aron, raymond. a era da tecnologia. rio de janeiro, editora cadernos brasileiros, 1965

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  • a era da tecnologia

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    rio de janeiro editora cadernos brasileiros

    1965

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  • a era da tecnologia

  • Reservados os direitos de reproduo e traduo no Brasil.

    C o p y r i g h t CADERNOS BRASILEIROS EDITORA CADERNOS BRASILEIROS S. A.

    Rua Prudente de Morais, 129

    Rio de Janeiro GB Brasil

    era da tecnolo

    raymond aron

    rio de janeiro srie cadernos brasileiros n 5

    1965

  • Srie CADERNOS BRASILEIROS

    1 Quatro Poemas Roberto Lowell

    2 Novssima Poesia Brasileira Sele-o de Walmir Ayala

    3 O Grande Despertar John Stra-chey

    4 Kruschev e a Cultura

    RAYMOND ARON (1905), Professor de Sociologia da Sorbonne , no consenso geral, o mais importante socilogo francs dos nossos dias; como articulista e colunista do Figaro, apontado igualmente como um dos mais incisi-vos comentaristas polticos da cena mundial. Aron destaca-se ainda como memorvel confe-rencista, cai'acterizado pela fluncia do seu discurso (tanto em francs, como em ingls ou em alemo) e pela preciso e objetividade de suas respostas.

    Autor de quase vinte livros, suas obras mais conhecidas so a Introduo Filosofia da Histria (1938), O Sculo da Guerra Total (1951), O pio dos Intelectuais (1955), e, mais recentemente, Paz e Guerra entre as Naes.

    \

  • O Que Crescimento

    PELA primeira vez, todos os homens partilham a mesma histria. A humanidade est unida pelos seus grandes conflitos e problemas, tanto quanto pelas suas habilidades tecnolgicas. Ideolgica e militarmente, as duas grandes po-tncias mundiais esto presentes na sia e na Amrica Latina, no paralelo 38 e no Caribe. Bombardeiros e avies comerciais levam apenas poucas horas para voar de Moscou a Washing-ton ; meia hora todo o tempo de que precisa um foguete para ir de sua plataforma de lan-amento na Rssia ou na Amrica at o seu alvo no pas visado. E, como a simbolizar a unidade da raa humana, as mesmas palavras capitalismo, socialismo, imperialismo so correntes em toda parte, embora com signifi-cados diversos e at mesmo contraditrios.

    Entre essas palavras largamente dissemi-nadas, h talvez uma que reivindica uma posi-o privilegiada: desenvolvimento. No consigo pensar em pas algum, seja no Hemisfrio Nor-te ou no Sul, no Velho ou no Novo Mundo, onde essa palavra no seja de uso comum e mesmo obsessivo, como se definisse a maior ambio do homem contemporneo e representasse a meta qual todas as comunidades decidiram dar prioridade.

    Embora a palavra desenvolvimento seja um termo predileto em alemo, ingls, espanhol, portugus, e sem dvida tambm em outras lnguas, no necessariamente entendida da mesma maneira nos Estados Unidos ou no Bra-sil, na Guin ou na Frana. O presente ensaio

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  • inspira-se no contraste quase inevitvel entw| a enorme popularidade da palavra desenvolva mento e os variados problemas que o desenvolf vimento suscita nos diferentes continentes m nos diferentes pases. A teoria do desenvolvi! mento pode ajudar-nos a definir em que sen| tido a humanidade est unificada pela tecnolo| gia e seus problemas concomitantes, e, ao mesf mo tempo, dividida e unificada por questes de ideologia.

    A teoria moderna, ou, para ser mais pre* ciso, contempornea, do desenvolvimento ori-gina-se de trs fontes, cada uma das quais sugere uma interpretao particular da palavra e do fenmeno: Q. estudo estatstico a longo prazo do crescimento econmico, o. contraste entre pases ricos e pobres (ou, para usar os termos comuns, pases avanados e pases sub-desenvolvidos, esses ltimos sendo ditos agora "em processo de desenvolvimento") e, em ter-ceiro lugar, comparao entre a organizao econmica e "social da Rssia e a do Ocidente.

    A primeira fonte o estudo estatstico do crescimento econmico a longo prazo deve ser encontrada num famoso livro, cuja primeira edio apareceu em 1940. Condictions of Eco-nomic Progress, do economista britnico Colin Clark. Desde ento, muitos outros economistas, e em particular o francs Jean Fourasti, tm chegado independentemente a concluses seme-lhantes e em alguns casos corrigido os veriditos de Colin Clark.

    claro que j se sabia que a economia mo-derna estava em processo de desenvolvimento, seja por causa do crescente nmero de oper-rios ou por causa do aumento de rendimento

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    individual. O fenmeno tinha sido registrado, algumas vezes mesmo descrito e analisado pelos economistas clssicos; mas h trinta ou qua-renta anos atrs, os especialistas no lhe atri-buam peculiar importncia. Foi a experincia da grande depresso que levou numerosos eco-nomistas, entre os quais J. M. Keynes e Alvin Hansen, a especular sobre certos aspectos do fenmeno conhecido sob o nome de maturidade. verdade que a teoria da maturidade impli-cava, ao menos parcialmente, numa teoria do desenvolvimento a longo pra. Supunha uma transformao na natureza do desenvolvimento de acordo com o estgio atingido, tornando-se mais raras, com o amadurecimento da econo-mia, as oportunidades de investimento lucrati-vo. Nos termos em que o colocaramos hoje, eles levantaram o problema de se-o desenvolvimento, a partir de um certo ponto, no tenderia a ser mais ou menos paralisado se se mantivesse dentro da estrutura de uma economia privada (caracterizada pelos necanismos de mercado e as decises de investimentos tomadas pela ini-ciativa privada). Mas a teoria da maturidade baseava-se na anlise dos desenvolvimentos a curto e mdio prazos. Hoje em dia, as considera-es de longo prazo so levadas em conta dire-tamente, no como um subproduto da anlise das crises e das emisses a curto prazo; a trans-formao econmica de um sculo a outro e por cima das flutuaes de prazos curto e mdio tor-nou-se matria de estudos e teorias e, por isso mesmo, um campo de ao.

    Os estudos de Colin Clark e Jean Fouras-ti do uma representao quantitativa e uni-linear do desenvolvimento. Se se toma a renda

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  • nacional total dos vrios pases e se divide pelo nmero de habitantes ou operrios, obtemos, respectivamente, a renda por habitante ou por operrio; e fica ento muito fcil colocar os diversos pases numa escala ascendente de pros-peridade, enfileirando desde os pases subde-senvolvidos, com uma renda nacional de menos de 100 dlares per capita por ano, at aqueles cuja cifra correspondente gira em torno de 1500 ou at 2000 dlares. Como a renda per capita mostra um crescimento bastante regular, a cifra para a Frana em 1960 pode ser a mesma que a americana de algumas dcadas antes. Se o progresso econmico definido pelo aumento na renda anual per capita, o mesmo ponto ser atingido por vrios pases em diferentes datas.

    A Confuso Entre Crescimento e Progresso

    ESTUDOS desse tipo sugerem inevitavelmente uma idia simplista de desenvolvimento, iden-tificando-o com crescimento e progresso. Ainda no se distinguiram claramente esses trs con-ceitos na literatura econmica. Se se confundem os trs conceitos e a renda total tomada como o nico critrio de desenvolvimento e cresci-mento, o resultado uma viso unilinear da evoluo histrica, como se ela tendesse para um fim, e um fim nico. Todos os pases so encarados como participantes de uma mesma raa; uns comearam mais cedo, outros mais tarde, sua velocidade mede-se por sua taxa de crescimento e todos eles alcanaro, no momen-to adequado, a mesma meta.

    A segunda fonte da teoria moderna do de-senvolvimento sugere uma interpretao par-

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    cialmente diferente e corrige a excessiva simpli-cidade e a natureza superquantitativa da inter-pretao anterior. Nas anlises dos economis-tas, a disparidade em renda per capita entre a Guin e os Estados Unidos, ou entre a ndia ou a China e a Repblica Federal Alem ou a Gr-Bretanha, expressa em cifras que indi-cam um total de tantos dlares para um pas e tantos para outro. Mas qualquer observador pode constatar que as diferenas quantitativas so sintomas de diferenas qualitativas. A orga-nizao do trabalho e os instrumentos de pro-duo so fundamentalmente diferentes, assim como o a distribuio de mo-de-obra entre os diversos tipos de trabalho: agricultura, in-dstria e comrcio.

    verdade que os estudos sobre o cresci-mento econmico a prazo longo, como os de Co-lin Clark ou Fourasti, popularizaram a idia da transferncia da mo-de-obra dos setores primrios para os secundrios e tercirios. O crescimento quantitativo depende da reduo do setor primrio (agricultura ou agricultura e minerao) em favor do secundrio (inds-trias manufatureiras) e o tercirio (comrcio/ servios pblicos, arte, procura de lazer, edu-cao). De acordo com Colin Clark, a desi-gualdade de salrio explica a transferncia de mo-d-obra. Segundo Fourasti, a desigualda-de de velocidade do progresso tcnico, quando se compara um setor ao outro, e as diferentes taxas em que atingido o ponto de saturao na satisfao das necessidades primrias e se-cundrias, explica a diminuio da mo-de-obra empregada no setor primrio e, num estgio posterior, no setor secundrio.

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  • Mas essas mudanas sucessivas na mo--de-obra e a proporo varivel de cada um dos trs setores nada mais so do que expres-ses quantitativas de fenmenos mais profun-dos e essencialmente qualitativos. Para haver mudana de uma sociedade tradicional e uma economia no desenvolvida China, ndia, Guin, Nigria, Nordeste do Brasil ou Sul da Itlia para uma sociedade moderna e uma economia avanada Norte da Itlia, o Esta-do de So Paulo, ou os litorais este e oeste dos Estados Unidos tem que haver necessaria-mente um aumento na renda por habitante e por trabalhador, e na proporo do trabalho empregado na indstria. Mas o processo de in-dustrializao em si mesmo seria impossvel, se no houvesse expanso na educao primria e profissional e se os operrios no fossem treinados naqueles hbitos racionais que vo de encontro aos costumes imemoriais e que so indispensveis para conquistar uma alta renda.

    A Convergncia dos Sistemas

    ENQUANTO O contraste entre os pases subde-senvolvidos e os avanados nos fora a admitir que o desenvolvimento significa no somente crescimento mas tambm transformao hist-rica, movimento de uma forma social a outra, uma comparao entre a economia sovitica e a ocidental nos conduz concluso de que muitos dos fenmenos caractersticos do desen-volvimento so comuns a ambas. A economia sovitica e a americana, vistas da sia, so

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    duas verses diferentes de uma mesma forma social; sob os rtulos de construo socialista ou desenvolvimento econmico, ambas envol-vem industrializao, urbanizao, educao primria generalizada, expanso da educao secundria e superior, uma tendncia em di-reo do ncleo familiar em oposio famlia extensa , separao entre a vida familiar e o trabalho, entre o lar e o local de trabalho, a instituio de unidades de pro-duo em larga escala, a rigorosa diferenciao da funo social, e assim por diante.

