arruti 2008 - cabral relatório técnico final integral renumerado

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Relatrio Tcnico

Relatrio histrico-antropolgico de reconhecimento territorial da comunidade quilombola de Cabral municpio de Parati RJ

Responsvel: Jos Maurcio Arruti

Rio de Janeiro INCRA 2008

Relatrio histrico-antropolgico da comunidade de Cabral Paraty RJ Sumrio Captulo 1 ....................................................................................................................................................... 3 Marcos conceituais e trabalho de campo ....................................................................................................... 3 1.1. Conceitos fundamentais ............................................................................................................... 3 1.1. 1. Terras de Uso Comum ......................................................................................................... 4 1.1.2. Etnicidade ............................................................................................................................ 9 1.2. O trabalho de campo em dois tempos ............................................................................................. 13 1.2.1. Primeiro contato (1999) ........................................................................................................... 13 1.2.2. O segundo contato (2007) ....................................................................................................... 19 1.2. Breve reflexo sobre o papel do antroplogo no processo de identificao ................................... 23 Captulo 2 ..................................................................................................................................................... 27 Contexto histrico e regional ....................................................................................................................... 27 2.1. Apontamentos histricos ................................................................................................................. 27 2.1.1. As inflexes do sculo XX ......................................................................................................... 28 2.1.2. Isolamento relativo .................................................................................................................. 29 2.1.3. O advento da Rio-Santos .......................................................................................................... 30 2.1.4. Um territrio de conflitos ........................................................................................................ 31 2.1.5. Breve notcia sobre a ao oficial ............................................................................................. 34 2.2. Notas geogrficas ............................................................................................................................. 35 2.2.1. Sobre demografia e situao socioeconmica ......................................................................... 35 2.2.2. Sobre os indicadores de qualidade de vida .............................................................................. 39 2.2.3. Sobre a situao ambiental e fundiria .................................................................................... 41 2.2.4. Sobre o processo de urbanizao ............................................................................................ 43 Captulo 3 ..................................................................................................................................................... 44 Territrio e parentesco ................................................................................................................................. 44 3.1. Um territrio negro .......................................................................................................................... 44 3.1.1. Campinho na vanguarda .......................................................................................................... 47 3.1.2. Giti, comunidade extinta ........................................................................................................ 52 3.2. Organizao scio-espacial .............................................................................................................. 54 3.2.1. O bairro rural............................................................................................................................ 54 3.2.2. Territrio tnico ....................................................................................................................... 56 3.3. As famlias e as terras de herdeiros .................................................................................................. 58 3.3.1. Os usos da noo de famlia ................................................................................................. 59 3.3.2. Os Alves .................................................................................................................................... 61 3.3.3. Os Lucas ................................................................................................................................... 62 3.3.4. Os Anglica ............................................................................................................................... 63 3.4. Notas sobre as concepes locais de direito terra ........................................................................ 63 3.4.1. Em busca da regra .................................................................................................................... 64 3.4.2. Observando casos, variaes e excees ................................................................................. 65 Anexos ..................................................................................................................................................... 67 Anexo 1 Quadros genealgicos dos trs grupos de herdeiros de Cabral ............................................. 67 Grfico 9 Quadro genealgico simplificado dos Alves .......................................................................... 67 Grfico 10 - Quadro genealgico simplificado dos Lucas ........................................................................ 68 Grfico 11 - Quadro genealgico simplificado dos Anglica ................................................................... 69 Anexo 2 - Livros de Registro de Terras do Cartrio de Paraty ................................................................. 70 Organizao do acervo cartorial ........................................................................................................ 70 Transcrio dos Registros................................................................................................................... 72 Anexo 3 - Documentos recolhidos com os moradores ............................................................................ 77 Certides de nascimento ................................................................................................................... 77 Certides de casamento .................................................................................................................... 77 Certides de bito ............................................................................................................................. 78 Escrituras de Imveis ......................................................................................................................... 80 Outros documentos relativos terra ................................................................................................. 81 Cap. 4 ............................................................................................................................................................ 85 Caraterizao ambiental, demografia e socio-econmica ............................................................................ 85 Demografia ........................................................................................................................................ 93 Renda ............................................................................................................................................... 101 Referncias bibliogrficas sobre Paraty ...................................................................................................... 105

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Relatrio histrico-antropolgico da comunidade de Cabral Paraty RJ

Captulo 1 Marcos conceituais e trabalho de campo

1.1.

Conceitos fundamentais

O conceito de comunidade remanescente de quilombos implica em uma transformao operativa da expresso constitucional original remanescentes das comunidades de quilombos (artigo 68 do ADCT / CF88). Seu uso emerge de um processo de apropriao social da lei no caso, a inverso dos termos da expresso original que pode ser identificado como manifestao concreta de um programa poltico-ideolgico mais largo originalmente enunciado por Adias do Nascimento, sob a expresso quilombismo (1980) e que, mais tarde, ao ser submetida a uma abordagem antropolgica hermenutica, levou uma reviso do prprio conceito de quilombo isto , a ressemantizao do conceito, tendo por base o seu uso poltico e cultural contemporneo que, por sua vez, finalmente, repercutiu novamente sobre a letra da lei. O texto do decreto presidencial 4887 de 20 de novembro de 2003, que consolida a expresso comunidade remanescente de quilombos, recorre tanto ressemantizao do conceito de quilombo proposta pela leitura antropolgica, quanto uma nova normatividade internacional, ratificada pouco antes pelo pas, que garante o reconhecimento de direitos especficos para populaes indgenas, tribais e minorias tnicas. Apesar do texto sobre o qual este novo direito sustenta-se remeter constituio de 1988, portanto, foi apenas alguns anos mais tarde, em meados dos anos 90, que o conceito usado na constituio deixou de ser lido pelo vis arqueolgico e historiogrfico, para ser compreendido conforme a hermeutica antropolgica e jurdica nova. Um marco nesta virada interpretativa, que vinha consolidar, por meio do discurso erudito, a realidade produzida pela apropriao social da lei, foi o seminrio Conceito de Quilombo, realizado pela FCP em 1994. Foi a partir dele que o tema deixaria de ser pensado pelo Estado brasileiro, como assunto exclusivo dos tcnicos dos rgos oficiais1 para tornar-se matria de debate acadmico. Nesse seminrio, Glria Moura citada como uma das responsveis pela formulao do Artigo 68 lanaria mo da noo de quilombos contemporneos para caracterizar as comunidades a que se refere o Artigo 68, comocomunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistncia e onde as manifestaes culturais tm forte vnculo com o passado ancestral. Esse vnculo com o passado foi reificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade. (Moura, 1994)

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Conforme expresso no documento da nota anterior.

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Uma identidade que no deveria ser definida como racial, mas como tnica, j que ela seria independente da cor de pele e da origem africana. Essa definio era reproduzida quase literalmente na fala do novo presidente da FCP, Joel Rufino (que tambm participava, junto com o ex-presidente Carlos Moura, da coordenao do Conselho Geral Memorial Zumbi), durante o mesmo seminrio, produzindo o efeito de se atribuir a essa atualizao e ampliao do termo um carter oficial. Em um texto posterior, Glria Moura desenvolveria essa idia ao apresentar parte dos resultados de uma pesquisa relativa s razes culturais negras, realizada para o Programa do Centenrio da Abolio, cujo objetivo era gerar material didtico escolar 2. Nela, os quilombos comunidades negras rurais, se aproximariam das comunas tradicionais, onde todos se conheciam e se ajudavam, onde os meios de produo eram socializados e os contatos eram primrios (Moura, 1997:136). Nessas comunidades os problemas seriam sempre resolvidos em discusses coletivas, a produo seria dividida de acordo com o tamanho de cada famlia e os problemas seriam entregues aos santos padroeiros para serem resolvidos. Tal descrio, fortemente idealizada, convive, no entanto, sem uma aparente soluo de continuidade, com a adoo de uma definio pragmtica e quase utilitria da identidade: a aparente conservao da cultura de origem d um status de legitimidade na consecuo do projeto de sobrevida e os traos culturais exaltam a etnicidade, com vistas a adequar o passado ao presente (Moura, 1997:143). Duas concepes to fortemente opostas substancialista e idealizada, de um lado, e pragmtica, de outro convivem nessas formulaes sem uma soluo aparente, respondendo apenas necessidade retrica de sobrepor a realidade representada pelas demandas dos agrupamentos negros e o iderio poltico do movimento social.3 No entanto, para se ter uma devida compreenso do conceito de remanescente de quilombos, preciso recorrer, basicamente, a outros dois conceitos, que esto na base deste: terras de uso comum e etniciade.1.1. 1. Terras de Uso Comum

O primeiro ncleo da ressemantizao que marca a argumentao acadmica ter por base um outro campo de referncias, que orientar a retomada dos trabalhos referidos acima. Esse campo representado pela anlise de Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre as terras de uso comum, fruto do seu trabalho de assessoria ao movimento campons e aos sindicatos de trabalhadores rurais do Maranho e Par, ao longo da dcada de 1980, e ao Projeto Vida de Negro (PVN), entre 1988 e 1991. Por meio dele, Almeida acompanhou o levantamento sistemtico das situaes de terras de preto na regio norte do Maranho e o reconhecimento das terras da comunidade de Frechal (Mirinzal, MA) como reserva extrativista, em alternativa demora na resposta da FCP demanda, apresentada desde 1989, pelo seu reconhecimento como remanescente de quilombos.

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Glria Moura no seminrio Comunidades Quilombolas e Preservao Cultural (revista Palmares, n 5, 2000: 120).3

Como veremos adiante, essa contradio, manifesta de forma exepcionalmente clara aqui, no est ausente nos trabalhos de antroplogos profissionais, apesar das mediaes tericas e das substantivas diferenas entre eles (ns).

