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æ ensaios ARQUITETURA E CIDADE CONTEMPORÂNEA: ENCONTROS Eunice Helena Sguizzardi Abascal

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ARQUITETURA E CIDADE CONTEMPORÂNEA: ENCONTROS Eunice Helena Sguizzardi Abascal

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Este artigo é uma reflexão sobre a natureza do relacionamento existente entre arquitetura e desenho urbano no âmbito das cidades contemporâneas. Sua argumentação evidencia a relação dos escopos do projeto arquitetônico e do desenho urbano quando no intuito de promover na cidade contemporânea intervenções de maior envergadura, os chamados projetos urbanos, revelando sua natureza complexa a fim de prover a necessidade de relacionar distintas demandas, quer de ordem econômica, social ou estética. Evidencia também que o projeto urbano é um processo moldável, voltado à sociedade aberta e democrática, impedido de se apresentar como modelo estático e global. Conforma um neo-urbanismo que se compreende como dinâmica voltada à captação constante das transformações pragmáticas que se tornam espaço urbano e arquiteturas, que admite a capacidade de operar em contextos incertos. Palavras-chave: relação consubstancial, arquitetura, desenho urbano.

This article is a reflection about architecture and urban design relationship, for contemporary cities scope. It argues in the way of explain this necessary relationship between architecture and urban design, to provide large projects to contemporary cities called urban projects. It revels the complex nature of referred urban projects, to provide the necessary of relate distinct demands, about economic, social or aesthetic orders. It also shows up that urban project is a moldable process, turned round to open and democratic society, that is blocked to show itself like a global and finished model. It conforms a new urbanism, that understand itself like dynamics, turned to constant apprehension of pragmatic transformations that become urban space and architectures, that admit capacitating of operate in uncertain contexts. Key words: inherent relationship, architecture, urban design.

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ARQUITETURA E CIDADE CONTEMPORÂNEA: ENCONTROS Eunice Helena Sguizzardi Abascal

INTRODUÇÃO

O presente ensaio é uma reflexão a respeito da pertinência de estabelecer como princípio a impossibilidade de dissociar o projeto urbano do projeto arquitetônico, no mundo contemporâneo.

Por projeto urbano se entende o processo de ações na cidade entendida como uma realidade complexa, na qual atuam forças e dinâmicas sociais e materiais conflituosas. Assim, um projeto urbano é a resposta no tempo às solicitações complexas, buscando organização espacial, desenho e integração dos espaços urbanos. A cidade deixa de ser compreendida como sistema de fragmentos, e o seu desenho condiz a uma visão integradora que busca a continuidade espacial e a articulação das forças atuantes nos diversos setores.

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Neste contexto, a arquitetura é um dos instrumentos mais caros à realização dos projetos urbanos, por agregar valor a tecidos consolidados que requerem transformação, resgatando e vitalizando áreas mortas (amortizadas e desfuncionalizadas), conectando tempos e revelando a história dos lugares, mesmo que enfatizando as diferenças temporais.

É nesta realidade articulada entre espaço público, interstício e edifício que se torna possível uma cartografia subjetiva, no dizer de Solà-Morales (1999), a permeabilidade espacial tributária da cidade contemporânea, aquela que convive e serve às interconexões e fluxos, à aceleração e ao fruir lento, à historicidade e ao estranhamento.

A CIDADE CONTEMPORÂNEA

O enfrentamento do que hoje constitui a teoria da arquitetura depende da compreensão atenta do contexto da contemporaneidade. Talvez seja possível falar de uma teoria unificadora, que revele as conexões de arquitetura e cidade, desenho do edifício e projeto do espaço coletivo.

Esta nova teoria assenta no conhecimento de que a arquitetura contemporânea é um produto eminentemente urbano. Trata-se de estruturas arquitetônicas capazes de expressar pontos de conexão entre redes de fluxos justapostas, interconexões de sistemas e redes distributivas. Estas conexões assumem hoje variadas expressões, que implicam em sistemas de transportes, telecomunicações, logística de armazenagem e redes digitais,

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relacionadas diretamente a atividades territoriais que geram economia e experiências urbana e metropolitana.

A cidade revela de forma dramática as diferenças relativas à presença de fluxos e pontos nodais, apresentando-se um sistema de pesos desiguais: áreas carentes de infraestruturas e de habitação e outras concentradoras de energia e riqueza. O drama da diferença se agrava pelo entendimento de que o mote é a transformação veloz, de ocorrência abrupta e muitas vezes destituída de qualquer regulação.

