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1 Competências em relações de trabalho e sindicais Arnaldo Mazzei Nogueira As principais dimensões das competências na esfera coletiva do trabalho e os conflitos inerentes às relações de trabalho no Brasil Sumário Introdução Introduzindo o diálogo entre relações de trabalho e competências Fundamentos do campo das relações de trabalho e sindicais Sistemas de relações de trabalho A formação do campo das relações de trabalho e sindicais Definindo o campo das competências em relações de trabalho e sindicais Caso simulado: Empresa Beta Atualizando o conceito de relações de trabalho Destaque à dimensão global Sobre o sistema brasileiro de relações de trabalho A questão das competências em relações de trabalho e sindicais no Brasil As relações de trabalho em uma perspectiva estratégica Considerações finais Estudo de caso para aplicação: a DaimlerChrysler do Brasil A visão da empresa A visão dos trabalhadores Referências bibliográficas

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Competências em relações de trabalho e sindicais

Arnaldo Mazzei Nogueira

As principais dimensões das competências na esfera coletiva do trabalho e os conflitos

inerentes às relações de trabalho no Brasil Sumário

Introdução Introduzindo o diálogo entre relações de trabalho e competências Fundamentos do campo das relações de trabalho e sindicais Sistemas de relações de trabalho A formação do campo das relações de trabalho e sindicais Definindo o campo das competências em relações de trabalho e sindicais

Caso simulado: Empresa Beta Atualizando o conceito de relações de trabalho

Destaque à dimensão global Sobre o sistema brasileiro de relações de trabalho A questão das competências em relações de trabalho e sindicais no Brasil As relações de trabalho em uma perspectiva estratégica Considerações finais Estudo de caso para aplicação: a DaimlerChrysler do Brasil

A visão da empresa A visão dos trabalhadores

Referências bibliográficas

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Introdução

Este capítulo tem como objetivo geral demarcar o campo das competências em relações de trabalho e sindicais. Esse campo, em primeiro lugar, envolve um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes em relação à ação coletiva do trabalho dentro e fora das organizações. Em segundo lugar, possibilita o desenvolvimento das pessoas envolvidas devido à complexidade do próprio campo, marcado por forças sociais que atuam no local do trabalho, no setor, no macro-político e no plano global.

A esfera coletiva do trabalho diz respeito não apenas ao trabalho coletivo conduzido e dominado pela empresa ou organização, que potencializa a cooperação para o desempenho, mas também as esferas políticas e sociais capazes ou não de intensificar o conflito inerente às relações de trabalho. Assim, nesse aspecto, há o envolvimento das questões dos direitos sociais e políticos, que remete aos aspectos sindicais, associativos e políticos do trabalho, cuja dinâmica independe do controle empresarial e social.

A noção de competências, genericamente falando, tem como ponto de referência as relações entre a pessoa e a organização; relações entre saberes, expectativas e valores. Tem sido desenvolvida na perspectiva da gestão de recursos humanos ou da gestão de pessoas e, de forma mais abrangente, envolve competências pessoais, gerenciais, empresariais ou organizacionais. As competências em relações de trabalho e sindicais atuam em nível de alta complexidade e são desenvolvidas diretamente na arena política das relações sociais e organizacionais.

O fio condutor deste capítulo é mostrar, a partir de um diálogo com a noção mais ou menos consagrada de competências, o eixo de desenvolvimento e complexidade na configuração do campo das relações de trabalho e sindicais, tendo em vista a explicitação de suas dimensões principais. Introduzindo o diálogo entre relações de trabalho e competências O conceito de competência resume-se nas seguintes idéias:

“... competência não se limita ao estoque de conhecimentos teóricos e empíricos do indivíduo, nem se encontra encapsulada na tarefa. Segundo Zarifian (1999), apud Fleury (2002), competência é a inteligência prática de situações, que se apóia nos conhecimentos adquiridos e os transforma com tanto mais força quanto maior for a complexidade das situações.”

A competência do indivíduo não é um estado, não se reduz a um conhecimento ou know-how específico. Le Boterf (1995), apud Fleury, situa a competência numa encruzilhada, com três eixos formados pela pessoa (sua biografia, socialização) por sua formação educacional e por sua experiência profissional. A competência é o conjunto de aprendizagens sociais e comunicacionais nutridas pela aquisição de conhecimento, formação e pelo sistema de avaliações. Ainda segundo o autor: competência é um saber agir responsável e que é reconhecido pelos outros. Implica em saber como mobilizar, integrar e transferir os conhecimentos, recursos e habilidades, num contexto profissional determinado.

As idéias-força até aqui são importantes para a mobilização das energias no trato das relações de trabalho e sindicais, das relações entre trabalho e capital,

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caracterizadas pela complexidade e pelo movimento entre antagonismo e colaboração, entre conflito e cooperação, em busca da produção de valor ou do desempenho organizacional. Como mostra o argumento, produzir o valor social e econômico não é tão simples assim.

“A competência individual encontra seus limites, mas não sua negação no nível dos saberes alcançados pela sociedade, ou pela profissão do indivíduo, numa época determinada. As competências são sempre contextualizadas. Os conhecimentos e o know-how não adquirem status de competência a não ser que sejam comunicados e utilizados. A rede de conhecimento em que se insere o indivíduo é fundamental para que a comunicação seja eficiente e gere a competência.” [Le Boterf, 2003]

É clara a importância dessa idéia no trato da esfera coletiva. Há o momento das competências individuais ou das pessoas em posições técnicas, gerenciais e políticas, tanto do lado da empresa como do lado das organizações do trabalho, em especial o sindicato. A ausência das competências individuais nas organizações do campo das relações de trabalho e sindicais provoca um problema sério porque multiplica e potencializa a conflitualidade implícita nas relações de trabalho e transfere para terceiros os papéis sociais a serem representados sem a construção de espaços estratégicos para o seu encaminhamento.

Ainda se pode verificar que a noção de competência: “...aparece assim associada a verbos como: saber agir, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e complexos, saber aprender, saber se engajar, assumir responsabilidades, ter visão estratégica. Do lado da organização, as competências devem agregar valor econômico para a organização e valor social para o indivíduo.” [Le Boterf, 2003.]

O esquema dos saberes também funciona muito bem na atual demanda por participação das pessoas em atividades de responsabilidade social e ambiental porque eles representam formas de buscar novas identidades e papéis sociais fora do campo do trabalho gerador de novas competências.

Nada mais interessante que esses aspectos para se pensar a dinâmica contraditória das relações de trabalho e sindicais, devido ao esforço enorme para mobilizar as pessoas em torno do envolvimento em ações coletivas aparentemente mais complicadas para a agregação de valor econômico à organização ou para o desenvolvimento da carreira profissional. No entanto, são ações interessantes e promissoras à agregação de valor social e político ao indivíduo coletivo ou ao trabalhador coletivo nos processos complexos de formação de identidade profissional, de luta pela valorização do trabalho e de transformação social e política.

Em suma, o desafio da introdução da perspectiva das relações de trabalho na discussão das competências está na explicitação da emergência do conflito social e político na arena organizacional, que nenhum modelo de gestão será capaz de eliminar. Fundamentos do campo das relações de trabalho e sindicais

O primeiro passo na formação das competências em relações de trabalho é o

conhecimento dos fundamentos da categoria trabalho. O segundo passo seria compreender o processo de desenvolvimento da divisão do trabalho, enquanto

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estratégia econômica das organizações, e as formas de resistência e organização dos trabalhadores.

Esse procedimento investigativo e filosófico da história do trabalho contribui com a perspectiva da antropologia ou arqueologia do trabalho, no sentido de perceber processos e diferenças essenciais na valorização dessa categoria. A observação sobre os objetivos, os meios e instrumentos do processo de trabalho ao longo do tempo, bem como as representações culturais e simbólicas com a atividade de trabalho nas diversas regiões do mundo ampliam a visão sobre o assunto.

Quais os significados do trabalho ao longo do tempo? Como se configuram os vários posicionamentos sobre a questão? O que dizer sobre a categoria do trabalho no Brasil?