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Uma das primeiras pesquisas sistemticas sobre comunidades negras rurais comearia, assim, no Maranho em 1988, pelo Projeto Vida de Negro em parceria com o Centro de Cultura Negra (CNN) e com a Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos (SMDDH)4, tendo por referncia bsica o texto Terras de preto, terras de santo, terras de ndio: uso comum e conflito (Almeida, 1989) que lana mo de trabalhos do fim dos anos 1970 e incio dos anos 80, anteriores, portanto, criao do termo remanescentes de quilombos. Nesse texto, as terras de uso comum so caracterizadas como:situaes nas quais o controle dos recursos bsicos no exercido livre e individualmente por um determinado grupo domstico de pequenos produtores diretos ou por um dos seus membros. Tal controle se d atravs de normas especficas institudas para alm do cdigo legal vigente e acatadas, de maneira consensual, [pelos] vrios grupos familiares, que compem uma unidade social.

Nesses casos, so osLaos solidrios e de ajuda mtua [que] informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base fsica considerada comum, essencial e inalienvel. (Almeida,1989:163)

Analogamente ao que vimos com relao s populaes remanescentes indgenas, as terras de uso comum, segundo Almeida, teriam permanecido sem a anlise necessria por serem consideradas pelo Estado e pela academia como formas atrasadas, inexoravelmente condenadas ao desaparecimento, ou meros vestgios do passado, puramente medievais, que continuam a recair sobre os camponeses, formas residuais ou sobrevivncias de um modo de produo desaparecido (Almeida, 1989:166). Apesar da fora dessas representaes, marcadas por forte vis evolucionista, tais formas de territorialidade teriam permanecido e se convertido em objeto de luta e mobilizao poltica e, por isso, de investigao. Assim, tambm de forma anloga ao que ocorreu com os chamados remanescentes indgenas, a sua politizao reverteria a trajetria ideal de transformaes (do preto ao branco, do marginal ao integrado) s quais aquelas territorialidades, sob a fora de uma vontade sentida como necessidade e pensada como fatalidade, estariam submetidas, negando a tendncia tida como ascensional de estabelecimento de domnios privados com valores monetrios fixados (:172). Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, submetida a uma srie de variaes locais que ganham denominaes especficas, segundo as diferentes formas de autorepresentao e autonominao dos segmentos camponeses, tais como Terras de Santo, Terras de ndios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herana e, finalmente, Terras de Preto. Estas ltimas compreenderiam aqueles domnios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalizao jurdica, por famlias de escravos (:174). Tais domnios teriam origens muito diferentes, como nas concesses feitas pelo Estado em retribuio prestao de servios guerreiros; nas situaes em que os descendentes diretos de grandes proprietrios, sem o seu antigo poder de coero, permitiram a permanncia das famlias de antigos escravos (e as formas e regras de uso comum) por meio de aforamentos de valor simblico, como forma de no abrir mo do seu direito de propriedade formal sobre elas; e nosdomnios ou extenses correspondentes a antigos quilombos e reas de alforriados nas cercanias de antigos ncleos de minerao, que permaneceram em isolamento relativo, mantendo regras de uma concepo de direito que orientavam uma apropriao comum dos recursos. (:174-5)

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Uma descrio desse projeto ser apresentada a seguir, no tpico Divergncias.

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Note-se que, desde esse momento, independentemente de qualquer referncia categoria de remanescentes de quilombos, essa variao das terras de uso comum, que so as terras de preto, j aparece em parte associada aos antigos quilombos, sem qualquer problema em se consentir, nesse caso, uma aproximao entre elas e a noo de isolados negros, ainda que esta seja atenuada pela frmula prudente do isolamento relativo. apenas na oportunidade de reedio desse texto, em 1995 (cuja elaborao , no mnimo, contempornea ao seminrio da FCP e ao documento da ABA, 1994), que as Terras de Preto so reapropriadas no interior da problemtica imposta pelo Artigo 68. Nessa reedio, Almeida incorporava ao texto original as informaes levantadas entre 1988 e 1991 pelo PVN5, as denncias sobre a falta de qualquer iniciativa oficial de aplicao do Artigo 68 e sobre as tentativas conservadoras de neutralizar semelhante instrumento (Almeida, 1995). Ainda que ele no apresentasse nenhuma argumentao fundamentando a associao entre a categoria jurdica criada pelo artigo constitucional e a categoria sociolgica terras de preto, dava a notcia de duas importantes iniciativas nessa direo: o Seminrio da FCP de 1994, e o IV Encontro das Comunidades Negras Rurais, promovido no incio de 1995 pelo PVN pela primeira vez, o tema desse encontro era justamente Quilombos e Terras de Preto no Maranho. Isso permitia que Almeida reivindicasse um amplo alargamento do sentido literal do artigo constitucional que apesar de sustentado em pesquisas de campo e anlises sociais que vinham sendo produzidas h cerca de 15 anos buscava sustento em uma nova reapropriao eminentemente poltico-simblica do quilombo. A partir da associao entre a expulso dos pequenos produtores rurais de suas posses centenrias e o acirramento das tenses nas periferias urbanas, essa primeira conexo entre terras de preto e quilombo se fez por meio da favela: a favela filha do quilombo, segundo a citao de Almeida (1995:216), retirada de um historiador da escravido. Em um texto seguinte (Almeida, 1996) essa argumentao seria desenvolvida em uma outra direo, menos metafrica e mais histrica, ainda que novamente lanando mo do efeito de realidade das mitologizaes nativas. Assim, a ressemantizao se justificaria, em primeiro lugar, como uma recaptura do carter repressivo que sempre marcou os termos quilombo e mocambo. Tal carter teria adestrado os camponeses das terras de preto a negar tal vinculao que fatalmente deslegitimaria suas posses e adotar as autodenominaes que remetem s modalidades de uso comum (Terras de ndio, de Santo, de Preto etc.). Assim, nessa atualizao do discurso, a ressemantizao do quilombo comea pelo seu avesso, como uma ressemantizao daquelas autodenominaes relativas s diferentes modalidades de uso comum, que passam a ser vistas como narrativas mticas, legitimadoras dos grupos e de suas territorialidades que, de qualquer forma, foram criados pelo sistema colonialista e escravocrata. Por isso, a assuno do rtulo quilombo, hoje, estaria relacionada no ao que o grupo de fato foi no passado, mas sua capacidade de mobilizao para negar um estigma e reivindicar cidadania.Existe, pois, uma atualidade dos quilombos deslocada do seu campo de significao original, isto , da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com

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Trezentas ocorrncias de terras de preto nos 28 municpios maranhenses visitados, onze delas com os nomes marcados pelo complemento dos pretos (Almeida,1995:214).

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confronto, com emergncia de identidade [...]. O quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais que simblica de negar o sistema escravocrata. [...] A reivindicao pblica do estigma somos quilombolas funciona como uma alavanca para institucionalizar o grupo produzido pelos efeitos de uma legislao colonialista e escravocrata. (Almeida, 1996:17, nfases no original)

Desde ento, remanescentes de quilombos e terras de preto esto inevitavelmente associados. Nos textos seguintes dedicados ao tema, Almeida continuaria desenvolvendo essa vinculao entre a categoria jurdico-histrica e a categoria sociolgica, testando outras direes possveis para o argumento. Mas para isso foi preciso tomar posse do Artigo 68 por meio da atribuio a ele de uma outra genealogia, quase inevitavelmente concorrente quela apresentada h pouco, que remonta dcada de 1970 e est diretamente vinculada aos movimentos negros urbanos, notadamente do Rio Grande do Sul, So Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Essa outra genealogia vincula a inteno do legislador militncia camponesa relativa ao reconhecimento de formas especiais de uso da terra, at ento desconsideradas pelos instrumentos de cadastro e interveno do Estado. Seu ponto de origem, portanto, remeteria a meados dos anos de 1980, perodo do processo de redemocratizao e, um de seus corolrios, retomada das discusses sobre uma reforma agrria ampla e democrtica.6 O Maranho, e depois o Par, ocupam um lugar excepcional nessa outra genealogia, no s em funo dos nmeros levantados7, mas tambm por serem os estados em que a organizao dos agrupamentos autodenominados comunidades negras rurais comeou mais cedo e teve maiores repercusses em termos organizativos. No Par, a primeira articulao dessas comunidades se d em 1985, por meio dos Encontros de Razes Negras, ainda que uma reapropriao dessa forma de articulao em funo do Artigo 68 s se d em 1997. No Maranho, a organizao de informaes e dos prprios grupos rurais teve incio em 1986, quando os militantes do Centro de Cultura Negra (CCN) comearam a visitar agrupamentos negros do interior do estado, para articular o I Encontro das Comunidades Negras Rurais do Maranho, j visando s discusses relativas redao da nova Carta Constitucional Federal. O Projeto Vida de Negro, surgido desse encontro, em 1987, com o objetivo de mapear as comunidades negras rurais do estado e levantar as suas formas de uso e posse da terra, manifestaes culturais, religiosidade e memria oral, serviria como uma cabea de ponte para a organizao de novos encontros estaduais e microrregionais que se realizaram ao longo de todos os anos seguintes e que fomentaram o surgimento de vrias entidades do movimento negro nos municpios do interior. O excepcional avano do movimento social negro rural quilombola desses estados e a sua influncia sobre o conjunto nacional, com a organizao da Articulao de Remanescentes de Quilombos, tambm sediada no Maranho, contribuiu para que a interpretao e os argumentos produzidos para dar conta das situaes ali existentes,

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Esse foi um perodo de vigoroso avano dos movimentos campons, indgena e de categorias de trabalhadores at ento sub-representados, como os atingidos por barragens, os seringueiros e garimpeiros. Frente a essa mobilizao e renovao de seus quadros polticos, o Ministrio da Reforma Agrria e os rgos fundirios a ele ligados foram obrigados a reconhecer a existncia desse tipo de posse, que no se encaixava nas categorias censitrias ou cadastrais at ento utilizadas pelos rgos governamentais. Batizadas como ocupaes especiais, elas incluam as terras de preto (Almeida, 1996, 1998, 1999 e 2000).7

Como veremos adiante, 401 comunidades negras rurais em 62 municpios do Maranho, e 253 em 31 municpios do Par.