    No meu desejo emitir um juzo prema-turo a respeito de duas questes que ainda esto sendo ardentemente debatidas: at

  • sociedade sovitica com as sociedades ociden-tais, somos levados a refletir sobre o significado de ideologias em conflito e sobre as semelhanas que podem existir entre sistemas polticos que pronunciam, um sobre o outro, sentenas de exterminao.

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    A Teoria da Sociedade Industrial

    NESTE captulo, aplicarei o termo crescimento ao aumento global ou por cabea da renda na-cional; desenvolvimento a este aumento quando le o resultado de mudanas afetando mais ou menos a economia na sua totalidade; e pro-gresso ao desenvolvimento quando este parece corresponder s finalidades ltimas da econo-mia. fcil e tentador considerar o desenvol-vimento como sendo um mero crescimento, uma mera expanso do status quo, ou aumento do rendimento dos mesmos produtos pelos mesmos mtodos. Na realidade, o desenvolvimento con-siste no somente em aumentar a quantidade, mas tambm em produzir novos produtos por novos meios. Uma sociedade moderna encontra^ se num estado de constante mudana assim .A como de constante expanso. A renovao, como) a quantidade, tambm uma obsesso, j que a primeira inseparvel da segunda..

    Como se descrever o tipo de sociedade a que o desenvolvimento conduz e que daqui em diante denominaremos moderna, industrial, ou cientfica? Alguns aspectos podem constituir ponto pacfico, comeando com a organizao do trabalho. Em vez de instrumentos manuais, o \y homem tem agora sua disposio mquinas l cada vez mais complexas; a quantidade de ener-/ gia que um trabalhador pode agora obter torna possvel maior rendimento do operrio, uma revoluo na agricultura e na minerao de modo a satisfazer as necessidades humanas e desenvolver engenhos tcnicos capazes de re-solver os velhos problemas do lar, da roupa,

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  • transporte e comunicaes, com uma variedade, de maneiras com a qual nem mesmo os utopistas sonharam. A explorao dos recursos naturais tem que ser reconhecida como uma caracters-tica dominante da sociedade moderna, sem pre-cedente pelo menos no que respeita quantida-de. Ao mesmo tempo esse poder da tcnica

    yexpressa uma nova atitude: a vontade de do-< minar o meio natural ao invs de ser por le

    'dominado e, alm disso, uma preocupao com A Ia medida, a organizao racional e a previso

    /do futuro. A medida de horas de trabalho ou do

    /frendimento fundamental naquela forma de proceder que costumava ser chamada de capitalismo, mas que agora reconhecida como sendo caracterstica de todas as sociedades mo-dernas. A medida leva ao empenho em produzir mais no mesmo tempo, ou gastar menos tempo produzindo a mesma quantidade, ou produzir algo que renda mais em menos tempo. Mas para realizar essa ambio quantitativamente, tambm necessrio substituir os mtodos usuais de trabalho e de organizao por meio da reflexo e do clculo, isto , adotar o que Max Weber chama uma "atitude racional", ou

    v o que tambm conhecido como racionalizao. A racionalizao quantitativa envolve uma nova maneira de abordar o passado e o futuro. O passado, como tal, no mais respeitvel ou sagrado. O futuro no mais encarado como uma repetio do que aconteceu antes ou como algo de inevitvel. A tradio no mais su-ficiente para ratificar uma autoridade ou uma instituio e, encorajados pelo sucesso, os ho-mens esto decididos a levar avante aqueles

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    fatores quantitativos que determinam seu fu-turo, tais como o tamanho de uma dada po-pulao, os recursos ao seu dispor, e o seu padro de vida. As sociedades modernas so as primeiras na Histria a justificar-se pelo seu futuro, as primeiras para as quais o lema: "O homem o futuro do homem" aparece no tan-to como uma blasfmia, mas como um lugar-comum.

    As sociedades modernas so definidas pri-meira e principalmente por sua organizao do trabalho, isto , suas relaes com o mundo externo, seu uso das mquinas, a aplicao dos mtodos cientficos, e as conseqncias sociais e econmicas da racionalizao da produo. i impossvel, num estudo introdutrio, dar uma definio da famlia, do Estado, e da natureza da cultura na sociedade moderna (porque todos os trs podem assumir vrias formas). Mas no h dvida alguma de que eles so afetados pelo \ / desenvolvimento e de que apresentam certas / semelhanas em todas as sociedades avanadas: j por exemplo, famlia extensa tender a se I reduzir ao seu ncleo; o Estado agir atravs 1 de uma burocracia racionalmente organizada e comparativamente centralizada; a cultura dis- ; pensada a milhes atravs dos veculos que / atingem a massa expulsar as culturas locais, ou se impor a elas.

    A sociedade avanada assim delineada, abarcando vrios sistemas polticos e represen-tando uma meta qual toda a humanidade est tendendo, corresponde de uma maneira mar-cante concepo de sociedade moderna ela-borada por Auguste Comte, seguindo Saint-Si-mon, dez ou vinte anos antes da descrio da

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  • sociedade capitalista, feita por Karl Marx. Ambos constataram o flagrante aumento nos meios de produo. Ambos viram a afluncia em massa dos operrios s fbricas como um sintoma de modernismo, como o carter origi-nal da organizao social que estava surgindo. Ambos acreditaram que os novos mtodos de trabalho eram, afinal, a causa e a caracterstica essencial da sociedade moderna.

    Os Contrastes entre Comte e Marx

    COMO ento, perguntar-se-, diferiam o posi-tivismo e o marxismo na sua interpretao da sociedade moderna? A resposta, acho eu, simples. Auguste Comte achava que os conflitos entre os proprietrios dos meios de produo e os operrios, isto , entre capitalistas e o proletariado nada mais eram que uma doena de infncia da sociedade industrial, que seria gradativamente eliminada medida que a so-ciedade progredisse. Na sua opinio, a socie-dade moderna era industrial porque a sua fi-nalidade essencial, e talvez mesmo nica, era a explorao dos recursos naturais d modo a melhorar as condies de vida. (Esta melhoria sendo, por sua vez, um meio em direo ao progresso moral).

    Chamar a sociedade moderna de industrial no era tanto enfatizar a transferncia de mo-de-obra do setor primrio para o secun-drio, da agricultura para a indstria, quanto, ressaltar a industrializao do trabalho na 1 agricultura, assim como na prpria indstria. A industrializao surge da aplicao da cin-cia e do esprito cientfico explorao dos

    recursos naturais. Neste sentido Auguste Com-te poderia ter chamado a sociedade moderna de cientfica em vez de industrial.

    Segundo Marx, por outro lado, o conflito entre os capitalistas e o proletariado era o fe-nmeno essencial que condicionava o presente estado da sociedade. Enquanto este conflito no fosse radicalmente eliminado atravs da re-volta do proletariado e a propriedade coletiva dos meios de produo, a expanso dos meios de produo teria o duplo efeito de aumentar a pobreza das massas e intensificar os conflitos. A prpria agudeza do mal seria, eventualmen-v te, uma fonte de bem. A luta de classes abo-liria os sistemas polticos que impedem que os j benefcios da cincia se estendam a cada um.>

    tf A teoria da sociedade industrial elaborada

    por Auguste Comte dava pouco valor s dife-*7 renas entre os sistemas polticos porque re-cusava dar importncia forma de proprie-dade. Na opinio de Comte, mesmo que a propriedade dos meios de produo permane-cesse em mos privadas, teria, ainda assim, uma funo social. Alguns indivduos precisam ocupar os cargos, administrar e controlar, mas da em diante, le executar essas tarefas como um delegado ou representante da comunidade. O curioso que esta teoria est de acordo com as idias atuais e os inegveis fatos da situa-o presente, tais como as indiscutveis seme-lhanas entre a sociedade sovitica e a ocidental, o relativo enfraquecimento da luta de classes nas sociedades avana/s, seja de um tipo ou do outro, a alteraoMio significado da pro-priedade privada e no papel que ela exerce onde ainda em vigor, e o reaparecimento de uma

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  • forte autoridade nos empreendimentos indus-triais e no Estado, em pases onde a revoluo decidiu abolir as distines hierrquicas de funo e de comando.

    A Concentrao Urbana

    DURANTE OS ltimos dez anos, a idia da socie-dade industrial espalhou-se pelo mundo inteiro, embora no tenha encontrado aceitao univer-sal, j .que os russos recusam-se a acreditar que o Oriente e o Ocidente tenham algo em co-mum e consideram as duas formas de sociedade como inimigas mortais. Se bem que rejeitada pelos comunistas, a idia da sociedade indus-trial usada por ex-comunistas que vem nela um signo de fidelidade ao marxismo, se no ao stalinismo (a semelhana entre os meios de produo em todas as sociedades avanadas justifica a comparao entre sociedades com diferentes sistemas polticos); tambm usada na filosofia da Histria porque, quando se coloca a sociedade moderna no contexto geral da evoluo histrica, impossvel furtar-se ao espanto ante o que absolutamente novo na situao contempornea.

    Todas as sociedades histricas consistiram de uma massa de camponeses com uma maior ou menor superestrutura urbana (mesmo as cidades soberanas, que podiam parecer, pri-meira vista, sociedades urbanas, no constitu-ram exceo). As sociedades modernas esto-se tornando essencialmente urbanas com um re-sduo campesino. Os Estados Unidos empre-gam apenas sete ou oito por cento de sua mo-de-obra para alimentar a populao inteira, e

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    no sabem o que fazer com o que sobra de sua agricultura. Tem-se que admitir, claro, que eles possuem uma proporo muito alta de rea de terra por habitante. Mas o progresso tcnico da agricultura tem sido tal que a Re-pblica Federal Alem, com um espao muito pequeno sua disposio (um pouco mais de 200 000 quilmetros quadrados) fornece quatro quintos dos alimentos consumidos por uma po-pulao de 55 milhes de habitantes, e usa apenas dez por cento da sua mo-de-obra para isso. verdade que a metade da humanidade ainda subnutrida, mas esse fato irrefutvel apenas serve para demonstrar que a sociedade industrial no completou o avano que Auguste Comte prognosticava para ela h pouco rnais^-de um sculo. Sua profecia estava correta por-que, embora nem todas as sociedades estejam organizadas numa base industrial, todas elas aspiram a esse tipo de organizao. Quanto / quelas que o rejeitam, consciente ou incons-cientemente elas esto preferindo a morte e o conservantismo vida e mudana.

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  • As Deficincias da Teoria Marxista

    A TEORIA do desenvolvimento, como acabei de dizer, uma parte integrante das doutrinas cientficas e das ideologias nos pases do bloco oriental, tanto quanto no Ocidente. Mas a evo-luo da sociedade industrial diversamente interpretada, conforme o autor da teoria se baseie* em estudos feitos maneira de Colin Clark ou na controvrsia sobre sistemas pol-ticos; isto , se le considera a sociedade in-dustrial como sendo industrial ou capitalista. O fato que esto em voga, atualmente, duas anlises rivais das tendncias na sociedade mo-derna: a anlise marxista, que tem sido mais ou menos posta em dia de modo a levar em conta os acontecimentos do sculo XX, e a anlise de Colin Clark, Fourasti, e W. W. Rostow. O livro deste ltimo, The Stages of Economic Growth (Cambridge University Press), apresenta as implicaes ideolgicas e tericas dos estudos dedicados ao crescimento a longo prazo da renda nacional total ou da renda por habitante ou por operrio.

