arquitetura colonial cearense

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Revista CPC, São Paulo, n. 7, pp. 43-73, nov. 2008/abr. 2009 43 Arquitetura colonial cearense: meio-ambiente, projeto e memória Romeu Duarte Junior* Resumo O presente trabalho busca elucidar as estratégias desenvolvidas para amenização climática desenvolvidas na arquitetura antiga do Ceará, bem como os meios materiais empregados para tanto. Procurou-se conhecer, descrever e avaliar esse acervo em termos de sua relação com o clima, com foco no sítio histórico de Icó, conformado em sua maioria por edificações do século XVIII, período que demarca o início do processo de efetiva ocupação do território do Estado com a criação das primeiras vilas, bem como por alguns outros imóveis construídos nos séculos XIX e XX, sendo utilizados como referencial apenas aqueles que mantiveram características arquitetônicas e construtivas próprias do setecentos. Tratou-se, assim, de entender como os modelos arquitetônicos e urbanísticos lusitanos adequaram-se ao clima da região e, nesse sentido, de que forma os materiais e técnicas locais foram empregados. Além da consulta bibliográfica, o trabalho foi realizado a partir da leitura e análise de documentos tais como os termos de assentamento de vilas; o relato de viajantes, em especial o relatório da Comissão Científica de Exploração, presidida pelo botânico Freire Alemão em 1858; as anotações e pesquisas relativas ao tema, elaboradas por estudiosos locais; e a documentação relativa ao tombamento federal do sítio histórico cearense, para que fossem reunidas informações, posteriormente sistematizadas e logicamente encadeadas, que viessem a auxiliar na compreensão do problema. O estudo, portanto, visa contribuir para o conhecimento de como se elaborou essa despojada e híbrida arquitetura, metade portuguesa e metade autóctone, no momento preciso de sua construção, em latitudes e longitudes semi-áridas. Palavras-chave: Arquitetura brasileira. Conforto térmico. Técnicas construtivas tradicionais. Ceará’s colonial architecture: environment, project and memory

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Arquitetura Colonial Cearense

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  • Revista CPC, So Paulo, n. 7, pp. 43-73, nov. 2008/abr. 2009 43

    Arquitetura colonial cearense: meio-ambiente, projeto e memria Romeu Duarte Junior*

    Resumo O presente trabalho busca elucidar as estratgias desenvolvidas para amenizao climtica desenvolvidas na arquitetura antiga do Cear, bem como os meios materiais empregados para tanto. Procurou-se conhecer, descrever e avaliar esse acervo em termos de sua relao com o clima, com foco no stio histrico de Ic, conformado em sua maioria por edificaes do sculo XVIII, perodo que demarca o incio do processo de efetiva ocupao do territrio do Estado com a criao das primeiras vilas, bem como por alguns outros imveis construdos nos sculos XIX e XX, sendo utilizados como referencial apenas aqueles que mantiveram caractersticas arquitetnicas e construtivas prprias do setecentos. Tratou-se, assim, de entender como os modelos arquitetnicos e urbansticos lusitanos adequaram-se ao clima da regio e, nesse sentido, de que forma os materiais e tcnicas locais foram empregados. Alm da consulta bibliogrfica, o trabalho foi realizado a partir da leitura e anlise de documentos tais como os termos de assentamento de vilas; o relato de viajantes, em especial o relatrio da Comisso Cientfica de Explorao, presidida pelo botnico Freire Alemo em 1858; as anotaes e pesquisas relativas ao tema, elaboradas por estudiosos locais; e a documentao relativa ao tombamento federal do stio histrico cearense, para que fossem reunidas informaes, posteriormente sistematizadas e logicamente encadeadas, que viessem a auxiliar na compreenso do problema. O estudo, portanto, visa contribuir para o conhecimento de como se elaborou essa despojada e hbrida arquitetura, metade portuguesa e metade autctone, no momento preciso de sua construo, em latitudes e longitudes semi-ridas.

    Palavras-chave: Arquitetura brasileira. Conforto trmico. Tcnicas construtivas tradicionais.

    Cears colonial architecture: environment, project and memory

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    Abstract The present work aims at elucidating the strategies developed by early Cears architecture to soften harsh weather conditions, as well as the material means used for this purpose. We sought to describe and evaluate this heritage in terms of its relation with weather conditions with focus on the historical site of Ic, which consists mainly of XVIII century buildings dating from the period of effective State territory occupation, with the creation of the first villages. Other constructions built in the XIX and XX centuries were also considered, provided they kept architectonic and building features typical of the XVIII century. In this way, we tried to understand how Lusitanian architectonic and urban models adapted to the regional climate and how local materials and techniques were used.

    Key-words: Brazilian architecture. Thermal adequation. Traditional building techniques.

    1 Aspectos histricos da criao e implantao das vilas coloniais no Cear do sculo XVIII

    Traditional is the expression of the culture of a time and place... technology is about the making of things a high level of technology in the context of one place at one point in time may appear to be a low level of technology in the context of another time or place I am fascinated by going back to basics. (Norman Foster). (1)

    Segundo diversas referncias historiogrficas j consagradas, um dos modos de formao do espao territorial cearense foi a progressiva ocupao do serto por criadores de gado oriundos de outras regies brasileiras, tais como Pernambuco e Bahia.

    Colonizado do serto para o litoral a partir do incio do sculo XVIII e tendo como base a economia do couro e do charque, o Cear desenvolve tardiamente a ocupao do seu territrio, de maneira mais intensa somente aps o seu desligamento, em 1799, da capitania de Pernambuco.

    Os caminhos traados pelas boiadas foram fundamentais para a ocupao do Cear. Desde o incio da colonizao, o gado, trazido principalmente de

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    Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte, definiu percursos que tinham como destino as ribeiras dos rios, local de implantao dos primeiros povoados.

    Os pedidos de terras para pecuria datam do final do sculo XVII e se referem a reas localizadas nas imediaes do Rio Jaguaribe. As fazendas foram, portanto, os primeiros ncleos de povoamento da capitania, com fixao ao longo dos rios Jaguaribe e Acara. Datam dessa poca as cidades de Aquiraz, Ic, Aracati, Sobral e Viosa do Cear, dentre outras mais antigas. Segundo Castro (1973, p. 11),

    [...] a pecuria extensiva, quer dizer, a instalao de uma fazenda de criao, ao contrrio de outras atividades econmicas, no pedir altos investimentos, seja em equipamento seja em escravaria. Em compensao, no concentrar nem gente nem riquezas, fato significativo para a formao urbana e para a produo arquitetnica do Cear.

    Portanto, o carter rstico e essencial das primeiras construes, mais que um marco caracterstico de poca, conformar um trao distinto da arquitetura produzida neste recanto do pas.

    As trs ribeiras em que fora dividida a capitania do Cear tinham como referncia as bacias hidrogrficas da regio, ganhando o nome do rio principal de cada uma delas. A do Rio Cear correspondia rea onde estavam situadas as vilas de Fortaleza, ento incipiente povoao, e de Aquiraz. A do Rio Jaguaribe abrangia todo o curso deste curso fluvial, localizado ao sul de Aquiraz, e a do Rio Acaracu (Acara), a oeste de Fortaleza, correspondia regio de Sobral.