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alcanasse uma projeo e um domnio semelhantes. Assim, com essa outra genealogia, o centro da discusso deslocado do curso de discusses gestadas no interior da pequena tradio sobre comunidades negras rurais8, para as discusses relativas ao campesinato ps-plantation, as terras de preto etc., da mesma forma que o centro da ao (ou a origem da militncia) desloca-se do movimento negro das grandes capitais para o movimento negro das capitais perifricas, mobilizado em torno de questes relativas s populaes rurais, notadamente do Maranho e do Par; deslocamentos genealgicos tpicos das disputas relativas aos direitos sucessrios, cujo papel foi dar lastro ressemantizao proposta. * possvel dizer que o interesse (tanto terico quanto poltico) da adoo do paradigma das terras de uso comum est mais no anncio (e na defesa) da existncia de um outro ordenamento jurdico que constitui um universo de regulao prprio o direito campons, subordinado ao ordenamento jurdico nacional do que em sugerir uma tipologia completa desses apossamentos. Foi no contexto das disputas pela classificao de Frechal (MA) como remanescente de quilombo que a afirmao dessa dimenso do direito campons levou a uma radical oposio s noes de fuga e isolamento centrais a uma legislao que se referia ao fenmeno histrico dos quilombos em termos criminais e sustentada em autoevidncias intrnsecas ideologia escravocrata e aos preceitos jurdicos dela emanados (Almeida, 1996:15). no lugar do paradigma da fuga e isolamento que a ressemantizao do termo lana mo do paradigma das terras de uso comum. Como resultado dessa substituio, no entanto, os remanescentes de quilombos no ganhariam uma definio descritiva explcita (que define a coisa enumerando seus elementos caractersticos), mas uma definio emprica implcita (que define a coisa a partir dos dados da experincia), formulada naquele contexto e para dar conta da situao especfica de Frechal. Se uma posio mais prxima ao que se convencionou chamar primordialista pautava-se em um modelo idealizado de Palmares, o posicionamento ressemantizador (evidentemente associado a uma postura pragmtica) no apenas desfez esse modelo, mas criou um novo, ainda que, inicialmente, apenas com funo descritiva. A fora do argumento, porm, somada fora do prprio movimento social quilombola maranhense, largamente centrado em Frechal, fizeram com que este primeiro exemplo (inicialmente apenas um modelo emprico) se tornasse o exemplo privilegiado (um modelo descritivo), do qual passaram a ser retirados os critrios gerais de reconhecimento inicialmente propostos e progressivamente cristalizados, a partir do qual passam a ser lidas todas as novas situaes. O exemplo tende, assim, a tornar-se norma. Como esclarece Silva (1997:55), o caso de Frechal passou a servir de parmetro para outras reas em seu pleito judicial ou extrajudicial e necessrio acrescentar para aqueles que mediam tais pleitos ou que devem produzir as peas

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Se o texto de Pereira (1981) fazia a recapitulao do conjunto relativamente homogneo de pesquisas sobre o tema desenvolvidas na USP, em fins da dcada de 1970 e no incio de 1980, os projetos desenvolvidos no mbito do NUER-UFSC apontam para um deslocamento dessa concentrao para o Sul, no final dos anos de 1980 e seguintes, com o surgimento de uma srie de pesquisas que encontravam certa continuidade crtica com as primeiras. Cf. as publicaes organizadas pela antroploga Ilka B. Leite (1991 e 1996) e a tese de Hartung (2000) que faz parte desse conjunto.

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tcnicas (laudos antropolgicos) necessrias ao reconhecimento do direito daquelas comunidades. O dilema da relao entre o discurso antropolgico e o discurso jurdico parece residir justamente a, mesmo nos casos mais favorveis: aquilo que para a antropologia visto como um exemplo de diversidade, o direito captura como modelo sobre o qual o seu modus normatizador deve operar. A perenidade desse modelo normatizador, porm, depende de outros fatores, em especial a fora poltica que outras situaes sociais, representativas de exemplos discrepantes, tenham em se fazer representar (provavelmente mediadas novamente pelo discurso antropolgico) como fontes de ampliao desse modelo. Um jogo de fuga e captura entre modelizao e diversificao, entre norma e variante, no qual os discursos antropolgico, jurdico e poltico no tm sempre um papel discernvel, sujeitos que esto a permanentes deslizamentos e reapropriaes.1.1.2. Etnicidade

O segundo paradigma est associado ao citado avano do movimento negro rural e sua forma de se reapropriar da categoria quilombola. No mesmo ano do primeiro texto de Moura, o GT sobre Comunidades Negras Rurais da Associao Brasileira de Antropologia9 (ABA, 1994) enunciaria uma interpretao cientfica, que se tornaria dominante, para essa ampliao da noo de remanescentes de quilombos. Reunido no Rio de Janeiro, o GT props a ressemantizao do termo quilombo, a partir dos novos significados que lhe eram atribudos pela literatura especializada (apenas Clvis Moura, Dcio Freitas e Abdias do Nascimento eram citados expressamente) e pelas entidades da sociedade civil que trabalhavam junto aos segmentos negros em diferentes contextos e regies do Brasil. Em meio a uma srie de negativas (no se referem a resduos, no so isolados, no tm sempre origem em movimentos de rebeldia, no se definem pelo nmero de membros, no fazem uma apropriao individual da terra...), essa ressemantizao definia os remanescentes de quilombos como grupos que desenvolveram prticas de resistncia na manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos num determinado lugar, cuja identidade se define por uma referncia histrica comum, construda a partir de vivncias e valores partilhados. Nesse sentido, eles constituiriam grupos tnicos, isto , um tipo organizacional que confere pertencimento atravs de normas e meios empregados para indicar afiliao ou excluso, segundo a definio de Fredrick Barth. (ABA, 1994) Esse conceito viria de encontro justamente necessidade de romper com o ato dissimulado de imposio de um significado para quilombo que reproduziria acriticamente ou a legislao repressiva do sculo XVIII (Almeida, 1996) ou as idealizaes e substancializaes de um movimento negro ainda profundamente referido ao modelo palmarino. No lugar disso, prope-se que se reconhecessem as novas

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Compunham o GT, relacionados nesta ordem: Ilka B. Leite (UFSC), Neusa Gusmo (UNESP), Lcia Andrade (CPI-SP), Dimas S. da Silva (SMDDH e UFMA), Eliane C. ODwyer (UFF e ABA/tesoureira) e Joo P. de Oliveira (UFRJ e ABA/presidente). Alfredo Wagner B. Almeida participou de parte desta reunio do GT, mas no a acompanhou at o final, no estando entre seus signatrios. Apesar de fazer parte do GT, Joo B. B. Pereira (USP) no pde estar presente a esta reunio.

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dimenses do significado atual de quilombos, que tm como ponto de partida, situaes sociais especficas e coetneas, caracterizadas sobretudo por instrumentos poltico-organizativos, cuja finalidade precpua a garantia da terra e a afirmao de uma identidade prpria (Almeida, 1996:11). Isto , as autoevidncias intrnsecas ideologia escravocrata e aos preceitos jurdicos dela emanados (Almeida, 1996:15) devem ser substitudas pelas auto-evidncias emanadas da ideologia contempornea dos movimentos sociais (camponeses) que tm nesse tipo de evento histrico e na reivindicao pblica do estigma relacionado a ele uma forma mais que simblica de negar o sistema escravocrata (:17). Assim, o Artigo 68 teria como ponto de partida a autodefinio e as prticas dos prprios interessados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados pela ampliao da lei reparadora dos danos histricos (:17). Voltando ao ponto fundamental destacado por Weber (1991), o sociologicamente relevante no uso da categoria etnicidade seria sua remisso ao movimento de um determinado agregado no sentido da constituio de uma unidade poltica. As fronteiras e os mecanismos de cri-las e mant-las, isto , os limites que emergem da diferenciao estrutural de grupos em interao, do seu modo de construir oposies e classificar pessoas, o que passa a ser social, simblica e analiticamente relevante (Barth,1969) . Assim, ao lado do paradigma histrico e etnolgico das terras de uso comum, o conceito de grupo tnico impe uma definio de remanescentes de quilombos calcada em critrios subjetivos e contextuais, marcados pela idia de contrastividade, por meio da qual um grupo se percebe e se define sempre pela oposio (no caso, o conflito fundirio) a um outro. O conceito de grupo tnico surge, ento, associado idia de uma afirmao de identidade (quilombola) que rapidamente desliza semanticamente para a adoo da noo de auto-atribuio, seguindo o exemplo do tratamento legal dado identidade indgena10. Essa leitura pragmtica da identidade tnica disseminou-se rapidamente, passando mesmo a constar das listas de itens ou critrios de identificao das comunidades remanescentes de quilombos. Em um texto do ex-advogado do PVN, ela surge como o primeiro item de uma lista:1. Essas comunidades, encontradas em todo o territrio nacional, podem ser caracterizadas na medida em que seus habitantes se utilizam de categorias de autodefinio e/ou de autoatribuio, que funcionam como elemento gerador de identidade a esses grupos sociais, invariavelmente autodenominados como pretos e que se proclamam pertencentes a um certo territrio (Silva, 1997:61)

A frmula sucinta da autodefinio dos agentes e da coletividade passa a ser um dos itens da definio operacional de quilombo11.

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O marco terico da etnicidade j havia sido plenamente adotado no Brasil desde os trabalhos de Cardoso de Oliveira (1976 [1971]) e Carneiro da Cunha (1986 [1979]), da mesma forma que a sua reduo frmula da auto-atribuio tnica se consolidaria, a partir da, em torno militncia contra a imposio, por parte do rgo indigenista oficial, de critrios externos e substantivos (no caso, a aparncia, os itens culturais e mesmo o exame de sangue), que ameaavam suprimir os direitos de grupos indgenas.11

Esse um dos exemplos em que a aparente irrelevncia terica da formulao no impede que ela se reproduza e produza seus efeitos sobre a produo acadmica. Note-se que o seu uso se d nos debates pblicos sobre o tema (cf. ODwyer em Seminrio Tcnico de Mapeamento e Banco e Dados..., revista Palmares, 2000:70) e, conseqentemente, na orientao dada aos antroplogos de campo que produziram os laudos encomendados pela FCP.