    A anlise marxista pressupe a substitui-o sucessiva de um regime por outro, tal como est explicitamente delineado no Manifesto Comunista % no prefcio de Uma Contribuio Crtica da Economia Poltica. Segundo esse modo de ver, um sistema social e econmico definido pela propriedade dos meios de pro-duo, enquanto esta determina as relaes de poder entre o povo engajado no trabalho e a

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    explorao de alguns por outros. A economia do mundo antigo dita ter sido fundada na escravido, assim como tambm a da Idade Mdia, e a economia capitalista na classe dos assalariados. O estabelecimento do socialismo aboliria a explorao do homem pelo homem e a apropriao da mais-valia por uma minoria de proprietrios. (Talvez devesse tambm ser considerado o modo asitico de produo, caso em que ter-se-ia que levar em conta a apro-priao da mais-valia pela classe do funciona-lismo civil ou da burocracia estatal, mas esse acrscimo, embora cientificamente necessrio, rarissimamente mencionado nas obras dos defensores da anlise marxista ou, com poucas excees, dos seus crticos).

    De acordo com essa anlise, a funo do capitalismo assegurar rpido desenvolvimen-to dos meios de produo ("Acumular, acumu-lar, nisto consistem Moiss e todos os Profe-tas") ; esse desenvolvimento ressalta as con-tradies do regime, o qual, por causa da estagnao do desenvolvimento ou devido sublevao das massas empobrecidas, ou pela ao combinada dessas duas causas, ser abo-lido pela revoluo.

    As Contradies Internas

    QUANDO expressa nesses termos, a anlise mar-xista obviamente no corresponde aos aconte-cimentos do sculo XX. A menos que o sistema americano seja considerado como socialista e a propriedade exercida pelas grandes corpora-es como coletivismo (e isso, apesar de tudo, pode ser menos contrrio ao esprito do mar-

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  • xismo do que era o stalinismo), patente que, at agora, nenhuma revoluo do tipo marxista seguiu-se expanso do capitalismo ou per-feita realizao de um desenvolvimento madu-ro. A Revoluo de 1917 teve lugar num pas onde o desenvolvimento industrial estivera em progresso por trinta anos apenas; trs anos de guerra levaram a condies que provocaram o colapso do tsarismo e possibilitaram aos bolcheviques a tomada do poder. O Partido Comunista Chins saiu vitorioso de uma guer-ra civil' que comeara durante as primeiras fases de modernizao do campo e as tropas de Mao-Ts Tung foram recrutadas mais entre os camponeses do que entre o proletariado ur-bano. Os pases da Europa Oriental foram "convertidos" sovietizao pela presena do

    Exrcito Vermelho no fim da Segunda Grande {Juerra. Finalmente, ningum sustentaria se-riamente que o socialismo na Guin ou em Cuba seja um exemplo de um movimento his-trico do capitalismo para o socialismo, ine-vitavelmente acarretado pela contradio entre as foras e as relaes de produo.

    Analogamente, sem negar o testemunho dos fatos, difcil sustentar que o capitalismo te-nha conduzido crescente pobreza e ao agra-vamento das contradies internas. Desde 1945, o crescimento das economias ocidentais tem sido mais rpido e mais regular do que o era entre as duas guerras, e no tem sido inter-rompido pelas mesmas severas recesses. evidente que o aumento de produo beneficia a todas as classes (embora em propores desiguais) e o inegvel fenmeno do consumo em massa a resposta mais simples e mais

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    bvia aos dogmatistas que acreditam no em-pobrecimento do proletariado. (!)

    anlise marxista clssica no somente irreconcilivel com o testemunho da Histria, mas tambm contm debilidades internas. Para ser convincente, uma anlise que apresenta a Histria como uma sucesso de sistemas deve basear a definio desses sistemas no princpio da importncia primordial da infra-estrutura, a qual por sua vez determinada pela pro-priedade dos meios de produo e pelas rela-es sociais que da resultam. Ora, clara-mente falso que uma economia possa ser ade-quadamente definida pelo simples fato de que os meios de produo so de propriedade privada, se a expresso "propriedade privada" abrange pequenos lojistas, grandes empresas industriais, e os grandes proprietrios de terra da Espanha ou do Brasil. Dizer, em 1964, que s economias dos Estados Unidos, Espanha, Ir e Argentina so todas capitalistas no uma afirmao muito instrutiva, porque concilia diferenas substanciais, e talvez decisivas, en-tre economias cujo nico trao comum que elas no so governadas pelo Partido Comu-nista, e toleram a propriedade privada dos meios de produo! Dentro da estrutura da propriedade privada dos meios de produo, h tantas variaes nas formas de produo, na produtividade, nas formas de vida privada e de governo, que a aplicao do conceito de ca-pitalismo a todas as sociedades no soviticas desprovida de valor cientfico. O abismo entre o capitalismo dos capites da indstria da dcada de 1880 e o capitalismo de 1964 parece desprezvel somente ao terico que, em princ-

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  • pio, nega a possibilidade de reformas sem re-voluo.

    Analogamente, e mesmo de modo mais definitivo, ridculo considerar como sendo so-cialista, no pleno sentido da palavra, qualquer sociedade em que os meios de produo so de propriedade coletiva, um Partido Comunista est no poder e um plano qinqenal julgado indispensvel. Sabemos que tal regime pode ser desgraado por um culto da personalidade ou pela violao da legalidade socialista. No po-demos deixar de notar que, em todos os pases que proclamam sua f marxista-leninista, ins-tituies representativas cessaram de existir e os intelectuais perderam sua liberdade pessoal. Devemos concluir que o autoritarismo ou mes-mo o totalitarismo so concomitantes necess-rios do planejamento, da propriedade coletiva, e do poder do Partido Comunista? Digamos antes, com precauo cientfica e de modo a no nos comprometermos sobre o futuro, que a propriedade coletiva dos meios de produo no mais adequada como uma definio de um sistema econmico, e a fortiori de um sistema poltico, do que a aplicao do termo capitalista s sociedades ocidentais.

    Os Atrativos da Simplicidade

    ESSAS observaes parecem-me to evidentes, e de fato so to banais, que estou convencido de que o verdadeiro problema encontra-se alhures. Por que reteve a anlise marxista sua popularidade atravs do mundo? Por que ainda discutida como se ainda fosse vlida? Vejo trs respostas possveis.

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    Em primeiro lugar, o marxismo, ou pelo menos um certo ramo do marxismo, tem sido elevado dignidade de filosofia oficial, na Unio Sovitica. A Rssia , atualmente, uma das duas maiores potncias do mundo, um centro de atrao, provoca sentimentos de sim-patia e suscita as esperanas de milhes per-tencentes s classes menos favorecidas de todos os pases do mundo. O comum dos mortais, e mesmo homens altamente cultivados, no rea-gem a uma filosofia oficial como o fazem a uma hiptese cientfica.

    Ao mesmo tempo, com o auxlio de umas poucas idias adicionais, no impossvel ali-nhar a anlise e os fatos, ao menos superficial-mente. Se concordamos em dar o nome de capitalista a todas as sociedades sem proprie-dade coletiva nas quais o Partido Comunista no mantm o poder, se estabelecemos como um princpio que a revoluo anticapitalista ocorrer no elo mais fraco da corrente (met-fora de Trotsky) e se acrescentamos que o elo mais fraco encontra-se no capitalismo nascente de uma sociedade predominantemente do tipo feudal, se supomos que o imperialismo colonial ou semicolonial uma conseqncia inevitvel das contradies capitalistas e que a revolta antiimperialista tambm uma conseqncia necessria da explorao dos pases subdesen-volvidos^ ento os fatos proeminentes do nosso tempo a Revoluo Russa de 1917, a desco-lonizao, e o anticapitalismo dos pases subde-senvolvidos podem ser transpostos para uma fraseologia marxista e parecem ento confir-mar a sua exatido.

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  • Em terceiro lugar e este o ponto es-sencial enquanto as contradies do capi-talismo, o empobrecimento e a crescente explo-rao das massas no se vem dentro de uma certa nao, elas parecem ter-se transferido para o palco internacional na forma de uma maior disparidade, que a que existe entre as naes ricas e as pobres. Essas ltimas tendem a concluir que Marx estava certo e que o de-senvolvimento de um tipo de pas implica nc subdesenvolvimento do outro, e, na realidade, feito s custas deste.

    Esta iluso de tica, que encontra muito maior aceitao entre aqueles que sofrem o problema, na medida em que lana sobre outros a responsabilidade dos seus infortnios, pare-ce-me ser a razo bsica da atual popularidade da anlise marxista. Nem fcil dissipar esta iluso, j que ela tem suas razes na experin-cia de sculos. Enquanto os regimes econmicos eram mais ou menos estacionrios, enquanto a riqueza era uma quantidade mais ou menos constante e que provinha principalmente de terras, metais preciosos e proveitos comerciais, ou mesmo se constitua desses bens, a possesso de riquezas por uma parte da populao signi-ficava que outra parte tinha de ser pobre. Esse no mais o caso quando a economia essen-cialmente progressiva, quando a fonte de ri-queza o trabalho, e a quantidade de riqueza disposio da comunidade depende da qua-lidade e da eficincia do trabalho realizado. De ano para ano, uma certa comunidade atual-mente produz maior quantidade de mercadoria, no s custas de outros, mas porque sua mo-de-obra capaz de um maior rendimento. Pode

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    ser que a comunidade compre mais matria-mas paga por ela, e os

    pases produtores (pondo de lado, por enquan-to, a questo dos preos), tm, por sua vez mais chance de enriquecer, por causa do de-senvolvimento dos outros, e no apesar dele

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  • Os Ricos e os Pobres

    , PORTANTO, essencial insistir neste ponto que, apesar de bvio, tem sido por muitos ignorado: na era da sociedade industrial, no h contra-dio entre os interesses dos pases subdesen-volvidos e os dos pases avanados. Os primeiros podem progredir sem que os ltimos percam terreno. E, mais que isso, o progresso numa regio auxilia o progresso nas outras (de qual-quer forma, enquanto a proviso de matria-prima permanece abundante e a rea dispon-vel capaz de acomodar e alimentar a popu-lao). E se essas afirmativas parecem sur-preendentes, por exemplo, aos brasileiros, que eles reflitam um momento nos contrastes entre as diferentes regies do Brasil. Poder-se- dizer que a pobreza da rea improdutiva do Nordeste deva ser atribuda ao desenvolvimento e comparativa riqueza do Estado de So Paulo? Pode-se ainda dizer que o desenvolvi-mento do Nordeste seria impossvel sem o correspondente empobrecimento de So Paulo? A resposta , evidentemente, negativa. Os bra-sileiros do Nordeste podem achar que So Paulo no faz uma contribuio suficientemente grande para a melhoria dos Estados pobres da Federao; os contribuintes de So Paulo, por outro lado, podem ser da opinio de que uma proporo demasiada de seus impostos gasta com Braslia e Recife. Mas nenhum brasileiro, penso eu, concluiria que o desenvolvimento do Nordeste implica no empobrecimento de So Paulo. E de fato, j que a verdadeira riqueza depende da eficincia, por que deveria a hu-

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    manidade imaginar-se envolvida numa luta de morte, quando no h falta de recursos na-turais e todos os homens podem aprender a tirar vantagem deles, mesmo se alguns ainda no sabem como faz-lo?