    Nas primeiras vilas, construiu-se um padro ligeiramente modificado da urbanstica lusitana, expresso nos seus termos de implantao. O desenvolvimento aproximado e estendido ao longo dos cursos dgua, as ruas grandes, com seus sobrados e casas trreas, as ruas de servio e de comrcio, os largos das matrizes e das boiadas, e as praas para a catequese dos ndios, bem expressam os modelos adotados, to comuns em Ic, Aracati, Viosa do Cear e Aquiraz, porm alterados em Sobral, cujo risco original, de inspirao tardomedieval (CASTRO, 1973, p. 23), se desenvolveu curiosamente sem rupturas a partir da costura de diversas malhas urbanas construdas em momentos diferentes. O emprego da carnaba e do tijolo

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    chato de diatomita e anti-trmico, como se ver, evidencia uma rigorosa e econmica apropriao dos materiais locais para a construo dessa arquitetura, rstica e ecolgica, marco das lides civilizatrias dos sertes cearenses (CASTRO, 1973, p. 3).

    Iniciado com Aquiraz, a primeira localidade cearense a ser erigida em Vila (1713) (CASTRO, 1973, p. 12), o processo se segue, no alvorecer do sculo XVIII, com Fortaleza (1726). Posteriormente, so criadas as vilas de Ic (1738) e Aracati (1748), aquela centro coletor e distribuidor dos sertes do mdio Jaguaribe, situada s margens do rio Salgado, e esta, porto, por onde escoavam os produtos cearenses, principais plos econmicos do Cear poca. So levantadas em 1759 vilas para a catequese e a pacificao dos ndios, tais como as de Soure (Caucaia), Arronches (Parangaba), Messejana (estas duas ltimas localidades atualmente bairros de Fortaleza) e Viosa do Cear e, em 1764, a de Montemor-o-Novo (Baturit). Em seguida, Crato (1764), Sobral, beira do Rio Acara (1773), e Granja (1776). Por fim, So Joo do Prncipe (Tau), no serto dos Inhamuns, e So Bernardo das guas Russas (Russas), ambas em 1801. Nas palavras de Castro (1983, p. 301, apud DUARTE, 2003, p. 248)

    [...] assim, fazendas de criao dispersas nas regies mais distantes e pequenas vilas espalhadas por meio Cear formam um quadro em que se desenvolve a isolada vida setecentista cearense. Quanto disposio espacial das vilas, o modo de implantao mais coerente era a associao da cidade, situada em terreno protegido, a um curso dgua que lhe abastecesse, porm sempre de costas para aquele que a beneficiava.

    Por razo de suas relevncias histricas e artsticas e de suas cont r ibu ies para a compreenso do processo de ocupao do territrio brasileiro, os stios histricos das cidades de Ic (1997), Sobral (1999), Aracati (2000) e Viosa do Cear (2003) foram distinguidos com tombamento federal pelo IPHAN. Em especial, no dizer de ngelo Osvaldo de Arajo Santos, conselheiro responsvel pela elaborao do seu parecer de proteo (2),

    Ic talvez seja a ltima dessas vilas reais que balizaram a interiorizao do Brasil... Num tempo em que as reas urbanas so violentadas e velozmente descaracterizadas, Ic soube resguardar a sua atmosfera de encantamento, realizada por primorosas construes

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    e pela graa do conjunto urbano, numa regio em que se cruzam os caminhos sertanejos do Cear, Rio Grande do Norte, Paraba e Pernambuco,

    motivo que nos leva a estud-la em detalhe, mais frente.

    2 Arquitetura e urbanismo no Cear colonial

    Por mais que a desejemos, jamais veremos a neve bater em nossas vidraas. (Arq. Antnio Jos Soares Brando) (3)

    As antigas manifestaes da produo do espao arquitetnico e urbanstico no Cear, desde meados da dcada de 50 do sculo passado, tm sido objeto de aprofundada pesquisa por parte do Prof. Arq. Jos Liberal de Castro, pioneiro da profisso no Estado e fundador do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Cear. Com suas turmas de alunos, realizou o levantamento de inmeros imveis de interesse em todo o Estado, bem como no Maranho. Esse acervo, utilizado at hoje no s para abastecer dissertaes e teses, sendo por isso considerado inestimvel fonte de pesquisa, tambm empregado como conhecimento fundamentador de instrues de tombamento em todos os nveis, pela quantidade e qualidade das informaes de que constitudo. Condensaes desse cabedal, os textos Pequena informao relativa arquitetura antiga no Cear (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1973), Aspectos da arquitetura no nordeste do pas: Cear (publicado em Histria Geral da Arte no Brasil, vol. 1, organizado por Walter Zanini, So Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983) e Igreja Matriz de Viosa do Cear: arquitetura e pintura de forro (4 edio, Fortaleza: SR/IPHAN, 2002), sem que se fale de sua pouqussimo divulgada tese de livre docncia sobre a arquitetura colonial cearense, entre outros distinguidos trabalhos, so fundamentais para o (re) conhecimento e a compreenso dessas expresses to raramente enfocadas. Serviremo-nos, portanto, das informaes contidas nessas pesquisas para abordar o presente tpico, principalmente por se referirem de modo especial materialidade e aos processos construtivos da arquitetura cearense do perodo colonial, a qual reservava, como veremos, cuidados especiais relativos amenizao climtica.

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    No seminal prefcio da primeira obra, informa-se que no se encontraro... no Cear nem as elegantes igrejas paroquiais mineiras, de interiores decorados a rococ, nem os conventos magnficos de Pernambuco ou da Bahia (CASTRO, 1973, p. 12) pelo fato do fracasso das fazendas e das charqueadas no sculo XVIII, o que no permitiu que o perodo imperial herdasse, dos dias coloniais, organizaes urbanas de importncia maior (CASTRO, 1973, p. 13). Em grandes linhas, a arquitetura antiga do Cear evidenciar um carter popular, nitidamente utilitrio e claramente ecolgico, mesmo nas obras administrativas ou religiosas de maior porte (CASTRO, 1973, p. 3). Assim, a mlange de cdigos interpretativos leigos e eruditos (com prevalncia dos primeiros, em razo da distncia do Cear para os principais centros da Colnia), muitas vezes empregando tardiamente alguns elementos decorativos traduzidos numa viso arcaica ou toscamente interpretados (CASTRO, 1973, p. 5), a resoluo de problemas funcionais e estruturais intimamente ligados sobrevivncia como finalidade principal, e a adaptao e transformao equilibradas do meio natural sero caractersticas evidentes das primeiras realizaes da arquitetura antiga cearense, expressas na modenatura singela das edificaes. Seguindo essa linha de pensamento, o autor afirma que, , pois, compreensvel admitir-se que, em caso to especial, no se deva buscar arte nessa arquitetura, mas antes admir-la como um comovente testemunho material dos percalos enfrentados na penosa lida civilizatria dos sertes (CASTRO, 1973, p. 4). Esta polmica assertiva, geradora de muitos mal-entendidos, tem levado vrios tcnicos a enxergarem no despojamento e na simplicidade de nossa vetusta arquitetura um sinal de desqualificao ou desvalorizao, principalmente quando comparadas s de outras regies, em especial quelas que correspondiam aos lugares centrais da Colnia. A nosso ver, a arquitetura antiga cearense se alimenta e se fortalece do que jejua e na limpeza e economia de suas solues construtivas, estruturais e de convivncia com o clima que reside a sua fora e o seu interesse como manifestao racional da tcnica e expresso artstica. Portanto, retomando o contato com o autor,

    [...] sob este ngulo que necessariamente deve ser compreendida e estudada a arquitetura do Cear antigo: reduzida ao essencial, condicionada s parcas disponibilidades financeiras e sempre erguida com materiais de construo locais, para cujo emprego se descobriram tcnicas imprevistas, caracterizadas pelo uso intensivo da carnaba, da pedra

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    solta nos muros dos currais, do entaipamento sobre cercas de faxina, do couro nas dobradias e na amarrao das madeiras, do tijolo branco de diatomita achatado, ... antitrmico. (CASTRO, 1973, p. 4).