No entanto, se a instabilidade parece constituir a condição efêmera contemporânea, e se a arquitetura neste contexto se conceitua como líquida (ibid., 1996), e se não representamos hoje o mundo como no passado à luz da permanência, mudanças significativas na concepção espacial se fazem prementes. O mesmo autor (1996) insiste com este novo modelo de interpretação, para o qual

“Hoy el proyeto consiste en captar todas las energías y dinámicas que configuran nuestro entorno. Se privilegia el cambio y la transformación y de ahí que se haga difícil pensar en términos de formas y materiales estables, o definiciones fijas y permanentes de un espacio. Más que retar al tiempo como vemos en la arquitectura clásica, la tarea de hoy consiste en dar forma física al tiempo, a la duración en el cambio” (op. cit., 1996: 11-2).

Se a arquitetura pode se adaptar às transformações e a velocidade destas, a construção de sua relação com a cidade necessita da presença de mediação capaz de realiza-la. Esta mediação é o projeto urbano. Em seu conceito, de forma aberta e disponível ao debate e ao diálogo constante com a sociedade, adquire por

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definição o caráter de transformação até que possa solidificar a experiência de resposta a essa demanda complexa.

Solà-Morales (1996) indaga se existe essa arquitetura, capaz de dar forma à mudança, uma arquitetura que definiu como líquida, que em sua mutabilidade renega os parâmetros rígidos do funcionalismo modernista. A pretensa relação biunívoca e linear entre forma e função, gerando um produto capaz de substituir a trama da cidade historicista e consolidada deixa de existir como processo, e o planejamento implica a escala necessária de um desenho urbano, de que faz parte ativa a arquitetura contemporânea.

A escala metropolitana de hoje, que implica concentrações humanas inusitadas, exige uma outra forma de pensar o domínio urbano, indo além da definição de cidade implicada pelo senso comum. A arquitetura urbana e metropolitana define temas e escalas novas, que acolhem áreas e edifícios industriais ociosos, vazios urbanos, centros de negócios e serviços, lazer e cultura, estações para interconexões de transportes, espaços comerciais e esportivos, que se justapõem e geram atividades urbanas. A cidade moldável surge como a que está consolidada, mas que se modifica em sua interioridade e necessita de substituições de usos e atividades a fim de refazer-se e viver.

Essa adaptação, entre o que pré-existe e o que se impõe como nova necessidade realiza uma conexão, uma articulação espacial ou a sua negação, entre o espaço renovado que se insere e os outros. Em muitos casos, estes fragmentos se impõem como tal, sem qualquer planejamento de inserção, voltando-se de costas ao

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que já existia, borrando as fronteiras entre o público e o privado, revelando o caráter de espaços abertos que em sua percepção se dão como cerrados, impenetráveis, carentes de uso. Espaços que negam sua função coletiva, definindo-se como voltados para si mesmos, como se apresentam muitos centros comerciais ou shopping-centers, mundos à parte encerrados em caixas arquitetônicas desqualificadas como espaço de vivência.

Entretanto, a arquitetura continua inserida na escala urbana e metropolitana, articulando os espaços em que acontece a vida cotidiana, sem que a cidade contemporânea se esgote nessa relação entre o espaço público e o edifício. É claro que a cidade ou a metrópole contemporânea é também o resultado de um sistema complexo de circulações, a que denominamos fluxos: abstrações que representam as movimentações de transportes, movimentos logísticos de mercadorias (Solà-Morales, 1996), espaços para a comunicação virtual, de lazer e de proteção à natureza.

No entanto, o conceito de cidade requer a síntese dessas esferas aparentemente autônomas ou justapostas, síntese que acontece na condição material dos espaços qualificados pelo desenho, pela arquitetura que os moldam e definem, nas escalas que permitem a aproximação e a percepção dos mesmos. Esse conceito requer ainda o abandono do culto ao objeto arquitetônico em si e autônomo, bem como instrumentos novos para enfrentar o entendimento da natureza cultural da arquitetura e da dimensão urbana hoje.

