art - dança, educação e contemporaneidade - alba pedreira

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Para citar este artigo: VIEIRA, Alba Pedreira. Dança, educação e contemporaneidade: dilemas e desafios sobre o que ensinar e o que aprender. In: LARA, Larissa M. (orga). Dança: dilemas e desafios na contemporaneidade. Maringá: EDUEM - Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2011. Dança, educação e contemporaneidade: dilemas e desafios sobre o que ensinar e o que aprender Alba Pedreira Vieira Introdução Quando refletimos sobre dilemas e desafios da dança na educação, não há como deixar de lado o processo ensino-aprendizagem. Discussões sobre o que ensinar e o que aprender abordam, geralmente, o que o professor de dança deve ensinar e o que seu aluno, supostamente, deve aprender. Tenho eu mesma, como professora de dança há mais de 20 anos, no ensino superior e básico, me confrontado com constantes desafios sobre esta temática, o que instiga reflexões sobre o que o professor de dança aprende e o que seu aluno lhe ‘ensina’. Este parece ser um jogo de inversão de papéis interessante, polêmico, às vezes tenso, e no geral complexo. Tendo presente as diversas interrelações, bem como múltiplas interfaces e faces da dança na escola contemporânea, e as tênues e cambiáveis fronteiras do ensinar e aprender em dança, o que espero com este texto é contribuir para que possamos compreender e qualificar melhor dois lados (ensinar e aprender) de uma mesma moeda (dança e educação). Assim, a temática foco desse artigo se situa dentre os vários dilemas e desafios enfrentados pelos sujeitos que dançam na contemporaneidade. Pesquisadores brasileiros abordam alguns estreitamente relacionados com a dança na educação, por exemplo: Vieira (2008) comenta a inclusão da dança nos Parâmetros Curriculares Nacionais em Arte e o aumento significativo do número de cursos superiores de Dança no Brasil, Strazzacappa e Morandi (2006) discutem a vontade de professores de escolas aprenderem ‘receitas prontas’ de coreografias a serem ensinadas aos alunos para que esses se apresentem nas datas comemorativas (festa junina, festa de encerramento do ano escolar e outras); Marques (2010) enfatiza a necessidade de ensinarmos a partir do contexto dos nossos alunos; Lara e Vieira (2010) ressaltam a necessidade de se estabelecer um ‘jogo’ colaborativo entre professor e

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  • Para citar este artigo: VIEIRA, Alba Pedreira. Dana, educao e contemporaneidade: dilemas e desafios sobre o que ensinar e o que aprender. In: LARA, Larissa M. (orga). Dana: dilemas e desafios na contemporaneidade. Maring: EDUEM - Editora da Universidade Estadual de Maring, 2011.

    Dana, educao e contemporaneidade: dilemas e desafios sobre o que ensinar e o que aprender

    Alba Pedreira Vieira

    Introduo

    Quando refletimos sobre dilemas e desafios da dana na educao, no h como deixar de

    lado o processo ensino-aprendizagem. Discusses sobre o que ensinar e o que aprender

    abordam, geralmente, o que o professor de dana deve ensinar e o que seu aluno,

    supostamente, deve aprender. Tenho eu mesma, como professora de dana h mais de 20

    anos, no ensino superior e bsico, me confrontado com constantes desafios sobre esta

    temtica, o que instiga reflexes sobre o que o professor de dana aprende e o que seu aluno

    lhe ensina. Este parece ser um jogo de inverso de papis interessante, polmico, s vezes

    tenso, e no geral complexo. Tendo presente as diversas interrelaes, bem como mltiplas

    interfaces e faces da dana na escola contempornea, e as tnues e cambiveis fronteiras do

    ensinar e aprender em dana, o que espero com este texto contribuir para que possamos

    compreender e qualificar melhor dois lados (ensinar e aprender) de uma mesma moeda (dana

    e educao).

    Assim, a temtica foco desse artigo se situa dentre os vrios dilemas e desafios

    enfrentados pelos sujeitos que danam na contemporaneidade. Pesquisadores brasileiros

    abordam alguns estreitamente relacionados com a dana na educao, por exemplo: Vieira

    (2008) comenta a incluso da dana nos Parmetros Curriculares Nacionais em Arte e o

    aumento significativo do nmero de cursos superiores de Dana no Brasil, Strazzacappa e

    Morandi (2006) discutem a vontade de professores de escolas aprenderem receitas prontas

    de coreografias a serem ensinadas aos alunos para que esses se apresentem nas datas

    comemorativas (festa junina, festa de encerramento do ano escolar e outras); Marques (2010)

    enfatiza a necessidade de ensinarmos a partir do contexto dos nossos alunos; Lara e Vieira

    (2010) ressaltam a necessidade de se estabelecer um jogo colaborativo entre professor e

  • alunos no processo educacional em dana. A fim de contribuir com essa temtica, busco nesse

    texto abordar dilemas e desafios nas relaes entre dana, educao e contemporaneidade,

    focando especificamente sobre o que ensinar e o que aprender nesse universo. Meu ponto de

    partida o compartilhamento de um projeto artstico-educacional-investigativo que coordenei

    em Viosa, MG, no qual desenvolvemos a fruio e usufruio em dana com estudantes de

    instituies no-particulares. Esse artigo mescla descrio e reflexo sobre aes realizadas

    em diversas instituies educacionais pblicas como parte do projeto anteriormente

    mencionado. Detalhamentos sobre onde e o que aconteceu sero apresentados adiante no

    texto. Essa abordagem baseada no pensamento Tao chins, em que ao e reflexo no

    podem existir separados. A ao, ou componente yang, de uma experincia conota

    movimento levando a transformaes. Por exemplo, diante de um dilema, algo vibrante

    ocorre e essa energia faz com que as pessoas busquem novos caminhos, novos desafios, novas

    direes. Reciprocamente, a reflexo, ou componente yin, de uma experincia conota

    significado. A reflexo nos permite organizar e interpretar a ao de tal forma que qualquer

    mudana que tenha ocorrido compreendida e at mesmo apreciada. O dilema se torna ento

    um desafio que nos estimular a trilhar novos caminhos e desafios. Sem reflexo, os aspectos

    positivos da ao so fugazes. Sem a ao que em dana inclui o movimento, a reflexo

    postura intelectual sem implicaes no mundo real (SIMPSON, MILLER, BOCHER, 2006).