    Eis aqui, de forma sucinta e explcita, o cerne da formulao arquitetnica e construtiva das edificaes cearenses do setecentos: a elaborao de uma arquitetura singela (depois tida como verncula), mestia, encontrada tanto no serto quanto no litoral, intimamente relacionada com o meio fsico em todos os sentidos, elaborada a partir de curiosas e eficazes improvisaes tcnicas, cuja aparncia, despojada e mscula, evidencia atavicamente, se no na forma, mas no esprito, as velhas origens ancestrais trazidas de alm-mar (CASTRO, 1973, p. 5). A manuteno desse status quo tecnolgico estendeu-se at o final do sculo XIX, perodo em que surgem novas tcnicas e materiais importados, empregados principalmente nas construes faustosas de Fortaleza, quando a capital j havia estabelecido sua liderana poltica, econmica e simblica sobre os demais centros regionais do Estado. Portanto, predicados mais relevantes s sero percebidos nessa arquitetura de autores annimos se a analisarmos pela tica da relao do homem com o meio-ambiente, no processo mesmo de transformao da natureza em cultura numa linha de convvio e familiaridade, principalmente se tomado considerando-se o obstinado esforo coletivo de [quatro] sculos de domnio de uma natureza tantas vezes dcil e outras tantas inesperadamente hostil (CASTRO, 1973, p. 5).

    Na segunda obra, o autor, ao balizar o perodo entre os anos de 1750 e 1850 como bastante expressivo do modo primitivo de construo no Cear, define os programas bsicos dessa arquitetura, a saber, igrejas, casas de cmara e cadeia, casas de morada rurais e urbanas e algumas outras edificaes ligadas vida rural (CASTRO, 1983, p. 301), realizaes essas marcadas por indcios formais barrocos, reelaborados pelas mentes e mos sertanejas dos bons, bravos e burros, no dizer chistoso de Joo Brgido. Gustavo Barroso (apud NASCIMENTO, 1993) tambm se reporta ao assunto de forma magistral:

    a arte do ciclo do gado mais humilde, toda a sua arquitetura se faz, pela falta de pedra de obragem apropriada, em simples alvenaria, na qual se executa uma ornamentao prpria.

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    Nem escultura, nem cinzeladuras, nem obra de talha, nem ouro, nem lioz, nem mrmore, nem azulejos. Os artistas annimos obtm com as linhas, na combinao ingnua das curvas e dos ornatos retilneos, os efeitos decorativos.

    Prova disso a descrio que feita por CASTRO (1983, p. 302) dos interiores das igrejas coloniais cearenses, as quais, mesmo constituindo-se muitas vezes nos maiores edifcios das vilas, no apresentavam, no mais das vezes, tratamento material correspondente sua importncia simblica:

    os pisos eram em terra batida ou de tijolos, mas em alguns casos os havia de tabuado, recobrindo campas. Rebocadas e simplesmente caiadas, as paredes internas no conhecem revestimento de talha ou de azulejos. O forro, quando existe, simples tabuado de saia e camisa, em gamela, s vezes restrito capela-mor, pintado de liso.

    Assim, o que se tem uma arquitetura de robustas paredes de alvenaria portante, constituda de tijolos de diatomita (4) ou de barro, cozidos nas toscas olarias situadas nas margens dos rios ou de outros corpos dgua, com pouqussimas aberturas, fechada por uma coberta em barro e madeira, esta geralmente carnaba (coperncia cerfera), palmeira encontrada nos terrenos alagados. Os materiais que conformam esse arranjo so naturalmente isolantes trmicos, ainda hoje empregados localmente e de forma ecolgica para atender aos requisitos do clima semi-rido mediante o princpio da inrcia trmica e em substituio tradicional construo portuguesa em pedra. A simplicidade formal e dos acabamentos, decorrente da disponibilidade de meios, estava tambm associada resoluo dos problemas relacionados amenizao do clima.

    Mas nas construes residenciais, urbanas e rurais, que essas despojadas diretrizes de projeto e construo se mostram de forma mais clara. Nas fazendas primitivas, destacava-se a cobertura de quatro guas e paredes de taipa, amarradas por fortes esteios, verdadeiras casas-fortes (CASTRO, 1983, p. 305), com reduzidas aberturas, grossas vedaes, teis tanto para a segurana dos moradores na rudeza dos sertes, quanto para a reteno do calor diurno para fruio noturna, e altas cobertas, as quais livravam os moradores do contato direto com o desconfortvel ar quente interno. Pelas frestas das telhas, por conveco, fazia-se a renovao do ar, conseguindo-se assim a ventilao e a evaporao

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    causadoras de conforto e bem estar. Com a substituio da taipa pela alvenaria de tijolos, modifica-se a forma atarracada da fazenda para uma outra de perfil urbano em duas guas, mantendo-se, entretanto, o anterior arsenal de dispositivos arquitetnicos para o enfrentamento do clima. Implantadas em glebas ermas e ridas, sem arborizao de porte por razes da defesa contra os ndios, essas casas tinham interiores com piso de tijolos (as mais pobres, de terra batida) e o equipamento era reduzido ao mnimo, isto , mesas, tamboretes e bas, tosco mobilirio em que quase sempre se emprega o couro... De resto, e sempre, as redes (CASTRO, 1983, p. 305). Ao se entrar na casa, percebia-se toda a sua estrutura arquitetnica: as paredes divisrias nunca chegavam s cobertas, conformando ambientes sem forro, os quais, se no resguardavam totalmente a intimidade dos seus ocupantes, pelo menos permitiam a tiragem do ar quente, reduzindo a temperatura do ambiente interno. As plantas, regulares e reduzidas essncia do programa de necessidades, geralmente se organizavam com uma sala frente do conjunto de alcovas, comunicada parte dos fundos, onde se situavam os servios, por estreito corredor. As aberturas frontais, responsveis pela admisso da ventilao e sempre guarnecidas por esquadrias cegas em madeira do tipo ficha, geralmente davam para o nascente, sentido ao qual, no Cear, est sempre associado a ventilao dominante decorrente tanto dos ventos alsios como das mudanas de presso relacionadas continentalidade. A todo custo, como ainda hoje, evitava-se fenestrar a edificao para oeste, orientao esta desfavorvel por ser aquela do sol inclemente do meio-dia e da tarde. As redes correspondem ao pragmatismo dessa arquitetura: de algodozinho ou tranado, expem o corpo do usurio s trocas de calor por evaporao, realizadas atravs do tecido e, quando desarmadas, liberam o espao circulao da escassa ventilao. No dizer de Castro (1983, p. 306),

    [...] com o correr dos tempos, medida que aumenta a segurana, as janelas se alargam e os telhados comeam a descer do alto, em abas, formando alpendres cobertos. Na verso derradeira da casa de fazenda, em que o projeto se realiza de modo pleno, o alpendre atinge o contorno perifrico, com solues formais que variam consoante o tipo de coberta do ncleo central.