    Mas, dir-se-, este balano abstrato e terico entre o desenvolvimento dos pases menos fa-vorecidos e o progresso dos afortunados no to importante quanto o so os prprios fatos; no so as primeiras potncias imperiais res-ponsveis pelo subdesenvolvimento das ex-co-lnias? E a poltica dos pases ricos encoraja ou estorva o desenvolvimento dos pases po-bres? Longos e detalhados estudos seriam necessrios para dar uma resposta adequada a essas duas perguntas. Simplesmente indicarei a direo em que se encontram, provavelmente, as respostas.

    H um sentido em que a responsabilidade dos podres coloniais inegvel. Desde que go-zavam de soberania e tinham nas mos o governo, eles so culpados na medida em que fizeram ou no certas coisas. Mas esse fato irrefutvel no nos deve tornar cegos para com as diferenas de condies entre uma poca e outra e as mudanas nas idias e nos va-lores morais. A crena de que o conquistador responsvel pela prosperidade do vencido bastante recente. H um sculo atrs, a classe dirigente na Inglaterra no se achava com nenhunia obrigao dessa ordem para com os povos que lhe estavam sujeitos. Alm disso, mesmo os prprios europeus no praticavam uma poltica de crescimento conscientemente e para seu prprio benefcio. Nos territrios de alm-mar, eles achavam que haviam cumprido

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  • seu dever desde o momento em que tinhp , constitudo uma administrao eficiente, esi belecido a ordem, e introduzido uma peque) minoria dos "nativos" na cincia e na cultu: ocidentais. No se pode duvidar de que, assi procedendo, eles provocaram uma discrepn* entre o aumento de populao e o crescimei econmico. Mas teria sido diferente a situa. se os pases reduzidos ao estado colonial tivet sem retido sua independncia?

    Com ou Sem Senhores

    MUITO natural que os pases que j foram colnias e que realizaram agora sua indepen-dncia devem estar convencidos de que teria sido melhor terem sido sempre eles mesmos seus senhores; e no tentarei argumentar com eles; que isso pode no ser verdade, porque im-possvel prov-lo. A prova requereria umal comparao entre duas experincias estrita-J mente semelhantes, cuja nica diferena con-l sistiria em que, num caso a independncia teria sido mantida, enquanto que no outro, no. MasJ em todos os casos onde tal comparao pos-svel, h um nmero demasiadamente grande1 de variveis diferentes para que se possa tirai) uma concluso simples e definitiva. O desen-volvimento no tem sido nada melhor na Tai lndia (que nunca foi colonizada) dp que nc Viet-Nam ou em Burma, nada melhor na Li-bria do que na Costa do Ouro ou na Nigria O Japo experimentou um surpreendente dei senvolvimento, a China ainda est atrasada! mas o primeiro escapou de ser um campo para as ambies europias precisamente porque I

    lite que o dirigia era bastante inteligente e irajosa para organizar a sua prpria ociden-lizao, enquanto que a China viveu quase

    im sculo de perturbaes internas e guerras sivis antes que o Partido Comunista a subme-vsse ao poder absoluto e impiedosa disciplina.

    bastante difcil definir a diferena entre o jue poderia ter acontecido e o que de fato

    ^aconteceu em pases sujeitos a um governo colonial no sentido estrito do termo, ainda mais difcil no caso dos pases que mantiveram a sua soberania segundo a definio legal do termo, mas foram dominados por outras po-tncias, e talvez mesmo por elas explorados. Devemos culpar a Amrica do Norte pelo atra-so da Amrica Latina nos sculos XIX e X X ? Pode-se dizer que as corporaes americanas impediram a industrializao nas reas em que se estabeleceram? Como se pode logo imaginar, em casos como estes h uma forte tentao, para ambas as partes, de culpar a outra. Por um lado, pode-se dizer que os pases latino-americanos, se assim tivessem desejado, po-deriam eles mesmos ter criado as indstrias que permitiram nascer com a ajuda do capital americano. Por outro lado, pode-se alegar que os capitalistas americanos tiveram lucros ex-cessivos e que, em certos casos, remeteram seus lucros de volta para o seu prprio pas, inti-midaram governos fracos, e assim contribu-ram para tornar mais lento o desenvolvimento. Os dois pontos de vista no so mutuamente exclusivos e no seno humano preferir um ao outro.

    Atualmente, os pases avanados rivalizam entre si em proclamar sua inteno de vir em

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  • auxlio dos pases menos favorecidos. Ao que os representantes dos ltimos replicam, algu-mas vezes no sem justificao, que os fatos no esto sempre de acordo com as palavras e que os termos do intercmbio muitas vezes resultam na explorao dos produtores de ma-tria-prima, para vantagem das economias in-dustrializadas, isto , em ltima instncia, explorao do subdesenvolvido pelo avanado. No subestimo a importncia do fenmeno, mas acho que- um erro acreditar ser isso uma po-ltica deliberada da parte dos governos ou das corporaes.

    Qualquer pas que dependa, para 50 ou 60 por cento do seu oramento, do dinheiro estrangeiro na venda de um nico produto, como caf, estanho ou chumbo, est certamente numa posio nada invejvel. No caso da agri-cultura ou de matria-prima, o risco de uma superabundncia no mercado sempre consi-dervel e, desde que a elasticidade da demanda no muito grande, uma sobra comparativa-mente pequena bastante para causar um srio colapso nos preos. Mas no fcil para os governos e as corporaes, mesmo que supo-nhamos que estejam agindo com toda a boa vontade do mundo, controlar flutuaes nos preos e assegurar um lucro estvel.

    Uma Falcia Sobre a Explorao

    H dois pontos bsicos nesse assunto. Em primeiro lugar, quaisquer que sejam os esfor-os que se podem fazer para organizar os mer-cados mundiais em matrias-primas, os pases em processo de desenvolvimento no devem

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    depender de um nico produto: a variedade d< safra assim como a industrializao j so in-dispensveis para a prosperidade, o equilbrio econmico, e a independncia de todos os pa-ses, os quais, assim procedendo, s podero me-lhorar no futuro.

    O segundo ponto, que no ser to pronta-mente aceito, que os pases altamente indus-trializados no devem sua riqueza ao baixo cus-to das matrias-primas, assim como tambm no a devem escravizao ou explorao das colnias. Isto no quer dizer que os imprios coloniais no tirem vantagens substanciais de suas possesses, ou que taxas favorveis de cmbio no sejam bem recebidas pelos pases altamente industrializados. O fato, porm, que eles no dependem desses fatores que so fatores marginais.

    O exemplo dos pases europeus proporcio-na uma prova eloqente deste fato. A Holanda, antes da guerra, tirou dezessete por cento de sua renda nacional da Indonsia; agora, per-deu seu imprio e no entanto nunca esteve to prspera ou teve to alto ndice de crescimento (cerca de 4 por cento por membro ativo da comunidade entre 1950 e 1960). O mesmo acon-tece com a Frana e a Gr-Bretanha (a des-peito do fato de que o ndice de crescimento da ltima, durante os ltimos dez anos, tem sido menor do que o dos outros pases europeus). O fato, na verdade, compreensvel. No caso dos pases avanados, o custo da matria-prima representa menos de 15 por cento da renda nacional total. Mesmo as flutuaes violentas nos preos das matrias-primas tm apenas um efeito limitado na renda nacional total dos

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  • pases industrializados, que ainda permanece-riam ricos se tivessem que pagar 50% mais por certos produtos bsicos. No mximo uns poucos pases e em particular a Gr-Breta-nha teriam maior dificuldade em manter sua balana de pagamentos. Mesmo assim, po-deriam vender mais aos produtores de merca-dorias primrias se os preos destas fossem mais altos.

    Da se segue que a anlise marxista da evoluo- econmica no mais verdadeira co-mo uma interpretao das relaes en*re na-es do que como interpretao das relaes entre classes. Os pases ocidentais no esto condenados extino pela perda de seus im-prios e a revolta dos pases subdesenvolvidos. Estes, para assegurar seu prprio progresso, no necessitam declarar guerra ao Ocidente e nem do seu interesse faz-lo. As tenses e os conflitos, tanto econmicos como psicolgi-cos, so muitos e variados dentro das naes ou entre uma nao e outra, seja em matria de preo de mercadorias e de servios ou de dis-tribuio de riquezas. Mas o volume de rique-za no mais uma quantidade fixa, mas se expande com o crescimento na parte da huma-nidade que capaz de aplicar a cincia in-dstria. Com ou sem industrializao, haver sempre controvrsias mas, se se permitir que a razo prevalea, no haver luta de morte.

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    Uma Crtica de Moscou

    A ANLISE da evoluo econmica apresentada por W.W. Rostov baseia-se, como j se disse, no na natureza do sistema particular, mas nas fases do crescimento, distinguindo cinco est-gios : a sociedade tradicional, as condies pr-vias para o impulso inicial, o impulso inicial, (2) o caminhar para a maturidade, e a poca do consumo em massa.

    A teoria de Rostow tem muitos aspectos recomendveis. Ela substitui a obsesso de es-tgios determinados pela natureza do sistema econmico-social (i.e., feudalismo, capitalismo, socialismo) pela concepo de estgios deter-minados pelo nvel da renda nacional e da in-dustrializao. Combinando os resultados dos estudos de Colin Clark com sugestes prove-nientes de uma comparao da economia sovi-tica com as economias ocidentais, Rostow tenta descobrir o modelo de desenvolvimento seguido por todas as economias no processo ae moder-nizao. Ao mesmo tempo, a sua teoria evita as desvantagens do determinismo rgido; reconhe-ce a variedade das polticas de expanso em cada fase, bem como as muitas escolhas poss-veis que se apresentam, primeiro quando a ma-turidade atingida, e depois no perodo do consumo em massa. Mesmo assim, acho a teoria ao mesmo tempo demasiado restrita e dema-siado vaga.

    O conceito de sociedade tradicional pare-ce-me de pouca utilidade quando se o supe aplicvel a todas as comunidades subdesenvol-vidas. O nico aspecto que estas tm em comum

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  • , como vimos, que elas no so nem modernas nem industrializadas. Todas as sociedades do passado so colocadas dentro da categoria ni-ca de "sociedade tradicional", sejam elas as comunidades arcaicas da Nova Guin, as tri-bos negras da frica, ou as velhas civilizaes da China ou da ndia. Um conceito to amplo no realmente muito til e dificilmente se pode dizer que a tarefa de modernizao apre-sente os mesmos problemas em contextos to diferentes.