A sociedade moderna capitalista se desenvolve por meio da centralidade do trabalho e da força de trabalho como mercadoria, e daí o diálogo se desloca para o campo da economia política e da sociologia e, mais tarde, para o campo da administração, da psicologia e da tecnologia.

As concepções sobre o trabalho humano ganham contornos mais efetivos a partir do desenvolvimento da divisão do trabalho, que pode ser encarada de diversas maneiras: como fonte de eficiência, produtividade e competitividade (diálogo preferido dos economistas e dos administradores), como fonte de conflito e contradição (diálogo preferido da crítica da economia política e das ciências sociais), como fonte de integração social (diálogo preferido pelos positivistas e funcionalistas, fundadores da sociologia e também do pensamento administrativo), como fonte de racionalização e legitimação (diálogo preferido pela fenomenologia e a ciência social compreensiva, que muito influencia as teorias organizacionais). Para essa discussão, ver o trecho que inicia a obra o “Trabalho em migalhas” de Friedman (1964):

“Talvez a divisão do trabalho seja, apesar de tudo, um mal necessário. Tendo o trabalho alcançado seu último limite de simplificação, a máquina toma o lugar do homem e o homem retoma um outro trabalho mais complicado, do qual se ocupa logo a seguir, dividindo-o, simplificando-o, com o objetivo de novamente transformá-lo num trabalho de máquina, e assim por diante. De maneira que a máquina invade, cada vez mais, o campo de ação do operário manual, e que, levando o sistema às suas últimas conseqüências, a função do trabalhador se tornaria cada vez mais intelectual. Este ideal me agrada muito; mas a transição é muito penosa, pois é preciso, antes de ter encontrado as máquinas, que o próprio operário, devido à simplificação do trabalho, se torne, ele próprio máquina e sofra as conseqüências deploráveis de uma necessidade embrutecedora. Aceitemos, pois, a divisão do trabalho lá onde se mostrou necessária, mas com a esperança de que a mecânica se encarregará cada vez mais dos trabalhos simplificados; e reivindiquemos pra os trabalhadores desta classe, com não menos ardor do que para os trabalhadores das outras classes, um ensino que não só os salve do embotamento, mas, acima de tudo, que os instigue a encontrar o meio de comandar a máquina, ao invés de serem eles a máquina comandada” (Corbon, operário, vice-presidente da Assembléia Constituinte de 1848 na França).

O estudo de Friedman, realizado nos anos 60, identificou as mudanças no

trabalho no sentido da degradação provocadas pela intensificação do taylorismo e do fordismo, da racionalização e padronização do trabalho nas atividades produtivas e operativas. De outro lado, mostrava, com certo otimismo, as tendências de mudanças

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dos processos de trabalho e das formas de organização do trabalho no sentido da humanização e participação do trabalhador.

Na década de 70, Braverman constatava a intensificação da degradação do trabalho determinada pela principal contradição do trabalho moderno como conseqüência do desenvolvimento das forças produtivas marcadas pela revolução técnico-científica e automação, a saber: a exigência cada vez maior de instrução, qualificação e inteligência e a crescente insatisfação com as condições de trabalho, burocratização e alienação dos trabalhadores.

Em seguida, nas décadas de 80 e 90, o debate sobre o trabalho no contexto da terceira revolução industrial microeletrônica é informado pela questão do desemprego, da abolição do trabalho ou do fim do emprego, exigência maior de qualificação e da perda da centralidade do trabalho no pensamento social.1 Para ter uma idéia dos vários significados do trabalho ao longo da história observe a Tabela 1 a seguir.

1 São vários autores que debatem essa questão: OFFE (1989), RIFKIN (2004), GORZ (1982; 2004), HABERMAS

(1987). Ver ANTUNES (2003).

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Tabela 1. Os significados do trabalho ao longo da história* Povos/autores Significados do trabalho

Gregos antigos o trabalho manual e mecânico deveria ser realizado pelos escravos

Hebreus o trabalho era uma “labuta penosa”, a que o homem estava condenado pelo pecado

Cristianismo o trabalho era uma punição para o pecado e servia para afastar os maus pensamentos provocados pelo ódio

Lutero o trabalho se estabelece como “a base e a chave da vida”, todo aquele capacitado deveria fazê-lo, manter-se pelo trabalho era um modo de servir a Deus

Calvinismo arrastou o homem ainda mais para o ritmo do trabalho moderno: agir de maneira racional e metódica, contínua e árdua, para pertencer aos eleitos

Renascimento através do trabalho, o homem tornava-se um criador e podia realizar qualquer coisa

Economia política: Adam Smith (1723-90) David Ricardo (1772-1823)

o trabalho como fonte de toda a riqueza. A divisão do trabalho e a eficiência econômica. O trabalho como valor

Materialismo histórico Karl Marx (1818-83)

trabalho como processo de humanização e de produção e reprodução da vida. Contradição na esfera dos valores do trabalho e entre as relações sociais de produção e o desenvolvimento das forças produtivas

Frederick W Taylor (1856-1915) Henry Ford (1863-1947) Henri Fayol (1841-1925)

Divisão do trabalho na organização empresarial. Racionalização e padronização do trabalho. Fragmentação das tarefas

Elton Mayo (1880-1948) Abraham H. Maslow (1908-70) Douglas Mc. Gregor (1906-64) Frederick Herzberg (1923-2000)

Humanização e manipulação do trabalho. Hierarquia das necessidades. Teoria X e Teoria Y aplicadas ao trabalho. Fatores básicos e motivacionais do trabalho

Milton Friedman (1912-2006) Harry Braverman (1920-76)

O trabalho em migalhas. A degradação do trabalho no século XX

Fred Emery (1925-97) Eric Trist (1909-93) Elliott Jacques (1917-2003)

O trabalho apresenta variedades e é desafiador; traz aprendizagem contínua; permite autonomia e decisão; é reconhecido; traz contribuição social; pode ser usado como uma defesa contra a angústia

MOW (Meaning of Work) Metodologia de estudo do significado do trabalho

O trabalho acrescenta valor a alguma coisa – Padrão A O trabalho é central na vida das pessoas – Padrão B O trabalho é atividade/benefício para os outros – Padrão C O trabalho não é agradável – Padrão D O trabalho é exigente física e mentalmente – Padrão E O trabalho é uma atividade regular remunerada – Padrão F

André Gorz Clauss Offe Jürgen Habermas Jeremy Rifkin Ricardo Antunes

As transformações do trabalho no contexto da terceira revolução industrial. O fim do emprego e a abolição do trabalho. O debate sobre a centralidade do trabalho no pensamento social e econômico.

Estelle Morin O trabalho é eficiente e produz um resultado útil. Há prazer na realização da tarefa. O trabalho permite autonomia; é fonte de relações humanas satisfatórias; mantém as pessoas ocupadas. O trabalho é moralmente aceitável

Manuel Castells O trabalho flexível e a organização em redes.

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*Adaptado de Nogueira e Stefano (2006).

Assim, a questão das competências em relações de trabalho e sindicais é

encaminhada em contexto cultural complexo, cujos fundamentos envolvem diversos significados e valores presentes no cotidiano e na história do trabalho. Para uns, o trabalho é apenas rendimento e produtor de valores úteis, para outros, o trabalho é uma atividade sem valor; para outros, ainda, o trabalho é punição e, para alguns, o trabalho é central e sinônimo de plenitude de vida. Na era da terceira revolução industrial, alguns viram a abolição do trabalho e o fim do emprego. Outros afirmaram a flexibilidade e a centralidade do trabalho apesar das transformações.

A perspectiva adotada aqui afirma a centralidade do trabalho na produção e reprodução da espécie humana. O trabalho é teleológico enquanto realização de finalidades e objetivos. O trabalho é a base da humanização do ser que depende do processo de trabalho.