A história utilizada como instrumental crítico e reflexivo é capaz de revelar as distinções que envolvem o conceito de cidade no tempo,

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bem como conceituar a relação entre a arquitetura e mundo urbano. É ainda apta a esclarecer os meios capazes de constituir os instrumentos necessários para conduzir projetos urbanos e arquitetônicos nos dias atuais e lançar diretrizes futuras.

A RELAÇÃO ENTRE A CIDADE E SUA ARQUITETURA: PERSPECTIVA HISTÓRICA

A cidade realizada pela dialética entre prática e projeto radica suas origens no ambicioso movimento idealizador do Renascimento. Argan (1999) demarca o germe desta discussão na passagem da cidade medieval à renascentista, quando se definiu uma “ (...) nova estrutura e configuração do espaço urbano, além de uma nova concepção dos valores históricos e políticos da cidade” (ibid.: 55).

Mumford (1966) lembra a inexistência de uma cidade renascentista nos século XV e XVI propriamente dita, uma vez que o tecido medieval não deixou de estar presente, mas recebeu modificações de sorte a absorver transformações pontuais, tais como praças e aberturas de espaços públicos no interior da malha medieval confinada. A presença de uma teoria e de uma ciência urbanística, embora desenvolvida no período, não é fator suficiente para a efetiva transformação urbana de maneira radical (Argan, 1999). Além disto, o renascimento é um fenômeno cultural de complexidade abrangente, implicando o desenvolvimento do humanismo, em meio ao qual o problema da cidade como sede de uma sociedade organizada é então proposto, enfatizando a relação entre o espaço e as funções que este pode expressar.

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No entanto, as diferenças da cidade medieval em relação à renascentista são claramente assinaláveis. A primeira constitui um agregado de habitações e oficinas de artesãos (idem, ib., 1999) que se dispõem em torno de áreas de interesse comum, nos quais as feiras e mercados acontecem e onde se instalam a catedral e o palácio municipal. O espaço urbano medieval não é o fruto de produção consciente de uma sociedade politicamente organizada.

Ao contrário, a cidade dos séculos XV e XVI evidencia aspectos distintos da organização social, e seu espaço representa com clareza a diferença entre a residência senhoril, a classe que está na direção dos negócios e demais áreas destinadas às outras atividades produtivas. Ela determina uma hierarquia espacial que contempla ruas principais, espaços distintivos nos quais obras de arquitetura especialmente concebidas e tratadas se inserem, espelhando a importância política e social de dirigentes e da autoridade administrativa municipal.

A cidade se torna evidência do poder político encarnado por uma elite que assume a direção cultural e política, formada por famílias eminentes atuantes como mecenas de artistas liberais. Estes se distinguem dos antigos artesãos medievais, mestres de artes mecânicas, concebendo e traduzindo em projetos suas ideações, condutoras da execução.

Estes arquitetos liberais atuam na cidade concentradora de forças, em que aflora um complexo jogo de interesses. Em contrapartida, cresce o número de edifícios bem como a sua imponência, edifícios representativos de um poder assentado.

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A atividade do arquiteto se confunde com aquela de conceber objetos e cidades ideais, tornando-se possível (Argan, 1999) conceber uma cidade inteira enquanto forma geométrica unitária. Nessa época, os emergentes Tratados de Arquitetura demonstram as faculdades deste arquiteto projetista, que concebe ex novo seguindo parâmetros e meios de representação espacial racionais e geométricos.

Argan (1999) lembra que a cidade ideal é um ato artístico e também gesto político, simbolizando em sua perfeição a correção e a condição ideal e perfeita da administração pública nascente. As transformações devem se dar por vontade de um Príncipe, conforme projetos sistemáticos, embora a fundação de cidade novas e concebidas dessa maneira, tenha se revelado um fato raro. Na verdade, as transformações dos tecidos urbanos medievais aconteceram por saneamento do traçado antigo, abertura de ruas e praças capazes de arejar a antiga malha, regularizações e anexação de novas áreas urbanas.

Coube aos Tratados a concepção e difusão da doutrina da cidade projetada. A fonte primitiva foi sem dúvida Vitrúvio, base para os tratadistas a partir de sua utilização por Alberti.

Em De re aedificatoria, Alberti (1443-52) apresenta o edifício como parte integrante e não dissociável de um contexto urbano ou natural (do ambiente urbano), parte de uma composição mais ampla (op. cit., 1999) em que se inscreve e se subordina regulamentado pelas leis da perspectiva.