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Sob a perspectiva da etnicidade, o abandono de um naturalismo (raa) ou de um historicismo (os quilombos histricos), no deveria levar adoo de um culturalismo, conforme ele surge embutido naquela afinidade eletiva entre questo negra e cultura no Brasil. Assim, a adoo desse marco terico levou a uma releitura e a um reenquadramento dos trabalhos sobre grupos rurais negros do incio dos anos 1980, nos quais, segundo Maria de Lourdes Bandeira (1988), predominava uma nfase nas formas culturais que marcariam as especificidades objetivas dos grupos tnicos, associadas persistncia de traos culturais originrios da frica (:21). Da, tambm, que, ao significar o abandono daquela busca por pequenas fricas, a adoo do marco terico da etnicidade rompe no s com uma linha de trabalhos acadmicos, mas tambm com um tipo de discurso poltico. Outro efeito dessa definio, em funo da forma pela qual ela se ope noo de cultura negra, foi poltico: ao atribuir maior nfase s questes de classificao social, relativas grande variedade de formas e valores que a mobilizao poltica dos grupos pode assumir, ela tende a representar, do ponto de vista do movimento social negro, uma perda retrica, um recuo no progressivo avano em torno de uma bandeira de luta unificada. Ao contrrio do que este reivindicava, o quilombo contemporneo passa a ser visto com a prpria traduo do processo de desafricanizao, para ser caracterizado como produto de conflitos fundirios bastante localizados e datados, ligados decadncia das plantations das regies de colonizao antiga (Almeida, 1996:18). * A prpria noo de auto-atribuio, fruto do deslocamento e adaptao do conceito de etnicidade, pode ser lida nestes termos. A nfase que o discurso antropolgico permitiu depositar na caracterstica de auto-atribuio e atribuio pelos outros dos grupos tnicos (Barth, 1969), como fundamento da aplicao das categorias jurdicas de ndio e quilombola a determinados grupos pelo Estado brasileiro, foi fundamental no embate poltico contra atores e agncias interessadas em negar direitos a tais grupos. Nesses casos, a categoria de auto-atribuio serviu como um ponto de fuga contra a estratgia de capturar tais rtulos em um rol fixo de caractersticas, em geral referidas a um determinado esteretipo culturalista ou historicista do que tais grupos deveriam ser, que excluiria a maioria dos casos concretos. Mas preciso reconhecer que, aplicando estritamente o programa de investigao proposto por Barth com base na categoria de grupos tnicos constantemente reivindicado nos trabalhos sobre o tema , no possvel postular conexes diretas entre o grupo descrito (como de carter tnico) e a categoria genrica e englobante de indgena ou de remanescente de quilombos (de carter jurdico-administrativo). A categoria de auto-atribuio s pode preencher este espao analtico nas situaes em que o prprio grupo descrito j aderiu politicamente, de forma plenamente assentada pela didtica militante ao menos em seu discurso pblico ao rtulo jurdico. Nos outros casos, em que tal discurso ainda no foi plenamente assentado, o critrio de auto-atribuio corre o risco de operar como uma nova captura restritiva daquelas categorias. Diante disto, a aplicao do rtulo ndios a grupos que no dominam ou que recusam a relao com o Estado e a sociedade nacionais, como por exemplo, os chamados ndios isolados, acaba por realizar um recuo analtico, para resguardar sua eficcia poltica. Suspende-se a crtica s definies substancialistas e lana-se mo delas: diante das evidncias de alteridade social e cultural e justamente em funo delas a aplicao do rtulo ndios a tais grupos dispensa a auto-atribuio, com a vantagem de se poder usar o argumento essencialista do expropriador contra suas

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prprias pretenses. Tal recuo analtico, garante, portanto, outro ponto de fuga, contra a possibilidade da prpria ferramenta antropolgica servir contra os interesses de tais grupos. Mas como isso funciona se em tais casos de demanda por reconhecimento em que tal discurso ainda no foi plenamente assentado disserem respeito no a ndios isolados, mas a comunidades negras em luta por suas terras? Aqui, tambm, a exclusividade do critrio de auto-atribuio poderia restringir a aplicao do rtulo remanescente de quilombo e, portanto, o reconhecimento dos direitos de tais grupos, s situaes no s de plena mobilizao poltica, mas quelas situaes de mobilizao j adequadas ao novo discurso ressemantizado12. Na ausncia de tal adequao de que fala a epgrafe deste captulo essa vinculao tambm depende de um recuo analtico em direo s listas de caractersticas substantivas. Assim, diante desse jogo de fuga e captura entre a descrio antropolgica e seus efeitos polticos, o peso que a interpretao antropolgica deposita no argumento da autoatribuio deve observar (e de fato, tem observado, ainda no tenha refletido o suficiente sobre isso) as condies polticas e cognitivas que marcam a relao de tais grupos com o aparato jurdico-administrativo estatal. Ele no responde apenas a uma opo terico-metodolgica, mas fundamentalmente a uma avaliao sobre a conjuntura poltica em que tal reconhecimento ser realizado. Com a agravante de que, no caso das comunidades remanescentes de quilombos, o recuo que leva a uma revalorizao da descrio substantiva dos grupos (na ausncia da auto-atribuio), a anlise antropolgica no pode, como acontece no caso dos ndios isolados, retornar ao conforto de uma descrio que contemporiza com o senso comum. Cabe ao antroplogo, nesse caso, um movimento analtico de segunda ordem, criativo, propositivo de um modelo sociolgico que vem se opor a um modelo histrico. Assim, no caso dos grupos que no esto auto-identificados, so as noes nativas (autoatribuies desencontradas com relao ao novo iderio poltico e ao novo rtulo jurdico-administrativo) que devem ser ressemantizadas, resultando em que tanto a simbologia do Artigo 68 quanto a simbologia nativa tenham que ter seus percursos corrigidos para encontrarem um ponto de convergncia. Por isso, a epgrafe utilizada na abertura desse item no serve como qualquer espcie de denncia, mas como a manifestao mais lcida acerca da riqueza e complexidade do processo de identificao que o quase conceito antropolgico de auto-atribuio no capaz de traduzir. Dessa forma, a ressemantizao no est apenas desfazendo um modelo, mas tambm, e simultaneamente, propondo outro, implcito nas listas de caracterizao que surgem desde ento. A definio emprica de Quilombo elaborada pela equipe do PVN a partir do caso Frechal d origem, por meio da generalizao de suas caractersticas, a uma definio descritiva, de carter normativo, composta por itens como: ruralidade, forma camponesa, terra de uso comum, apossamento secular, adequao a critrios ecolgicos de preservao dos recursos, presena de conflitos e antagonismos vividos pelo grupo e, finalmente, mas no exclusivamente, uma mobilizao poltica definida em termos de auto-afirmao quilombola13.12 13

Outra possibilidade a simples hipertrofia do discurso de lideranas informadas.

Veja-se, por exemplo, para um caso em que a lista de caractersticas explcita, revista Palmares (n 5, 2000:70).

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Entretanto, quando o uso do conceito operacional tambm pode resultar em um empirismo ingnuo e espontneo se no for colocado prova do trabalho emprico constante e sistematicamente. Como chama a ateno Bourdieu, a construo de designaes especficas, formadas mesmo por palavras de uso comum, mas que ao se combinarem de modo particular adquirem um novo sentido e constroem objetos especficos (remanescente e quilombo), no seno um primeiro momento da ruptura necessria constituio do objeto sociolgico (Bourdieu, 1999:47). Quando nfase exclusiva no carter operacional das definies serve para evitar a formulao de uma problemtica terica, ou simplesmente a discusso sobre o prprio objeto que pretendem descrever, continua Bourdieu, corremos o risco de considerar como uma verdadeira teoria, uma simples terminologia classificatria, que se limita a ser a formulao logicamente irrepreensvel de prenoes (:48). O desafio est, portanto, em reconhecer no Quilombo um objeto socialmente construdo, no s plano das relaes tnicas a que as formulaes de Barth (1069) fazem referncia mas tambm no plano da confluncia entre os discursos antropolgico, jurdico, administrativo e poltico. E nesse sentido que deveramos nos reapropriar problematicamente desse conceito, depois de termos ajudado a constru-lo.

1.2. O trabalho de campo em dois tempos1.2.1. Primeiro contato (1999)

Meus primeiros e rpidos contatos com o bairro do Cabral se deram ainda no ano de 1999, quando de uma srie de viagens que eu realizava pelo interior do estado, a fim de verificar a existncia de comunidades negras rurais. Estas viagens haviam comeado no ano anterior, como atividades do projeto O campo negro do Rio de Janeiro, premiado com uma dotao de pesquisa oferecida pelo Centro de Estudos Afro-Asiticos em parceria com a Fundao Ford. O projeto objetivava a realizao de um mapeamento preliminar e de uma srie de pequenos surveys sobre estas comunidades. Como no existia precedentes sobre o tema no estado, o roteiro destas viagens foi montado a partir de uma srie de informaes dispersas e muito diferentes entre si: uns poucos trabalhos acadmicos, um levantamento realizado pelo Ministrio Pblico Federal por correspondncia s prefeituras; indicaes mais ou menos vagas de militantes do movimento negro ou de lideranas de sindicatos de trabalhadores rurais; breves notcias de jornal; registros de grupos ou festas religiosas, entre outros. Por limitaes de tempo e recursos, as viagens acabaram se concentrando nas regies do litoral sul, sul do vale do Paraba e regio dos lagos, e derem origem a brevssimos e solitrios surveys, que se concentraram nos temas da memria e dos direitos terra. Assim, em janeiro de 1999, eu me dediquei a percorrer a rea rural do municpio de Paraty, partindo das informaes colhidas junto ao Sindicato de Trabalhadores Rurais e s lideranas da comunidade de Campinho da Independncia. Nesta oportunidade fiz meu primeiro contato com o senhor Valentim e com a senhora Madalena, sua esposa. A esta altura, Campinho j era uma comunidade relativamente conhecida, no s em funo de sua luta pela terra, que vinha se desenrolando desde os anos de 1950, mas tambm como o principal foco de ateno do governo do estado em termos de comunidade quilombola. Pouco tempo depois, de fato, a ento vice-governadoraArruti,2008 /