    O avarandado constitui-se, assim, em uma soluo eficaz de natureza tanto arquitetnica quanto climtica, elemento situado entre o interior e o exterior da

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    edificao e regulador da gradao entre os espaos pblico e privado e das condies de conforto dos ambientes internos e externos, desenho este que faz essa arquitetura mudar de um aspecto inicial liso, rido e macio para outro rugoso, sombreado e perfurado. Neste momento, a casa rural se cerca de arborizao frondosa, estendendo o ambiente interno e os espaos de convvio com a ampliao das sombras.

    A casa urbana, assobradada ou trrea, pouco difere dos modelos nacionais, apresentando o mesmo arranjo em planta e a mesma constituio material da rural, com a complementao de um puxado nos fundos para o abrigo dos servios. Nos exemplos populares, muitas vezes h a supresso do corredor, fazendo com que os aposentos sirvam ao mesmo tempo como rea de permanncia e de ligao a outros cmodos. No incio, as guas pluviais derramam-se pelos beirais em cachorrada, distanciados dos paramentos em alvenaria por madeiramento tosco. Posteriormente, com o emprego arraigado dos tijolos em substituio taipa de sopapo, os beirais passam a ser constitudos de beira-seveira e cornija de massa. Com a influncia do neoclssico, nos meados do sculo XIX, surgem as platibandas, decoradas ou no, sobrepostas s cornijas, com a queda da gua das raras chuvas sendo efetuada pelos jacars, grgulas em folha-de-flandres ou ferro fundido. Os sobrados, em menor nmero, at a primeira metade do sculo passado [XIX], (...) continuam a mostrar a aparncia formal das realizaes coloniais, pesados desprovidos de ornatos, com predominncia dos cheios sobre os vazios nas fachadas (CASTRO, 1983, p. 307), aps o que comeam a exibir algum refinamento e elegncia em seus detalhes construtivos, mormente naqueles mais ricos, de que exemplo o revestimento externo em azulejo estampilhado portugus ou francs, eficaz tanto como elemento decorativo quanto protetor dos paramentos contra as intempries, marca, alis, do stio histrico de Aracati. Com a posterior extenso da malha urbana, os sobrados, antigos smbolos de posio social destacada, perdem gradativamente esta condio em favor de estabelecimentos residenciais metade urbanos, metade rurais, as chcaras, marcos de apropriaes mais generosas do lote urbano, havidas no perodo em todo o territrio nacional.

    Meno especial deve ser feita aos materiais utilizados no processo histrico de construo dessa arquitetura. Como se pode ver, esta, to presa s

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    disponibilidades fsicas e econmicas de um meio adverso, raramente ultrapassar o utilitrio, dependente que fica, (...), do pouco material disponvel e de uma mo-de-obra rara e sem especializao (CASTRO, 1983, p. 308). Em cristalinos pargrafos, este autor (1983, p. 308) traa a feitura da arquitetura colonial cearense:

    [...] conquanto existisse pedra nas serras, tratava-se de granito de fratura difcil e sem mestres canteiros para aparelhar. Assim, por solicitao de segurana, logo apareceu tijolo, empregado a par da rara alvenaria de pedra e da muito comum taipa de sopapo, usual nas casas mais pobres. Tal como em outras regies brasileiras, a taipa de pilo desconhecida no Cear, enquanto o tijolo, alm de ser empregado como material de sustentao, tem ampla solicitao como piso. Terra de madeira escassa, sempre que possvel empregando o cedro extrado das serras distantes, impe-se parcimnia nas esquadrias e nos tabuados de piso e de forro... A cobertura, tanto quanto seja possvel, de telhas, enormes peas com seo em V. O madeiramento de sustentao do telhado aparece solucionado de modo tosco, paus rolios servindo de caibros e ripas, extrados da flora arbustiva e empregados in natura. s vezes, peas de seco robusta, troncos de aroeira ou de pau darco, desbastados a enx. Com o passar dos tempos, entra em uso a carnaba, palmeira de porte elegante, encontrada em grande parte do solo cearense.

    Ao contrrio dos modelos contemporneos de coberta da vizinha arquitetura piauiense, nos quais os estipes das carnabas eram generosamente usados como suportes das carreiras das telhas,

    [...] em princpio, empregam-se os troncos como linhas, mas depois o fuste aparece desdobrado em caibros, muito largos nas primeiras tentativas. Por medida de economia, as ripas so logo eliminadas, nascendo uma soluo inconfundvel, dos caibros corridos, conhecida popularmente como caibro de junto. A palha da carnaba e de outras palmeiras tem larga aceitao nas casas mais pobres, como coberta ou vedao parietal. To logo as condies dos moradores o permitem, substituda total ou parcialmente por tijolos e telhas. (CASTRO, 1983, p. 309).

    V-se, ento, como se deu, sem traumas e de forma sbia, a mudana do padro construtivo portugus (no caso especfico dos nossos colonizadores, o portuense, baseado na cantaria) por um outro, autctone e ecolgico, utilizado para garantir, de qualquer forma, os fundamentos da sobrevivncia em nossa regio e a marca poltica e cultural da dominao lusitana.

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    Curioso o resultado da interlocuo que se faz dos textos anteriores com o pensamento de Armando de Hollanda, relativo ao mesmo tema, expresso em seu fundamental e injustamente pouco conhecido livro Roteiro para construir no nordeste:arquitetura como lugar ameno nos trpicos ensolarados (Recife: Editora UFPE, 1976). Com esta obra, o autor pernambucano, precocemente falecido, procurou estabelecer paradigmas arquitetnicos para a regio que respondessem ecologicamente ao meio fsico, partindo da reflexo sobre a produo da arquitetura e da cidade do perodo colonial no Nordeste e da atemporalidade de algumas de suas solues, numa perspectiva do desenvolvimento e emprego de uma tecnologia contempornea e apropriada. Elaborado num momento marcado pelo reconhecimento da diversidade regional da arquitetura brasileira, conceito este embasado pelas peculiaridades culturais e de clima de um pas de dimenses continentais e regies bastante diferenciadas, o trabalho permanece, entretanto, restrito ao conhecimento local, mesmo basilar para o entendimento antropolgico do clima.

    Holanda, amparado pelo verso certeiro e descarnado de Joo Cabral de Melo Neto, constri um enelogo baseado em observaes feitas a partir de sua atuao profissional e da arquitetura antiga na regio, afirmando que

    aps a ruptura da tradio luso-brasileira de construir, ocorrida no sculo passado [XIX] e que trouxe prejuzos para o edifcio, enquanto instrumento de amenizao dos trpicos, de correo dos seus extremos climticos, no foi desenvolvido, at hoje, um conjunto de tcnicas que permitam projetar e construir tendo em vista o desempenho da edificao. A regra vem sendo a adoo de materiais e de sistemas construtivos quando no de solues arquitetnicas completas desenvolvidos do pensamento arquitetnico estrangeiro,...,sem a indispensvel filtragem vista do ambiente tropical. No Nordeste, esta situao fica mais evidenciada pela forte presena de sua natureza, de sua luz e de seu clima, a que as construes espontneas so sensveis, mas que s excepcionalmente

    participam dos projetos aqui construdos. (HOLLANDA, 1976, p. 8).

    Assim, sua proposta deriva de uma base de compreenso cultural e fenomenolgica do clima, com ressalvas aos modelos arquitetnicos aliengenas transplantados para a regio de forma acrtica, numa anlise abrangente da arquitetura como fato poltico, tecnolgico, antropolgico e ecolgico. No caso, trata-se de uma tentativa

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    de reconciliao entre a arquitetura e o lugar, este entendido como espao percebido por uma ampla sinestesia associada memria, sob uma tica de recuperao do legado cultural modernista, produo esta, no caso nacional, fortemente ligada tradio colonial.