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O tratado de Filarete (escrito entre 1451 e 1464) representa um “diálogo” entre o arquiteto e seu contratante, Francisco Sforza, detalhando uma cidade ideal inserida na forma de uma estrela octogonal. Nela são muito nítidas aquelas áreas assim como os edifícios de arquitetura destinados ao palácio e à catedral, bem como demais áreas de depósitos, oficinas etc...

No século XVI os tratados minimizam a ênfase na unidade urbana e no desenho deste todo, abordando diretamente as questões relativas às reformas e inserções nos tecidos consolidados. Serlio, Palladio e Scamozzi se interessam pela tipologia arquitetônica e pela adequação e conformidade do edifício ao sítio natural e urbano. Uma morfologia definida pelas regras da composição e pelos elementos construtivos concorre por imergir a arquitetura no contexto urbanístico. A preocupação com o conjunto do centro urbano se torna evidente, e os edifícios que o compõem são considerados “objetos preciosos” (Argan, 1999).

Os conceitos de simetria e de proporção, válidos para o edifício isolado estendem-se ao conjunto urbano, à articulação de edifícios diferentes que devem fazer parte de um contexto unitário. Unificar as diferenças, estabelecer a harmonia das partes embora continuem dotadas de identidade marcante e estruturar essa unidade a partir da geometria. A perspectiva constitui a estrutura geométrica do espaço e um espaço dotado de proporção é, por conseguinte, perspéctico.

Sendo assim, a perspectiva deve reger a estruturação dos edifícios num conjunto urbano. Pienza constitui um agrupamento urbanístico encomendado por Pio II a Rossellino. Exigências são

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estabelecidas para o traçado de visuais urbanas, vinculando arquitetura e construção de ambientes, verdadeiros cenários urbanos, recurso explorado em seguida pelo Barroco.

A cidade não é tão somente a representação de um espaço determinado pela articulação geométrica, mas o ambiente da vida em que o movimento e a percepção acontecem. Sendo a ação política de natureza histórica (Argan, 1999) a cidade é esse lugar histórico para a ação. A cidade histórica está bem representada por Pisa e pela construção de seu monumental conjunto dotado de igreja, torre, batistério e cemitério. Aqui, estas funções abrigadas pela arquitetura condizem com o que para Pisa, no momento de sua edificação, correspondia aos anseios reais e históricos (da Pisa cristã). Vitoriosa sobre os muçulmanos, Pisa exalta esta glória e a manifesta nos edifícios articulados em seu conjunto monumental. Este não significa unicamente a expressão de um projeto ideal, retirado do conjunto de instrumentos tão caros aos arquitetos do período, mas constituem a história imersa na arquitetura. Acompanhemos a precisão do texto de Argan:

“Esse precedente românico é importante para esclarecer um aspecto essencial da urbanística e das transformações urbanas do Renascimento: muito mais do que das teorias da cidade ideal e dos esquemas de planificação racional, a configuração da cidade depende dos monumentos, vistos como geradores urbanísticos. A idéia de monumento é tipicamente humanista; monumento é o edifício expressivo e representativo de valores históricos e ideológicos de alto valor moral para a comunidade – em outras palavras, é o edifício que pode adquirir valor de símbolo” (1999: 64).

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O Coliseu de Roma constitui um monumento, dotado de identidade e capaz de conferir àcidade uma memória, estando na consciência social por contê-la e proporcioná-la. Estabelece a relação de signum urbis (1999), por suas dimensões, escala, presença no contexto urbano e relação com o espaço circundante que permite sua apreensão. É solene, revelando-se como experiência espacial e estética, dotada de historicidade e disposição perene. Trata-se de um dos pontos de convergência perspéctica e também do olhar (ver figura 1).

Figura 1: Coliseu de Roma, signum urbis Fonte: PISANI, Maria Augusta Justi

No renascimento do século XV, Felippo Bruneleschi deu forma a uma das experiências arquitetônicas e urbanísticas mais significativas para exemplificar a consubstancialidade da cidade e da arquitetura, a magnífica cúpula de Santa Maria Del Fiore.