    Quanto ao segundo estgio as condies prvias para o impulso inicial podemos per-guntar se realmente importa numa fase parte. verdade que o impulso inicial supe mudanas profundas, sociais, psicolgicas, e polticas, assim como econmicas. Mas ou esta fase de-terminada por caractersticas quantitativas e econmicas (tais como a criao de uma infra-estrutura de comunicaes, um progresso na produo agrcola, e construo das primeiras fbricas), e nesse caso pode-se duvidar se ela realmente diferente da terceira, o impulso inicial propriamente dito, ou ento, se uma funo da modernizao poltica e psicolgica, i.., de uma nova atitude em relao ao traba-lho por parte dos operrios e dos governos, e neste caso no tanto em si mesmo, um estgio claramente definido quanto um processo cont-nuo que acompanha todas as fases de cresci-mento. Os governos franceses da dcada de trin-ta ainda pregavam a doutrina do equilbrio entre agricultura e indstria, revelando assim um surpreendente desconhecimento da natureza fundamental do modernismo. Mas, qualquer que seja a definio qualitativa e quantitativa

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    que se prefira, a compreenso desse estgio permanecer obscura se no se sair das gene-ralidades, porque os pontos de partida da mo-dernizao so profundamente diferentes con-forme o advento da sociedade industrial seja fruto de um desenvolvimento interno e espon-tneo ou, pelo contrrio, um resultado do con-tato com o Ocidente.

    Transio para Qu?

    O TERCEIRO estgio, o do impulso inicial propria-mente dito, considerado como um perodo de transio que conduz a um crescimento estvel e cumulativo; deve implicar no aumento da proporo da renda nacional dedicada aos in-vestimentos at pelo menos 10% da renda total e, em cada caso, ser realizado pelo rpido cres-cimento de certos setores da indstria, como por exemplo txtil ou ferroviria. O problema decidir se o impulso inicial, com suas trs caractersticas principais (o investimento de 10% da renda nacional, um setor industrial com uma rpida taxa de crescimento e o estabele-cimento de uma estrutura institucional adap-tada s necessidades da modernizao), pode ser calmamente discernido na histria econ-mica das atuais sociedades avanadas. Tem-se que admitir que os especialistas em histria econmica francesa nada encontraram que dis-tinguisse os anos de 1830/60 dos que os pre-cederam e os sucederam. No caso da Gr-Bre-tanha, diz o autor que o impulso inicial come-ou entre 1780 e 1800, a maturidade foi atin-gida em 1850 e o consumo em massa comeou em 1940. O intervalo entre a maturidade e o consumo em massa dito no ocorrer nos casoa

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  • mais recentes, e explicado pelas condies sociais e econmicas da Inglaterra no sculo XIX, tais como a desiguldade de rendas e a ausncia de bens de consumo durveis.

    Mas pode-se perfeitamente duvidar de que o conceito de impulso inicial, to dificilmente aplicvel histria passada dos pases avana-dos, seja realmente apropriado ao tempo pre-sente. Ser verdade que, quando o investimento excede uma certa proporo, o crescimento con-tnuo est garantido? Existe um ponto alm do qual uma economia se mantm num estado de crescimeanto, do mesmo modo que um avio permanece no ar? A experincia dos anos entre as duas guerras no deve ser esquecida, e de-vemos lembrar-nos de que a economia francesa declinou na dcada de trinta, embora tenha alcanado a maturidade em 1910. Um ndice de natalidade muito elevado ou muito baixo pode levar de roldo uma economia que come-ava a planar.

    De qualquer modo, pode-se muito bem du-vidar at que ponto os problemas e os estgios so os mesmos nos pases que criaram uma sociedade industrializada e naqueles que impor-taram ou imitaram a industrializao; at que ponto, por exemplo, pode o impulso do Brasil em 1960, levado a efeito com o auxlio de tc-nicas modernas e por uma populao que au-menta razo de mais de 3% ao ano, ser com-parado ao impulso inicial da Frana em 1830, quando os antibiticos, geladeiras e automveis eram desconhecidos. Os progressos na higiene aumentam as aflies da populao, e a pro-duo em massa dos bens de consumo estimula o prprio consumo. Os problemas podem ter

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    alguns pontos em comum, mas, ao mesmo tem-po, so notavelmente diferentes.

    Nenhuma destas consideraes, com as quais Rostow, de qualquer modo, provavel-mente concordaria, refuta sua teoria. Mas to-madas em conjunto, elas conduzem s seguin-tes concluses metodolgicas: teria sido pre-fervel comear por decidir sobre a natureza da sociedade industrial qual os estgios de crescimento esto conduzindo, em vez de to-m-los como fases idnticas de um processo de evoluo, cuja tendncia permanece incerta. Deveria ter sido feita uma distino entre cres-cimento espontneo e crescimento indireto, en-tre a criao e a imitao de uma sociedade in-dustrial. Teria tambm sido til determinar os aspectos comuns a todas as sociedades em pro-cesso de modernizao, bem como os diferentes padres de crescimento. Finalmente, teria sido sensato levantar diretamente o problema dos vrios tipos possveis de sociedade industrial.

    Os Perigos Permanentes

    VERDADE que Rostow tem o cuidado de no afirmar que a Unio Sovitica se tornar mais democrtica medida que caminha para o est-gio do consumo em massa, nem que, por outro lado, os Estados Unidos se tornaro mais socia-listas medida que o capitalismo americano atinge \uma mais plena maturidade. Pelo con-trrio, le indica que vrias possibilidades es-to abertas para os pases que chegaram a um certo estgio do desenvolvimento, Uma vez atin-gida a maturidade, um pas pode escolher uma poltica externa ambiciosa, um Estado voltado

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  • para o bem comum e caracterizado por leis so-ciais, ou uma melhoria no padro de vida. No estgio do consumo em massa, seus recursos so ainda maiores e, conseqentemente, a mar-gem de escolha ainda mais larga. Pode-se di-zer, por exemplo, que a nao americana, ou melhor ainda, as famlias americanas, decidi-ram ter mais filhos; o aumento resultante da populao infantil deu novo estmulo ao con-sumo.

    Mas na minha opinio, Rostow no foi bas-tante longe na sua anlise das vrias altera-tivas histricas. Os marxistas sustentaram erroneamente que o imperialismo foi uma con-seqncia das contradies do capitalismo, e as guerras europias, uma conseqncia de riva-lidades imperialistas. Rostow no v com bons olhos qualquer ligao estrita e determinista entre as guerras europias e uma fase parti-cular de crescimento, mas apresenta o imperia-lismo como uma das tentaes da maturidade econmica, e a melhoria do padro de vida, co-mo um substitutivo para as ambies externas. Para mim, a guerra e o imperialismo so pe-rigos permanentes, inseparveis de um sistema internacional que repousa sobre soberanias mi-litares rivais. difcil decidir se o aumento de recursos, que o resultado do crescimento, in-centiva as naes na direo do pacifismo, ao lhes proporcionar os instrumentos de prospe-ridade, ou as incitam a adotar uma poltica agressiva, aos lhes permitir acumular os meios de destruio.

    Analogamente, escreve Rostow: "O comu-nismo aparece... como uma forma particular-mente inumana de organizao poltica capaz

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    de iniciar e sustentar o processo de crescimento em sociedades onde o perodo das condies pr-vias no produziu uma classe mdia comercial significativa e ousada e um consenso poltico adequado entre os lderes da sociedade. uma espcie de doena que pode atacar uma socie-dade em fase de transio, se ela no consegue organizar, efetivamente, seus elementos inter-nos que esto preparados para levar avante a tarefa da modernizao." No h dvida de que a Revoluo Russa de 1917 ocorreu durante um perodo de confuso criado pelo incio da mo-dernizao. Mas isso no uma prova conclu-siva de que um sistema de partido nico seja inadequado para uma sociedade tecnolgica avanada nem tambm altera o fato de que, uma vez que uma das grandes potncias se te-nha convertido ao sistema e ideologia comu-nista, outros sero arrastados pelo mesmo ca-minho, no por circunstncias internas mas por causa da influncia que pode exercer uma po-tncia dominante.

    O crescimento de cada nao tem a sua prpria histria. A fortiori, a modernizao da sociedade humana considerada como uma unidade tem tambm a sua histria, que ao mesmo tempo nica (einmalig) e peculiar (ein-zigartig); as naes atrasadas no repetem as experincias das vanguardeiras, mas esto su-jeitas presso material e moral exercidas pelas naes altamente desenvolvidas. Quando a Frana estava a pique de "levantar vo", no teve que considerar os respectivos mritos dos padres de crescimento ocidental (europeu ou americano), sovitico, chins ou japons.

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  • O Modelo Sovitico e as Alternativas

    NA MINHA OPINIO, a tentativa de Rostow para definir os "estgios de crescimento", como se todo pas devesse atravessar as mesmas fases e seguir o mesmo caminho, ao mesmo tempo prematura e metdicamente defeituosa. Eu pre-feriria- partir do conceito de sociedade indus-trial e, depois de fazer uma distino grosso modo entre um estgio inicial e um estgio de maturidade, tentar desenvolver os vrios tipos de situao pr-moderna, assim como as diver-sas modalidades de padres e polticas de cres-cimento.

    Este emprego analtico e crtico da teoria do desenvolvimento seria o ideal para lanar luz sobre trs problemas: Qual o sistema eco-nmico ou poltico que melhor satisfaz s exi-gncias de um determinado estgio? Que tipo de sistema mais provvel ocorrer em tal es-tgio? Finalmente, se verdade que pases di-ferentes seguem diferentes caminhos de desen-volvimento, ser que eles tendem a se asseme-lhar quando a meta atingida?

    As duas primeiras perguntas so inteira-mente distintas entre si, exceto nas mentes dos otimistas, que, confiantes na racionalidade da Histria, supem invariavelmente que o que mais desejvel mais provvel de acontecer.

    Uma opinio freqentemente expressa que o tipo sovitico de sistema poltico e eco-nmico o mais eficiente durante o estgio inicial de desenvolvimento. Esta opinio, em-

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    bora largamente difundida, entretanto sur-preendente. Ou melhor, parece justificvel so-mente se acompanhada de um certo nmero de reservas. Economicamente, um sistema do tipo sovitico tem, inegavelmente, uma vantagem e um defeito principais. Sabemos por experin-cia que le pode construir fbricas e transferir o excesso de mo-de-obra agrcola para as ci-dades e para a indstria. Mas em lugar nenhum conseguiu ajustar os camponeses coletiviza-o e remediar a relativa deficincia de vveres. A populao chinesa sofre atualmente de subnu-trio geral, e desde 1960 o pas tem comprado, anualmente, vrias centenas de milhes de d-lares em alimentos, especialmente cereais, do exterior. A crise no to sria nos Estados europeus sovietizados, mas ela existe, como corroborado pelos discursos de Kruschev e pela recente (1962) alta nos preos das comodida-des bsicas. Quando o primeiro plano qinqe-nal foi apresentado, o governo sovitico decidiu pela coletivizao da agricultura, no tanto tal-vez por convico doutrinai quanto por um de-sejo de aumentar a percentagem da safra des-viada das necessidades da populao do campo para alimentar a urbana, que havia aumentado graas ao afluxo de operrios indstria. A percentagem foi, de fato, aumentada de 15% a cerca de 34%. Mas mesmo se no se considerar o fato de que a declarao de guerra aberta aos camponeses causou a destruio dos animais e a fome generalizada, ainda verdade hoje que o mtodo coletivista no eficiente. O montante da produo obtida da terra no au-mentou seno muito ligeiramente e as pequenas propriedades camponesas, que representam uma

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  • proporo absurdamente pequena da rea agr-cola total, continuam a produzir a totalidade de carne e laticnios. A Rssia, que tinha, de incio, uma base agrcola mais vasta, conse-guiu emergir da crise da coletivizao e atingir um objetivo mnimo, pelo menos. Mas na China, onde as condies iniciais eram muito menos favorveis (um alto ndice de crescimento de-mogrfico, um equilbrio menos favorvel entre a rea cultivada e o volume de populao, e uma tradio* de agricultura intensiva), h uma ameaa de carncia, tanta, alis, que o rendi-mento industrial no est mais avanando, mas tem diminudo durante os ltimos dois anos.