O processo de trabalho em geral é atividade voltada para a produção dos valores de uso para satisfação das necessidades humanas, independentemente das formas que assumam as relações sociais de produção. Seu significado é qualitativo e refere-se à utilidade do resultado do trabalho. O processo de trabalho capitalista é atividade voltada para a produção de valores de uso e de troca. Enfim, produção de valores. Trata-se de processo capitalista de produção que destaca a dimensão quantitativa, com o objetivo de produzir trabalho excedente e mais valor. Assim, no contexto da sociedade capitalista e de uma economia de mercado, a centralidade do trabalho está determinada pela predominância da dimensão abstrata do valor de troca sobre a dimensão concreta do valor de uso da força de trabalho.

Por isso, a tensão existente nas relações de trabalho geralmente remete à definição dos valores produzidos pela força de trabalho que as partes – trabalho e capital — estão dispostas a negociar ou obrigadas a aceitar. Esses valores estão centralizados na definição dos salários, dos preços e dos lucros. A dimensão qualitativa do trabalho é importante, mas não a essencial na relação que se estabelece. Sistemas de relações de trabalho

Após a discussão de caráter filosófico dos significados do trabalho e da

afirmação da centralidade da teoria do valor trabalho no capitalismo, é importante conhecer os sistemas de relações de trabalho de cada país em uma perspectiva comparada.

Sistema de relações de trabalho: do que se trata? Quais as especificidades de cada sistema de cada país? Como comparar os sistemas de relações de trabalho e compreender suas condições e características?

Pastore e Zylberstajn (1985) apoiaram-se no método comparativo para caracterizar dois modelos de relações de trabalho: o estatutário (mais próximo do encontrado em países da Europa, de tradição orgânica e social) e o negocial (mais próximo do encontrado nos Estados Unidos da América). O ponto de partida é a noção de conflito de interesses distributivos inerente à relação de trabalho, que se manifesta de duas formas: a forma explícita como greve, reclamação, reivindicação e protesto e a forma implícita como insatisfação, sentimento de injustiça e atmosfera coletiva. Assim, os sistemas de relações de trabalho são apresentados como modos de administração

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do conflito. Verificar alguns exemplos extraídos da exposição dos autores citados (Tabela 2).

Tabela 2. Exemplos de sistemas de relações de trabalho*

Evento Sistema estatutário Sistema negocial

Papel do Estado Intervenção e regulamentação

Garantir contrato

Ação sindical Esfera social/Estado Esfera da empresa/local

Negociação Coletiva, setorial, nacional Individual por empresa

Greves Menos freqüentes Mais freqüentes

Salários Mínimos iguais e universais Diferentes e desiguais

Conquistas Inclusivas Não-inclusivas

*Organizado a partir de Pastore e Zylberstajn (1985)

Alguns questionamentos podem ser feitos em relação aos modelos referidos. Primeiro, o conflito não se reduz apenas aos interesses econômicos e pode se manifestar através das esferas social, simbólica, política e ideológica. Segundo, a perspectiva dos sistemas de administração de conflitos destaca a dimensão do controle e da regulação política e social e pode reduzir as relações de trabalho aos aspectos formais, jurídicos e previstos pelo sistema. Terceiro, os modelos são tipos ideais e não correspondem à realidade das situações de trabalho que imbricam o estatutário e a negociação. Evidentemente, os autores reconhecem essa limitação e afirmam a utilidade dos tipos ideais como recurso metodológico para contribuir na explicação das formas como podem ser administrados os conflitos trabalhistas nas sociedades modernas.

Cabe ainda adiantar que a comparação entre o regime estatutário e negocial feita pelos autores tinha em vista criticar o sistema brasileiro de relações de trabalho devido a sua forte conotação estatutária, corporativista e de tutela do Estado sobre as relações entre capital e trabalho. Começava ali a defesa do regime negocial sobre o regime legislado das relações de trabalho, que muita polêmica ainda gera na cena sindical, trabalhista, empresarial e política do Brasil. Voltaremos a esse tema mais adiante.

Em outra perspectiva, a idéia é entender a relação entre o modo de desenvolvimento da acumulação capitalista e o marco institucional das relações de trabalho. Em um primeiro momento, as relações de trabalho se desamarram das formas antigas pré-capitalistas e feudais e ganham um formato liberal e independente do modo de acumulação capitalista. A expansão econômica independe da regulamentação do trabalho. Em um segundo momento, as relações de trabalho passam por um longo período de marco institucional e se transformam em direitos sociais, legislação trabalhista, e ganham contorno de um sistema fundamental para a prosperidade e estabilidade do modo de acumulação capitalista. Em um terceiro momento, a flexibilização e a desregulamentação dos sistemas de relações de trabalho enfraquecem os marcos institucionais, de modo a permitir um livre desenvolvimento do modo de acumulação de capital. Essa última etapa é a predominante no contexto contemporâneo e alguns autores entendem como um processo de acumulação flexível do capital que altera e diversifica as formas de trabalho. A trajetória brasileira das

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relações de trabalho antes de 1930, entre 1930 e 1988 e depois de 1988 mostra claramente os três momentos.

O mercado de trabalho tem um centro formado pela flexibilidade positiva do trabalho e uma periferia hierarquizada pela precariedade do trabalho: trabalho terceirizado, trabalho autônomo, trabalho eventual, trabalho temporário e ausência de trabalho. Aí a flexibilidade do trabalho é negativa e pode levar ao subemprego ou desemprego.2

A formação do campo das relações de trabalho e sindicais

Há um campo específico das relações de trabalho e sindicais. Diferentes tradições teóricas e conceituais têm tratado do assunto. De acordo com Carvalho Neto, há diferenças importantes quando se comparam os sistemas de relações de trabalho no modo norte-americano, no modo francês e no brasileiro (Neto e Melo, 1998).

A formação do campo de estudo das relações industriais tem um marco importante na experiência estadunidense na década de 30. A negociação coletiva passa a ser o método prioritário para estabelecer os salários, a jornada e as condições de trabalho. Evento importante foi a primeira greve na Ford nessa década e o reconhecimento do sindicato e a abertura das negociações depois de forte mobilização e greve dos trabalhadores.

A obra clássica de Dunlop (1958) estabelece, de forma pioneira, o conceito de sistema de relações industriais como sistema de regulação paritário, com um movimento sindical independente e moderado e uma gerência esclarecida e profissional. No âmbito do pacto fordista e sua expansão pela Europa e Japão, o sistema dunlopiano previa a instituição da negociação coletiva como instrumento moderno de regulação de conflitos. Os atores eram representados pelos sindicatos de trabalhadores, pelas organizações patronais e pelas instituições públicas e privadas de arbitragem e mediação dos conflitos.

A perspectiva de Dunlop — para o qual a negociação coletiva determinada pelo contexto externo aos atores tem um nível superior de atualização do sistema de regras e pressupõe a ideologia compartilhada entre os atores — é criticada pela perspectiva da escolha estratégica de Kochan et al. (1986). Essa proposta faz pensar as relações de trabalho em uma hierarquia de três níveis: os atores em relação — trabalhadores, gerência e governo — e suas escolhas estratégicas; as estruturas de negociação coletiva em um nível intermediário e o local de trabalho ou divisão técnica do trabalho. Em resumo, a escolha estratégica dos agentes é a definidora essencial das relações e esse processo tende à descentralização devido à diversidade de cada local de trabalho, com suas próprias políticas gerenciais e de recursos humanos. A negociação coletiva burocrática e hierárquica fica em um nível secundário. Aqui já há um contexto de crise do pacto fordista e do sistema capitalista global.

Na Europa, em particular na escola francesa de relações de trabalho, há uma outra referência em contraponto ao modelo dunlopiano. As críticas recaem sobre os seguintes aspectos: a ideologia compartilhada sem considerar os aspectos de oposição ideológica; a concepção de ator coletivo, que não leva em conta a heterogeneidade após a crise do fordismo; o determinismo externo das regras construídas e o apego ao 2 Esta discussão está em Francisco de Oliveira (2002) e Zapata (1993). Ver ainda a noção de acumulação flexível em

Harvey (1993).

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sistema de regras sem considerar o questionamento dessas regras e das condições externas.