A igreja, projeto e obras de Arnolfo di Cambio no século XIII, já dispunha do tambor em que viria a assentar-se a cúpula. Bruneleschi supera um dos mais intrincados problemas estruturais e técnicos da história da arquitetura, a edificação de uma estrutura auto-portante de dimensões avantajadas, impedindo a utilização æ ensaios – Arquitetura e cidade contemporânea: encontros por Eunice Helena Sguizzardi Abascal - Vol.II No2 Jun.07 Página 13 de 26

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das técnicas construtivas convencionais que utilizavam cimbres (formas de madeira para escoramento).

Sintetizando as estruturas góticas dos arcos ogivais e dispondo as ogivas de forma a obter uma estrutura que se auto-sustentava, avançou tecnicamente a fim de executar obra grandiosa, que modificou a paisagem e imagem de Florença, naqueles e em todos os tempos.

Nesse momento, Florença constituía uma comunidade florescente de mercadores e banqueiros, aptos a investirem na magnífica arquitetura da cidade. Alberti identificou o agudo valor ideológico da cúpula, salientando seu papel na construção de uma imagem urbana à altura da prosperidade florentina.

A criação de uma forma inovadora como a da cúpula capaz de estar à altura do que se esperava para aquela cidade pareceu uma condição necessária, e estes idéias espelharam-se nos gestos criadores que a cúpula representou. Sua relação precisamente estudada com os volumes da edificação precedente, e também com o ambiente construído, de forma a se destacar de tudo o mais, caracterizou essa magnífica obra arquitetônica.

Decidiu-se o arquiteto por elevá-la de forma que pudesse obter o efeito desejado de magnificência e presença urbanas. Bruneleschi pode então conjugar a expressiva volumetria da cúpula com seu aspecto leve, apesar da massa construída significativa. Obter leveza da pedra, eis um objetivo instigante atingido com o trabalho incessante do autor.

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O efeito de leveza remete à franca inovação estrutural e construtiva, tendo Bruneleschi exercido o afastamento dos cânones e elementos arquiteturais clássicos, tão caros ao primeiro Renascimento. A utilização do arco ogival nas proporções requeridas pela grandiosidade da obra, bem como o desenvolvimento de solução auto-portante conferiu o grau de originalidade, que ao mesmo tempo, lançou mão de artifícios e instrumentos consagrados pela história modificados pela nova circunstância.

Uma obra arquitetônica que represente o signum urbis e que estabeleça essa relação de força em seu diálogo urbano geralmente se caracteriza também por pesquisa construtiva e espacial capaz de conduzir a rupturas de interesse, mesmo que estas estejam fundamentadas em conhecimentos prévios. Outra característica relevante trata da autoria individual da concepção, sendo que um mesmo artista é capaz de idealizar, representar o espaço e construí-lo.

Cabe lembrar que para Bruneleschi, encarnando os princípios renascentistas, a cúpula não representava apenas um objeto que ocupa o espaço, mas o próprio espaço (Argan, 1997), interferindo de forma cabal na totalidade formada por ela e a cidade. É de interesse lembrar que na cidade italiana do século XV, o papel da arquitetura como a instância que determina e acumula a história de seu patrimônio se converteu em idéia central. Assim, uma cidade manifesta sua história, sua grandeza e importância pela qualidade e conservação de seus patrimônios, que constituem mais do que acúmulo de edificações de interesse, mas simbolizam uma autoridade de natureza política.

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Os edifícios expressam o grau de civilização daquela cidade, devendo sobressair não por seu aspecto meramente construtivo, mas por atributos de ordem estética, assinalados pela harmonia, simetria, ordem e requinte ornamental da arquitetura clássica.

A segunda metade do século XVI determinou, entretanto, profundas modificações nas concepções estéticas, e tais transformações se encontram expressas na arte de Michelangelo. Alterando os critérios para avaliar a arte, este artista representou a transição de um classicismo histórico para outro em que o conceito de “sublime” se tornou capital (ver figura 2).

A arte é então expressa em termos de contrastes e drama, distante da serenidade e clareza do primeiro Renascimento. Não havendo um espaço pré-estabelecido, sequer estável ou determinado por regras, as figuras têm movimento e parecem buscar o espaço (Argan, 1997).

