D. Maria tinha bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das demandas”(parte I, capítulo XVII, p.75)”.

Num caso a cabana, no outro o tribunal. São as encenações que preocupam nosso autor. Como as festas religiosas se prestando à ostentação, feitas não por fé, mas por moda.

No segundo caso que eu havia destacado, não há quaisquer juízos desse tipo. Extremamente relevante, é a ausência da palavra superstição6 para designar as práticas da Comadre.

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O que diferencia esses dois episódios, é que na relação entre a parteira e a cliente (parturiente), há um comprometimento de ambas as partes entre si, e como prática religiosa. No caso do mago e do consulente, apenas o Leonardo acredita nos efeitos da magia a que se submete. Ainda: não há pagamento no caso da parteira, mas há no caso do caboclo. As críticas se dirigem a este e não àquela. O que se conclui é que o juízo negativo não está calcado sobre a religião ou sobre a magia (para manter uma separação), e sim sobre a sua prática enquanto linguagem que recobre outras motivações que nada têm de espirituais. É uma crítica à falsa religiosidade7.

Crítica da religião – enquanto linguagem para expressão de vontades individuais, como uma técnica ou uma ferramenta. Como no caso da fortuna (para ambos os lados – o mago que quer lucrar, e o Leonardo que quer a cigana), no caso do Pataca falando em danação8, do mestre de cerimônias que quer poder (a ser analisado maio adiante), do compadre que quer o afilhado (Leonardo Filho) rico e bem posicionado como padre. A questão é da religião deslocada de seu contexto. Não há quaisquer preocupações soteriológicas. Manuel Antônio de Almeida critica o imediatismo. Talvez pela presença de uma mentalidade católica9. No caso da comadre, não há críticas – ela não usa de meios religiosos para conseguir prestígio, ou levar a bom termo os planos de casar seu afilhado. Ela tem uma posição bem definida: usa do sincretismo (não enunciado, como vimos) para algo bom (o nascimento de uma criança).

II

É aqui que percebemos o segundo momento a que eu me remetia no início da minha argumentação. A desordem não repousa num compartimento social. Oscilar entre ordem e desordem significa poder escolher entre ambas. Significa que, primeiramente, essa distinção é inútil; em segundo lugar, que ela está nas personagens; em terceiro, que os valores estão sendo relativizados pelo autor. Há duas ordens diferentes. Há uma diferenciação entre o que é a tradição e o que não é. Há tanta ordem em uma missa católica quanto na cerimônia do parto realizada pela comadre10. E tanta ordem aqui, quanto desordem no caso do caboclo do mangue, onde tudo cheira a embuste.

O autor abstrai. Fazendo isto, situa a religião como uma escolha. Num primeiro nível o catolicismo e a magia11. A Igreja se torna uma alternativa. Num segundo nível, a religião se torna uma alternativa.

A escolha é sentida quando surge a questão da inversão. Toma-se consciência de uma ordem que é transgredida. No mangue não há ordem qualquer.

Mas, quando não se faz uma inversão, não há transgressão.

Ordem e desordem – para ser mais correto – ambigüidade, que é vivida num nível existencial e não social.

Esse é o sentido das abstrações. Vejamos num exemplo, a percepção aguçada do autor: “(...) decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar” (parte I, capítulo IV, p. 26), a respeito do infortúnio coma cigana e a busca do caboclo do mangue. Ele está teorizando sobre a ação humana.

A ambigüidade das personagens é utilizada pelo autor para captar os dois lados extremamente coerentes (portanto, passíveis de escolha), duas tradições – uma oficial, objeto de da alta literatura até então, comprometida com a Igreja e o Estado, e outra, anônima, das ruas,onde impera a vontade individual e também os agrupamentos, os objetivos comuns – a diversão, a sobrevivência diária, a família, a comunidade.

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Isso se aplica ao caso da comadre parteira e não do mago do pântano. Aqui não há coesão. O transgredir toma o lugar do escolher.