    Em meio s descries das aes e resultados que apresento, e das reflexes que

    desenvolvo, muitas camadas vo sendo reveladas, como quando se descasca uma cebola.

    Compartilho significados e elementos da educao da fruio e usufruio em dana

    experienciada por estudantes da educao infantil e do ensino bsico de instituies no-

    particulares, e tambm discuto como esse estudo e jornada educacional foram nutridos pela

    minha filosofia pedaggica inicial, que mudou ao longo do caminho.

    Foi a partir de uma filosofia pedaggica crtica (FREIRE, 1996) que tudo comeou.

    Deixei o pas em 2003 e quando voltei ao Brasil em 2007, aps terminar meu doutorado em

    Dana na Universidade Temple, nos Estados Unidos, retomei minha condio de professora

    no Curso de Graduao em Dana da Universidade Federal de Viosa/UFV. Trouxe comigo

    uma nova preocupao, alfabetizao em dana, o que alguns autores (por exemplo,

    BUCEK, 1998) nomeiam de educao esttica em dana, outros somaesthetics1 (ARNOLD,

    2005), e ainda h aqueles que chamam esse processo de educao para apreciao da dana.

    1 Traduo livre da autora: educao esttica do soma.

  • Ann Dils (2007, p. 569) ainda usa o termo alfabetizao em dana, um termo aplicado ao

    trabalho em que os "estudantes so familiarizados com a dana".

    Ao retornar ao meu pas, aps quatro anos em que aqui no estive, tornei-me ciente

    das implicaes que poderiam ocorrer nos prximos anos como fruto de desenvolvimentos

    recentes na arte e na cultura no Brasil. Nos ltimos anos, o governo brasileiro criou e/ou

    aumentou o nmero de leis, bolsas, prmios e financiamento de projetos em arte. Houve

    tambm investimento na elaborao de polticas pblicas em arte. O principal objetivo dessas

    iniciativas manter, desenvolver e difundir a cultura. Esta uma forma de melhorar o acesso

    das pessoas cultura e arte, com base na compreenso da importncia da valorizao

    cultural para o pas.

    Para desenvolver uma discusso ampla e atualizada sobre polticas que envolvem cada

    uma das linguagens artsticas, conselhos foram criados e representantes setoriais da dana, em

    particular, foram nomeados. S no ano de 2010, at o momento, foram realizadas a 9

    Reunio do Conselho Nacional de Polticas Culturais, a Pr-conferncia Setorial de Dana, a

    II Conferncia Nacional de Cultura, e a I Reunio do Colegiado Setorial de Dana. Como se

    pode observar, existem diversas iniciativas para permitir que a populao brasileira tenha

    acesso, experiencie e aprecie manifestaes culturais e artsticas. Como educadora e

    pesquisadora de dana, no entanto, tenho observado que, pelo menos na cidade2 em que moro,

    o pblico em geral, e estudantes em particular, esto ainda acostumados a apreciar trabalhos

    oferecidos pela indstria cultural3, um termo cunhado por Adorno e Horkheimer na Dialtica

    do Esclarecimento (1947). A Indstria Cultural transforma a arte, incluindo a dana, em um

    meio de ser igual. Um exemplo dessa proposio, retirada dessa minha pesquisa, quando os

    estudantes apresentam respostas iniciais (antes de iniciado o trabalho de campo) iguais para

    perguntas como: "O que a dana?" e "Qual o gnero de dana que voc mais gosta?". A

    maioria deles diz que a dana ballet clssico e eles preferem hip hop ambos os gneros so

    bem propagados pela mdia (jornais, filmes, canais de televiso e revistas). O resultado que

    a indstria miditica alimenta um mercado que minimiza a diversidade, e tem um papel

    importante na formatao da sociedade por meio do processo de padronizao. Claro que

    existem, nesse movimento, iniciativas de resistncia na apropriao cultural e fatores

    subjetivos de parte da populao, o que faz com que os meios de comunicao no sejam de 2 Eu moro em uma cidade universitria, Viosa, Minas Gerais, que tem uma populao de aproximadamente 80.000 pessoas. 3 Este termo denuncia uma discusso em que se afirma que nas relaes de troca de mercadorias, as quais todas as relaes sociais so reduzidas, o trabalho cultural perde seu brilho, sua singularidade e suas qualidades especficas. Ao tornar-se um valor de troca, h uma dissoluo da verdadeira arte e cultura.

  • todo hegemnicos. Mas esta discusso no o objetivo deste trabalho. Esse estudo foi

    realizado em Viosa, MG, uma cidade em que a maioria das crianas e adolescentes no tem a

    dana como disciplina do currculo escolar.

    Antes de a pesquisa ser iniciada, em conversas informais com os alunos de muitas

    escolas, fiquei sabendo que a maioria preferia hip hop ou dana de rua, cujos elementos, tais

    como os passos, so importados de culturas estrangeiras, sem uma reflexo mais aprofundada

    sobre este tipo de atitude.4 Os alunos no percebem que esto se colocando margem da sua

    prpria cultura. Portanto, senti a necessidade de investigar e refletir sobre as contribuies da

    alfabetizao em dana (DILS, 2007); uma alfabetizao que pudesse permitir aos

    educandos conhecer outros gneros dessa linguagem.