A visão de Richard Hyman (1981), pesquisador da LSE (London School of Economics), aproxima-se da abordagem marxista e entende que o conflito entre capital e trabalho não encontra solução no sistema capitalista, e, na verdade, há uma relação cujo limite é a cooperação antagônica.

Assim são identificadas as correntes institucionalistas de Dunlop (op.cit.) por exemplo, para as quais o conflito é inerente às relações de trabalho, porém pode ser regulado e administrado pela instituição da negociação coletiva; as correntes do personnel management e comportamento organizacional, que buscam diluir o conflito e tendem a personalizar ou mesmo a individualizar o problema, tentando conduzir a esfera coletiva para a esfera pessoal; as correntes da escolha estratégica, para as quais o desenho do sistema depende da ação dos atores e as correntes marxistas, que entendem o conflito como inevitável e antagônico enquanto permanecer o sistema capitalista.

Novas linhas de pesquisa sobre as relações de trabalho nos países capitalistas ocidentais começam a especificar as variáveis mais importantes que definem sua dinâmica de acordo com os seguintes aspectos: organização e jornada de trabalho, formação e desenvolvimento da mão-de-obra, esquemas de compensação salarial e remuneração e segurança no emprego (Neto, 2001). Há também publicações importantes que fazem um balanço das mudanças recentes nas relações de trabalho dos países da Europa, mostrando a diversidade de situações que implicam em continuidades ou rupturas, dependendo do caso. O modelo inglês passou por rupturas em toda a década de 90 — lembrando-se o exemplo das docas de Liverpool e outras situações —, enquanto os modelos francês e alemão resistem às mudanças propostas por empresários e governantes. 3 Definindo o campo das competências em relações de trabalho e sindicais

As competências em relações de trabalho e sindicais têm como referência as relações entre o coletivo de trabalho ou trabalhador coletivo, a organização e outras instituições — por exemplo, sindicatos, fornecedores, consumidores, concorrência e órgãos reguladores — que atuam no contexto externo das organizações. O coletivo do trabalho integra as funções operacionais e técnicas destacadas das funções gerenciais e empresariais. Essa distinção resgata a noção de partes com interesses opostos e complementares, que estabelecem relações de trabalho no todo organizacional. As relações de trabalho existem como campo de forças, independentemente da perspectiva gerencial e corporativa em formar equipes ou times nas unidades da organização ou em atingir o ideal holístico em que o todo prevalece sobre a parte. E aí a diferença no tratamento conceitual das competências gerenciais voltadas à organização e as competências em relações de trabalho que atuam em campo de forças sociais e políticas mais abrangentes.

O trabalhador coletivo, enquanto força de trabalho combinada na empresa, produz valores de uso e valores de troca. Nesse aspecto, a força de trabalho combinada agrega valor como trabalho excedente à empresa. No entanto, a distribuição

3 Consultar livro de HYMAN, R. e FERNER, A. [1992] sobre as relações industriais na nova Europa.

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e a magnitude desse valor excedente variam de acordo com a contribuição de cada parte do coletivo, considerando os salários diretos e indiretos recebidos. Para efeito de análise, a repartição dos valores poderia ser avaliada de acordo com a divisão do trabalho entre as pessoas que exercem cargo gerencial e de direção e os demais assalariados. Assim, as competências em relações de trabalho podem ser compreendidas tanto do ponto de vista do trabalhador coletivo e suas relações internas e externas à organização, como do ponto de vista gerencial e empresarial, considerando também as varáveis internas e externas à organização.

Essa abordagem ressalta a dimensão reflexiva e crítica, identifica as interfaces entre gestão de pessoas e relações de trabalho e ainda desenvolve uma perspectiva estratégica no campo da gestão e das relações de trabalho. Assim, a junção das duas noções — competências e relações de trabalho — exige um exercício teórico e prático que articula a esfera pessoal à esfera coletiva.

Na esfera das relações entre pessoa e organização, encontram-se as políticas de recursos humanos da organização, o comportamento individual e organizacional, as relações interpessoais e a perspectiva da gestão de pessoas. Na esfera das relações entre trabalho e organização, encontra-se a perspectiva das relações de trabalho, ou seja, a perspectiva do comportamento social e político, da dinâmica entre conflito e cooperação entre as partes em relacionamento. Traçando uma linha imaginária entre a esfera pessoal e a esfera coletiva, é importante perceber que, no campo do trabalho nas organizações, a passagem de um momento ao outro é absolutamente possível, normal e previsível. Observando-se o diagrama da Figura 1, nota-se que qualquer assunto da esfera da gestão da empresa pode ser objeto da esfera coletiva e das relações de trabalho. O caminho inverso envolve também a esfera pessoal. A dinâmica depende de cada organização e do campo de forças entre a esfera coletiva e a esfera da gestão. De outro lado, a esfera pessoal tem poder de agente à medida que cada pessoa decide e estabelece um vínculo maior ou menor com a empresa. No campo das relações de trabalho, a esfera pessoal é afetada de forma indireta, impessoal e normativa.

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Figura 1. Diagrama: esfera pessoal e coletiva das relações de trabalho

Para ilustrar o conteúdo do diagrama, vejamos uma situação prática: um caso simulado de uma empresa que chamaremos de Beta.

Caso simulado: Empresa Beta Em uma empresa chamada Beta aconteceu o seguinte fato: uma gerente de

recursos humanos (RH), escolhida pela direção da empresa, desenvolveu um programa de ação na área de RH no sentido de sua profissionalização e integração do pessoal, já que a empresa era familiar e havia crescido muito nos últimos anos. Apesar de a competência técnica da gerente ser inquestionável, ela tinha problemas na esfera do relacionamento interpessoal. As operárias não gostavam da forma com eram tratadas pela gerente. Tecnicamente, esse era um assunto da esfera da gestão, das relações entre direção, gerência e as pessoas trabalhadoras.

O conflito, até então implícito, ganhou outras dimensões e se transformou em conflito explícito, envolvendo o coletivo de trabalho. Isso foi suficiente para chamar a atenção do sindicato, que passava então por um processo de mudança e fortalecimento.

As operárias ameaçaram com um movimento grevista, exatamente no momento em que a empresa tinha um contrato de exportação para a China a ser cumprido. Ou seja, uma greve seria desastrosa para os negócios internacionais da empresa. O sindicato, que iniciava uma campanha salarial, encampou o movimento, como era de se esperar, mobilizou o carro de som e, às cinco da manhã, estava na porta da empresa denunciando a situação.

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A pauta era a seguinte: ou a empresa demitia a gerente de RH, ou a greve seria eclodida com o apoio do sindicato.

Quais os interesses em jogo? Como encaminhar o conflito da perspectiva da empresa? E da perspectiva do sindicato? Este caso mostra como uma questão da esfera interpessoal e da gestão ganhou dimensões coletivas, política e sindical. Atualizando o conceito de relações de trabalho

No campo propriamente das relações de trabalho, sugere-se acompanhar a atualização, a seguir, do conceito de gestão estratégica das relações de trabalho (cf. Nogueira, 2002), para pensar as diversas dimensões envolvidas no fenômeno, a saber: micro-social, meso-social, macro-social e global.

As relações de trabalho são entendidas enquanto arranjos coletivos formais e informais entre capital e trabalho, que produzem definições estáveis e instáveis dos salários e da remuneração, da jornada de trabalho, do contrato de trabalho, das condições de trabalho, saúde e de ocupação, das formas de organização do processo de trabalho, das formas de participação e negociação dos trabalhadores e da organização sindical. São relações sociais de trabalho e de poder marcadas pelo binômio cooperação/antagonismo, determinado por condições históricas e estruturais entre relações sociais de produção e forças produtivas da sociedade capitalista. Para seu entendimento e explicação, as relações de trabalho apresentam-se através de um recorte multifacetado e de reciprocidade entre as dimensões micro, meso, macro e global, que serão explicitadas a seguir. As relações de trabalho são permanentemente atualizadas por meio da ação coletiva dos sujeitos e agentes sociais (players) com capacidade de mudar as condições sociais do trabalho, seja no âmbito da empresa, organização ou local de trabalho, no âmbito de um segmento ou setor econômico mais abrangente, no âmbito macro político ou no âmbito global.