Figura 2: Cúpula de Santa Maria Del Fiore, Bruneleschi Foto: Maria Augusta Justi Pisani

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A busca dessa dramaticidade e dinamismo apoiou-se na tentativa de fusão das artes, em que espaço arquitetural, escultura e pintura constituiriam faces de uma mesma procura de movimento e ação. As proporções inusitadas da cúpula da Basílica de São Pedro a expõem no seio da cidade de Roma, e o furor enunciado por Ficino ao falar de uma arte que não enseja descanso, nem dos olhos nem do corpo estabelece de per se um vínculo especial entre arquitetura e cidade, uma vez que o destino da arquitetura e de seu espaço é necessariamente a busca da cidade, voltando-se inexoravelmente para esta.

Sob a perspectiva dinâmica, o espaço não está previamente determinado, nem se define por regras de proporção e de geometria. A arquitetura abandona toda prisão aos aspectos unicamente técnicos e utilitários, assumindo a dialética entre o peso da matéria e a tensão, expressando um desejo materializado na pedra. A concepção espacial se apóia numa construção da tensão e do dinamismo dos elementos arquitetônicos e a arquitetura deve ser então pintada e esculpida, não como enquadramento, mas como expressão do conceito.

Assim é a abóbada do interior da Sistina (ver figura 3), uma arquitetura “falsa” (Argan, 1999), ilusória, mas profundamente verdadeira em sua ambição de instigar a percepção. As fachadas abandonam a superficialidade da condição de plano, para alçar-se àquela de conjunto plástico, cuja expressividade cria tensões de claro-escuro que determinam espaço. Os elementos arquitetônicos (as colunas, pilastras, nichos etc...) se evidenciam como espaços dramáticos, como no vestíbulo da Biblioteca Laurenziana.

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Figura 3: Detalhe do teto da Capela Sistina, Michelangelo Fonte: PISANI, Maria Augusta Justi

Esta herança crítica de um anticlassicismo próprio ao Maneirismo se sucede no Barroco, e se encontra evidenciada em Bernini, Borromini e Piero de la Cortona.

A consideração de que a arquitetura é o seu estar urbano e de que as forma arquitetônica determinam contínuos de claro-escuro no espaço aberto da cidade se exacerba na colunata de São Pedro de Roma. Este continuum se revela no percurso que realiza o observador caminhante no interior da elipse, tornando-se a arquitetura tributária da presença de um espaço aberto primorosamente desenhado.

A nova escala da dimensão urbana e o seu domínio direciona a obra de Bernini, e o Barroco realiza a síntese da arquitetura e da cidade de forma integral, bem como a efetiva em escala monumental.

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CIDADE E ARQUITETURA NA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

A experiência das cidades européias revela a preocupação de compreender a arquitetura de forma indissociável de sua inserção urbana. O percurso da crítica no século XX revela esta preocupação, evidenciada de forma decisiva em Aldo Rossi.

Em Arquitetura da cidade (1995) Rossi submete o funcionalismo e a visão urbana deste dependente à severa revisão, assinalando que a explicação dos fatos urbanos por meio de sua função é repressiva, impedindo o estudo das formas arquitetônicas segundos suas verdadeiras leis (Rossi, 1995).

No entanto, a busca rossiana de tipologias e morfologias capazes de determinar um corpo teórico representa, como Solà-Morales (1996) explicita, uma transposição do pensamento estruturalista ao campo da arquitetura. A arquitetura se define como jogo estrutural, reduzindo o fazer arquitetural ao uso e determinação desse repertório tipológico, conduzindo à exacerbação da autonomia formal como base do método. Rossi parte da cidade para no final paradoxalmente se afastar dela, inserido esse procedimento num contexto marcado pela aproximação da arquitetura aos sistemas de linguagem compreendidos como coletânea de códigos.

A preocupação se dá em relação à sintaxe dos elementos que codificam a arquitetura, trazendo a crença nos anos setenta que a arquitetura consiste num universo auto-suficiente, fechado em suas próprias leis e sistemas de representação. Trava-se uma batalha cuja bandeira consiste em crítica radical imersa na

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desconfiança do pós-guerra, e a produção estética entendida como prática do criticismo. A única saída é a função crítica, e esta conduz ao niilismo, substituindo a prática artística por uma outra, intelectual.

O Situacionismo de Guy Debord vê o urbanismo com suspeição, relacionando-o às psicopatologias da vida cotidiana (Solà-Morales, 1996) e instaura-se profunda crise da modernidade. No entanto, o fechamento e autorreflexividade da arquitetura, apartando-a do mundo e da imersão urbana não determinaram tampouco saídas convincentes para a crítica.