    A Prioridade Absoluta do Crescimento

    A VANTAGEM do sistema sovitico, se se consi-dera o crescimento, no como uma prioridade, mas como um absoluto, est no nvel poltico: na organizao da educao em massa, na cria-o de uma burocracia centralizada trabalhando sobre bases racionais juntamente com uma po-derosa autoridade estatal assente sobre um par-tido nico, e no uso simultneo da coao e do entusiasmo organizado para criar e manter a vontade coletiva de se desenvolver e assegurar a aceitao dos sacrifcios envolvidos na edi-ficao o Estado socialista. No subestimo os monumentos de ao e concreto que os pla-nejadores soviticos conseguiram afinal erigir, mas o custo foi considervel, de tal modo que qualquer um que se mantenha fiel herana humanista e liberal do Ocidente pode legitima-mente esperar no somente em seu prprio interesse, mas tambm por causa dos povos di-

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    retamente envolvidos que os pases subde-senvolvidos garantiro seu impulso econmico inicial sem se modelar pelo comportamento de Stalin.

    Alm disso, no h nenhuma razo geral para que os pases em desenvolvimento devam ser condenados a passar por uma fase sovi-tica. Entre as alternativas preferveis, o exem-plo mais impressionante de sucesso dado pelo Japo, no apenas o Japo contemporneo, on-de o ndice anual de crescimento da renda l-quida nacional maior do que 10% (durante muitos anos foi mais de 14%) , mas tambm o Japo da Restaurao de Meiji, entre 1870 e 1930. Durante esse perodo, sob a influncia de um grupo esclarecido da classe dominante tradicional, o Japo modernizou suas institui-es de governo, seu servio civil, sistema le-gal, escolas e universidades. Politicamente, o regime era autoritrio, mas com instituies representativas e uma ampliao gradativa das liberdades individuais e intelectuais. Economi-camente, a reforma agrria revolucionou a si-tuao dos camponeses, e o capital necessrio industrializao era tirado em parte dos anti-gos proprietrios de terras e em parte das pou-panas acumuladas por todas as classes. O pon-to essencial era o carter global da transforma-o; as reformas, tais como a educao univer-sal e compulsria e a racionalizao do sistema legal e do servio pblico, eram impostas de cima pra baixo; graas solidariedade entre as grandes famlias envolvidas nos negcios do Estado, criou-se uma classe de entrepreneurs semipblicos e semiprivados; antigas atitudes eram, ao mesmo tempo, mantidas e renovadas

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  • atravs de uma sntese do tradicionalismo e da ocidentalizaro.

    As Condies para o Impulso Inicial

    LUZ DESSA experincia, seria possvel enume-rar as condies que so necessrias em toda parte que ocorra o "impulso inicial". So elas: o estabelecimento de um Estado moderno, isto , um Estado no qual o servio pblico e a le-gislatura tenham sido racionalizados, onde a educao no estilo ocidental tornou-se difundi-da, onde exista uma classe de entrepreneurs e onde o capital necessrio ao investimento te-nha sido acumulado. No com freqncia que uma classe dominante, sobrevivente do perodo pr-moderno, mostra-se capaz de tal dinamis-mo revolucionrio. Mas tambm claro que v-rios sistemas, e no apenas o comunista, podem fornecer esse conjunto de condies.

    Qual o sistema mais plausvel? Acho que no h nenhuma reposta definitiva para esta pergunta. No sculo XIX, os pases que esta-vam a pique de "decolar" no mostraram ne-nhuma necessidade de uma tcnica especifica-mente sovitica. Mesmo a Rssia tzarista ha-via, com sucesso, comeado a se industrializar, sem recorrer s medidas extremas que, mais tarde, caracterizaram a era de Stalin. Eu no chegaria a sustentar, como faz Rostow, que a Rssia tzarista teria resistido com sucesso Revoluo Bolchevique se no tivesse havido a guerra de 1914 ou se ela tivesse ocorrido dez anos mais tarde. Mas no absurdo dizer que dez anos mais tarde, graas ao progresso eco-

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    nmico que j estava a caminho, o regime tza-rista teria sido muito diferente e teria estado muito menos em perigo diante do tipo de golpe que deu a Lenine e seus companheiros a sua chance, depois de trs anos de guerra.

    A probabilidade de um sistema do tipo comunista vir a medrar no mais depende in-teiramente das condies internas do pas em questo, mas tambm da situao mundial. No princpio deste sculo, modernismo significava liberdade poltica e a existncia de um parla-mento ; agora significa industrializao e pla-nejamento. A posio geogrfica do pas e o condicionamento ideolgico de seus revolucio-nrios determinam agora, e continuaro a de-terminar, o sistema adotado por qualquer pas em particular, tanto ou mais do que os fatos bsicos, demogrficos ou econmicos, ou as ne-cessidades do desenvolvimento.

    De um modo bastante paradoxal, uma con-firmao deste argumento fornecida por Cuba. De todos os pases latino-americanos, Cuba era um dos que menos necessitavam de uma revo-luo conforme o modelo sovitico. A Ilha no era superpovoada; em matria de renda por habitante, estava em terceiro lugar entre os pases latino-americanos; obtinha cerca de seiscentos milhes de dlares por ano pela ex-portao de acar e uma classe mdia estava surgindo nas cidades. A falta de instruo era aindx comum nos distritos do pas (mais de 40% no sabia ler nem escrever). Era impor-tante que a economia no dependesse de um nico produto agrcola e era desejvel que a industrializao fosse realizada com a interven-o do capital e dos etrepreneurs cubanos de

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  • modo a reduzir a dependncia para com a Am-rica, mas nenhuma revoluo era necessria para garantir o impulso inicial. Mesmo a na-cionalizao das corporaes americanas no tornaram inevitvel o rompimento com a Am-rica.

    A Dialtica do Fidelismo

    NO FOI A necessidade econmica, mas a dial-tica do mal-entendido e da hostilidade e a fora dinmica das idias e das personalidades que fizeram com que a revoluo, simbolizada e expressa por Fidel Castro, acabasse na sovie-tizao, depois de ter sido ativamente promovi-da pelas classes mdias urbanas. Os observa-dores divergem do grau de responsabilidade a ser atribudo falta de tato da poltica ameri-cana ou ao sentimento faccioso por parte do prprio Fidel Castro (ou dos comunistas Raul Castro e Che Guevara), no desenrolar dos acon-tecimentos entre 1959 e 1961. Mesmo se se est inclinado a pensar como eu, que uma poltica mais compreensiva por parte da Amrica no teria alterado o resultado, sem-pre persistem e persistiro dvidas a respeito. Mas seja qual fr a interpretao finalmente adotada impossvel desmerecer o papel exercido por um ou mais indivduos. Fidel Castro, por exemplo, depois que tomou o poder, dissolveu todos os partidos exceto o Partido Comunista e recusou-se a providen-ciar uma organizao para o seu Movimento de 26 de Julho. Foi le, em ltima anlise, quem escolheu ser o primeiro chefe de uma Repblica Sovitica no Hemisfrio Ocidental,

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    em vez de ser o fundador de uma repblica de classe mdia prspera e liberal. Megalomania, antiamericanismo, o "progressismo" poltico, tpico dos intelectuais latinos, estejam eles s margens do Sena, em Havana, ou no Rio de Ja-neiro estas vrias tendncias e motivos sem dvida respondem pelas palavras e pelos atos de um homem que, o que quer que o futuro guarde, responsvel por um evento que con-tar na Histria.

    Pode-se perguntar se o presente regime cor-responde s necessidades de Cuba no que res-peita modernizao. S a experincia mos-trar. Por enquanto, o regime enfrenta difi-culdades considerveis, mas estas, de qualquer modo, pouco provam, no que toca tecnologia. evidente que, substituindo a dependncia para com a Amrica pela dependncia para com o bloco sovitico, importando por mar de pa-ses distantes e trocando a maior parte da co-lheita de acar em vez de vend-la por d-lares, o regime de Castro est impondo a si mesmo uma tarefa que , para dizer o mnimo, difcil. No a tcnica de modernizao que est em questo, mas uma poltica diplomtica vin-culada a um rompimento com o Hemisfrio Ocidental e a uma integrao no bloco russo ou chins.

    O Modelo para o Planejamento \

    ISSO NOS LEVA a uma segunda pergunta: qual o sistema mais provvel na fase inicial de industrializao? Aqui, tambm, impossvel dar uma resposta geral e definitiva. Pode-se tomar como garantido que, pelo menos no mun-

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  • do moderno, as primeiras etapas da moderni-zao envolvem um maior grau de interveno estatal e o exerccio de um papel mais impor-tante por parte do funcionalismo e do investi-mento pblicos, onde faltam os entrepreneurs e o capital privado. tambm improvvel que os pases em processo de desenvolvimento con-sigam aliar instituies representativas, sufr-gio universal e participao ativa no governo por parte das massas. Onde as massas j so ativas, provvel, para dizer o mnimo, que vingue uma ou outra das muitas formas de sis-tema autoritrio com partido nico. Mas os inevitveis aspectos polticos e econmicos de tal sistema de modo nenhum importam na so-vietizao. As chances de perigo de uma revo-luo do tipo sovitico num pas em processo de desenvolvimento aumentam ou diminuem de acordo com vrios fatores: o contexto interna-cional, o comportamento da classe dominante, a composio do Partido Comunista, e o papel exercido por indivduos e incidentes.

    Em algumas reas, o antiamericanismo fa-vorece os partidos que pregam a Unio Sovi-tica como modelo, j que o povo levado a pensar erroneamente que h uma espcie de diferena absoluta entre a Amrica e a Rssia, e assim a rejeitar a possibilidade de solues intermedirias; sua averso pela Amrica traduzida em simpatia pela Unio Sovitica. Alm disso, os padres intelectuais atuais fa-vorecem o planejamento mais do que o mer-cado livre, a indstria mais do que o parla-mento e a autoridade mais do que os direitos do indivduo.

    Dentro de um determinado pas, a tenso

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    aumenta ou diminui com os fatos da situao a relao entre o tamanho da populao e os recursos totais. Segundo suas tradies, cren-as e temperamento, as massas so mais ou menos inclinadas a solues violentas, mas, em ltima anlise, o fator dominante talvez o poltico mais do que o econmico. A fraqueza, a inpcia e as contradies dos governantes ajudam e facilitam os momentos subversivos. Se as massas estiverem sob a impresso de que o desenvolvimento est paralisado pela estrutura social, iro aos extremos assim que emergirem de sua longa passividade. errado supor que o ndice de crescimento determina a atitude das massas, que esto satisfeitas quan-do le alto e rebeldes quando baixo. Ao con-trrio, ndices de crescimento so apenas m-dias estatsticas e no decidem o comporta-mento turbulento, passivo ou resignado da po-pulaa e das vrias classes num determinado pas. O que certo neste nvel de generalizao que, hoje mais do que nunca, as oligarquias corruptas e sem autoridade, que no conse-guem introduzir as reformas que se sentem economicamente necessrias e moralmente im-perativas pelo corpo da nao, esto cavando sua prpria sepultura.