    A dana considerada uma arte efmera e transitria. Mas tambm tem os seus fixos e

    gneros congelados, como o ballet clssico. No meu contato inicial com os participantes,

    observei que os estudantes podem compreender o que as mensagens de uma obra de ballet

    clssico transmitem e/ou o significado e os cdigos corporais do hip hop. difcil para a

    maioria dos alunos da educao infantil, e do ensino fundamental e mdio, no entanto,

    perceber que a dana, como uma forma de arte, pode promover alm de simples

    entretenimento, da beleza dos corpos magros e da tcnica refinada. Muitos educandos nem

    sequer conhecem danas tradicionais brasileiras como o congado, nem to pouco novos

    gneros, como a dana contempornea. Outros ainda tm a ideia de que o virtuosismo uma

    prioridade na dana. Assim, na concepo e desenvolvimento deste projeto, tentei encontrar

    estratgias que pudessem melhorar o apoio valorizao e difuso cultural.

    Trajetrias nas escolas

    O que apresento nesse texto fruto de uma pesquisa-ao desenvolvida de fevereiro

    de 2008 a setembro de 201, a fim de possibilitar alunos da educao infantil e do ensino

    bsico de instituies no-particulares de Viosa estarem expostos a mltiplas formas e

    expresses artsticas em dana. Atualmente, essa pesquisa tem continuidade com alteraes

    julgadas pertinentes para qualificar o processo investigativo.5Embora no tenha informaes

    demogrficas completas sobre os participantes, foi possvel observar diversidade tnica, de

    gnero, e de nvel de desenvolvimento real do conhecimento (VYGOTSKY, LURIA,

    4 Uma observao semelhante foi feita pelas pesquisadoras brasileiras Medrano e Valentim. Ver seu artigo "A indstria cultural invade a escola brasileira" (MEDRANO, VALENTIM, 2001). 5 Os subprojetos de ensino, pesquisa e extenso que so articulados com esse amplo projeto conta com apoio financeiro do CNPq, CAPES e FAPEMIG.

  • LEONTIEV, 1988).6 A experincia de dana dos estudantes tambm foi diversificada: um

    nmero muito pequeno deles danou bal clssico e/ou hip hop ou dana de rua em projetos

    artsticos da comunidade. Apenas alguns alunos tiveram aulas de dana contempornea. A

    idade deles variou de trs a 18 anos.

    Do total de 1000 participantes, 750 eram de dez escolas (municipais ou estaduais) e

    250 de quatro instituies no-municipais e filantrpicas de educao infantil. Os alunos

    tiveram duas oficinas de dana (50 minutos cada). Em 2008, o projeto assim se desenvolveu:

    no primeiro semestre o trabalho foi realizado com alunos do ensino mdio, e no segundo

    semestre foi desenvolvido com os alunos do sexto ao nono ano; em 2009, no primeiro

    semestre, trabalhamos com os alunos do primeiro ao quinto ano; em todo ano de 2010,

    trabalhamos com educandos do primeiro ao quinto ano, e do sexto ao nono ano; em 2011,

    desenvolvemos o trabalho com discentes do primeiro ao quinto ano. Durante dez meses de

    2008, 2009 e 2010, os educandos da educao infantil participaram das atividades do projeto.

    As oficinas terico-prticas desenvolvidas com os participantes lhes ofereceram

    possibilidades de criar, recriar e valorizar o universo da dana, alm de serem apresentados a

    diferentes formas e expresses artsticas, tais como dana de salo e do ventre, flamenco,

    dana contempornea, improvisao, dana de salo e outros. Vrias apresentaes foram

    seguidas de dilogo entre os artistas e o pblico. Os professores revisaram continuamente o

    material pedaggico para negociar as necessidades, desejos e interesses dos participantes com

    os deles prprios. Em muitas oficinas, os alunos foram divididos em grupos para que cada um

    se apresentasse e fosse observado por seus pares. Os estudantes tambm assistiram diversos

    trabalhos de dana ao vivo, de grupos e/ou artistas profissionais e amadores (espetculos,

    nmeros, mostras, instalaes, performances e festivais em teatros, em suas prprias escolas e

    no Curso de Dana da UFV) e na televiso (DVDs). Os participantes observaram aulas de

    projetos de extenso e de alunos do Curso de Graduao em Dana na universidade ballet,

    dana contempornea e danas brasileiras. Finalmente, no final do semestre, muitos

    participantes apresentaram seus trabalhos de dana, no teatro. No processo de criao desses

    trabalhos, eles atuaram como intrprete-criadores. As figuras 1, 2, 3 e 4 explicitam diversos

    momentos e propostas desenvolvidas no trabalho de campo: A figura 1 ao alto e direita

    registra uma oficina prtica com os participantes do projeto em que alunos apreciam a dana

    de seus colegas; a figura 2 ao alto e esquerda apresenta participantes da educao infantil

    6 O desenvolvimento real, para os autores, j foi consolidado pelo sujeito e lhe possibilita tornar-se capaz de resolver situaes lanando mo de seu conhecimento de forma autnoma. O nvel de desenvolvimento real dinmico, e aumenta com os movimentos do processo de aprendizagem.

  • assistindo apresentao de dana-teatro na prpria instituio educacional; a figura 3 abaixo e

    direita demonstra estudantes em oficina prtica de dana contempornea na escola; a figura

    4 abaixo e direita mostra participantes do projeto assistindo performance em dana no teatro

    com bailarinos profissionais.

    Figuras 1, 2, 3 e 4: diversos momentos e propostas desenvolvidas no trabalho de campo

    As figuras 5 e 6 ilustram outros procedimentos adotados no trabalho de campo a fim

    de se desenvolver o alfabetismo em dana e assim, mostram, respectivamente, participantes

    do projeto em dilogo com artistas aps espetculo de dana no teatro, e apresentao de

    participantes do projeto no palco.