    Neste passo, Holanda comea por criar uma sombra, ampla e aberta,

    onde a brisa penetre e circule livremente, retirando o calor e a umidade, ensinando que para que a brisa circule necessrio, alm da desobstruo do espao interno, que as aberturas

    de exausto sejam maiores, ou pelo menos iguais, s de admisso. (HOLLANDA, 1976, p. 10),

    bem como que os ps direitos baixos, ao reduzir o volume de ar dos ambientes, prejudicam sua eficincia como isolante trmico (HOLLANDA, 1976, p. 15). Desafia ainda quem possa apontar uma alternativa moderna para a cobertura de telhas cermicas que tenha o mesmo desempenho destas em termos de isolamento trmico e circulao do ar, esta ltima condio possibilitada pelo grande nmero de juntas entre as peas. Em seguida, recomenda recuar as paredes, afirmando que reas sombreadas e abertas desempenham a funo de filtros, de coadores de luz, suavizando suas asperezas e tornando-a repousante, antes de atingir os ambientes internos (HOLLANDA, 1976, p. 17) e lembrando que as casas dos antigos engenhos e fazendas brasileiras possuam esses locais sombreados: varandas corridas em torno do corpo da edificao, ou ao longo da fachada principal (HOLLANDA, 1976, p. 17), comunicando os espaos internos aos externos. Na seqncia, vazar os muros e proteger as janelas so atitudes coerentes, em que se ressalta a funo amenizadora dos elementos vazados ou cobogs e se associa a soluo encontrada por Lcio Costa e sua equipe para a proteo das fachadas do Ministrio da Educao e Sade, cone do modernismo brasileiro, aos muxarabis que recobrem as sacadas das antigas construes de Olinda. Em abrir as portas, citando Claude Lvi-Strauss e Allison Smithson, pede que desenhemos portas externas vazadas, capazes de garantir a necessria privacidade e de admitir ar e luz, bem como portas internas versteis, que protejam os ambientes e permitam a tiragem do ar (HOLLANDA, 1976, p. 19). Sugere continuar os espaos, fazendo-os livres, contnuos e desafogados, com separao apenas dos locais onde a

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    privacidade, ou a atividade neles realizada, estritamente o recomende (HOLLANDA, 1976, p. 21). Lembrando a manuteno dos interiores despojados, na bela tradio da casa do Nordeste, informa que as paredes a meia-altura, alm de contriburem para a continuidade do espao, permitem que o ar circule livremente e atravesse a edificao (HOLLANDA, 1976, p. 23), lamentando ainda que

    a ambincia do Nordeste ainda no [tenha sido assumida] pelos arquitetos, sobretudo em relao cor dos edifcios, que resultam escuros pelos materiais aparentes: esquecem o branco sempre um encanto contra os verdes escuros da paisagem os azuis e os verdes,

    os ocres e os castanhos; esquecem as cores do seu prprio lugar. (HOLLANDA, 1976, p. 24).

    Aconselha construir com pouco, asseverando que,

    sob este aspecto, interessante comparar a casa de Alcntara, de So Lus, de Olinda ou de Salvador com a que hoje se constri. Na primeira, claras fachadas em azulejos ou massa, paredes internas a meia-altura de altos ps-direitos, cobertas e forros ventilados, longos beirais, aberturas dosadas... Na segunda, escuros materiais aparentes, paredes e esquadrias desprotegidas, cobertas baixas e seladas, interiores carregados de revestimentos, pisos atapetados, cortinas, mveis, estofados... Enquanto numa tudo concorre para a amenizao dos extremos da luz e da temperatura tropicais, a outra parece

    excelente para quem prefere sentir-se exilado nos trpicos. (HOLLANDA, 1976, p. 26).

    Por fim, faz ver que necessrio conviver com a natureza e construir frondoso com a seguinte provocao, em que aproxima as realizaes do passado ao desenho da nova arquitetura:

    livremo-nos dessa dependncia cultural em relao aos pases mais desenvolvidos, que j retardou em demasia a afirmao de uma arquitetura decididamente vontade nos trpicos brasileiros... Trabalhemos no sentido de uma arquitetura livre e espontnea, que seja uma clara expresso de nossa cultura e revele uma sensvel apropriao de nosso espao: trabalhemos no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contnua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que, ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical, nos

    incite a nele viver integralmente. (HOLLANDA, 1976, p. 28).

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    Com este trabalho (em alguns momentos, um verdadeiro manifesto por uma arquitetura integrada cultura regional e nacional), Hollanda refere-se indissociabilidade entre construo e clima numa linha prxima do regionalismo crtico, movimento que seria discutido e defendido alguns anos depois por crticos do porte de Kenneth Frampton e Marina Waisman, para muitos um desdobramento, na rea da arquitetura, das reflexes de Jrgen Habermas sobre a continuidade do projeto moderno e a razo comunicativa. Castro, assim como outros estudiosos da arquitetura nordestina, mesmo sem a preocupao de constiturem um grupo, tem igualmente refletido sobre o tema, talvez por razo de sua extrao intelectual e filiao escola modernista, ponderando da mesma forma, em textos e palestras mais recentes, sobre as essncias atemporais da arquitetura do semi-rido, lies que, vale dizer, ainda no foram suficientemente compreendidas pelos arquitetos contemporneos...

    Confrontadas com o texto de Holanda, as razes e caractersticas da arquitetura cearense do perodo colonial explanadas por Castro, no que concerne sua implantao urbana, materiais e processo construtivo, desenho, detalhes e uso, dentre outros aspectos, so por aquele plenamente corroboradas, em maior ou menor escala, como solues construdas derivadas de estratgias de amenizao climtica, resultado da mudana que o colonizador realizou em seu modo tradicional de produo do espao para se adaptar regio, dela extraindo parcimoniosamente os meios para a construo dessa arquitetura, realizada sob risco portugus, feita com material da terra e levantada pelo brao escravo.

    3 Meio ambiente, memria e projeto: anlise arquitetnica e urbanstica do stio histrico de Ic luz da amenizao climtica

    O Cear tem quatro climas: seca, quentura, calor e mormao. Didi Moc, por RENATO ARAGO, humorista cearense.

    A cidade de Ic situa-se na Mesoregio Centro-Sul e na Microregio de Iguatu a uma altitude de 155 m do nvel do mar e a 375 km de Fortaleza pela BR-116. Tem como coordenadas a latitude de 624 e a longitude de 3852, e uma pluviometria mdia anual de 8.322,8 mm. Quanto ao clima, convm antes explicar uma

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    particularidade: o Nordeste e o Cear esto situados astronomicamente na zona climtica equatorial. Deveramos, portanto, possuir um clima equatorial supermido ou mido, semelhante ao da Amaznia, do Congo ou da Indonsia, o que no ocorre. Segundo Botelho (1996, p. 147),

    [...] o Nordeste brasileiro (Cear) a nica regio equatorial do planeta de caracterstica semi-rida, constituindo-se destarte uma anomalia na climatologia mundial... O Cear tem duas estaes: a seca e a chuvosa, sendo assim, meteorologicamente, uma rea tropical e no equatorial, conflitando, portanto, com sua zonalidade equatorial. Aqui existe conflito violento entre clima e meteorologia, apresentando uma m distribuio das chuvas.