Nos momentos de crítica está manifesta a consciência histórica do autor; em outros, a tradição é dominante, pois ele apenas retrata as ditas superstições sem ao menos enunciá-las enquanto tais. No primeiro caso, é o embuste que se afigura por trás do ritual (ritual magic12) que é objeto de crítica; no segundo não há o distanciamento (desprendimento, separação) necessário para tornar as operações do parto enquanto mágicas. Há reciprocidade, relação. Há sim, e isso é extremamente interessante, a crítica ao não comprometimento com o sincretismo, como se vê: “Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto. ‘Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.’ São palavras de Jesus Cristo! Já se vê que a comadre era forte em história sagrada” (parte II, capítulo I, p. 99). Isso me lembra uma passagem de Victor Hugo: “Não sejas feiticeiro, mas, se o és, faze teu ofício.”13

Mas porque estava eu a falar de consciência histórica? Trata-se do seguinte: Manuel Antônio de Almeida cria, no interior de sua narrativa, uma metáfora para expressar sua conscientização de um aspecto que lhe chama atenção, e que conforme foi dito várias vezes, é o falso, a hipocrisia, a distancia entre ação, intenção e justificação. Essa metáfora é o “tempo do rei”.

Criando essa heterogeneidade temporal propícia a uma crítica da transgressão histriônica - porque por ela dominada – o autor tem condição de ilustrar as conexões que estabelece para as orientações da ação humana. Quando as ações se afiguram ridículas, percebe-se o esforço em deixar transparecer uma diferenciação temporal – é o exagero da inversão que se atualiza com a narrativa de um tempo de performances exacerbadas. Ele reelabora os dados da sua realidade social até transformar as personagens em tipos ambíguos, facilmente caracterizáveis por suas posições. Exagera para ilustrar. Com Stuart Clark14 ou Roberto DaMatta15, podemos dizer que o autor está ritualizando.

“Desse modo, o ritualizar, como o simbolizar, é fundamentalmente deslocar um objeto de lugar – o que traz uma aguda consciência da natureza do objeto, das propriedades do se domínio de origem e da adequação ou não ao seu novo local. Por isso, os deslocamentos conduzem a uma conscientização de todas as reificações do mundo social, seja no que elas têm de arbitrário, seja no que tem de necessário. É por isso que o mundo do teatro, com sua verdadeira artificialidade e arbitrariedade, é capaz de comover. Pois vejo no artificial, e no representado uma representação do meu mundo social. E, pelo artificial, acabo por me comover e me mobilizar pelo real que, no palco e por meio de atores, está inteiramente deslocado” (DaMatta, 1997, p. 99).

III

A oscilação então num pano existencial. O Leonardo como herói. Leonardo é aquele que não mantém as aparências. Não se reprime, não se submete à ordem, ou ao que uma determinada moral assim que assim define a ação humana. É o herói porque consegue romper com quaisquer impedimentos: nem a malandragem (a liberdade? A desordem?) o prende, tanto que não se impede de casar quando a ocasião surge, não tendo nunca tentado senão por amor, não por interesse.

Isso nos leva até aquele terceiro evento religioso ao qual me referia acima. Quando Leonardo era ainda criança, ocupava o cargo de ajudante de missas. Após realizar uma travessura – jogar cera derretida de uma vela que segurava, durante a missa, numa vizinha que lhe “agourava” – e receber o sermão do mestre-de-cerimônias, decide se vingar e humilha-lo em público durante um sermão que tradicionalmente proferia – e era então muito aguardado -, revelando diante de sua comunidade, seu caso com uma cigana (sim, a mesma de Leonardo Pataca).

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O episódio, descrito no capítulo 14 da primeira parte, traz consigo algumas curiosidades. A primeira delas é a que abre o episódio:

“O mestre-de-cerimônias era um padre de meia-idade, de figura menos má, filho da Ilha Terceira, porém que se dava por puro alfacinha: tinha-se formado em Coimbra; por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanapalo, que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido; porém interiormente era sensual como um sectário de Mafoma” (parte I, capítulo XIV, p. 60).

Aqui temos outra vez a crítica quanto à ostentação de uma figura que contraste coma verdadeira pessoa. A farsa. O padre que se envolve com mulheres, era, aliás, algo relativamente comum na literatura inquisitorial lusófona. Mas quero destacar acima de tudo, as relações que Manuel Antônio de Almeida estabelece: quando trata das condições existenciais do mestre-de-cerimônias, utiliza-se de uma metáfora, “por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanapalo”; uma ilustração, enfim, para tornar o leitor sensível às conexões estabelecidas e às críticas que pretende empreender. Mais relevante ainda, é o que vem a seguir: “que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro”. Ou seja, o autor está aludindo à atividade literária e a uma tradição satírica. Assim, não apenas abstrai quanto à atividade humana, mas ao ofício do literato: evidenciar as contradições e o ridículo de se sustentar as aparências numa sociedade aristocratizada.

O segundo ponto de destaque é um embate travado entre o mestre-de-cerimônias e um pregador italiano que começou o sermão em função de seu atraso – obra de Leonardo.

“Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra, nadavam em um mar de rosas.

— Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga, la voce del la Providenza...

— Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o mestre-de-cerimônias...

— Piage al cor... acrescentava o capuchinho.

— Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre-de-cerimônias.

E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:

— Che bestia, per Dio!” (parte I, capítulo XIV, p. 63).

Reparemos nas palavras de ambas as partes, pois elas formam uma verdadeira antítese, que pode ser ilustrada assim:

Mestre – poder – voz rouca – trombetas – queda do diabo

X

Capuchinho – voz meiga, aflautada – caros irmãos – voz da Providência – calma ao coração

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Notável é a alusão ao diabo. Como em toda a narrativa, em que o termo aparece modificado (endiabrado, diabrura), por 24 vezes, aqui tem também uma conotação interjetiva. Na fala do mestre-de-cerimônias, a linguagem é um instrumento; o foco é a performance, é o ato de falar. O diabo, assim como as outras palavras, são aqui manifestações da força (a rigor, num sentido religioso, cratofanias). Isto é, concordando com esse uso da religião para se promover, temos o sermão, que, nos diz Manuel Antonio de Almeida, “aquele sermão anual era o meio por que ele esperara chegar a todos os fins, a que contava dever toda a sua elevação futura; era o seu talismã” (parte I, capítulo XIV, p. 61).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Como sempre acontece aquém tem muito o que escolher (...)” ( parte I, capítulo XVIII, p. 79). Leonardo não tem padrão algum eu seguir; regra e transgressão têm para ele o mesmo valor.

As críticas do autor caminham na seguinte direção: trata-se da ausência de “valores autênticos”, ou de uma clareza na interiorização das normas morais – que torna julgamentos de tal ordem irrelevantes – que orientem as ações no desdobrar existencial da personagem. Uma crítica à decadência de alguns ideais. O tempo do rei é um artifício, irônico, porque não trata-se do tempo do rei. É o tempo da obra. Esclarecem-se assim as críticas aos sistemas de ensino de então. Tanto o mestre-de-aulas (parte I, capítulo XII, p. 54) quanto o mestre-de-rezas (parte II, capítulo IV, p. 110), são os mais afamados porque são os mais rígidos. Ora, se algo é demonstrado no enredo é que severidade pouco adianta se não há um sentido, ou se um valor não é defendido sem que haja contradição – para nosso autor isso é virtualmente impossível.

Quanto à ausência de preocupações soteriológicas, ela se ajusta muito bem à ausência de projetos individuais. A religião católica é pouco útil para as questões de ordem prática e cotidiana.

Como processo psicológico a superstição apresenta-se como um lógica necessária e clara. É uma solução dependente da vontade individual. Farás tal processo para tal ato. (...) Fundamenta-se na confiança de poder dispor, evitar, afastar, dispersar, aproximar as grandezas imortais,fazendo-as ou tornando-as acessíveis e dóceis aos interesses pessoais, do agente supersticioso.(CASCUDO, 1971, p. 155)

Também quanto às questões morais, a mentalidade mágica expressa pelas personagens destas memórias em seus atos cotidianos, é mais uma vez, reveladora.

“Se a religião tem uma pretensão ética, a magia é, por seu lado, eminentemente amoral, ou seja, não se preocupa com as questões morais. Não se trata, no entanto, de ser imoral, que seria posicionar-se contra as normas e valores. Não há preocupação alguma com aquilo que pode ser entendido como o Bem ou o Mal” (GUERRIERO, 2003, p. 81).

A sociedade que aparece na expressão de sua peculiar imagem tornada consciente é a que oscila entre a aparência e os devaneios da vontade. Predomina o gesto, a performance, que se imiscui nos diversos domínios da narrativa. Até mesmo no caso das práticas mágicas – como a necromancia do pântano ou a catarse16 do parto – não é a finalidade da ação que é condenada, tampouco sua performance, mas o que nelas parece acessório e inautêntico.

Ao equacionar aspectos religiosos e sociais – a contradição performática – o autor coloca a religião como apenas mais uma alternativa orientadora e a relega ao plano de um mero “valor

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desvalorizado”. Esse é o sentido da oscilação das personagens e da crítica religiosa: não há mais valores que ofereçam aos homens um caminho para a felicidade. Se é que um dia houve.