Esse nível de complexidade implica o desenvolvimento de competências para lidar com o campo das relações de trabalho que são da natureza do pensamento político, estratégico e complexo. Em outras palavras, a perspectiva da gestão estratégica das relações de trabalho exige competências que têm como requisito básico o conhecimento dessas dimensões, de acordo com a particularidade das sociedades e economias nacionais, nas quais variam as dimensões, que são mais ou menos determinantes na configuração das relações de trabalho, a habilidade política e de negociação para lidar com agentes que atuam em um campo de forças dinâmico e a atitude de reconhecimento das partes, do outro e da possibilidade de conflito na relação social. Para visualizar o campo de forças verifique abaixo a matriz estratégica das relações de trabalho

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Figura 2. Matriz das relações de trabalho

A matriz apresenta os agentes que, apesar de referenciados por dimensões mais

específicas, podem atuar em todas as dimensões ao mesmo tempo. Por exemplo, um agente na função de regulador global pode influenciar não apenas na esfera global, mas no macro, meso e micro e assim por diante. Os trabalhadores de uma empresa podem estabelecer relações com os sindicatos que, além da atuação setorial (meso), têm vínculos políticos e globais. Os gestores e empresários, quando atuam no nível micro, observam a concorrência, fornecedores e consumidores que atuam no nível meso ou vice-versa.

A dimensão micro-social abrange o local de trabalho, o processo de trabalho, a empresa ou a organização, nos quais se estabelecem políticas organizacionais, tecnológicas e de RH baseadas em filosofias e culturas organizacionais. Consideram-se também, nessa dimensão, as novas formas de relações de trabalho estabelecidas por meio da subcontratação, terceirização, trabalho parcial e temporário e, até mesmo, o trabalho informal. Essas novas formas de trabalho exigem analisar a dimensão meso-social, entre empresas fornecedoras e receptoras, para entender como se processam as relações de trabalho entre as organizações e dentro delas.

Não há dúvida de que, para entender no contexto atual e de forma mais completa os arranjos das relações de trabalho, é preciso levar em conta uma dimensão implícita: hipermicro, individual e pessoal. Essa dimensão remeteria para análise das histórias e trajetórias de vida pessoal de trabalho dentro de qualquer segmento e categoria social, desde o assalariado até o autônomo, trabalhador por conta própria e o empreendedor. Em outro nível, deve considerar também a importância adquirida do trabalhador do conhecimento ou analista simbólico, ou trabalhador de alta complexidade. Há aí uma tendência importante, na esfera de relação individual de

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trabalho, não remetida à esfera coletiva ou sindical, que certamente tem influenciado importantes setores de trabalho que envolvem prestação de serviços de alta complexidade, como consultoria, educação, desenvolvimento de tecnologias etc. Esses sujeitos são importantes porque detêm parcela significativa de poder técnico e organizacional, com capacidade de lidar estrategicamente com as relações de trabalho ou mesmo destituí-las pela criação de sistemas e operações alternativas.

Nessa esfera pessoal, as relações de trabalho, enquanto arranjos coletivos, têm pouca efetividade principalmente nos segmentos do trabalho qualificado e de envolvimento gerencial na estrutura de poder da organização, cabendo à gestão de pessoas, juntamente com as abordagens em torno da gestão por competências e do conhecimento ou empowerment e intra-empreendedorismo, o repertório mais adequado para lidar com os desafios pessoais e individuais que remetem também às dimensões comportamentais, culturais e de liderança organizacionais que influenciam os negócios empresariais e organizacionais.

A dimensão meso-social abrange principalmente as agências de mediação dos trabalhadores e dos empresários, tais como sindicatos, associações, federações. Remete também à dinâmica dos setores empresariais e das cadeias produtivas. É o espaço dos arranjos sociais e institucionais que ultrapassa os limites da empresa ou organização e exige da gestão uma visão setorial e estratégica que articule tanto o ambiente interno como o ambiente externo. Há aqui uma clara dimensão estratégica para compreender a ação dos agentes ou players, como fornecedores, clientes, consumidores, concorrentes, regulamentadores sindicais e político-governamentais diretos e sociais, como as comunidades diretamente afetadas pelo negócio organizacional.

A dimensão macro-social abrange os arranjos do Estado, as políticas públicas e sociais, a legislação social e trabalhista, o parlamento e as relações entre forças políticas, que representam campos de força cujas decisões interferem na sociedade e na economia como um todo, em particular no mercado de trabalho, na distribuição de renda, no custo da força de trabalho, na regulamentação das condições gerais do trabalho etc. Exige da gestão uma visão macro-estratégica, capaz de visualizar cenários sociais, políticos e institucionais complexos.

Destaque à dimensão global

A dimensão global é fundamental para entender a dinâmica das relações de

trabalho devido à globalização das economias, à atuação das empresas transnacionais e à perspectiva da atuação sindical global em torno da extensão dos direitos sociais globais.

Os deslocamentos de empresas e as pessoas que oferecem sua força de trabalho no mercado internacional dentro e entre os blocos econômicos têm gerado um novo arranjo, que comporta tensões e situações novas. Por exemplo, os deslocamentos dentro da União Européia do leste para o oeste; as relações no Mercosul e na América Latina e o caso do gás e da Petrobrás entre Brasil e Bolívia; os deslocamentos da força de trabalho do México para os Estados Unidos e o novo “muro de Berlim” em construção; o fator China; o fator Índia; o papel das agências internacionais como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC).

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Cenário particularmente interessante, nessa dimensão, é a observação das diferentes dinâmicas globais de movimentos e eventos, como o Fórum Social Mundial, reunindo organizações sociais, não-governamentais (ONGs), sindicatos, movimentos alternativos entre outros, vis-à-vis o Fórum Econômico Mundial de Davos, reunindo as principais lideranças econômicas do mundo, com alguma participação de organizações sociais e sindicais.

Outras questões conflitivas das relações de trabalho têm mostrado sinais de que problemas corporativos, setoriais e regionais estão sendo encaminhados e decididos de forma global, ou seja, nas matrizes das empresas transnacionais. Os casos no Brasil, desde as demissões ocorridas na Ford, em 1998, negociadas fora e dentro do país; o fechamento da fábrica da Multibrás no primeiro semestre de 2001; o da política global de RH da Volkswagen, com a criação da Autovisão e a tentativa de romper o acordo sindical; o caso do Programa de Demissão Voluntária da DaimlerChrysler, que envolvia certamente ajustes globais e competitivos da empresa; e muitos outros, abrangendo apenas o escopo de atuação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, são exemplos relevantes da dimensão global envolvida nas relações de trabalho e nos esquemas de negociação. Além disso, recentemente a crise anunciada da GM e da Ford, em contraposição ao sucesso da Toyota nos Estados Unidos, coloca, além da reestruturação organizacional, com fechamento de fábricas e demissão de trabalhadores, a questão da dimensão global dessas empresas e o papel compensatório de outros países onde estão instaladas, em particular, no Brasil.

Outro fato relevante acontecido recentemente foi o ajuste global da Volkswagen, que implicou em ameaça de demissão de milhares de trabalhadores nas plantas do ABC e Taubaté no Estado de São Paulo. As decisões mundiais de investimentos da empresa estavam condicionadas a esse ajuste e estava em curso uma liberação de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que foi suspenso temporariamente. Depois da greve de alguns dias e do acordo sindical em torno do enxugamento de pessoal, através de um programa de demissões voluntárias, a matriz da empresa anunciou investimentos significativos na filial brasileira. O que estava em jogo eram esferas complexas que articulavam decisões estratégicas de investimentos globais com ajustes locais nas relações de trabalho.