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Benedita da Silva faria as gestes necessrias para reconhecer, titular e registrar em cartrio as terras da comunidade, dando um desfecho rpido, por meio da aplicao do artigo 68, a uma luta que vinha se arrastando h dcadas por no conseguir a regularizao fundiria por meio dos recursos jurdicos at ento disponveis: a legislao relativa ao Direito de Usucapio e os mecanismos de Reforma Agrria. Desde este primeiro contato com o senhor Valentim, ele me falou de imediato e de forma espontnea da comunidade de Cabral, como sendo outro exemplo de comunidade negra rural do municpio. Mais tarde, por minha insistncia, eles e outros entrevistados falaram-me da possibilidade de eu encontrar vestgios de comunidades negras rurais tambm nos bairros de Rio dos Meros, Pedras Azuis e Curupira. Mas em nenhum destes casos os informantes depositaram tanta certeza na indicao de uma localidade que correspondesse aos critrios mais ou menos substantivos com os quais eu trabalhava a poca, como forma de me fazer minimamente compreendido: uma comunidade (e no qualquer bairro) constituda de famlias relacionadas entre si por laos de parentesco ou de vizinhana antigos, que tambm fosse rural e predominantemente negra. Eu mesmo cheguei a visitar tais bairros, sem sucesso nas minhas buscas. Em funo disto, as minhas anotaes de campo do ano de 1999 para o municpio de Paraty concentraramse justamente nas comunidades de Campinho e de Cabral. digna de nota uma situao vivida ainda neste primeiro contato com a comunidade, que ajuda a entender os caminhos realizados pelo processo de identificao e de reconhecimento pelos quais Cabral passou desde ento. Ao se disponibilizarem em me apresentar a moradores de Cabral, o casal Valentim e Madalena me apresentaram a um casal de senhores evanglicos da localidade de Lucas, situada dentro do bairro de Cabal. Eles deram uma explicao rpida dos meus interesses e pediram que o casal me recebesse em sua casa para uma conversa no dia seguinte. Para surpresa e escndalo de Valentim e Madalena, porm, o casal se recusou a me receber, sob o argumento que no satisfez aos meus intermedirios de que estavam em tempo de farinhada e no poderiam me dar ateno. Entretanto, o mais interessante desta situao foi a reao de Valentim e Madalena a esta recusa. Imediatamente uma srie de temas sobre os quais eu simplesmente no havia abordado com eles emergiu de suas falas dirigidas ao casal de moradores de Cabral. Eles associaram a minha pesquisa pesquisa que a professora Neusa Gusmo havia desenvolvido em Campinho anos antes, assim como apontaram a possvel funo que tal pesquisa poderia ter na regularizao das terras do Cabral que, segundo o sr. Valentim, tinha as mesmas caractersticas das de Campinho. A sra. Madalena completaria a fala do esposo lembrando que eles teriam recebido a comadre Neusa tambm em uma poca de farinhada e que ela teria se estabelecido entre eles por meses, observando, fotografando e ajudando nos trabalhos da farinha. Isso foi importante, explicava ela, para que os nossos problemas se tornassem conhecidos por pessoas que poderiam ajud-los na luta. Como tal discurso no encontrou maior eco entre o citado casal, o sr. Valentim apresentou-me a outros ex-moradores do bairro, assim como indicou-me conversar com dois parentes seus que moravam l, o sr. Benedito Evncio e o sr. Domingos, dos quais falarei mais adiante. Depois dos primeiros contatos com um casal de ex-moradores do Cabral, ento residentes em Ilha das Cobras, periferia de Paraty, fui at o bairro do Cabral em busca do sr. Benedito Evncio, por ser ele um dos moradores mais velhos do bairro. Evncio morava em uma casa na beira de estrada de terra que, partindo da BR101, adentra o bairro, levando at o alto da localidade do Lucas. Bastaram 15 minutos a p desde a beira da estrada asfaltada para localiz-lo sentado no portal de sua casa, rodeada pela casa de um filho, por uma escola e um engenho de cana. A pequena localidade 14

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distingue-se na linguagem dos moradores do local como o Ronca em funo do barulho que o pequeno crrego que banha a regio produz ao desaguar em poo fundo localizado nas suas terras. Encontrei-o adoentado e desanimado, reclamando da erisipela que j no lhe permitia andar e do cansao que lhe dificultava a fala. Nascido em 12 de maio de 1917, filho de Geraldo Rocha Quintana e de Maria Eugnia, Evncio se considerava um empreendedor em vrios sentidos. Teria se destacado, junto aos proprietrios locais por sua capacidade de organizar turmas de trabalhadores e assumir empreitadas; seria o responsvel por vrias melhorias no s em suas terras, mas em todo o bairro, tais como a prpria estrada que eu havia percorrido e a extenso da energia eltrica (ambas do incio dos anos 80), desde a BR101 at a altura da sua casa; teria criado e formado 18 crianas, ainda que nenhuma delas fosse filho natural seu; e tambm teria marcado sua presena no bairro com a doao de fraes das suas terras para a construo de diversos prdios de uso pblico, tais como a escola, e trs igrejas (incluindo a catlica). No grupo escolar existe uma foto ampliada sua, mas no pde dar o seu nome a ele porque, segundo lhe explicaram, no se podia dar nome de gente viva a prdio pblico (a escola foi batizada com o do av do atual empresrio, branco, que arrenda o seu alambique). Finalmente, tambm era ele o principal responsvel pelas festas de reisado e de So Joo, pocas em que matava um boi, organizava mutiro para a produo das comidas de poca e realizava as festas em suas terras. Apesar de ter vivido praticamente toda a vida no mesmo local, Benedito contou-me ter ido trabalhar durante dois anos em Mag e em Santos, durante a dcada de 50, no corte da banana e no corte da lenha. Foi com o dinheiro acumulado ento, algo em torno de sete contos e setecentos mil ris, que pde retornar ao bairro para trabalhar para si e no mais para os outros. Trabalhou, por exemplo, como pescador na fazenda da Caada, dono de quatro canoas, que ele mesmo construiu a partir de uma mesma rvore, que ele mesmo derrubou. Conta que foi, de fato, o maior responsvel pela abertura da mata grossa daquelas terras, para o plantio de cana, banana e mandioca. Foi esta experincia fora da sua prpria localidade que teria lhe permitido ser o nico a mover, em 1971, por conta prpria e com recursos prprios, a ao de usucapio que levou aquisio das suas terras. Nelas, mais tarde construiu um engenho de cana e cachaa, que lhe traria srios problemas com o IBAMA. Em funo de todas estas iniciativas, os proprietrios locais lhe apelidarem de patro e lhe requisitavam muitas e grandes empreitadas, como a construo da pista do aeroporto da cidade. Nesta, por exemplo, ele comandou uma turma de 50 homens, por encomenda do ex-prefeito Ded, av do prefeito de ento. Apesar da situao de sade de Benedito Evncio, que o levava a falar com muita dificuldade, foi possvel entender que o bairro do Cabral estava dividido em setee parcelas, cinco delas distribuda entre diferentes grupos de parentes e apenas duas nas mos de proprietrios vindos de fora.

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Mapa 1 Localizao do bairro Cabral no contexto municipal

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Croqui 1 Vale do Cabral

Com sua indicao, tambm segui em direo ao fundo do pequeno vale, por onde a estrada ia subindo os morros que o formavam, at que a estrada acabava, dando lugar a uma estreita trilha que desembocava em um pequeno agrupamento de residncias, situado no trecho conhecido com Lucas e no qual a referncia era o Sr. Domingos. Pude conversar apenas muito rapidamente com o Sr. Domingos, que saa para trabalhar. Deste contato no pude realizar mais que uma primeira observao sobre a disposio espacial das residncias e casas de farinha, que pareciam dispostas segundo um arranjo muito particular, com as casas dos pais de famlia acompanhadas de casas de farinha e circundadas das casas dos seus filhos.

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Croqui 2 Viso esquemtica do Lucas

* Apesar de ter acumulado um conjunto de notas bastante interessante para o curto perodo de dois dias de contato com o grupo, o aparente desinteresse sobre o tema da posse e regularizao da terra por parte daquele primeiro casal com o qual tive contato, me indicava que a posse daquelas terras no era um tema relevante para aquela populao. Ou, ao menos, que ela no havia se convertido em uma questo, isto , no estava submetida a qualquer presso maior ou situao de conflito explcita. Por isso o relatrio do projeto O campo negro do Rio de Janeiro acabou se concentrando em situaes que, em funo dos conflitos que as envolviam, tornariam as questes de interesse do projeto mais explcitas: as comunidades de Preto Forro e da ilha da Marambaia14. Restavam das minhas anotaes realizadas neste primeiro contato, algumas impresses gerais: a) a comunidade de Cabral era apontada espontaneamente pelas pessoas da cidade e de suas vizinhanas, quando eu as inquiria sobre a localizao de comunidades negras rurais no municpio; b) havia uma franca associao entre as comunidades de Campinho e Cabral tanto do ponto de vista das relaes de parentesco quanto com relao analogia entre as suas situaes jurdica com relao terra; c) o esboo de desenho de sua organizao espacial apontava para a existncia de um grupo social relativamente coincidente com um recorte geogrfico no seu conjunto, assim como evidentemente marcado na organizao espacial das suas parcelas, por uma ordem centrada nas unidades familiares;

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Dois produtos deste projeto inicial seriam os relatrio histrico, socioeconmico e jurdico das comunidades negras rurais de Preto Forro, no municpio de Cabo Frio (ARRUTI, J. M. P. A ; TOSTA, A. ; RIOS, M. / Rio de Janeiro: Projeto Egb Territrios Negros, Koinonia, 2002) e da Ilha da Marambaia, no municpio de Mangaratiba (ARRUTI, J. M. P. A ; MOTA, F. R. ; RIOS, M. / Rio de Janeiro: Projeto Egb Territrios Negros, Koinonia), 2001.