  • Figuras 5 e 6: Demais estratgias desenvolvidas no trabalho de campo

    Procedimentos metodolgicos

    Como explicado em outro artigo (VIEIRA, 2010a),

    Este estudo combina uma abordagem de pesquisa multi-metodolgica (SCHUTZ et al., 2004, p. 227) ao adotar a abordagem quanti-qualitativa que incluiu a pesquisa-ao (KEMMIS & McTAGGART, 2005), fenomenologia interpretativa (VAN MANEN, 1997), a teoria de anlise do discurso de Michel Pcheux (1982), e orientaes scioconstrucionistas (SARBIN & KITSUSE, 1994). Pode parecer uma contradio mesclar mtodos investigativos que so aparentemente antagonistas. Na verdade, o esforo avanar o entendimento em pesquisa ao usar princpios diferenciados de maneira que eles se complementem. (p. 90)

    Observaes sistemticas foram registradas ao longo do trabalho de campo. Os

    alunos tambm responderam s mesmas perguntas, sob a forma de dois questionrios - o

    primeiro foi aplicado antes do trabalho de campo e o segundo aps o seu trmino. Junto

    com os colaboradores deste estudo, coletamos respostas escritas e orais e desenhos das

    crianas que no sabiam ler (VIEIRA, 2010b). Nesse artigo, apresento comparaes entre

    vozes iniciais e finais dos alunos (respectivamente, antes e aps o trabalho de campo), e

    tambm seus desenhos finais. A anlise de dados utilizou princpios da abordagem

    hermenutica. Concordo com Adshead-Lansdale (1999) que a interpretao de dados conta

    muitas histrias, no apenas uma, e neste estudo compartilho apenas uma verso possvel.

    Essas ideias, portanto, desafiam a noo de uma verdade universal na interpretao

  • (VIEIRA, 2010a).7 Ademais, ao explorar significados, concordo com Wazlawick (2006)

    que:

    o significado no compreendido como algo pr-fixado, rgido, imutvel, universalizado. Justamente pelo seu uso deve ser entendido como algo dinmico, em constante movimento, relacionado aos sentidos atribudos pelos sujeitos e grupos de acordo com suas formas de vida. Seriam estas formas de vida que levariam aos jogos de linguagem, de acordo com os usos das palavras, que no so os mesmos entre as diferentes comunidades. Significados no universais, permeados pelos sentidos atribudos pelos sujeitos de acordo com o uso das palavras, em seus contextos. (p. 26)

    Vozes dos participantes

    No questionrio inicial da pesquisa, apresentamos aos participantes uma pergunta,

    O que dana para voc?, a fim de conhecer significados que tinham sido construdos

    antes de uma exposio direta a um trabalho educacional cujo foco fosse o alfabetismo

    nessa linguagem artstica. A maioria das respostas apontou a dana como diverso. Como

    exemplo temos as seguintes falas: dana para mim voc se soltar, se divertir; uma

    terapia, uma forma de se divertir; alegria, muita alegria. Houve tambm um grande

    nmero de respostas que associou a dana com movimentos, tais como: [Danar ]

    rebolar, rodar, mexer, aprender os passos, mexer o esqueleto, requebrar,

    movimento de dana. Outras respostas associaram a dana com gneros especficos:

    samba, funk, hip hop, bal, demonstrado uma viso restrita da dana.A mesma

    pergunta, feita ao final do trabalho de campo, mostrou que os participantes ressignificaram

    a dana. Assim, a anlise dos questionrios finais revela respostas mais diversificadas, no

    tendo uma resposta vencedora. Mas foi interessante notar que a dana passou a ser vista

    como linguagem artstica e elemento cultural, e as seguintes falas ilustram essa afirmao:

    uma arte muito interessante; arte de se movimentar com auxlio de msica ou sem

    ela; cultura que a gente aprende a conhecer.

    Em relao ao questionrio inicial, aumentaram as respostas referentes dana

    como arte e cultura. Respostas assim so particularmente significativas, uma vez que

    indicam que houve uma ampliao dos olhares sobre esta linguagem artstica, que no

    7 Responsveis pelos participantes assinaram autorizaes para divulgao de dados e imagens, e seus nomes foram mantidos no anonimato para preservar a sua identidade. Tambm se omite, por questes ticas, os nomes das instituies.

  • mais vista apenas como forma de mexer o esqueleto ou suar para ficar em forma como

    dito inicialmente. Por seu carter ecltico, as aulas do projeto foram capazes de ampliar o

    interesse dos alunos, na medida em que lhes revelou aspectos desse universo danante, at

    ento inusitado.

    O surgimento do termo cultura nas respostas interessante, uma vez que cultura e

    arte caminham juntas. Em nossa prtica, discutindo a respeito dos diferentes vocabulrios

    de dana, invariavelmente nos deparamos com culturas diferentes. Assim, o projeto

    aumentou tanto o interesse pela dana quanto pela cultura em geral. Tambm acreditamos

    que muitos participantes que viam na dana somente uma oportunidade de diverso

    descobriram outros aspectos da mesma durante o processo vivido com a aplicao do

    trabalho de campo. Essa mudana em relao indagao, o que dana para voc,

    indica um resultado positivo da atuao do projeto, uma vez que alterou a atitude dos

    alunos a respeito da dana.

    Outra resposta pergunta o que dana para voc encontrada no questionrio

    final chamou a ateno: uma terapia, uma forma de dedicao, de responsabilidade,

    amadurecimento. Essa resposta rica em elementos, pois alia a dana a vrios aspectos,

    demonstrando que o participante entende sua complexidade. Assim como esse discente,

    talvez outros tambm puderam observar que ela capaz de espairecer os nimos das

    pessoas. Tambm se aponta a dana como dedicao e responsabilidade, o que pode ser

    fruto dos vrios ensaios feitos para que os alunos pudessem criar, montar, fazer elementos

    de ligao entre clulas de movimento e, s assim, depois de muito esforo, sentirem

    satisfeitos ao ponto de querer apresentar seu trabalho artstico. Todo este processo parece

    ter levado este participante a ver a dana como espao de amadurecimento, como

    possibilidade de atuar no crescimento pessoal.