Após a experiência das maquiladoras mexicanas, que são empresas que produzem acessórios e produtos industriais americanos, foram constatados outros movimentos de deslocamento global, tais como a intensificação dos processos de terceirização dos serviços e comércio (out sourcing), por meio da prestação de serviços de callcenters e telemarketing de grandes empresas em outros países, de culturas completamente diferentes (off shoring), aproveitando condições favoráveis de baixo custo (caso da China) e boa qualificação (caso da Índia) da força de trabalho. Esse conjunto de deslocamentos tem como epicentro o segmento de serviços cuja característica organizacional (flexível, eventual, informal e terceirizada, baseada no relacionamento fornecedor-cliente) permite maior flexibilidade. Nesta discussão, há importante referência à vantagem comparativa do mercado de trabalho no Brasil em atrair investimentos estrangeiros e processos de out sourcing (terceirização) e off shoring (internacionalização dos serviços).

O que se percebe é a plena interpenetração entre as dimensões da análise das relações de trabalho, exigindo um novo patamar de investigação para dar conta de que o sistema empresarial e de organização do trabalho no contexto atual está submetido

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ao modo de acumulação mundial do capital. Os arranjos e deslocamentos das empresas, enquanto modos de produzir e acumular capital, parecem ganhar uma independência e autonomia em relação aos estados nacionais, as fronteiras e as culturas e os valores sociais. Mas o ardil desse movimento do capital global continua sendo o trabalho, mesmo com todo o processo de financeirização, que apenas aparentemente cria “valores-sobre-valores” fictícios sem lançar mão da esfera produtiva e do trabalho. Sobre o sistema brasileiro de relações de trabalho

O debate acima pode contribuir para o entendimento das mudanças recentes no sistema brasileiro de relações de trabalho, cuja pedra angular continua sendo o estatuto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, de 1943), que passou por um processo de flexibilização inconcluso da perspectiva neoliberal na década de 90 (Nogueira, 2002).

Nos anos 2000, principalmente com o ingresso do governo Lula, a nova partida, com a instalação do Fórum Nacional do Trabalho, produziu uma proposta de reforma sindical que por enquanto não produziu efeito, mas poderá ser reposta no futuro. Há ainda a predominância de um sistema confuso e híbrido entre a flexibilidade do trabalho, a informalidade do trabalho e a formalidade do sistema celetista. Na esfera coletiva, as centrais sindicais existentes são ainda informais e convivem com o sistema vertical das federações e confederações, sustentadas pelos sindicatos de base municipal.

Para pensar o sistema brasileiro de relações de trabalho, o modelo burocrático de Dunlop é bastante adequado porque, no padrão brasileiro, ocorre a maioria dos seus elementos, tais como hierarquia, regras, ideologia conciliadora entre capital e trabalho, negociação compulsória, entre outras peças do sistema de controle baseado no corporativismo. Este tem declinado, mas não cede em seus pilares básicos, a saber: unicidade sindical, monopólio da representação, fragmentação do sindicalismo por município, Justiça do Trabalho, taxas e impostos sindicais compulsórias etc.

A dinâmica das relações de trabalho no Brasil passou por diversos momentos após a Constituição de 1988, por muitos considerada responsável pela manutenção do custo trabalhista no Brasil. A negociação coletiva, prevista por lei, continua sendo o mecanismo de ajuste e atualização das relações de trabalho por meio das convenções coletivas e permite um processo de descentralização da negociação como tem sido feito em alguns setores dinâmicos da economia através de acordos coletivos por empresa.

O debate sobre o negociado e o legislado saiu de cena e foi substituído pelo Fórum Nacional do Trabalho, de composição tripartite, que até o momento não produziu de fato nenhuma alteração significativa, a não ser um documento de difícil aplicação na prática, mesmo porque reinventa um corporativismo sindical e patronal orquestrado pelo Estado. Em outras palavras, a questão do conflito nas relações de trabalho vem sendo tratada como antes: descentralizada na eclosão e centralizada no julgamento e decisão do seu encaminhamento. Para se ter uma idéia do processo brasileiro e as mudanças nas relações de trabalho e sindicais, o Quadro 1 resume os eventos mais importantes a partir de 1988.

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Quadro 1. Fases das relações de trabalho e sindicais no Brasil

1988-1994 - Constituição de 1988 e seus aspectos relativos aos direitos sociais e sindicais

- Liberalização restrita e fim da intervenção do Estado nos sindicatos - Livre associação sindical no setor público - Manutenção do corporativismo (unicidade sindical; monopólio de representação; Justiça do Trabalho) - Criação da Força Sindical - Criação do Programa Brasileiro de Qualidade e Competitividade - Impeachment de Fernando Collor e ampla participação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) nos protestos - Instalação do primeiro Fórum do Trabalho - Discussão sobre o Contrato Coletivo de Trabalho.

1995-2002 - Greve dos petroleiros e crise do sindicalismo

- Avanço da flexibilização das relações de trabalho - Crescimento trabalho informal, temporário e autônomo - Terceirização do trabalho - Expansão de cooperativas de trabalho - Explosão do desemprego, atingindo 12,1% da população em 2002 - Proposta de mudança na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): negociado versus legislado

2003-2006 - Início do Governo Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT) - Retirada do projeto de mudança de artigo sobre negociação da CLT - Reforma da Previdência - Instalação do Fórum Nacional do Trabalho - Proposta de reforma sindical - Diminuição da taxa de desemprego para 9,7% e aumento do emprego formal - Negociações — aumentos salariais acima da inflação - Luis Marinho (presidente da CUT) torna-se Ministro do Trabalho - Reajuste do salário mínimo para R$ 350,00. - Instalação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) - Não encaminhamento da reforma sindical elaborada pelo Fórum Nacional do Trabalho - Medidas provisórias legalizam centrais sindicais e criam o Conselho Nacional das Relações de Trabalho (em maio de 2006) - Reeleição de Lula do PT (com 61% dos votos).

A questão das competências em relações de trabalho e sindicais no Brasil

O evento da greve dos bancários, ocorrida em setembro-outubro de 2006, foi

muito rico em termos de complexidade e aprendizado das relações de trabalho. Os agentes diretamente envolvidos estavam imbricados na matriz complexa do campo de forças das relações de trabalho que articula os diversos interesses nas quatro dimensões (micro, meso, macro e global). A única dimensão que não estava diretamente envolvida era a global. Um excelente exercício é investigar os aspectos do conflito trabalhista que fez eclodir uma greve parcial de caráter setorial e nacional com duração de seis dias. A greve implicou mudanças na posição inicial dos agentes

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principais em conflito e negociação e produziu uma nova proposta aprovada em assembléia da categoria (Quadro 2).

Quadro 2. Greve dos bancários no Brasil em 2006: o que estava em jogo?

Sindicatos/trabalhadores: reivindicação inicial de 7% de aumento salarial, PLR de 5% líquido do lucro + R$ 1.500,00; piso salarial de R$ 1.500,00; condições de trabalho e assédio moral. Fenaban/banqueiros: proposta inicial de 2,8% de aumento; R$ 823,00 de abono; PLR de acordo com o lucro de cada banco. Organizações envolvidas: sindicatos e do trabalho (Contraf, Contec, CUT, Força Sindical, Conlutas) e dos bancos (Fenaban, CEF, BB). Aspectos estratégicos: concorrência entre os bancos, terceirização, novas tecnologias e relação com clientes. Greve de seis dias e proposta aprovada: 3,5% de aumento; PLR de 80% do salário mais R$ 828,00 (piso salarial da categoria) ou mais R$ 1.000,00 ou R$ 1500,00 de abono dependendo do lucro de cada banco. Entidades envolvidas: Fenaban (Federação Nacional dos Bancos); Contraf (Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro); Contec (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito); CUT (Central Única dos Trabalhadores); Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas); bancos privados e bancos públicos: CEF (Caixa Econômica Federal); BB (Banco do Brasil).

Fonte: Folha Bancária (2006). PLR = participação nos lucros ou resultados. A seguir, indica-se um resumo dos temas que os agentes das relações de

trabalho precisam conhecer para desenvolver competências (saberes, conhecimento, habilidades e atitudes e desenvolvimento) no campo das relações de trabalho no Brasil. Os agentes das relações de trabalho no Brasil são os trabalhadores e a gerência/direção no local de trabalho, os sindicatos de trabalhadores e os sindicatos patronais em cada setor econômico, as centrais sindicais, as confederações nacionais de trabalhadores e de empresários com atuação setorial e nacional, o governo e as instâncias estatais e públicas no âmbito nacional e os agentes e reguladores globais.