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d) aparentemente, o grupo que ocupava aquelas terras tambm havia sido o responsvel por sua abertura para o cultivo agrcola; e) este grupo, atualmente, vivia em alguma medida, o impacto do processo de parcelamento das terras que j havia atingido outras comunidades do municpio, por meio da regularizao de suas terras e sua converso em mercadoria; f) havia uma forte sugesto de que tal processo apontava para um horizonte conflituoso, tendo em vista o exemplo do que acontecera com a comunidade vizinha do Campinho. Da mesma forma que, este mesmo exemplo apontava (ao menos para as lideranas desta comunidade) para o artigo 68, como o modelo mais indicado para encaminhar os impasses que comeavam a se apresentar comunidade do Cabral; g) Tal sugesto, porm, no era percebida com a mesma clareza pelos moradores de Cabral, os maiores interessados em tal identificao e em tal analogia.1.2.2. O segundo contato (2007)

Um novo contato com o grupo de Cabral s ocorreria no incio deste ano de 2007, diante do convite para realizar o relatrio antropolgico destinado a compor o relatrio tcnico do Incra, em resposta demanda do grupo pelo reconhecimento oficial como remanescente de quilombos. Assim, a primeira visita comunidade neste novo contexto, realizada no dia trs de maro, teve por objetivo, conforme nos foi comunicado, realizar uma reunio com um nmero representativo de moradores para informar sobre os procedimentos de regularizao do territrio quilombola, em especial dos trabalhos antropolgicos de identificao territorial. Apesar disso, segundo depoimento da liderana comunitria, como o Incra s havia comunicado da reunio na noite anterior, o encontro contou com apenas uma pessoa, o presidente da associao de moradores de Cabral, a quem veio se somar o presidente da associao de moradores da comunidade vizinha, Campinho da Independncia, que tambm acumulava os cargos polticos de coordenador da AQUILERJ (Associao de Quilombos do estado do Rio de Janeiro) e da CONAQ (Coordenao Nacional Quilombola). Das primeiras informaes colhidas nesta reunio destacam-se: a) a comunidade vem discutindo o processo de reconhecimento h alguns meses no mbito da Confederao de Associaes Comunitrias de Paraty (Comamp) e sob a influncia da comunidade de Campinho; b) tais discusses tornaram-se prementes nos ltimos tempos em funo do avano da especulao imobiliria, que finalmente ameaa alcanar suas terras; c) confirma-se a existncia e a importncia dos laos de parentesco entre Cabral e Campinho, diretos ou indiretos (no caso dos que esto relacionados uma terceira comunidade j extinta, que existia entre ambas, por nome Giti); d) a comunidade conta com a presena de vrias denominaes religiosas e j no realiza a festa da padroeira, apontando para um campo religioso complexo; e) com relao aos servios pblicos, a comunidade no conta com sistema de transporte, nem com posto de sade (em construo nos fundos da igreja catlica, onde o PSF j atende) e conta com uma escola de duas turmas multisseriadas, com 42 alunos do primeiro ciclo do primeiro grau;

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f) finalmente, foram recolhidas pequenas narrativas de memria escrava e informaes voltadas para pesquisa documental, tais como os nomes das fazendas incidentes naquelas terras e de indivduos envolvidos em litgios legais relativos posse da terra. * O trabalho de campo desdobrou-se a partir da em visitas semanais curtas, de 3 ou 4 dias, realizadas em geral entre a quinta e a segunda feira, ao longo dos meses de maro, abril e maio, sofrendo uma interrupo, porm, em junho, para ser continuado em setembro. Nesta ocasio, observao direta, s visitas aos limites do territrio e s entrevistas, foi acrescida a aplicao de um questionrio relativamente extenso em todas as famlias do bairro, includas e no includas na proposta de delimitao territorial. A interrupo entre junho e agosto se deu em funo de dois fatores. Um foi decorrente de problemas de sade meus, que me obrigou a interromper os deslocamentos at Paraty e reduzir o ritmo de trabalho. O segundo fator, menos acidental, mas pelo contrrio central produo deste relatrio, foi a necessidade sentida e expressa formalmente pelo prprio grupo (por meio de uma carta que segue em anexo a esta Introduo) de mais tempo para que pudessem amadurecer as discusses internas sobre as mudanas necessrias e os efeitos inevitveis de seu reconhecimento como remanescentes de quilombos. Para efeito de uma rpida exposio desta dimenso do contexto do trabalho de campo ser necessrio apenas, por hora, esclarecer que a comunidade do Cabral formada pelo agregado scio-territorial de cinco grupos de herdeiros relativamente bem definidos, que remetem a trs troncos familiares principais. Cada grupo de herdeiros tem a posse (ou a pretenso de posse: o direito de herdeiro) sobre uma rea, todas contguas (as terras de herdeiros) que, apesar de serem pensadas como unidades territoriais distintas, conformam um territrio coletivo, designado comumente como bairro, e amplamente conhecido como bairro do Cabral, parte dele proposto como territrio a ser delimitado como territrio quilombola. A situao do grupo de herdeiros do Lucas, da qual faz parte Domingos Ramos dos Santos, presidente da associao de moradores do bairro, a mais bem definida. Ela guarda grande homogeneidade entre as famlias de herdeiros, na forma de sua relao com a terra e com a noo de herana, assim como ma clara concordncia sobre a composio do grupo de herdeiros e sobre os limites da rea que lhe corresponde. O mesmo no acontece, porm, no caso dos outros grupos de herdeiros: os Alves (terra dos Alves), os Anglica (terra do Cabral seo que tem o mesmo nome do bairro), os herdeiros do Benedito Evncio (terras de Benedito Evncio) e os herdeiros de Rosa (terras de Rosa). Ainda assim, o territrio quilombola definido, de forma geral, como a soma das terras dos Lucas, dos Alves e dos Anglica. Entre eles h uma estreita rede de parentesco e uma grande proximidade fsica (dada as pequenas dimenses da rea em questo) que favorecem trocas sociais (trabalho, comrcio, casamentos etc.) e que do unidade social ao grupo. Deste ponto de vista, os cinco grupos de herdeiros constituem uma coletividade auto-referente, reconhecidos pelos de fora no s como uma comunidade, mas como uma comunidade quilombola, conforme se pode inferir de algumas aes da prpria municipalidade de Paraty, que os reconhecem oficiosamente nestes termos. No entanto, o acordo entre opinies e representaes ou a configurao social que permitem delimitar esta outra categoria de comunidade, a comunidade quilombola, no dependem apenas destas caractersticas

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ou dos citados critrios de pertencimento. H ao menos duas questes muito relevantes a serem consideradas.Trabalho sobre fichas de genealogia

Comunidade e autonomia. Em primeiro lugar, h problemas relativos prpria assimilao entre a noo local de comunidade, melhor traduzida na linguagem local por bairro ou terra de herdeiros, e aquela que est suposta ou implicada no reconhecimento como comunidade quilombola. A categoria jurdica de remanescente de quilombo est sustentada na suposio de uma configurao normativa com relao ao acesso e uso da terra, definida como de uso comum, e em uma associao entre os seus componente que, ultrapassando os vnculos de parentesco e aliana, deve se materializar na forma de uma associao civil de direito privado, a chamada associao comunitria. A norma legal no s concebe uma comunidade quilombola como um grupo social que coincide com uma associao civil e com um territrio de uso comum, como implica em que a associao se apresente como gestora do territrio pensado no s como de uso comum, mas como um territrio comum, ou seja, indiferente aos eventuais parcelamentos, mesmo que coletivos (as terras dos diferentes grupos de herdeiros), deste territrio. Disto resulta um forte deslocamento entre a noo de comunidade implicada na categoria legal de remanescente de quilombos e a noo local de comunidade (ou bairro), que no s valoriza, como exige uma a autonomia poltica e territorial entre eles. Documento, posse e propriedade. Em segundo lugar, possvel identificar uma correlao entre a adeso que cada um destes grupos produz com relao categoriaArruti,2008 /

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legal de quilombos e a segurana que eles tm com relao comprovao documental de suas respectivas posses familiares: tal adeso tanto mais firme quanto menos prximo o grupo est da garantia de sua propriedade legal sobre as terras que ocupam. Isto se d porque cada um destes grupos tem, efetivamente, algum tipo de documento de comprovao de sua posse, mas que variam muito entre si, indo do documento de aquisio (mas no registro cartorial) das terras por parte de seus ancestrais mais recuados, at os recibos de registro e de pagamento do Sistema Nacional de Cadastro Rural (na linguagem local, pagar o Incra), passando por uma sentena judicial favorvel ao de usucapio ou uma simples planta desenhada por engenheiro agrimensor contratado pelas prprias famlias para documentar seus territrios. Em alguns destes casos tais documentos so escriturados em cartrio, mas em nenhum deles h o registro definitivo das terras. Em alguns casos, os moradores buscaram regularizar tais escrituras antigas, mas tais tentativas sempre esbarram na falta de um documento de partilha da herana. O que com o tempo e a passagem de duas ou trs geraes, tornouse virtualmente impossvel de ser conseguido. Esta situao de herana no partilhada manteve a unidade das atuais terras de herdeiros e, em todos os cinco grupos, h um relativo consenso, entre aqueles que permaneceram em suas terras, de que elas devem permanecer indivisas e em usufruto, para a famlia. Assim, a adeso plena dos trs primeiros grupos de herdeiros os Alves, os Anglica (i.e. Cabral) e os Lucas est firmada na certeza tanto de que no h outra alternativa para se regularizar as suas terras, quanto de que eles preferem mant-las indivisas e em usufruto. No caso dos outros dois grupos, dos herdeiros do Benedito Evncio e de Rosa, porm, a aparente maior formalidade que foi dada aos documentos que garantem a posse ancestral levantam dvidas sobre a necessidade e pertinncia deles aderirem ao territrio comum que, ao menos legalmente, deixaria de ser da famlia, para ser da Associao. Disso decorre, portanto, que no caso dos grupos de herdeiros do Vale do Cabral, a adeso categoria de remanescentes de quilombos exige a composio entre ao menos trs critrios fundamentais: 1) Fazer parte da comunidade de parentes diretos e indiretos que habitam o vale do Cabral e que j esto reunidos em torno da Associao de Moradores do Cabral; 2) Ter uma relativa segurana sobre a legalidade formal (e no da legitimidade, que no est em jogo em momento algum) de suas posses ancestrais; 3) Admitir-se abrir mo de suas autonomias poltico-territoriais em nome da participao em uma Associao que, no sendo mais apenas de moradores, ter implicaes ainda pouco claras. Tais trs critrios, porm, no so nem inequvocos nem imveis. Durante boa parte do trabalho, a realizao do relatrio teve que dialogar com estes critrios no s no sentido de descrever o movimento das famlias e moradores, suas opinies e posicionamentos polticos com relao a eles; como, tambm, diante da ausncia de outros atores sociais habilitados para isso, no sentido de ajudar o grupo a refletir sobre tais critrios, seja a legalidade de seus documentos, sejam as alternativas de soluo dos impasses polticos que se apresentavam ou se anunciavam. Sem dar respostas, no era possvel fazer perguntas e sem refletir sobre esta inverso de perspectiva, no ser possvel produzir um relatrio minimamente reflexivo e rigoroso com relao ao processo de delimitao do territrio da comunidade.