Uma outra abordagem sobrevém com o pensamento pós-estruturalista nas décadas de 80 e 90, trazendo conceitos tais como a presença de uma arte intempestiva, que emerge como surpresa e desencadeia o sublime como presença do que é grandioso. Nossa experiência estética é então vista como a vivência de um conjunto de acontecimentos, cuja finalidade se esgota neles mesmos e determina kantianamente uma finalidade sem fim (ib., 1996).

Entretanto, esta finalidade sem fim parece encontrar seu lugar exato na história, munindo-se de enfoque realista e pragmático com a prática do que veio a denominar-se desenho urbano. Machado (2003) conceitua a existência de um neo-urbanismo que elabora e implementa projetos, os quais resultam num conjunto de procedimentos que articulam a arquitetura e grande escala urbana.

A noção clássica de “projeto” une-se à outra, abrangendo o urbano (id., ibid.), reunindo várias competências e a solução de problemas

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de organização espacial. Para sua elaboração, parte-se do pressuposto que a cidade é uma realidade complexa, em que interagem dinâmicas materiais e sociais, fazendo com que se torne necessário reunir saberes técnicos e de distintas competências a fim de propor-lhe soluções.

Ao contrário do urbanismo moderno que partia de um modelo e da representação da cidade a priori, de natureza fechada e visando ações projetadas de longa duração, este novo urbanismo fundamentado no projeto urbano é o resultado de uma ação polifônica, a saber, da audição do conjunto dialógico das vozes sociais (Abascal, 2004).

A denominada gestão estratégica da cidade significa não o desenho pronto pautado por um plano diretor, mas o enunciado daquelas diretrizes gerais submetidas ao jogo das forças sociais e de mercado e por estas conduzidas e transformadas, que permanecem latentes até a sua determinação na forma de desenho urbano e arquitetura.

Machado (2003) assinala que o projeto urbano é um conjunto de procedimentos reflexivos (e diríamos, de ação e de tática, não apenas de estratégia), conduzidos a fim de gerir uma cidade complexa que abriga uma sociedade igualmente complexa, vivente num meio de incerteza.

Desta maneira, o projeto urbano não se coloca em estado acabado, submetendo-se a revisões sucessivas quanto aos seus objetivos e métodos, realizando o feed-back e retroalimentando de decisões e

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escolhas a partir das ofertas e possibilidades da sociedade e do mercado.

Embora o desenho urbano demande atuações em áreas urbanas e estabeleça uma diversidade de espacializações e arquiteturas, há sempre uma coordenação geral, e Machado (2003) lembra a condição de coerência entre estes vários projetos. E em havendo essa coordenação, não sucede um planejamento estático, pois devem ser considerados as transformações, os acontecimentos e mutações.

Além do que já foi mencionado, o projeto urbano deve inserir-se num processo mais amplo de projeto social (Abascal, 2004), o qual tem a missão de mapear as potencialidades e vocações da sociedade em seu território. Sob esta ótica mais geral, a arquitetura é peça fundamental do desenho urbano, expressão espacial do projeto de natureza urbana complexa a que nos referimos.

Se o projeto urbano é uma resposta à audição da sociedade aberta, complexa e incerta e o desenho urbano uma de suas forma de respondibilidade (Abascal, 2004), a arquitetura contemporânea é líquida, como a conceitua Solà-Morales (2003), podendo moldar-se e configurar essas respostas. A arquitetura é uma das formas de materializar e responder às perguntas: o que a sociedade quer? Ou mais precisamente, do que necessita a sociedade?

O projeto urbano contemporâneo se insere (Machado, 2003) na globalidade e no tempo, e para se transformar em realidade requer o compromisso dos agentes da sociedade, agentes estes

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divergentes a buscar consensos e parcerias, determinando um conjunto de procedimentos e uma metodologia.

A arquitetura da respondibilidade é sempre específica, atenta ao lugar, à cidade em que se insere, às necessidades e às possibilidades próprias a cada corpo social a que se refere. No entanto, não pode estar fechada e encerrada em seus meios próprios de representação, pois é pura concretização realista de uma idéia.

Não se apresenta canônica nem normativa, pois é pura mutação e seus parâmetros respondem a cada situação de projeto urbano em que está inserida. Trata-se de uma arquitetura que cria e recria seus códigos (Machado, 2003), reconstrói incessantemente a linguagem arquitetônica e espacial e se coloca como crise constante de todo e qualquer modelo.