Há uma hierarquia desses agentes em sua ação. Apesar de as relações de trabalho serem prioritariamente definidas em cada local de trabalho, as demais instâncias, dependendo do sistema (estatutário e liberal) ou dos mecanismos institucionais de regulação, de acordo com o modo de acumulação do capital em cada país, interferem diretamente e podem impor regras estabelecidas nos demais níveis — meso, macro e global. O sistema brasileiro de relações de trabalho tem essa característica, mas, como foi discutido, passa por um processo de flexiblização inconclusa. A legislação do trabalho define os direitos individuais do trabalho e muitos deles estão contemplados na Constituição Federal. A negociação coletiva é prioritariamente definida na relação entre sindicatos de trabalhadores e organizações patronais no setor em nível municipal ou regional. As centrais sindicais e instâncias superiores do sindicalismo trabalhista e patronal vêm desempenhando papel mais restrito na negociação. No entanto, nada supera a instância do local de trabalho na

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definição do cotidiano do trabalho e na forma como as relações de trabalho são percebidas pelos trabalhadores.

As competências podem ser adquiridas por todos os agentes das relações de trabalho. Elas estão definidas como saberes, conhecimentos, habilidades e atitudes e a capacidade de transformá-los em ação e resultados. As competências ou a profissionalização no trato das relações de trabalho dependem, em primeiro lugar, da ocorrência dos eventos e das situações práticas colocadas. Essas situações geralmente envolvem conflitos implícitos e explícitos e exigem dos agentes capacidades de ação para encontrar saídas e encaminhamentos aos problemas. Em segundo lugar, pelas características do conflito trabalhista, estão envolvidas relações sociais e coletivas entre representantes, o que implica uma relação de serviço cujo encaminhamento é político e qualitativo. Em terceiro lugar, nas relações de trabalho, a comunicação e a informação são fundamentais e definidoras das ações dos agentes envolvidos. Assim, as competências em relações de trabalho e sindicais podem ser definidas como um conjunto de saberes:

Saber identificar as dimensões definidoras;

Saber identificar as estratégias e interesses dos agentes (players);

Saber identificar a força dos sistemas e sua dinâmica;

Aprender com o evento e a situação;

Gerar serviços e qualidade;

Comunicar e criar arquivo e memória;

Agir dentro de parâmetros éticos e democráticos. As relações de trabalho em uma perspectiva estratégica

A seguir, são propostos alguns passos para criar, no âmbito da organização, uma prática voltada para o exercício estratégico das relações de trabalho.

1. A visão estratégica com foco na organização e no local de trabalho

As relações de trabalho exigem uma perspectiva global e estratégica. Pensar os seus eventos e fenômenos de forma global e estratégica ajuda a entender a dinâmica atual das relações de trabalho. Mesmo uma ação local – em uma empresa ou setor – está informada pelas interfaces estratégicas. As competências dos agentes das relações de trabalho — trabalhadores, lideres sindicais, gestores e reguladores (governantes) — envolvem a capacidade de articular as questões imediatas do cotidiano do trabalho e as estratégicas, que envolvem pensar os setores, os interesses em jogo e as necessidades do país no contexto global a médio e longo prazos.

O esforço em elaborar o plano estratégico de relações de trabalho tem em vista a preparação para o futuro e para o novo paradigma da descentralização da negociação e da organização no local de trabalho. No entanto, não substitui as práticas emergentes diante das situações de cooperação e antagonismo próprias das relações de trabalho. Um dos focos importantes para pensar as estratégias em relações de trabalho parte da própria organização ou local de trabalho.

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Entende-se aqui o plano estratégico como um conjunto de procedimentos para pensar o futuro adequado para as partes e os agentes em relações no nível de uma empresa, organização pública ou social. Os agentes estratégicos, ou chamados players das relações de trabalho, são os trabalhadores, os dirigentes sindicatos, os gestores de empresas e organizações e os governantes, que assumem posições temporárias nas estruturas do Estado.

No âmbito da organização ou local de trabalho é importante que se identifique a missão da organização no que se refere aos valores do trabalho e das pessoas. Se a missão é definida com uso dos termos inovação, competição, qualidade, flexibilidade e produtividade, cabe compatibilizá-la com as necessidades sociais e pessoais do trabalho. O procedimento da definição da missão cabe à organização no local de trabalho, à empresa e ao sindicato.

O passo seguinte seria a avaliação do contexto geral: os cenários políticos, econômicos e sociais e seus efeitos no campo das relações de trabalho, do mercado de trabalho e no emprego. Aqui é importante considerar o contexto global e os pontos de contato com as realidades do país para captar as tendências favoráveis ou não ao desenvolvimento das relações de trabalho que os agentes consideram adequadas e avançadas.

2. Diagnóstico das relações de trabalho ANÁLISE EXTERNA

Contexto externo da organização: propriedade e acionistas, sindicatos,

trabalhadores do setor, governo, concorrência, consumidores e fornecedores. Avaliar oportunidades e ameaças do contexto externo.

Análise setorial: mercado de trabalho, características das empresas, relações sindicais, convenções coletivas e acordos coletivos. Conflitos, greves e reivindicações ocorridos no setor.

ANÁLISE INTERNA NO LOCAL DE TRABALHO

Avaliar os pontos fortes e fracos da organização.

Verificar o padrão das condições de trabalho comparativamente ao mercado.

Salários e benefícios adotados pela empresa em relação ao mercado.

Verificar indicadores de clima e satisfação no local de trabalho.

Conflitos, greves e reivindicações ocorridas no local de trabalho.

Verificar os acordos coletivos em comparação com a Convenção Coletiva.

Reivindicações e resultados no local de trabalho.

Reclamações e processos trabalhistas.

3. Objetivos e metas

Identificar as diretrizes e propósitos mais gerais da organização no local de trabalho. Estabelecer objetivos e metas no campo das relações de trabalho, identificando os eventos previstos no tempo.

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4. Estratégias Definir estratégias de acordo com os objetivos e as metas. Definir os meios e

recursos. Investimentos necessários e responsáveis pela melhoria das relações de trabalho.

5. Projetos e planos de ação Abordagem de gestão de projetos pode ser importante para desencadear

mudanças planejadas e inovadoras no campo das relações de trabalho. Importante que sejam priorizados eventos e atividades com o devido orçamento e cronograma

6. Avaliação, relatórios locais ou relatório gerencial e outros instrumentos

Organizar sistema de informação amplo, democrático e transparente para todos

os trabalhadores e funcionários da organização para comunicar os eventos e as atividades. Elaborar estudos comparativos, séries salariais e sistemas de avaliação dos acordos coletivos vis a vis as convenções coletivas. Isso contribui para a maturidade das relações profissionais de trabalho Considerações finais

O campo das relações de trabalho e sindicais tem uma dinâmica complexa que permite o desenvolvimento de competências individuais e coletivas para empreender mudanças nos diversos níveis que envolvem a questão do trabalho. O compromisso é a mudança do patamar da categoria trabalho para um nível superior ao que temos visto até hoje. A orientação final é que não é preciso ficar esperando as reformas institucionais para empreender mudanças no sentido da democratização do sistema de relações de trabalho. Isso vai depender da capacidade dos agentes em formular projetos estratégicos e garantir o seu encaminhamento e cumprimento ao longo do tempo. As organizações no local de trabalho e a descentralização das negociações coletivas representam o novo paradigma no campo das relações de trabalho e, para desenvolvê-las, é necessária a formação de competências em uma perspectiva coletiva e política de modo a não permitir o seu isolamento em relação a outras dimensões das relações de trabalho. Assim, firma-se um campo mais progressista, diverso dos enfoques predominantes da ideologia neoliberal, comprometida com a desregulamentação e a privatização dos direitos sociais do trabalho, que muito influencia o campo das competências gerenciais.