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1.2. Breve reflexo sobre o papel do antroplogo no processo de identificao

O impasse expresso pela comunidade do Cabral no momento de sua definio territorial nos leva a uma rpida reflexo sobre o contexto do trabalho de campo quando envolvido em processos jurdico-administrativos de identificao territorial, que reverbera diretamente sobre a discusso terica feita na primeira metade desta Introduo sobre os conceitos de terra de uso comum e etnicidade. Iniciemos pela considerao de que a situao que se tem chamado de relatoria tcnica de identificao territorial em verdade combina duas tarefas particulares que, em termos ideais, no deveriam ser realizadas simultaneamente. A primeira, mais evidente e, em geral, imaginada como sendo a nica, implica em desenvolver uma pesquisa de carter scio-antropolgico e histrico-memorialistico que traduza as concepes locais acerca do territrio, suas formas de uso (ambientais, simblicas e econmicas) e das concepes de direito locais relacionadas posse territorial, de forma a permitir documentar de forma tcnica as representaes e configuraes sociais que permitem e justificam um determinado grupo estabelecer determinada demanda territorial. A segunda tarefa, em geral desempenhada de forma improvisada, em alguns casos de forma pouco clara para o prprio tcnico e, em situaes extremas, no realizada o que coloca em risco os resultados da primeira tarefa est no trabalho de informar o grupo sobre quais so as implicaes do seu reconhecimento oficial e da titulao de seu territrio como de remanescentes de quilombos. Isso significa, de fato, dar suporte e mesmo mediar os debates internos sobre sua definio territorial, j que tal definio no resulta de qualquer insero naturalizada no espao ou do simples clculo sobre o nmero de famlias e a produtividade do solo, mas da ponderao sempre poltica entre custos e benefcios, desejos e legitimidades, memria e futuro, razo simblica e razo prtica etc., e que, em geral, no esto definida quando da chegada do antroplogo. O maior ou menor acesso do grupo a informaes altera de forma significativa o tempo dedicado a cada uma destas tarefas no total destinado realizao do RTID. Alm disso, por tratar-se, muito freqentemente como o caso dos grupos de herdeiros do vale do Cabral de populaes com baixa escolaridade (principalmente entre homens e mulheres adultos, chefes de famlia, diretamente envolvidos nas discusses relativas a tais definies poltico-territoriais), o sucesso no desempenho desta segunda tarefa depende no apenas do acesso do tcnico a material informativo adequado, mas tambm a um processo de aprendizado, por parte do grupo, de conceitos e relaes jurdicas novas, o que pode ser demorado. Finalmente, mesmo supondo que tal compreenso foi alcanada ao menos de forma apenas suficiente e ao menos pela parte fundamental das lideranas envolvidas, ainda h o processo de amadurecimento do debate poltico interno ao grupo sobre o que isso implica para os seus projetos de futuro, assim para a configurao atual de suas relaes sociais.

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Devido experincia acumulada em outras situaes anteriores, a dificuldade na realizao deste relatrio no esteve na disponibilidade para desempenhar esta segunda (e no prevista) tarefa. Tambm no houve dificuldade especial do grupo no sentido de apreender as informaes bsicas necessrias sobre o tema. Ainda que no tenha havido uma presena efetiva do movimento negro ou quilombola na rea para realizar tais discusses, a proximidade da comunidade com o exemplo real e vivo do Campinho ajudou nesta compreenso. A dificuldade do grupo em definir a sua proposta territorial esteve justamente no exguo tempo sempre relativo a cada situao em particular que tiveram para amadurecer politicamente o tema. O que chamo de amadurecimento aqui implica na livre circulao das informaes necessrias; no debate no sistemtico, eventual, familiar sobre a alternativa aberta e suas vrias implicaes; na conferncia, com o apoio de advogados, procuradores do Incra ou servidores do cartrio de Paraty, sobre a segurana de sua documentao; na reunio da opinio de outros herdeiros, que hoje no moram nas terras, por terem buscado trabalho na sede do municpio ou em condomnios vizinhos etc., mas que so reconhecidos em seu direito de herdeiro e, portanto, com pretenses de domnio, posse ou mesmo propriedade sobre tais terras. O que estamos chamando de livre circulao das informaes e debate no sistemtico um modo muito tpico de produzir consenso, que passa pelas conversas na cozinha; pelas visitas entre parentes e vizinhos; pela criao e dissoluo de boatos; pela tomada de opinio de agentes externos; pela retomada do mesmo tema inmeras vezes, at que se produza a sensao de t-lo esgotado; pela identificao de opinies fortes ou com autoridade. Foi isso que fez com que a comunidade no se sentisse segura para definir os limites do territrio pretendido at o incio de dezembro, necessitando, como eles mesmos dizem na carta dirigida ao Incra, de mais tempo para realizarem novas reunies e debates internos.

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ANEXO Carta da comunidade de Cabral solicitanto adiamento dos trabalhos do INCRA

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Captulo 2 Contexto histrico e regional

2.1. Apontamentos histricos

As primeiras notcias da ocupao do litoral Norte Paulista e Sul Fluminense datam do sculo XVI, quando Portugal resolveu colonizar suas terras para garantir a soberania da colnia portuguesa. No incio foi a extrao de Pau Brasil e o cultivo de cana de acar, mas como esta ltima no alcanou o peso econmico obtido nas capitanias do Norte, as atividades econmicas acabaram ficando restritas agricultura de subsistncia e ao atendimento da demanda da metrpole por produtos da terra. A fundao de Paraty ocorre entre 1540 e 1560, com a instalao do primeiro ncleo de povoamento no Morro da Vila Velha (hoje Morro do Forte) por meio do sistema de Capitanias Hereditrias. Assim, no incio do sculo XVII consolida-se a ocupao do municpio, sobre terras dos ndios Guaianazes, mas o ncleo que viria chamar-se Paraty s se estabeleceria no local do atual centro histrico por volta de 1640. Pouco mais de vinte anos depois, Paraty seria separada de Angra dos Reis para ser elevada categoria de Vila (1667), com o nome de Vila de Nossa Senhora dos Remdios de Paraty. No fim do sculo XVII, com o ciclo do ouro, Paraty passa a ser a principal entrada para a Serra da Mantiqueira, experimentando grande crescimento econmico. Os portos de So Sebastio, Ubatuba, Paraty, Angra do Reis e Mambucaba passaram a escoar o ouro das Minas Gerais e apoiar atividades complementares explorao mineral, como as agrcolas e o comrcio de escravos. Nesta poca Paraty era um entreposto comercial e seu desenvolvimento deveu-se posio estratgica ocupada, como porto seguro no fundo da baa da Ilha Grande, que dava acesso ao caminho terrestre que seguia por Guaratinguet, passava pela Freguesia da Piedade (atual Lorena), vencia a Garganta do Emba e chegava a Minas Gerais, isto , o chamado "Caminho do Ouro da Piedade". Dessa forma, ali chegava o ouro das Gerais que seria embarcado para a Europa. Com a decadncia da extrao do ouro, em meados do sculo XVIII, Paraty perdeu importncia e sua economia foi redirecionada para o cultivo da cana de acar, que se expande de Angra do Reis em direo a Ubatuba, So Sebastio e Ilhabela. Paraty chegou a ter, no perodo, cerca de 155 engenhos de aguardente ou engenhocas na linguagem local destacando-se na produo de aguardente de boa qualidade, transformada em moeda de troca no comrcio de escravos com a frica e base do comrcio com as demais provncias brasileiras. Em 1781 a economia da regio sofre novo grande golpe, quando o governo da provncia determinou que todas as embarcaes destinadas regio se dirigissem ao porto de Santos. Despenca o movimento comercial do litoral norte. Os fazendeiros abandonam suas lavouras, permanecendo apenas alguns arruinados que mantiveram somente a prtica da lavoura de subsistncia. Esta situao s se alteraria em 1808, com a chegada da famlia real ao Brasil, quando so abertos todos os portos e a economia regional comea a se recuperar com o ressurgimento dos canaviais, a introduo do caf e a retomada das lavouras de fumo e cereais. Intensifica-se, ento, o comrcio com o Vale 27

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do Paraba e So Paulo, cujo acesso se dava por Taubat, atravessando a serra do Mar por caminho que chegou a ser calado com pedras naturais para sustentar o trafego de burros carregados de mercadorias. Os povoadores gradualmente se instalam ao longo da costa e, por utilizar o mar como principal meio de transporte, foram ocupando com suas fazendas as plancies, enseadas e ilhas deste litoral. Nas cidades, os casares demonstram a prosperidade dos comerciantes locais. Em 1877, um novo percalo associado s mudanas nas estradas e caminhos leva a um novo declnio econmico da regio e de Paraty em particular. Com a abertura de uma ferrovia entre Rio e So Paulo, atravs do Vale do Paraba, a antiga trilha de burros que atravessava a serra da Bocaina perdeu sua importncia. Situao que seria agravada na dcada seguinte com a Abolio da escravatura (1888). Todo o litoral norte de So Paulo e sul fluminense sofreu com isso, no que resultou em um acelerado processo de despovoamento. Um brutal movimento demogrfico leva entre 1851 e o final do sculo XIX, a populao do municpio de 16.000 habitantes para apenas 600 moradores, dedicados s atividades de subsistncia, pequena produo de acar e aguardente, comrcio local e pesca artesanal. Mesmo os caminhos existentes entre Paraty e Angra recuam e se fecham e o acesso a Paraty continuava a ser feito por barco apenas com Angra. Mas apenas no final da primeira metade do sculo XIX, com a substituio da cana de acar pelo caf como principal produto de exportao da regio que a cidade voltaria a ocupar o lugar de entreposto estratgico. Enquanto embarcava o caf vindo do Vale do Paraba, desembarcavam os escravos de frica e provncias ao norte, assim como as especiarias e demais produtos chegados da Europa, para abastecerem os Bares do Caf.2.1.1. As inflexes do sculo XX