    A semiaridez do Cear se torna mais complexa pelo fato do serto ter um contato direto com o litoral e por no dispormos de zona da mata ou de agreste. Segundo o mesmo autor,

    o Cear uma das regies do planeta de maior insolao; por isso, a evaporao e a evapotranspirao so aqui das mais elevadas da Terra, o que, juntamente com a m distribuio da chuva no tempo e no espao, justifica o fenmeno das secas. (BOTELHO, 1996, p.148)

    Com diferena acentuada do clima da capital, este marcado pelo maior grau higromtrico e pela ventilao constante possibilitados pela presena do mar, o clima de Ic caracteriza-se como quente, com chuvas registrando-se no perodo de fevereiro a abril. Fortemente influenciado pela continentalidade, apresenta uma amplitude trmica mxima de aproximadamente 13C, com temperaturas mximas na faixa de 36C de outubro a janeiro. Tem-se ento dias quentes com fraca ventilao e noites frescas, sempre marcadas pela passagem do Aracati (aragem cheirosa ou tempo bom, em tupi-guarani), o que ressalta a sua condio de clima desrtico (5). O Rio Salgado, como corpo dgua de volume considervel e por sua proximidade, atua como mediador climtico quanto higrometria area da cidade, ao esta dependente das massas de ar e no da ventilao. (Figura 1)

    Tendo o seu ncleo inicial na Igreja Matriz de N. Sra. da Expectao (Figura 2), a cidade foi-se construindo paralelamente ao rio Salgado, um dos afluentes do Rio Jaguaribe, numa matriz pombalina com seus elementos urbansticos caractersticos:

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    a rua Grande (atual Ildio Sampaio), com seus sobrados e casas trreas, os melhores exemplares residenciais da cidade. Em particular, os sobrados (Figura 3) so destacados como eminentes realizaes arquitetnicas por Castro (1983, p. 307):

    No Ic, conseguem adquirir padres prprios e quase padronizados, tanto nas solues em planta como nas esquadrias. A nvel do segundo pavimento, mostram um alpendre descoberto, anexo sala de jantar, articulado com uma saleta aberta em arco, que faz a ligao daquela pea com a cozinha. O piso do alpendre de tijolos assentados sobre vigamento compacto de carnabas,

    a rua de servio (Figura 4) (atual rua General Piragibe ou rua do Meio, como mais conhecida), de singelas casas trreas, para a qual muitos sobrados tm a parte posterior voltada..., onde se levantam compartimentos de servios cujas fachadas so valorizadas com o envazamento de uma larga porta de acesso (CASTRO, 1983, p. 307); o largo (Figura 5), dito do Theberge, talvez o maior espao pblico do Cear colonial em extenso, onde no passado se agrupavam as boiadas, demarcado pelos principais edifcios da cidade; a rea comercial, com o antigo mercado, originalmente arranjado com ptio central e avarandado interno, caracterstica tipolgica dos velhos entrepostos comerciais cearenses; os ncleos de povoamento, tais como os das Igrejas de N. Sra. do Rosrio e de N. Sra. da Conceio do Monte, vetores de expanso urbana; e a disposio da cidade, de costas para o rio, ribeira ainda hoje desprezada, como se o Salgado fosse a antiga cloaca colonial...

    Fazendo um passeio pela cidade, iniciamos pela rua Ildio Sampaio, onde deparamos com os seus lados noroeste e sudeste ocupados por construes de at quatro pavimentos, coladas umas s outras, ocupando os limites dos lotes e das quadras. Este arranjo decorre da Resoluo Provincial N 533, de 18 de dezembro de 1850, relativa a posturas para a cidade e mantenedora do perfil colonial, a qual recomendava alinhar e perfilar todos os edifcios, casas e muros e regular suas frentes, o que resultou em um arranjo urbanstico compacto. Edificaes pesadas, de construo robusta em alvenaria de tijolos de barro com predomnio dos cheios sobre os vazios, estes sempre guarnecidos por esquadrias cegas e de cores claras. De grande interesse o jogo de telhados em barro, os mais inclinados da arquitetura

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    antiga cearense, o que faz com que mesmo nas casas trreas se tenha uma altura de cumeeira de quase dez metros. A norma urbanstica anteriormente citada estabeleceu padres de uso e ocupao bastante rigorosos, nos quais se fazia at o dimensionamento e a quantificao do nmero de aberturas dos edifcios, bem como a determinao de gabaritos e do tamanho dos lotes e o arranjo e a soluo de coberta dos edifcios de esquina, dentre outros itens, com destaque para as figuras do arruador e do cordoador, organizadores da demarcao do espao urbano. As casas, como vimos, repetem padres residenciais nacionais, tpicos do sculo XVIII:

    as salas de frente e as lojas aproveitavam as aberturas sobre a rua, ficando a abertura dos fundos para a iluminao dos cmodos de permanncia das mulheres e dos locais de trabalho. Entre estas partes com iluminao natural, situam-se as alcovas, destinadas permanncia noturna e onde dificilmente penetrava a luz do dia. A circulao realizava-se sobretudo em um corredor longitudinal que, em geral, conduz da porta da rua aos fundos.

    (REIS FILHO, 1973, p. 24).

    No caso icoense, o espao do quintal, local tratado com pavimentao permevel e ocupado com o plantio de ervas medicinais, era parcialmente ocupado pelos prolongamentos dos servios, os quais, em muitos exemplares, compunham uma espcie de ptio interno da casa. O que se tem, ento, so construes compostas por tijolos, pisos e telhas em cermica, bem como por peas complementares de piso e coberta em madeira, geralmente carnaba, materiais estes reconhecidos por seus papis como isolantes trmicos. O nmero reduzido de aberturas e as grossas paredes estruturais e de vedao, por retardarem as trocas de calor entre o exterior e o interior e favorecerem a inrcia trmica, assemelham-se s solues desenvolvidas pelos povos dos desertos para a construo de suas moradas. Os altos ps-direitos, a ausncia de forros nos ambientes e os extensos telhados com suas inmeras frestas favorecem a tiragem do ar quente, facilitada ainda pelas aberturas da frente e dos fundos, possibilitadoras da transfixiao dos prdios pela ventilao. Em particular, encontramos notvel soluo no sobrado de n 2076 (Figura 6), cuja camarinha desempenha funes de elemento exaustor atravs da circulao de ar pela escada. Nas palavras de Castro (1973, p. 23), em rarssimas ocorrncias figuram mirantes, cuja funo nas cidades sertanejas devia estar ligada climatizao da casa, por efeito de conveco. A compacidade das quadras

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    resulta na diminuio de fachadas expostas insolao, sem que se fale do emprego de cores claras, mais refletoras que absorventes da radiao solar. A aridez e a ausncia de arborizao, ainda hoje existentes, so compensadas pelo sombreamento resultante do prprio desenho da via na cidade, com seus lados da sombra (sudeste) e do sol (noroeste), aquele beneficiando-se pela admisso direta da ventilao nos cmodos de permanncia prolongada da famlia. perfeitamente sensvel, num dia de calor intenso, o rebaixamento da temperatura experimentado no interior dessas edificaes com relao ao exterior, propiciado pela conjugao de todos esses fatores. Se, no dizer de Gonalves (2000, p. 49), conforto o mnimo de esforo fisiolgico para se sentir bem, esta condio plenamente atingida em Ic atravs dos artifcios citados. Vale aqui ressaltar o que diz Bittencourt (1988, p. 14):

    Nos climas quentes e secos, as temperaturas atingem valores altos durante o dia e caem significativamente durante a noite. As edificaes dotadas de ptios, paredes espessas, com poucas aberturas e pintadas de branco demonstram uma forma exemplar de controle do sol em climas deste tipo. Da mesma forma as aglomeraes urbanas, quase que um amontoado de construes com circulaes estreitas e muitas vezes sombreadas, expressam a preocupao de reduzir a exposio das paredes das edificaes aos raios solares durante o dia, e reduzir as perdas, para a abbada celeste, do calor acumulado no perodo diurno.