    Nada h de surpreendente nesta concluso. A principal virtude de um regime sovitico, no que diz respeito ao crescimento, poltica mais do que econmica. Estabelece uma forte auto-ridade no pice e, por meio do partido nico, assegura a transmisso de diretivas atravs da sociedade. Quando o regime existente in-capaz de governar ou de transmitir suas ordens, o modelo sovitico parece oferecer uma soluo.

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  • Talvez possamos ir mais alm, fazendo uma pergunta semelhante sobre as ltimas fa-ses do desenvolvimento. Quando uma comuni-dade atingiu um certo estgio de maturidade, exige algum regime particular, isto , que re-gime mais conveniente e qual mais provvel? Esse tipo de indagao de muito longo alcan-ce. Se nos colocamos de acordo em que a .cria-o ou o desenvolvimento de uma sociedade in-dustrial o alvo de todas as naes, ser que esse alvo suficientemente definido em si mes-mo para que possamos concluir que todos os pases que alcanam um estgio comparvel de desenvolvimento tendem a se assemelhar mu-tuamente? Em outras palavras, ser que os conflitos entre os diferentes tipos de regime tendem a desaparecer medida que o progresso econmico se torna mais marcado?

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    O Fim do Ideologia

    OUVEM-SE as opinies mais contraditrias so-bre a situao ideolgica atual. Algumas pes-soas sustentam que estamos envolvidos numa luta de morte provocada pelo choque entre con-cepes do mundo incompatveis, e o que est em causa o controle das inteligncias e toda a estrutura do futuro. Outros asseguram que as ideologias esto morrendo e que todas as naes gradativamente a compreender no apenas que so interdependentes mas tambm que suas realizaes e aspiraes so seme-lhantes. Formularei minhas opinies prprias sob quatro ttulos.

    As Diferenas Esto Nos Meios 1 No nvel social e econmico, todos os

    pases de todas as latitudes e origens raciais expressam as mesmas aspiraes, fundamen-tadas em valores basicamente iguais. Passou o tempo em que um Marechal de Frana po-dia pregar um retorno terra. Ningum hoje ousaria ser hostil industrializao e urba-. nizao. No h Estado ou regime que no pro-clame a sua ambio de aumentar e melhorar sua renda e de assegurar uma distribuio mais justa da produo assim aumentada. Isso pode ser, em alguns casos, o tributo que o vcio paga virtude, mas pode tambm ser um reconhe-cimento efetivo de valores que so hoje aceitos como inevitveis. Ao mesmo tempo, o racismo condenado em quase toda parte, em palavras se no em fatos, como se ningum mais ousasse negar o destino universal da humanidade.

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  • Conseqentemente o enflito entre os sis-temas sovitico e ocidental, pelo menos nos assuntos sociais e econmicos, surge menos de diferenas nos fins do que nos meios. Os de-fensores da sovietizao proclamam que somen-te a revoluo pode assegurar o pleno desen-volvimento das foras produtivas e a distri-buio equnine dos frutos do desenvolvimento. Pregam ainda que a revoluo s pode ser levada a cabo por um Partido Comunista todo-poderoso. Finalmente, argumentam que s a revoluo pode garantir a liberdade, j que, na ausncia da revoluo, os homens esto conde-nados explorao e escravizao pelos pro-prietrios dos meios de produo e pelos deten-tores dos monoplios. Todas essas afirmativas so, na minha opinio, sem fundamento. O sistema sovitico, com seus mtodos cruis e sua abolio de qualquer liberdade pessoal, s me parece desculpvel como um meio, inevitvel talvez, mas em si mesmo deplorvel, de realizar uma rpida modernizao.

    verdade que o conflito entre as duas metades do mundo tem um significado muito maior no plano religioso. O Ocidente no , propriamente falando, cristo, embora tenha muitos laos com a cristandade. Por outro lado, no oficialmente ateu ou hostil religio. Os Estados ocidentais adotam, como regra, uma atitude de neutralidade em relao Igreja ou em relao f do indivduo; no se deixam retardar por convices religiosas que se mis-turam com verdades polticas. O Estado Sovi-tico diferente, pois abertamente hostil s igrejas e impinge como parte integrante de uma verdade poltica proclamada como a ver-

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    dade oficial e nacional uma ideologia que exclui toda e qualquer crena no transcendente. Numa viso de amplo alcance, o verdadeiro conflito entre a Unio Sovitica e o Ocidente diz respeito no tanto aos mtodos de moderni-zao econmica quanto aos direitos que pos-suem os homens de formar sua prpria concep-o do seu destino, para alm e acima da edificao de pirmides de ao e de concreto.

    O Slogan Desenvolvimento

    2 Nos pases ocidentais, as querelas ideolgicas herdadas do sculo XIX ou do prin-cpio do sculo XX perderam atualmente sua virulncia. O debate intelectual prossegue sobre at que ponto o planejamento deva ter prece-dncia sobre os mecanismos de mercado, ou a propriedade coletiva dos meios de produo so-bre a propriedade privada, mas mesmo entre os economistas profissionais apenas um peque-no nmero de especialistas se entusiasma pela questo, e ela parece ter perdido todo interesse para a massa da populao. Na Europa Ociden-tal, a experincia dos ltimos quinze anos mos-trou que desenvolvimento hoje o slogan tanto da direita como da esquerda e que, mesmo quan-do lhe cabe repartir a renda nacional, a es-querda no a nica a querer reduzir as desi-gualdades.

    Num certo sentido, no seria errado de-finir os pases avanados como aqueles em que a esquerda e a direita no mais se opem na questo do desenvolvimento, porque este pode realizar-se sem mais mudanas fundamentais. Alguns sistemas, profisses ou empreendimen-

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  • tos podem ser desfavorvelmente afetados pela expanso, mas seus representantes tm tanta probabilidade de tender para o poujadismo, que considerado um movimento de direita, quanto para o comunismo, que considerado de esquerda.

    O Vivo e o Morto

    3 certo dizer que as ideologias esto mortas- nas sociedades avanadas do Ocidente (se se toma uma ideologia como uma interpre-tao da histria universal), mas a afirmao no se aplica aos pases em processo de desen-volvimento. Estes so presa de uma contro-vrsia que to apaixonada quanto confusa.

    No somente eles hesitam entre os vrios padres de desenvolvimento apresentados pela poca, como tambm tendem a confundir a pro-cura de um mtodo apropriado aos seus pro-blemas particulares com a escolha entre os modelos estrangeiros de que se gabam sistemas rivais de propaganda. Ao mesmo tempo, a etapa inicial do desenvolvimento econmico geralmen-te exige transformaes sociais bastante radi-cais. Freqentemente acontece que certos slogans, que primeira vista parecem de car-ter esquerdista, possuem na realidade um sen-tido conservador ( o caso, por exemplo, de quando as instituies representativas esto sob o domnio dos plutocratas e dos grandes proprietrios de terras). H um perigo de que os valores polticos relacionados com a liberda-de possam contradizer, ou paream contradizer, os valores econmicos em conexo com o de-senvolvimento.

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    A Perda do lan

    4 Como so afetadas as relaes entre Oriente e Ocidente e o grande cisma ideolgico, pelo fato de que os pases avanados tendem reconciliao ideolgica, enquanto que os pases em processo de desenvolvimento encon-tram-se ainda na agonia da disputa ideolgica? Pode-se dizer que a Unio Sovitica, por efeito do progresso econmico, est perdendo a in-transigncia de sua juventude revolucionria? Como sabemos, conforme Krusehev, os netos de Kennedy estaro vivendo sob um sistema socialista. Sabemos tambm que, segundo Kennedy, os netos de Krusehev estaro viven-do num pas livre, isto , sob um regime do tipo ocidental. Se temos que decidir entre essas duas afirmativas, eu optaria sob o risco de ser acusado de wishful thinking pela que, por acaso, coincide com as minhas preferncias. Parece-me que o senso comum e a probabilidade esto do lado de Kennedy. Por que deveria uma sociedade prspera como os Estados Unidos aceitar os rigores da sovietizao? Para que essa suposio assuma pelo menos uma vaga verossimilhana, somos obrigados a imaginar ou uma derrota militar americana ou ento uma outra depresso pior que a primeira. Supondo que no ocorram tais catstrofes, podemos es-perar que a Rssia se torne mais parecida com a Amrica. medida que a revoluo distante vai esmorecendo e que o padro de vida vai subindo, possvel que o regime sovitico tenha que permitir maior amplitude aos desejos dos consumidores, dar mais importncia natureza

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  • econmica dos investimentos, e permitir maior liberdade aos indivduos e s idias.

    Mas por que devemos decidir entre pre-tenses rivais, que no podem ser ambas ver-dadeiras e que podem ser ambas falsas? No h motivo para acreditar que todas as sociedades avanadas devam ser do mesmo tipo e que a Histria deva pr o seu selo sobre a vitria final do Kremlin ou do Capitlio. O stalinismo, na sua forma extrema e mesmo aberrante, no facilmente reconcilivel com as necessidades de uma sociedade industrial altamente raciona-lizada, mas o sistema de partido nico e uma ideologia estatal o so. Dentro de uma estrutura soi-disant marxista, h lugar para uma grande quantidade de discusso ideolgica, do mesmo modo que uma competio organizada pode existir dentro do contexto de um partido nico.

    Assim sendo, a principal lio a ser tirada tem mais a natureza de um conselho prudente do que de uma profecia. Por muito tempo, de-pois que o mundo se tenha unido pela tecnolo-gia, os homens continuaro a acreditar em deuses rivais. Para sobreviver, eles precisam aprender a conviver com suas diferenas. Este, claro, o sentido da coexistncia pacfica. Mas para que a coexistncia seja genuinamen-te pacfica, precisa tambm ser ideolgica. Em outras palavras, os crentes tm que aceitar o princpio da tolerncia mtua. A guerra, j foi dito, comea nas almas dos homens. A paz, que est acima da coexistncia, comear quando cada lado tolerar os direitos e as opinies do outro.

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    O Significado da Racionalidade

    A SOCIEDADE industrial ou sociedade cient-fica, como est comeando a ser est longe de ser universal, mas o potencialmente, no sentido em que se tornou hoje uma condio sine qua non do poder e da prosperidade. As naes que rejeitam o desenvolvimento cient-fico esto escolhendo abandonar o caminho da Histria pela estagnao.

    Se, ento, uma forma particular de socie-dade parece destinada a permear todas as civilizaes, se todas as raas desejam adotar os mesmos princpios de conduta, de trabalho e de organizao, por que ento no o conceito evolucionista da Histria mais geralmente acei-to do que nunca? O que dissemos sobre desen-volvimento e subdesenvolvimento mostra que a imagem do futuro no difere daquela ineren-te s grandes doutrinas do sculo passado que o fim de todas as histrias uma histria, que todas as sociedades afinal se tornam uma sociedade e encarnam os mesmos princpios

    .bsicos. Como que a teoria econmico-socio-lgica do desenvolvimento no conduziu a um reflorescimento das filosofias evolucionistas ou da crena to forte no sculo XIX na idia do progresso?