Ao longo da primeira metade do sculo XX, essa posio de isolamento da regio vai sendo atenuada muito lentamente pela saturao do porto de Santos, em funo da exportao do caf (1925); pelo surgimento do porto de So Sebastio (decorrente do canal de So Sebastio); pela abertura da estrada de terra que atravessa a Serra do Mar entre So Jos dos Campos e Caraguatatuba (dcada de 1940); e por sua extenso at Ubatuba (dcada de 1950), qual se soma a recuperao da antiga ligao entre Cunha e Paraty, a velha estrada do ouro e do caf. Mesmo assim, s era possvel viajar de carro at Cunha sem chuvas. Na dcada de 1960, quando estas vias so asfaltadas, o processo de ocupao turstica da regio, iniciado timidamente na dcada anterior, se intensifica, dando incio aos primeiros conflitos fundirios envolvendo caiaras e populaes rurais. Paraty s se comunicava com Angra dos reis por barco (a lancha da Carreira) e com So Paulo, via Cunha, por uma estrada de terra, muito precria, servida por uma linha de nibus que saa de Paraty s 7 horas para regressar s 18 horas, mesmo assim apenas quando no era poca de chuvas. At ento, porm, a faixa litornea entre Bertioga e a Baa da Ilha Grande era ocupada praticamente apenas por comunidades de pescadores e de pequenos posseiros agricultores tradicionais, voltados para a produo de autosustentao e de excedentes de banana e farinha. A nica exceo era a indstria de construo naval (Estaleiro Verolme), localizada no extremo norte da regio, em Angra dos Reis. Antes de passarmos s transformaes operadas no perodo ps-1970, buscaremos reunir algumas informaes que permitem montar um quadro mnimo e fragmentrio,

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mas ainda assim til, do que era a vida das populaes que, apesar da decadncia da regio e das transformaes pelas quais elas mesmas passaram, continuaram ocupandoa e produzindo nela.Grfico 1 - Linha do tempo da economia municipal (Paraty)16001650 Caminho Porto Ouro Cachaa Caf Banana e mandioca Preservao Turismo Legenda: (cinza claro) = atividade em ascenso ou declnio (cinza escuro) = atividade intensa. 16501700 17001750 17501800 18001850 18501900 19001950 19502000 20002008

2.1.2. Isolamento relativo

Antes de BR101, o acesso das populaes do interior e das praias cidade de Paraty era ainda muito mais precrio do que hoje, predominando o transporte por meio de canoas e pequenas traineiras de pesca ou baleeiras. Os moradores de Trindade, por exemplo, viajavam 7 horas a p para chegar cidade, enquanto os moradores da praia do Sono tinham que ir de barco at o fundo do Saco do Mamangu para de l andarem hora e meia de trilha. Da mesma forma, os moradores de localidades como Ponta Negra e Cajaba, s tinham o transporte de barco, levando respectivamente sete e trs horas de viagem at o porto da cidade. Ainda que no se possa falar destas populaes rurais e caiaras como isoladas, como muitas vezes se quer imaginar certas populaes primitivas, j que elas mantinham comrcio regular com a cidade, o seu cotidiano era, de fato, marcado por um isolamento relativo de grande significncia para a sua organizao social, simblica e tcnica. Os recursos externos restringiam-se ao sal, plvora, o tecido, o querosene, o faco e o machado. Em comunidades como Campinho e Cabral, por exemplo, at os anos de 1960 e 70 a moeda era objeto raro, sendo usada por seus moradores apenas no mbito das trocas realizadas na cidade, onde o seu uso se esgotava. Uma srie de caractersticas prprias da combinao de culturas e tcnicas indgenas, negras e europias, tramadas em perodos mais recuados no tempo, se reproduziam com um baixo nvel de alteraes, assim como, da mesma forma, tais culturas e tcnicas se mantinham por meio de uma estreita interdependncia com o mar, o mangue e a mata atlntica, de onde praticamente tudo era construdo, produzido, plantado ou coletado. Era raro ir cidade para adquirir alimentos. A base da alimentao era o peixe com piro de farinha e banana e farinha de coco, no caso das populaes caiaras, e a farinha de mandioca com feijo, carne de galinha e todos os produtos derivados do porco, alm da caa, no caso das populaes rurais. Em ambos os casos a paoca de banana era

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muito consumida como tambm o caf de caldo de cana, com beij e fruta po, alm dos subprodutos do milho, como a pamonha, o angu, o cuscuz e o pich. Essa composio alimentar bsica explica tambm a indstria tradicional. A mais recorrente era, e ainda , o fabrico da farinha de mandioca, que implica em entalhar prensas, gamelas e ps, construir o pilo de madeira, tranar os balaios com taquaras, os tipitis, a peneira, construir com barro os fornos e moldar as panelas. Para a pesca era necessrio esculpir as canoas, os remos, confeccionar os covos e tecer com fibras redes de vrias espcies, como o arrasto (camaro), a malha (peixe), o pu ou jerer (siri). Para a casa de morar, um tipo de madeira para cada pea: esteios e vigas de cerne, caibros e o pau a pique de madeira mais leve, o ripado de jissara, telhas de tabuinha de louro ou de sap, as paredes de taipa de mo ou de sopapo, esteiras de taboa para dormir. O plantio seguia o sistema da coivara: derrubada de mata virgem, queima da madeira que no se utilizava para construo e utenslios. Os principais produtos da roa eram, alm da mandioca, o milho, o feijo e a banana, que junto com a farinha, encontrava bom mercado em Angra dos Reis. Estes dois eram praticamente os nicos dois produtos comercializados por esta populao. Arroz praticamente no existia (alguns dos moradores atuais de Cabral disseram ter comido arroz pela primeira vez j quando adultos e na cidade de Paraty). Essa tambm foi a medida do impacto da ocupao tradicional sobre o ambiente: a abertura de clareiras para o cultivo de roas de subsistncia, bem como a retirada seletiva de madeira de lei para construo civil e confeco de canoas e embarcaes, que ocorreram na proporo do crescimento da Vila de Nossa Senhora dos Remdios de Paraty, desde o sculo XVII. A interveno mais impactante sobre a floresta no passado foi o corte raso para plantio da cana de acar, e j nos meados do sculo XX, para introduo dos bananais, mandiocais, pastagens e outras culturas que declinaram desde a abertura da BR-101 (rodovia Rio Santos) na dcada de 70.2.1.3. O advento da Rio-Santos

A abertura da BR-101 traz, porm, um outro tipo de impacto, por vezes muito maior: o impacto da especulao fundiria, que atinge as terras beira da estrada, assim como as mais prximas do litoral. Este impacto intensificado ainda com a instalao do terminal porturio da Petrobrs em So Sebastio e das usinas nucleares de Furnas Centrais Eltricas em Angra dos Reis. Tais obras fizeram com que, alm dos grileiros de terras destinadas especulao imobiliria e turstica, a regio sofresse grande influxo de populao voltada ao trabalho naquelas grandes obras, iniciando uma grande e brusca transformao nos padres culturais e sociais das comunidades locais, at ento relativamente isoladas. Surgem, ento, dois novos padres de ocupao: os condomnios de luxo dos veranistas e altos funcionrios e os bairros de periferia dos antigos e novos bairros, marcados pela alta concentrao habitacional pela completa ausncia de infraestrutura urbana e servios pblicos bsicos, que passaram a abrigar tanto os pescadores expulsos de suas terras pelo capital turstico, quanto os migrantes atrados pelos postos de trabalho como empregados domsticos e operrios. A abertura da regio e o grande crescimento demogrfico sem qualquer planejamento pblico foram concomitantes ao crescimento urbano desordenado e ocupao predatria da faixa litornea, que resultaram em conflitos fundirios, desorganizao social e degradao ambiental.

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Sem qualquer estudo ambiental, que no era previsto na legislao da poca, a construo da BR101 levou ao corte raso da vegetao e aterro de nascentes, praias e manguezais, e morros inteiros foram transformados em pedreiras (Paraty Mirim), saibreiras ou caixas de emprstimo que at hoje no se recuperaram. Tambm os cortes nos morros e encostas resultaram em um volume consideravel de aterro (bota fora), que era depositado, via de regra, no local mais prximo possvel. Aps a construo da rodovia, vieram as ocupaes realizadas sem qualquer regulao, a abertura de estradas secundrias, e o incio de um processo de urbanizao desordenada do meio rural e regio costeira. Este processo traz uma srie de impactos gravssimos alm do desmatamento e impacto sobre a fauna, como a ocupao das margens dos rios, sua poluio pela emisso de efluentes domsticos, e uma srie de processos erosivos do solo. Esta eroso vem provocando o carreamento de sedimentos para os rios e conseqentemente, o seu assoreamento.2.1.4. Um territrio de conflitos

A regio est, hoje, sob a presso de dois vetores contrrios e aparentemente paradoxais, mas, na verdade, complementares: o avano da indstria do turismo e o avano das aes de preservao do patrimnio histrico e ambiental da regio. O turismo cresce velozmente, mas aqueles que j esto instalados e desfrutando desta indstria tm grande interesse em regular o seu avano, como forma de preservar os atrativos que sustentam e justificam esta atividade e mantm valorizadas as suas propriedades. Ainda assim, tal jogo em busca do equilbrio entre o consumo dos ovos e a exausto da galinha complexificado pela necessidade de fazer com que as aes de preservao no eliminem a necessria liquidez de capital, garantida pelo livre mercado de terras e pela abertura de novos espaos para a expanso da fronteira turstica. Nesse jogo de foras em tenso, as populaes tradicionais caiaras, indgenas, quilombolas e posseiros agrcolas so as que menos condies tm de manter suas posies. sobre elas que avana a fronteira. No primeiro momento, a simples promessa e, depois, a simples existncia da BR101 implicou na criao de expectativas de desenvolvimento econmico por parte das populaes nativas, assim como de uma violenta especulao imobiliria sobre elas. A combinao de ambas por vezes a primeira sendo manipulada pela segunda pressionou parte significati