    No podemos esquecer que o processo civilizatrio ocorrido na pennsula ibrica recebeu grande contribuio dos rabes, o que se mostra claramente nas realizaes antigas das arquiteturas portuguesa e espanhola, cujas solues e detalhes foram transmitidas s desenvolvidas nas colnias.

    Tambm nas travessas estreitas que cortam as longas ruas paralelas ao Rio Salgado, vemos a fora dos imperativos climticos como definidores da ocupao. Como as quadras so desenhadas para terem suas edificaes trespassadas pela ventilao, as travessas so caudais por onde o vento escoa e uma edificao a instalada ter grandes dificuldades de aproveit-lo pelo posicionamento das aberturas, paralelas sua passagem. Outra questo a ser levantada a insalubridade de tal posicionamento devido ao aproveitamento higinico da radiao solar, pelo fato das fachadas nordeste e sudoeste receberem seis meses de sol e

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    seis meses de sombra. Essa condio desfavorvel deve ser a causa da depreciao associada expresso, no Cear, morar em casa de travessa, que significa habitar em moradia precria e insalubre.

    A rua de servio composta por edificaes trreas de grupos sociais pobres e pelos fundos das edificaes faustosas da Rua Grande. Sua denominao prende-se aos acessos traseiros, por onde se fazia a manuteno das casas senhoriais, contrrios prestigiada entrada frontal da via principal. Igualmente rida, reflexo das antigas determinaes de uso e ocupao do solo, sua pavimentao original, assim como as das demais ruas, era em terra batida, hoje mudada para pedra tosca. As pequenas casas repetem em sua escala particular os arranjos e solues construtivas e de amenizao climtica dos exemplares nobres, inclusive a arborizao dos quintais. Em sua extremidade nordeste surge a Igreja de N. Sra. do Rosrio com o seu largo, rea de piso aberta e orlada com arbustos. Das igrejas tombadas de Ic, esta a que apresenta a melhor resoluo climtica, expressa em seus altos ps-direitos, no posicionamento de suas janelas laterais possibilitando a passagem do vento, e na robustez da caixa mural (Figura 7).

    Adiante, o Largo do Theberge se abre balizado pelas mais relevantes edificaes da cidade, tais como a Igreja Matriz de N. Sra. da Expectao, a Casa de Cmara e Cadeia, o Teatro da Ribeira, o Sobrado do Baro do Crato, a Igreja de N. Sr. do Bonfim, o Sobrado Paroquial e o Sobrado do Canela Preta. Anteriormente um imenso terreiro, lugar de ajuntamento das boiadas por sua proximidade com o Rio Salgado, o principal espao pblico da cidade onde, noitinha, os icoenses, do lado de fora de suas casas, vm tomar a fresca, ou como l se diz, esperar o Aracati passar. As edificaes citadas repetem as mesmas solues antes vistas, com destaque para a Casa de Cmara e Cadeia (Figura 8), por seu arranjo com ptio central, sombreado pelo alto volume postado a noroeste, anteriormente ocupado por edis e detentos; o Teatro da Ribeira (Figura 9), o mais antigo do Cear (1856), pelos mesmos predicados da Igreja de N. Sra. do Rosrio; e o Sobrado Paroquial (Figura 10), outro distinto exemplar residencial, o qual apresenta a mesma soluo de exausto de ar quente empregada no sobrado de n 2076 rua Ildio Sampaio. Carente de obras de restauro, a Igreja de N. Sr. do Bonfim tem as suas naves principal e laterais cobertas com laje de concreto e telha em fibrocimento, sem

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    ventilao ou renovao do ar do colcho interno. Com ventilao desfavorvel devido ao seu posicionamento na quadra e sem oferecer condies para o escape do ar quente, o imvel apresenta o mais baixo grau de conforto ambiental registrado entre os edifcios destacados da cidade.

    Pela rua Dr. Jos Bastos, a mais arborizada de Ic e testemunho de um perodo mais recente e generoso de urbanizao, chega-se Igreja de N. Sra. da Conceio do Monte, implantada sobre uma colina. Exemplar nico do rococ no Estado, do seu patamar tem-se uma vista privilegiada do stio histrico com suas torres e seus telhados inclinados. No final do trajeto, o Mercado Pblico, de planta quadrada, nos surpreende com o seu ptio avarandado, suas lojas de acesso duplo e suas entradas centrais, abertas em cada fachada. Transio entre o exterior e o interior, se na fazenda, como vimos, a varanda servia como extenso do espao domstico, no entreposto opera como rea de circulao e permanncia sombreada e protegida das intempries, em ambos os casos regida pelos imperativos da amenizao climtica.

    Portanto, mesmo um tanto descaracterizada porque tombada tardiamente e maltratada por administraes municipais destitudas de qualquer compromisso com a sua preservao, Ic chegou aos nossos dias como um dos marcos mais eloquentes da colonizao e da ocupao do territrio brasileiro, em especial pelo que significou em termos de (re) formulao tecnolgica e de transformao da natureza em artefato, conjugadas para tornar possvel a vida do homem em sintonia com o novo mundo recm-descoberto. este precisamente o ponto de contato entre a preservao do patrimnio cultural e natural e a arquitetura e o urbanismo bioclimticos: a sustentabilidade do estabelecimento humano e a sua relao com o mundo sua volta, a perpetuao das geraes, que tanto tem a ver com a transmisso gentica e de valores culturais quanto com o equilbrio ambiental, to bem expressa no relatrio da Comisso Bruntland (1987): o desenvolvimento sustentvel contempla as necessidades das geraes atuais sem comprometer a habilidade das geraes futuras em resolver as suas. Ou como diz melhor o poeta T. S. Eliot, em um dos seus Quatro Quartetos (1981, p. 116): o tempo presente e o tempo passado/ esto ambos talvez presentes no tempo futuro/ e o tempo futuro contido no tempo passado.

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    4 Concluso Make it new

    Confcio, por Ezra Pound (6)

    Abordou-se a adaptao do modo portugus de construir realidade do semi-rido cearense segundo um recorte temporal que diz respeito, em boa medida, ao perodo colonial e segundo uma viso que privilegiou o clima, as exigncias humanas e funcionais, a insolao dos edifcios, a ventilao natural e o desempenho trmico dos materiais, componentes e espaos construdos, dentre outros pontos ligados ao conforto ambiental em sua relao com a preservao da memria edificada. Analisou-se a cidade de Ic e sua arquitetura, tomando como base os seus partidos e diretrizes gerais, tipologias arquitetnicas, morfologia urbana, tecnologias construtivas, as relaes estabelecidas entre o interior e o exterior e os cheios e vazios dos edifcios, sua implantao e orientao e as associaes funcionais e espaciais entre as diferentes atividades e ambientes. Vimos quo importante , nesta formulao, sombrear, refletir a radiao solar, ventilar, construir de forma compacta e, acima de tudo, evitar ao mximo o contato com o ar quente, para que seja conseguida, nas palavras de Gonalves (2003, p. 49), uma sntese entre os estmulos fsicos propiciados pelo meio ambiente, a construo e o usurio, objetivando atender suas exigncias humanas e funcionais. Neste clima quente e seco, de dias quentes e noites frias, no h razo para se construir edifcios isolados e sim massas trmicas inerciais voltadas garantia do conforto diurno e noturno, casas conjugadas com reduo em rea dos paramentos insolados, em que se observa o embate entre o tipo e a soluo arquitetnica verncula.