    As respostas uma forma da pessoa se expressar; um jeito de se expressar,

    presentes no questionrio final, ilustram ressignificaes da dana, a qual passou a ser vista

    como forma de expresso. As respostas que aliaram dana linguagem, comunicao,

    expresso tiveram vrios desdobramentos, chegando mesmo a serem divididas nas

    subcategorias: [Dana se expressar...] Com estilo [leia-se gnero], Com gestos,

    Com os movimentos dos corpos e Com msica. A mudana pode ser vista como

    positiva pelo simples fato de indicar diversificao da forma que se pensa a dana, que no

    mais somente percebida como mero entretenimento.

    Duas respostas no questionrio final exemplificam diferentes perspectivas em

    dana que merecem ser comentadas: Danar viver o momento, para mim a dana

  • muito legal, eu gosto muito dos passos. A dana como forma de viver o momento

    indica uma experincia vivida, sentida e apreciada, portanto, no perdida. Infelizmente, em

    muitos casos, uma resposta assim no seria encontrada caso perguntssemos O que a

    matemtica para voc?. A capacidade da arte, segundo Uriarte (2006), de interagir com os

    indivduos, em seu cotidiano, fortalecendo suas prticas e dando sentido sua histria o

    que possibilita ao indivduo esse viver o momento. Interagindo com o sujeito e fazendo,

    ao mesmo tempo, com que ele interaja com a arte pode ajud-lo a tornar-se mais presente.

    Estar presente em dana significa estar consciente do que se est fazendo no momento,

    essa presena inclui viver o momento. Isso s possvel devido s pontes interativas que

    so construdas entre o sujeito e sua ao, ou seja, quando se est inteiro no que faz.

    No questionrio final, a dana tambm passa a ser perspectivada como uma

    aspirao. Ser objeto de uma aspirao indica algo que se deseja alcanar. Se no

    questionrio final da pesquisa um/a participante declara que a dana para ele/a uma

    aspirao, isso indica uma semente plantada. O seu sonho, possivelmente, foi alimentado

    pelas experincias que viveu, o que nos faz refletir sobre a gratificao do nosso trabalho.

    Dentre tantas dificuldades encontradas (e foram vrias) houve o brotar de uma aspirao.

    Essa pode ser uma aspirao do educador.

    Tanto no questionrio inicial como no final, outra pergunta, "Qual dana voc j

    assistiu?", buscou revelar que danas os participantes conheciam antes e aps o trabalho

    de campo. No questionrio inicial as respostas apontaram, em grande parte, as danas da

    moda na atualidade, tais como: funk, dana de rua, forr e ax. A anlise final aponta um

    significativo aumento desse leque de danas conhecidas, surgindo outros gneros:

    flamenco, dana contempornea, dana de salo, sapateado, bal e jazz. Esses vocabulrios

    foram trabalhados durante os meses de participao dos educandos em oficinas prticas e

    fruio de vdeos, e ao assistirem apresentaes e aulas do curso de Dana da UFV. O

    repertrio dos participantes aumentou e, com ele, a capacidade crtica em relao ao

    apreciar da dana, uma vez que agora esto munidos de uma viso mais abrangente.

    Um resultado interessante em relao ao local onde essas danas foram

    apreciadas; cresceu significativamente o nmero de participantes que disseram ter

    preferido as apresentaes de dana na escola, sendo que essa foi a resposta mais

    encontrada. Isso indica que as apresentaes ocorridas na escola foram marcantes, talvez

    at mais do que aquelas realizadas no teatro e em outros locais.

    Este resultado nos faz refletir acerca da importncia de apresentaes artsticas no

    ambiente de ensino institucionalizado. Inserida no mbito escolar, a dana parece ganhar

  • mais fora e significncia por interagir diretamente com o contexto vivido pelos alunos. A

    experincia com a fruio e a usufruio da dana na escola no esquecida facilmente,

    pelo contrrio, permanece in-corporada s lembranas da vida escolar. Essa relao criada

    um ganho significativo. Por sua dimenso e significncia, ns, educadores na rea, somos

    instigados por esses resultados a refletir sobre a importncia da escola trabalhar alm da

    socializao de saberes cientficos, visando proporcionar uma formao ampla, tambm

    cultural e artstica, do sujeito.8

    Desenhos dos participantes

    Apresento os desenhos de alguns alunos, coletados aps o trabalho de campo e que

    ilustram ressignificaes sobre a dana. Todos os desenhos foram feitos pelos participantes

    em resposta pergunta final, O que dana para voc?. Os desenhos, em sua maioria,

    possuem muitas pessoas juntas, de mos dadas, e com expresses de felicidade nos rostos.

    Isso intensifica o poder da dana na qualificao das relaes interpessoais. Vide exemplo

    dessas suposies nas figuras 7 (que mostra professores e as crianas danando juntos) e 8

    (criana se representa danando com os colegas na creche).

    Figuras 7 e 8: Dana desenvolvendo relaes interpessoais

    8 Para outros artigos e informaes sobre os projetos que englobam o programa Educao para as Artes vide os seguintes sites e blogs:

  • Nos desenhos a seguir, sugerimos que as crianas deram novos sentidos dana

    no somente como possibilidade de intensificar as relaes interpessoais (como no caso da

    Figura 9, em que a criana representa um momento danante em que todos, professoras e

    educandos esto em um crculo), mas tambm intrapessoais (exemplo na figura 10, em que

    a criana se representa danando sozinha e esboando um sorriso no rosto).