Exemplo do exposto se encontra nas ações de renovação que vêm sendo levadas a cabo no Rio de Janeiro desde a década de 90 do século XX, agregando arquitetura e urbanismo a processos mais abrangentes de valorização da cidade (Machado, 2003).

Longe de constar de uma ação única e totalizadora, trata-se de diversas intervenções com diferentes escalas e níveis de abrangência, coordenadas por um plano de diretrizes estratégicas cujo objetivo, à luz de outras experiências mundiais similares, é a de determinar potencialidades e demandas.

No objetivo de tornar a cidade competitiva e inseri-la na ordem econômica mundial, as prioridades visavam à instalação de redes

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de informação, centros de decisão, financeiros e centros de negócios. Visou-se também o fortalecimento de eixos comerciais a fim de instalar serviços que viessem a dinamizar o turismo. Projetos distintos nasceram para cada bairro, com a realização de concursos de arquitetura e urbanismo das quais participaram diferentes equipes.

No entanto, a mesma autora salienta a escassa participação popular e democrática na tomada de decisões, e os projetos propostos de forma a não receber qualquer crítica, apresentados de maneira tardia às associações de moradores que pouco opinaram.

Outra interessante iniciativa no Rio é o Projeto Favela Bairro, iniciado em 1994 e que visa introduzir melhorias por meio da urbanização das favelas, integrando-as aos bairros vizinhos. Obras de saneamento e construção de infra-estruturas urbanas, sistemas de circulação, serviços públicos, saúde e segurança funcionam como os motores dessa fusão das cidades formal e informal. Melhorias nos espaços coletivos e infra-estruturas constituem as tônicas, atraindo a participação de diversos setores municipais e de ONGs, a fim de realizar outros projetos de natureza complementar.

A inovação metodológica presente neste conjunto de intervenções reside no discurso participativo, determinando em tese um processo aberto à permeabilidade representada pela abertura, embora na prática, no Brasil ainda assistimos a uma ausência de verdadeiro envolvimento dos atores sociais em sua força coletiva. Os projetos são efetivamente assumidos pelo poder público (municipal), e por estes implementados parcialmente por não

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obterem adesão significativa do setor privado, como bem observa Machado (2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo realizou a trajetória de construção de um argumento favorável à necessária imbricação da arquitetura e do desenho urbano contemporâneos. Sustentou que a mencionada consubstancialidade da arquitetura e cidade contemporâneas é condição natural de enfrentamento dos problemas relativos à organização do território na atualidade, nas formas urbana e metropolitana.

Evidenciou a conscientização de arquitetos e urbanistas na construção dessas relações, buscando na história da arquitetura (arquiteturas renascentista, maneirista e barroca) aspectos comparativos que demonstram a presença de recursos arquiteturais e de elaboração do espaço, que proporcionam a imbricação apontada.

Assinalou-se a existência contemporânea do projeto urbano, como articulação de maior nível e complexidade, estabelecendo vínculos entre potencialidades e necessidade sociais e econômicas e o desenho urbano e arquiteturas moldáveis e adaptáveis a essas solicitações, a que denominamos arquitetura da respondibilidade.

Por fim, exemplificamos com o caso brasileiro de intervenções na cidade do Rio de Janeiro, levantando aspectos críticos e detectando a necessária empresa de promoção da participação social no processo de elaboração dos projetos urbanos, quer da população opinante como de empresários e do setor privado.

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REFERÊNCIAS

ABASCAL, Eunice Helena. A recuperação de Bilbao como processo dinâmico e polifônico. Tese de doutorado. São Paulo, FAUUSP, out./2004.

ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1997.

MACHADO, Denise Barcellos Pinheiro. “Cidade contemporânea e projetos urbanos”. In: SCHICCHI, Maria Cristina e BENFATTI, Dênio (orgs.). Urbanismo: Dossiê São Paulo – Rio de Janeiro. OCULUM Edição Especial Ensaios. Campinas, PROURB/UFRJ e PUC/Campinas, 2003.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1966.

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1a. edição, 1995.

SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporânea. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 2a. edição, 1996.

__________. Territórios. Barcelona, Ed. GG, 2003.

SOBRE A AUTORA

a Eunice Helena Sguizzardi Abascal – Arquiteta, Professora de História e Teoria da

Arquitetura do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.