    O conjunto dessas estratgias configura um ainda til arsenal de dispositivos para amenizao climtica, o qual carece de estudo aprofundado e sistematizado a ser necessariamente produzido pelas universidades e demais instituies de pesquisa.

    Talvez por vivermos em um lugar cujas condies meteorolgicas sejam mais ou menos fixas, sem maior variao, ensinaram-nos a fazer arquitetura abrindo para o nascente, protegendo a edificao com amplos beirais da chuva de leste e do sol de oeste e favorecendo a ventilao cruzada. Esse mtodo de trabalho, repetido

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    automaticamente, acabou restrito edificao e no ao ambiente global, o que faz com que muitas vezes, no mesmo projeto, encontremos solues urbansticas, paisagsticas e arquitetnicas contraditrias ou que no se complementam. Isto talvez esteja associado fragmentao da forma como ainda se elabora o projeto de arquitetura, uma falsa sindoque, em que a parte deveria prefigurar o todo, mas, infelizmente, acaba por tra-lo.

    Arautos de uma modernidade de emprstimo, valemo-nos no mais das vezes das vogas arquitetnicas para expressar os programas de necessidades que nos so confiados, utilizando materiais e solues imprprias ao clima e, por conseguinte, produzindo uma arquitetura alienada com relao ao lugar e sua cultura. Algumas tentativas se fazem no sentido inverso, para alm da rusticidade e do exotismo, mas insuficientes em nmero e atitude para configurar uma escola local, num ambiente ainda arredio quanto discusso das questes ligadas ao edifcio e cidade. Muito alm de um mero tratamento temtico, como pensam alguns, a realizao de uma arquitetura regional, ao mesmo tempo ligada aos imperativos do lugar em que se implanta, ligada ao restante do mundo e confeccionada com materiais e tecnologias contemporneas, respondendo s necessidades hodiernas porm filiada ancestralmente a uma cultura do habitat, necessariamente em evoluo como todo processo identitrio, expresso local da continuidade de um determinado processo civilizatrio, permanece no horizonte como constante desafio, patrimnio material e imaterial que mistura o passado, o presente e o futuro em sua formulao. Em nosso caso, isto significa estudar evolutiva e rigorosamente as solues da arquitetura e do urbanismo coloniais, dentre elas aquelas referentes amenizao climtica, com o objetivo de atingir a essncia dos problemas e estabelecer um fio condutor, um nexo, entre as produes das diversas pocas, recuperando e atualizando a contribuio do legado arquitetnico e urbanstico do perodo colonial, sem historicismos estreis e descabidos.

    H pouco, Ic foi objeto de obras de restauro executadas pelo Programa Monumenta, com a participao do Ministrio da Cultura e do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Alguns imveis permaneceram com seus usos e outros foram ocupados por novas atividades, num esforo para associar a preservao do patrimnio edificado ao desenvolvimento scio-econmico.

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    Acompanhando as obras, constatamos o apuro com que aquelas antigas edificaes foram construdas e, com pesar, a perda deste conhecimento por parte dos atuais tcnicos, eruditos e braais, muitas vezes mal dominando os rudimentos da construo convencional. Quantas vezes, em meio azfama das obras, o calor intenso fez com que procurssemos nos refrescar sombra filtrada das rvores ou geomtrica dos prdios, quando no no interior das construes. Este, precisamente, o momento da compreenso e do reconhecimento da pertinncia dessa arquitetura. Apreenso ttil, memria da pele.

    Nas vielas e ruas com seus paramentos fenestrados, no largo imenso e ensolarado, entre os oites e as torres, no ptio do comrcio, em todo canto a marca de uma cultura de dominao, a qual, para se fazer saber, teve que se render ao lugar.

    Imagens

    FIGURA 1 - Mapa da cidade de Ic (com as poligonais de tombamento e entorno do stio histrico; fonte: Acervo 4 SR/IPHAN), com a indicao do quadrante referente ventilao dominante.

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    FIGURA 2 - Igreja da N.Sra. da Expectao. Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

    FIGURA 3 Sobrados. Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

    FIGURA 4 Rua Gen. Piragibe (rua de servio). Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

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    FIGURA 5 - Largo do Theberge. Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia a cerca de 1930.

    FIGURA 6 Sobrado n2076. Fonte: Desenho e imagem do acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

    FIGURA 7 Igreja N.Sra. do Rosrio. Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

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    FIGURA 8 Casa de Cmara e Cadeia. Fonte: Desenho e imagem do acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

    FIGURA 9 Teatro da Ribeira. Fonte: Acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

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    FIGURA 10 Sobrado Paroquial. Fonte: Desenhos e imagem do acervo 4.SR/IPHAN. Fotografia Maurcio Albano.

    Notas

    (1) A epgrafe do captulo, um pequeno texto do arquiteto ingls Sir Norman Foster, foi retirada de uma nota de aula de disciplina de ps-graduao da FAUUSP, ministrada pelos professores Denise Duarte, Joana Carla Gonalves e Marcelo Romero.

    (2) O texto do Prof. ngelo Oswaldo de Arajo Santos, ento membro do Conselho Consultivo do IPHAN, consta do seu parecer relativo ao tombamento federal do stio histrico de Ic, redigido em 1997.

    (3) A epgrafe do captulo foi pronunciada pelo arquiteto piauiense, radicado no Cear, Antnio Jos Soares Brando, em uma palestra por ele ministrada em 1983.

    (4) A diatomita uma rocha sedimentar rica em microorganismos as diatomceas cuja constituio fsica caracterizada por muitos vazios, que so preenchidos com ar. Hoje, sua utilizao proibida por legislao ambiental, precisamente devido presena de matria orgnica. Assim, os tijolos de diatomita so, na verdade, lajes de pedra, que, tanto quanto os tijolos de barro, constituem grossas paredes, que retm durante o dia a radiao produzida pela forte insolao, liberando-a aos interiores das edificaes apenas noite, quando benfazeja e desejada, dado o clima semi-rido da cidade, dotado de elevada amplitude trmica.

    (5) No conjunto urbano de Ic, as edificaes tm as suas aberturas (portas e janelas) majoritariamente voltadas para o nascente, visto tratar-se, em termos de ventilao natural, da orientao mais favorvel captao desta. Esse quadrante (leste/sudeste) o mesmo de onde provm o vento Aracati, branda aragem que refresca as noites do serto cearense.

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    (6) O trecho citado na epgrafe encontra-se na obra de CAMPOS, Augusto de. Poesia - Ezra Pound. Braslia: Hucitec, 1981, p. 58.

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    Crdito

    *Arquiteto e Urbanista. Mestre (2005) e doutorando em Arquitetura pela FAUUSP. Professor de Projeto Arquitetnico do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Cear (desde 1991); Conselheiro Vitalcio do Instituto de Arquitetos do Brasil IAB. e-mail: [email protected]