    Figuras 9 e 10: Danando em crculo e sozinha: possibilidades de desenvolvimento

    de relaes inter e intrapessoais

    Os prximos desenhos demostram como as crianas relacionaram seu novo saber

    artstico ao conhecimento corporal, s emoes e sensaes figura 11, em que a criana

    relaciona dana e alegria por meio de um grande sorriso estampado no seu rosto, e figura

    12 em que a criana relaciona dana e afetividade com um grande corao representando a

    professora ministrando aulas de dana, e a si mesma e seus colegas, participando da aula e

    representados por vrios coraes.

  • Figuras 11 e 12: dana e saber sensvel

    Na figura 13, a criana desenhou pessoas danando em meio s carteiras da

    creche. Parece ser um novo olhar sobre a possibilidade desse espao para a dana, ou

    seja, a dana na creche pode acontecer em qualquer lugar, at mesmo na prpria sala de

    aula.

    Figura 13: dana e novas relaes espaciais

    Os dois desenhos apresentados a seguir (figuras 14 e 15) tm destaque especial,

    pois os participantes desenharam crianas danando e um brinquedo, no caso a pipa

    (usada por ns em uma das oficinas de improvisao com objetos ldicos). Esta relao

    de brincadeira e dana um excelente resultado do projeto que teve como um dos

    objetivos especficos aliar a ludicidade a dana.

  • Figuras 14 e 15: dana e ludicidade

    Os resultados, no geral, parecem indicar que os sujeitos esto em movimentos

    danantes, ou seja, em processos de improvisao de sua constituio como atores

    sociais sensveis, ativos, pensantes nessa trama artstica que integra processos e

    conexes individuais e coletivas. Eles revelaram mltiplos significados e sentidos da

    dana, aparentemente construdos a partir de experincias e vivncias propostas por esse

    projeto. A reflexo sobre dados empricos e o exerccio da anlise de resultados me

    levaram novas compreenses tericas sobre o que alunos e eu aprendemos nesse

    estudo. Discorro sobre meu aprendizado a seguir.

    E a artista-pesquisadora/educadora nisso tudo?

    Meu prprio mundo pedaggico se expandiu por meio dessa dana com a

    complexidade e a riqueza da pesquisa em alfabetizao em dana ou educao da

    apreciao da dana. Transformaes na minha filosofia educacional aconteceram em

    momentos decisivos desse trabalho. Compartilho a seguir um desses momentos.

    Um dia, aps muitas aulas em que os alunos foram expostos a diversos gneros

    de dana, um dos estudantes de seis anos me disse: "Eu ainda amo hip hop, e odeio

    todas as outras danas que voc nos mostra." Nesse instante, o meu sangue ferveu, senti

    minha face vermelha e inchada, e um n imediatamente se formou no meu estmago e

    na minha garganta. Prendi a respirao, ao mesmo tempo em que apertei os lbios.

  • Respirei fundo e me segurei para no derramar lgrimas de frustrao. Enquanto focava,

    fixamente, o aluno, esse, talvez percebendo minha impotncia em lhe oferecer qualquer

    resposta, saiu correndo brincando. Enquanto ele se distanciava, correndo e interagindo

    com os colegas, eu aos pouco consegui sair do lugar e dar os primeiros passos me

    recompondo enquanto educadora.

    Foi s dias mais tarde, quando entrei no processo de tornar essa experincia uma

    vivida (vide Max van Manen, 1997)9 ao revisit-la e refleti-la em todo meu corpo,10

    que fui capaz de me questionar: Ser que esse aluno aprendeu o oposto do que tnhamos

    ensinado (ou tentado ensinar) durante todo o trabalho de campo da investigao?;

    Quantos alunos/participantes tiveram a mesma sensao?; Essas perguntas foram

    cruciais para duvidar da eficcia do meu olhar crtico que normalmente no quer aceitar

    apenas a preferncia dos estudantes para as culturas ditas miditicas, principalmente as

    de origem estrangeiras como hip hop, dana de rua ou street dance, funk.

    Tambm questionei: Como respeitar a preferncia dos estudantes e ainda

    desafi-los a ir alm de suas zonas de conforto as quais so danar e assistir hip hop e

    dana de rua? Essa questo foi seguida por muitas outras: O que fazer com aqueles

    alunos que continuavam no gostando de dana de jeito nenhum, mesmo depois de

    terem sido expostos a tantos gneros e vocabulrios diferentes da dana? Como posso

    auxiliar, da melhor forma, os alunos a melhorarem suas capacidades para questionar

    suas tendncias acrticas, pelo menos a meu ver, de apreciar somente determinados

    gneros de dana os favoritos divulgados na indstria cultural? Como lidar com

    alunos (nesse estudo, principalmente adolescentes) que no estavam interessados o

    suficiente na nossa proposta?

    Evidentemente, no existem respostas simples e evidentes para estas questes,

    nem meu intuito tentar respond-las de forma conclusiva. Muitos arte-

    educadores/pesquisadores provavelmente concordaro comigo que lidar com a

    diversidade no fcil. Nesse estudo, a diversidade est relacionada tanto com aquela

    da dana como com a diversidade de pessoas envolvidas participantes e membros da

    equipe.

    9 Para van Manen (1997), a experincia humana s se torna vivida quando a revisitamos e refletimos sobre ela. 10 Entendo o corpo como experincia que aglutina afetos, afeies, habitus (vide Thomas Csordas, 1994, em sua discusso sobre o embodiment).

  • A meu ver, uma pesquisa s satisfatria quando transformaes (de

    participantes e pesquisadores) ocorrem. Essa jornada foi recheada de paixo,

    responsabilidade e compromisso com a dana na educao. Mas para que ela pudesse

    ter continuidade em momentos cruciais de frustrao (como quando ouvi o comentrio

    do estudante narrado anteriormente), aberturas para auto-transformaes e modificaes

    dos caminhos foram fundamentais.