    H uma poro de respostas a essa per-gunta. Em primeiro lugar, a diferena entre os conceitos usados no passado e os de hoje. As palavras "desenvolvimento", "industrial", "ci-entfico" soam do mesmo modo que "racional"

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  • ou "moral"? A industrializao inevitvel, sua tendncia se tornar generalizada. Isso o mesmo que se tornar mais racional?

    A Racionalidade dos Meios

    Nosso ponto de partida com essa palavra ambgua. Uma atitude que, de um ponto de vista, racional pode ser irracional de outro. racional que nos armemos para vencer um inimigo, mas ser racional que os beligerantes devam usar bombas de fsforo para incendiar cidades, ou bombas atmicas para matar de-zenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo? Em outras palavras, a racionalidade incondi-cional estritamente um meio; e, por enquanto, deixaremos de lado o problema do fim para o qual se dirige a racionalidade dos meios.

    Com essa reserva, dificilmente se poder negar que a humanidade est aplicando hoje mais conhecimentos cientficos do que no passa-do, e que o nosso conhecimento cientfico maior e mais exato do que em qualquer poca anterior. E mais, o conhecimento cientfico est avanan-do cada vez mais rapidamente se no por outra razo, pelo menos porque o nmero de cientistas aumenta com uma velocidade cada vez maior.

    Como quer que se defina racionalidade, pa-rece evidente que as cincias naturais so o produto da razo. A acurcia dos conceitos, o raciocnio perfeito, o refinamento sem fim das idias, o relacionamento entre campos aparen-temente desconexos, a tendncia sistmati-zao dos resultados, combinada com a presteza em adotar novas hipteses ou princpios bsi-

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    cos tudo isso tpico do que entendemos hoje como "razo". Poderamos mesmo ir mais longe e afirmar que hoje em dia se define razo pela cincia, mais do que a cincia pela razo, porque a cincia uma realidade que podemos aprender, enquanto que a razo (se ela algo mais do que a habilidade de pensar cientifica-mente) admite vrias interpretaes.

    Outro ponto que precisa ser explicado o maior progresso cientfico desde o sculo XVI, e especialmente no sculo XX. Ningum pensa que os gregos, os chineses ou os hindus possuam uma faculdade de raciocnio diferente da do homem moderno, ou que simplesmente no a possuam. Mas o passo decisivo, alm do qual o acmulo de conhecimentos parece quase certo, foi dado apenas h poucos sculos, num setor particular da civilizao. No chegaremos mes-mo a aventurar uma teoria quanto a essa rea-lizao particular do mundo ocidental na Idade Moderna, mas pode-se dizer que o progresso das cincias naturais e o crescente sucesso da pesquisa cientfica tm mais a seu favor do que o raciocnio correto, a definio dos con-ceitos, a sistematizao dos resultados e a fa-culdade crtica.

    O progresso cientfico depende do estabe-lecimento de uma certa relao entre o pensa-mento abstrato e a experincia e esta relao, por sua vez, s pode ser estabelecida por um tipo particular de raciocnio , o que prefere proposies quantificveis e exige que as explanaes se submetam confirmao u refutao pelos fatos. Lvy-Bruhl talvez es-tivesse errado ao pensar que a mente do ho-mem primitivo diferia da do homem civilizado.

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  • No tanto que a faculdade de raciocnio das mentes primitivas seja diferente da nossa, mas antes que suas hipteses bsicas, sua metaf-sica eram diferentes. provvel que os pen-sadores de hoje sejam, mesmo superficialmente, mais racionais do que seus predecessores (quero dizer que o seu raciocnio mais correto e seus conceitos mais claramente definidos). Este, entretanto, no o ponto principal. Eles so superiores porque combinam o pensamento abstrato com a experincia, por causa do seu mtodo de interrogar a natureza e de tomar como certo que a inteligibilidade deve ter uma essncia filosfica determinada. Em resumo, a racionalidade na cincia est relacionada com a metodologia, no sentido mais amplo do termo. A metodologia, contudo, est ligada ao que se pode chamar uma concepo filosfica da ver-dade, sendo tanto a metodologia quanto tal concepo confirmadas pelo sucesso.

    Analogamente, devemos admitir que a tecnologia e a indstria so racionais. Sempre, desde que se tornou "humano", o homem teve que obter o seu sustento entregando-se a uma atividade ao trabalho. Seu trabalho tem sido mais ou menos eficiente, incluiu a transforma-o dos recursos naturais e a criao de um suprimento regular de recursos sintticos, e deu ao homem um maior domnio sobre o meio ambiente ou pelo menos uma crescente in-dependncia em relao a le. desnecessrio repetir as palavras de Auguste Comte: "O ca-minho do conhecimento para o poder uma estrada reta." A racionalidade do conhecimento conduz a um maior poder. Como meio, o au-mento de poder , por definio, aumento de

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    racionalidade. Deixando de lado, por enquanto, as conseqncias diretas e indiretas do progres-so tecnolgico, vemos, seja na agricultura ou na indstria, que o progresso em si mesmo marca o desenvolvimento da racionalidade pr-tica, exatamente como o acmulo de conheci-mentos indica o desenvolvimento da racionali-dade terica.

    A Racionalizao da Vida

    H uma transio lgica da racionalidade tcni-ca, tal como se manifesta na cincia e na pro-duo, para a racionalidade da organizao social, ou pelo menos de alguns de seus aspectos. No ser racional aumentar o rendimento co-letivo repartindo entre os indivduos as tarefas a serem realizadas? E esta diviso do trabalho no ser essencialmente o mesmo que combinar recursos fsicos, materiais ou instrumentos? O Direito e a administrao tambm esto-se tor-nando racionais em certos sentidos da palavra.

    A racionalizao do sistema legal implica em que as definies dos conceitos e, conse-qentemente, do que permitido e do que proibido, sejam exatas, que o raciocnio relativo s concluses a serem tiradas dos conceitos seja exato, e que a sistematizao seja to com-pleta quanto possvel. Entretanto, tal tendncia no to claramente marcada no Direito quan-to na cincia e na tecnologia. A racionalidade cientfica ou tcnica no comensurvel com a racionalidade jurdica tal como foi descrita acima. A propriedade coletiva e a primazia do interesse pblico sobre os direitos individuais acarretam um declnio da racionalidade jUrdi-

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  • ca, em comparao com as sociedades da Euro-pa do sculo XIX. Mesmo no Ocidente, devido s transformaes nos sistemas econmicos e nas idias sociais, o Direito talvez menos consistente do que era h meio sculo, seus princpios menos uniformes, e as dedues da doutrina legal ou das cortes menos incontes-tveis.

    O Direito em qualquer sociedade cientfica, quando comparado com o Direito nas sociedades primitivas ou naquelas que no so seculariza-das ou diferenciadas, mais racional (isto , abstrato, seus conceitos so bem definidos e seus raciocnios, corretos). Mas sem examinar mais de perto, no estamos justificados a dizer que o Direito est evoluindo na direo de uma racionalizao cada vez maior. Se o Direito relativamente consistente ou inconsistente, mais ou menos previsvel, se seus princpios so mais ou menos claros e se as aplicaes desses prin-cpios se deduzem deles de uma maneira mais ou menos consistente tudo isso depende de se saber se a ordem social est em transforma-o ou est temporariamente estabilizada e de se identificar o aspecto da vida individual ou da sociedade estatal que mais influi nessa ordem.

    Quanto administrao, v-se logo que ela se est tomando cada vez mais complexa. A previdncia social e as leis relativas a impos-tos cobrem um campo cada vez mais vasto e requerem um nmero cada vez maior de fun-cionrios. Esses tipos de administrao so mais racionais no sentido em que as leis e os regu-lamentos procuram abranger um grande nme-ro de casos, estabelecer princpios aplicveis a

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    um maior nmero de situaes humanas, e delimitar tanto os direitos como as obrigaes dos indivduos, apesar da infinita variedade de atividades s quais os homens se entregam. No entanto, quanto mais se tenta nivelar os regu-lamentos com a infinita riqueza da atualidade tanto mais se registram fracassos ou quase isso. A racionalidade est indubitavelmente fazendo progressos, embora principalmente como um fim em si mesmo; e em funo da hierarquia desses fins que so julgados e com razo, a meu ver os resultados obtidos, para indicar o aumento de racionalidade, em-bora, sob alguns aspectos, esses resultados se-jam menos satisfatrios do que nas sociedades anteriores em que as leis abrangiam um campo menos vasto da vida humana.

    Em suma, a produo e a organizao de tcnicas e servios necessrios para a produ-o so mais racionais do que nunca. Mas quais so as conseqncias sociais e humanas dessa racionalizao, e o mpeto incontrolvel da inveno tecnolgica? Ou, em outras pala-vras, uma sociedade racional se seu nico fim produzir o mais possvel?

    Racionalidade e Progresso

    O PROBLEMA que surge das anlises precedentes pode ser x colocado nos termos mais gerais da seguinte maneira: do ponto de vista filosfico,~ o progresso da racionalidade cientfica, tecno-lgica e administrativa um real progresso ?>

    Alguns diro que a pergunta em si mesma desprovida de sentido, pois o progresso s pode ser avaliado atravs de uma referncia a

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  • certos valores, e j que os juzos de valor no esto sujeitos a prova, refletindo apenas pre-ferncias subjetivas, qual a utilidade de discutir o problema? A deciso de se h ou no pro-gresso depender das preferncias individuais. No acho a objeo vlida. Em qualquer poca, a maioria das pessoas que pertencem mesma sociedade ou mesma civilizao chega mais ou menos a um acordo sobre o que desejvel.

    Outros diro que o mundo est perdendo sua magia e que o sentido do mistrio e da co-munho, com a natureza esto desaparecendo. Pode ser verdade que a cincia positivista ten-da a minar a f religiosa de muitos. Mas a alternativa clara: ou a f incompatvel com a cincia positiva, e neste caso na nossa es-cala de valores a eliminao gradativa da su-perstio no pode ser lamentada, ou ento e o que eu creio somente as formas mais baixas de crena religiosa so afetadas, e neste caso, tambm, o progresso do conhecimento cientfico como tal o progresso da humanida-de. Como poderemos sustentar que melhor permanecer na ignorncia do que conhecer, acreditar no que no verdadeiro do que de-monstrar o verdadeiro?

    O que problemtico em matria de pro-gresso cientfico e tcnico no o progresso em si mesmo, mas suas conseqncias, o tipo de sociedade que le provavelmente trar e a condio do homem nessa sociedade. O que chama a ateno no so tanto as objees dos reacionrios e dos romnticos gente que sempre teve horror de mquinas, nmeros e massas quanto a inquirio feita Histria por parte dos prprios "progressistas".

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    Os Antiutpicos

    DE um modo geral, pode-se dizer que as inter-pretaes pessimistas da sociedade industrial emergem de trs pontos d vista, simbolizados pelos nomes de Aldous Huxley, George Orwell e Oswald Spengler.

    O primeiro no confia no brave new world. Teme o tdio e o conforto, a mediocri-dade e o empobrecimento espiritual de uma classe m