NOTAS

1 – “Sabemos ainda que o externo (o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno” (CÂNDIDO, 1967, p. 4)

2 – É relevante o diálogo entre ficção e verdade do ponto de vista da literatura. Sempre haverá abstração em ambas as partes (literatura e história) e ambas utilizam de elementos ficcionais para constituir narrativas, mas no segundo caso, há um compromisso auto-regulador com a verdade (segundo Jörn Rüsen).

3 – É um recurso utilizado muitas vezes pelo autor. “Daí sua influência moral” (p. 11); “Assim chegou aos sete anos” (p. 15); “Daí a pouco começou o fado” (p.33). É um impressionismo.

4 – Jean Claude Schmitt (1999, p. 27) sugere que o termo se refira à magia negra, conotação que marca a diferenciação para necromante (que advinha pelos mortos, invocando). No nosso caso, isso tem pouca importância.

5 – Não parece que o autor se refira apenas à adivinhação no evento do pântano, tratando de fortuna. Ele quer resultados práticos sobre o livre arbítrio da cigana. O que talvez aproxime a descrição da antiga magia ritual. Seu historiador é Norman Cohn: “ Through ritual magic, one could, without effort, master the arts and the sciences; one could compel the love of the mate one wanted; one could win the favour of the great and so advance one’s career; one could discover the whereabouts of hidden or buried treasure; one could foresee one’s future.” (2000, p. 107).

6 – “A superstição é uma sobrevivência de cultos desaparecidos. [no nosso caso eu acrescentaria marginalizados oficialmente] Ficam vestígios atualizando proibições ou atos vocatórios de infelicidades de outrora. Superstição, super-stitio, o-que-sobreviveu. Ajustam-se psicologicamente aos elementos religiosos contemporâneos, sempre condicionados à mentalidade popular. Permanecem no automatismo mímico, enunciação de frases afastadoras do Mal, ou renúncias denunciando os limites lícitos das devoções diluídas no tempo. É um reflexo associado” (CASCUDO, 1971, pp. 150 – 151). É uma posição sólida,mas também discutível. Não há lago em si que seja superstição. Mas o nosso autor provavelmente sabe disso.

7 – É marca dos tribunais portugueses da inquisição esse tipo de preocupação, conforme os trabalhos de Francisco Bethencourt, Laura de Mello e Souza, Márcia Moisés Ribeiro e Geraldo Pieroni mostram claramente.

8 – “— Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...

A cigana interrompeu-o:

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— Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...

— Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...

— Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou,

estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...

— Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem

vingado.

— Ora! respondeu a cigana rindo-se.

E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.

O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:

— Faço uma estralada, dê no que der...”

9 – O autor usa determinada tradição para conferir facticidade à sua narrativa. O sentido é alcançado com recurso a lugares comuns pertencentes a uma mentalidade mágico-religiosa, a exemplo do início do capítulo X (“Explicações”) da primeira parte do livro. Lançar mão de determinada causalidade – como a crença no destino – revela uma relação de compromisso, ou para me isentar de imputar-lhe uma ideologia, limites para a representação, ou um campo específico de suas críticas.

10 – “Dizer que uma crença uma crença é no racional é falar sobre a maneira que ela se sustenta em relação em relação às outras crenças” (Alasdair McIntyre). (CLARK, 2006, p. 14)

11 – Na verdade não há uma separação, ao meu ver, entre as duas significações históricas.

12 – Ver nota 5.

13 – Os Trabalhadores do Mar, Outros Pontos Ambíguos de Gilliatt.

14 – Sigo a sugestão da “escrita como performance ritual”, dada por Stuart Clark (2003, p. 133)

15 – “Qual o propósito desse exagero, que chega a atingiras raias da caricatura? Parece-me que ampliar, ou de diminuir, ou descolorir desse modo, é uma forma primordial de abstração” (DaMatta, 1997, p. 99)

16 – “— Soprai, menina, continuava sempre dentro a comadre, soprai com Nossa Senhora, soprai com S. João Batista, soprai com os Apóstolos Pedro e Paulo, soprai com os anjos e serafins da Corte Celeste, com todos os santos do paraíso, soprai com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo. Houve finalmente um instante de silêncio, que foi interrompido pelo choro de uma criança.” (parte II, capítulo I, p. 99).

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BIBLIOGRAFIA

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CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

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CLARK, Stuart. Pensando com Demônios. São Paulo: Edusp, 2006.

COHN, Norman. Europe’s Inner Demons. Chicago: Chicago University Press, 2000.

DaMatta, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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GUERRIERO, Silas. A magia existe? São Paulo: Paullus, 2003.

HUGO, Victor. Os trabalhadores do Mar. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

SCHMITT, Jean Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.