    Da minha prpria experincia nesse estudo, aprendi que a transformao est

    relacionada com a descoberta de uma nova maneira de encarar a vida. Assim, a

    transformao pessoal foi ocorrendo, em um processo de embodiment (VIEIRA, 2007)

    medida que as seguintes perguntas me perturbavam mais e mais: Preciso ampliar minha

    abertura para preferncias das outras pessoas e ser menos autoritariamente crtica? Se

    sim, como equilibrar isso com uma postura e proposta que abarca, simultaneamente,

    respeito s preferncias e estmulos para novos conhecimentos e gostos? O que perdi

    quando o meu foco era, principalmente, o produto da investigao e o cumprimento fiel

    dos seus objetivos?

    Nessa investigao, trabalhando com muitos estudantes e suas diversas

    realidades, descobri o ensino como, tambm, um caminho heurstico de auto-descoberta.

    Enquanto aprendi sobre os outros, aprendi sobre mim mesma e minhas filosofias de

    ensino. Muitas vezes, durante essa jornada, enfrentei o dilema da eficcia ou

    competncia, como arte-pesquisadora/educadora, versus o bem-estar dos participantes.

    Reflexes sobre minhas prprias experincias no presente estudo tornaram-se

    ento uma rica experincia vivida de aprendizagem e estimularam ainda outras

    questes, tais como: Que tipo de estratgias pedaggicas mais deram certo com alguns

    estudantes, mas no com os outros? Quais abordagens educacionais tiveram maior

    potencial para qualificar as possibilidades de prxis artstico-pedaggica? Algumas das

    propostas de ensino funcionaram melhor do que outras? Quais?

    Propostas recentes no ensino da dana tm focado no contexto do aluno

    (MARQUES, 1999, 2003), mas aprendi nessa jornada que precisamos ampliar nossa

    dana para fluir entre os dois polos no focar nem somente no contexto do professor,

    nem somente no contexto do aluno. Como o arte-educador e o educando trazem para o

    momento educacional dois contextos, realidades, valores e histrias de vida diversas,

    precisamos achar um equilbrio entre esses dois mundos e sujeitos que se encontram.

    Acredito que precisamos danar entre os dois plos (como sugeriu a danarina e

    coregrafa alem Mary Wigman), considerando o contexto de ambos, artista-educador e

  • discente, para que possamos ento desenvolver um trabalho artstico-educacional que

    seja significativo para educandos e educadores.

    Consideraes finais

    Aprendendo... sempre!

    Esse artigo revelou a diversidade de propostas desenvolvidas em um programa

    educacional em dana: os participantes, educandos do ensino bsico e da educao

    infantil no-fomal, participaram de aulas semanais terico-prticas de gneros

    diversificados da linguagem, e fruio de vdeos, apresentaes e espetculos ao vivo de

    diversos estilos. Eles observaram aulas prticas dos alunos do Curso de Graduao em

    Dana da Universidade Federal de Viosa/UFV e, finalmente, vrios participantes se

    envolvem em processos criativos de improvisao e composio coreogrfica que

    resultam na produo e apresentao destes alunos como bailarinos em espetculos nos

    teatros da UFV, nas prprias instituies educacionais, e em praa pblica (VIEIRA,

    2010b). Assim, todo semestre desde 2008, ocorre uma mostra denominada Ladrilho,

    Ladrilhando e Brincando que atingiu a sua sexta edio em 2011 na qual os alunos

    vivenciam o palco como intrprete-criadores, e a platia como apreciadores. Nas

    apresentaes, como artistas, eles apresentam obras frutos de processos colaborativos

    com seus professores de dana nos vrios laboratrios criativos desenvolvidos ao longo

    do semestre. As apresentaes de dana dos participantes na Mostra Ladrilho

    englobam elementos desenvolvidos e criados por eles mesmos durante as aulas, atravs

    de estmulos que so dados pelas professoras-pesquisadoras. Como pblico, eles

    assistem nmeros de dana de outros artistas convidados que mostraram trabalhos com

    diferentes gneros (dana contempornea e do ventre, jazz, flamenco, ballet, forr,

    dentre outros). Ao assistirem espetculos de diferentes vocabulrios, incentivamos os

    alunos a desenvolverem suas potencialidades de sensibilizao, anlise,

    contextualizao, senso crtico e esttico de obras de arte. Os resultados obtidos aps o

    desenvolvimento desse intenso e variado trabalho de campo, revelaram uma ampliao

    do saber artstico dos participantes, colaborando assim, para a qualificao do

    alfabetismo em dana.

    Concordo com Clark Moustakas (2000) ao afirmar que ao compreendermos as

    experincias, os sentimentos e os valores de outras pessoas, podemos tambm

    experienciar auto-conscientizao e auto-conhecimento. Ento, a descoberta e a reflexo

  • fenomenolgica de novos significados nas experincias de participantes de uma

    pesquisa, por exemplo, a aprendizagem dos participantes desse estudo, pode trazer

    possibilidades de auto-compreenso individual e coletiva bem como prxis reflexiva

    (Van Manen, 1997, xi), assim como aconteceu comigo.

    Acredito que ampliei minha conscincia de que sou plenamente responsvel por

    minhas decises ticas; aprendi como, para cada comunidade (de cada turma trabalhada

    nesse estudo) populao, certos tipos de ambiente, estruturas e relacionamentos de sala

    de aula so mais benficos para que aqueles alunos atinjam sucesso pessoal e coletivo.

    Aprendi a tomar posse do meu ensino por ser eu mesma, ou seja, exercitei

    minha autoridade interna (FORTIN, 2010), ao invs de pretender ser uma educadora

    ideal que nunca se irrita, magoa, frustra, chora e que, talvez, parece s existir na

    imaginao. Porque eu estava to acostumada educao de estudantes de ensino

    superior, minhas interaes com os estudantes do ensino bsico e da educao infantil

    me levaram a explorar novas maneiras de ser. Foi difcil para mim, assim como deve ter

    sido para o estudante de seis anos que amava hip hop, sair da minha zona de conforto. A

    busca por formas alternativas de ser me ensinou que, como eu tinha que definir

    objetivos para esta pesquisa (especialmente porque ela financiada por agncias de

    fomento), eu tambm tinha de pensar o que mais importa: Que os objetivos da pesquisa

    fossem realizados completamente ou o bem-estar dos alunos/participantes? Ou ainda,

    como equilibrar ambos?

    Essas reflexes fazem parte do processo de auto-reflexo que procurei

    desenvolver concomitantemente s reflexes sobre os dados coletados nessa pesquisa.

    importante esclarecer que no estou defendendo o isolamento do professor de dana,

    fechado em seu prprio mundo, e se privando das riquezas das trocas. Porm, realmente

    acredito que a reflexo autnoma fundamental no nosso cotidiano educacional,

    principalmente quando estamos diante de situaes imprevisveis em que no h tempo

    para consultar o conselho de amigos, colegas ou sugestes de teorias educacionais.

    Como educadores em dana, precisamos desenvolver nossa capacidade de aprender no

    coletivo e de forma independente a partir de nossas experincias em salas de aula,

    estdios, palcos, ptios. Assim, a auto-reflexo um exerccio que podemos nos auxilar

    no enfrentamento de dilemas e desafios cotidianos da dana na educao na

    conteporaneidade.

    Aps alguns anos de profundo envolvimento com a investigao, sugiro que o

    nosso crescimento, aprendizado e desenvolvimento como arte-

  • educadores/pesquisadores incluem in-corporao (embodiment) de experincias

    transformadoras, para que essas se tornem parte do nosso ser (VIEIRA, 2007). H duas

    dinmicas no processo de embodiment que acredito serem fundamentais: o nosso eu

    que j trazemos construdo a partir de nossas histrias de vida e o embodiment que se

    constri no nosso dia-a-dia de relaes com o outro e o meio ambiente que nos cerca.

    Mas ressalto que essa diviso meramente didtica, para que possamos entender o

    processo de embodiment via lgica que predomina na cultura ocidental, que divide o

    conhecimento produzido internamente daquele externamente, do conhecimento

    produzido no corpo (emoes, sentimentos e sensaes) daquele da mente (razo). O

    que produzido pelo corpo e entre corpos faz parte do processo de embodiment, a meu

    ver. Esse dilogo constante faz parte das formas de se construir conhecimento no

    mundo.

    Acredito ainda que para que fatos, acontecimentos, experincias, e vivncias

    fiquem embodied ou faam realmente parte do nosso ser, das nossas memrias e

    histrias de vida, necessrio que estejamos corporalmente engajados no momento que

    se vive. Nossos mltiplos sentidos precisam estar conectados ao dentro-fora, pois para

    mim no existe essa separao rgida que se acredita ter no senso comum entre o que

    externo e interno. H sim uma qumica que permite haver ligao indissolvel nas

    trocas constates entre o conhecimento que se processa no meu corpo e o conhecimento

    processado nas trocas com o outro, o ambiente e meu ser por inteiro. Penso que o

    conhecimento construdo em dana se torna significativo quando, no momento de sua

    elaborao, houver profunda conexo interna-externa (com minhas sensaes,

    sentimentos, emoes e com o outros sujeitos e contexto). Nesses momentos, h

    sincronia (no necessariamente harmonia), como se o conhecimento viesse de um s

    corpo ou uma unidade que contem muitas partes diferenciadas. O conhecimento em

    geral, e em dana em particular, aumenta suas chances de se tornar embodied quando

    acionamos nossas mltiplas maneiras de perceber, fazendo conexes e mediando

    diferentes caminhos, formas, possibilidades. Assim, podemos in-corporar (embody)

    significados no grau mximo. Ao abraarmos a construo de significados como parte

    do processo de embodiment, temos que considerar que esses significados esto em um

    contato-improvisao constante, portanto, significados podem ser in-corporados,

    tornando-se parte do nosso ser, mas assim como ns mudamos, tambm podem se

    transformar significados construdos. Nesse sentido, concordo com Csordas (1994) que

  • no h mundo estvel. Sob esta perspectiva, embodiment se faz, se constri, 'dana' de

    acordo com a interminncia existencial.

    Os participantes desse estudo me ensinaram o que preciso abrir mo, a fim de

    crescer. Eu chamo isso de perda produtiva (VIEIRA, 2007). Acredito que nossos

    valores como arte-educadores podem ser modificados (para melhor) quando, por

    exemplo, desistimos de algo como a voz autoritarista do pesquisador e do professor, do

    ensino centrado no contedo, e da investigao centrada no cumprimento dos objetivos.

    Ao aceitar "perda produtiva", como parte da vida investigativa- pedaggica, podemos

    aprender a descobrir ou redescobrir os valores humanos a partir da intensificao das

    relaes intra e inter-subjetivas. So aspectos poderosos e vitais para que ns, como

    agentes sociais, provoquemos transformaes e que o nosso mundo contemporneo

    parece carecer tanto.

    Reforo que o que apresento no so pontos de chegada, mas caminhos.

    Acredito tambm, que, contradies fazem parte da nossa constituio como seres

    humanos. Assim, penso ser importante afinarmos nossos sentidos, nosso corpo presente

    e pensante com os dos alunos, para termos, discentes e docentes, clarezas das nossas

    escolhas: quais caminhos optamos seguir ou no. Eu apenas lhe convido a ouvir outros

    tambores, outras possibilidades, que no colocam os contextos do educador e do

    educando como caminhos dicotmicos, ou como se um fosse mais importante do que o

    outro. Voltando pespectiva Tao, que mencionei no incio desse texto, um dilema que

    enfrentamos ver o contexto do professor e o contexto do aluno como complementares,

    no oponentes. Esse um desafio cujos caminhos j comeamos a trilhar.

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