Para finalizar, são indicados os eixos de um programa de desenvolvimento de competências em relações de trabalho e sindicais:

Estudo do cenário das relações de trabalho e do sindicalismo (global e Brasil)

Definição de competências em relações de trabalho e sindicais

Foco no ambiente econômico e empresarial

Análise setorial e principais desafios

Avaliação da atuação sindical no setor

Atuação gerencial no contexto das relações de trabalho

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Dimensão jurídica das relações de trabalho

Negociação e simulação de cenários

Definição do mapa estratégico das relações de trabalho

Definição do plano estratégico, de projetos e planos de ação no campo das relações de trabalho.

Estudo de caso para aplicação: a DaimlerChrysler no Brasil

O caso da DaimlerChrysler do Brasil4 foi escolhido devido ao fato de representar os traços mais próximos e mais avançados do novo paradigma de relações de trabalho que envolve a organização no local de trabalho (OLT), no caso representado pela comissão de fábrica da DaimlerChrysler, conquistada e mantida há mais de 20 anos pelos trabalhadores da empresa.

Não há aqui nenhuma responsabilidade da empresa na definição do caso. Todas as informações foram levantadas por pesquisa em relatórios disponíveis, observação-participante em processos de educação continuada e outros eventos junto aos agentes das relações de trabalho (comissão de fábrica, sindicato dos metalúrgicos do ABC, gerência de relações trabalhistas e de RH da empresa). Há também vídeos produzidos pela comissão de fábrica e fitas inéditas gravadas durante cursos e debates.5

Uma nota para iniciar: em evento internacional ocorrido no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, em 2005, entre representantes dos trabalhadores da Alemanha e Brasil, incluindo os sindicatos de Campinas, Juiz de Fora e ABC6, ficou registrado, em depoimento do representante alemão, que a experiência brasileira de organização no local de trabalho estava em um patamar mais avançado em termos de independência, autonomia e negociação que o verificado na empresa alemã. A co-gestão e a participação no local de trabalho das empresas alemãs aparentemente estão adormecidas e acomodadas dentro do sistema estatal.7

A visão da empresa

A história da DaimlerChrysler do Brasil começa com a chegada do polonês Alfred Jurzykowski ao Rio de Janeiro, em 1950. O empreendedor polonês, observando as oportunidades no país, inicia uma importação de chassis de caminhões a serem utilizados nos veículos de transporte coletivo, o que serviria de aprimoramento para o transporte urbano local. Com o sucesso de suas vendas, o empresário passa a representar exclusivamente a marca Mercedes-Benz no Brasil, abrindo unidades de montagem dos veículos em São Cristóvão (RJ) e na rua da Móoca, em São Paulo.

Então, em 1951, vem ao Brasil Wilhelm Haspel, presidente da Daimler-Benz na época, para analisar a viabilidade de produzir veículos no país. Assim têm inicio as

4 O caso da DaimlerChrysler é objeto de pesquisa de iniciação científica de Giulia Cricenti, a quem cabem créditos

na organização e redação do caso, orientada por mim no âmbito do Departamento de Administração da Faculdade de

Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). 5 Agradecimentos especiais ao gerente de Relações Trabalhistas da DaimlerChrysler, Eliseu Prata; ao presidente da

Comissão de Fábrica até 2005, Moisés e o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Tarcísio Secolli. 6 A mesa de discussão sobre as experiências das comissões de fábrica entre Alemanha e Brasil foi coordenada e

registrada em gravador pelo autor do artigo. 7 Para uma discussão da história da co-gestão na Alemanha, verificar TRAGTENBERG (1980).

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obras da primeira fábrica da Mercedes-Benz no Brasil, em 1953, localizada na Vila Paulicéia, em São Bernardo do Campo, seguidas da produção do primeiro bloco de motor a diesel da América Latina feita pela Sofunge (Sociedade Técnica de Fundições Gerais S.A.), em 1955, para a Mercedes. Esse foi um marco representativo das condições do Brasil de receber sua primeira fábrica montadora de automóveis voltada para o transporte comercial.

Em 1956 é inaugurada a fábrica da Mercedes-Benz no Brasil em São Bernardo do Campo, pelo presidente Juscelino Kubitschek. A fabrica possuía 24 mil m2, e começaria a operar com 862 funcionários, sendo seu primeiro presidente o polonês Alfred Jurzykowski. A fábrica começou com a produção de caminhões e chassis de ônibus, obtendo uma entrada notável no mercado brasileiro, uma vez que este não dispunha de veículos de tonelagem semelhante aos da Mercedes.

No ano de 1957, a empresa já pensava em investir em mão-de-obra qualificada, de valor essencial para o sucesso da montadora, inaugurando o Programa de Aprendizagem Industrial em parceria com o Senai, programa este que até hoje trabalha para qualificar e treinar profissionais de nível técnico para atuar nas áreas produtivas.

Na década de 1960, período em que vigora a ditadura militar no Brasil, uma crise democrática assola o país, espalhando um clima bastante apreensivo e repressor às liberdades de iniciativas individuais. A Mercedes-Benz, entretanto, no mesmo espaço de tempo, caminha a passos largos para seu desenvolvimento, abrindo portas rumo ao mercado externo. A partir de 1961, saem os primeiros ônibus para exportação direcionados ao mercado latino-americano, que não só abrem novos mercados como acabam representando um grande marco no que se refere à confiabilidade dos produtos da Mercedes-Benz.

Em 1966, morre Jurzykowski, presidente da empresa durante 10 anos. Assim, o controle acionário da montadora passa integralmente para a Daimler-Benz AG, que acaba por celebrar em 1968 o marco de produção de 100 mil veículos em São Bernardo do Campo. Dando continuidade a esse momento de expansão, a Daimler-Benz adquire a Sofunge, em 1969, e lança o primeiro motor a diesel com injeção direta.

Em meados de 1970, a Daimler-Benz começa a investir mais em tecnologia na fabricação de seus veículos, lançando o primeiro leve a diesel do mercado. Dispondo de uma previsão avançada, acaba por aproveitar o boom das vendas como resultado da crise do petróleo, em 1973. Além disso, a empresa começa a empreender pesquisa e tecnologia para lançar motores de combustíveis alternativos, como gás natural, óleos vegetais esterificados, álcool, entre outros. No ano de 1979, a unidade de Campinas foi inaugurada, voltada à fabricação de ônibus. A fábrica, posteriormente, em 2000, deixaria de ser uma unidade de produção para reunir atividades de assistência técnica, pós-venda, comercialização de peças, treinamento e desenvolvimento da rede de concessionários. Na mesma década, a empresa decide investir na criação de um Programa de Estágios, com o objetivo de promover o intercâmbio da Companhia com universidades nacionais e internacionais, em busca de que futuros profissionais aprimorassem seus conhecimentos.

Com a crise do petróleo e o lançamento do Pró-Álcool (Programa Nacional do Álcool) pelo governo federal, a Mercedes-Benz, no inicio dos anos 80, introduz no mercado caminhões movidos a álcool. Vários caminhões da Mercedes continuam a ser lançados com motor a álcool até 1986, quando volta a se estabilizar o preço do petróleo.

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A década de 80 também simboliza para a Mercedes uma fase na qual é dada grande importância para o investimento na capacitação de seus funcionários, destacando-se a inauguração de seu Centro de Treinamento em 1982, na fábrica de São Bernardo do Campo. Mais além, a empresa torna-se a primeira indústria do setor automotivo a implantar uma jornada flexível de trabalho, ação adotada por consenso entre a Companhia e os trabalhadores. Nesse contexto, os conflitos do trabalho são intensos na região do ABC e é criada a Comissão de Fábrica dos Trabalhadores da Mercedes-Benz, com anuência da empresa. Ainda em 87, a Mercedes cria um Programa de Trainees para formar profissionais com conhecimentos globais da empresa, potencialmente capacitados a propor e implantar inovações.

Nos anos 90, a fábrica de São Bernardo do Campo, simultaneamente a um intenso processo de evolução tecnológica — ratificado com a inauguração do seu Centro Tecnológico de Desenvolvimento (CDT), contando atualmente com 600 colaboradores —, comemora o marco de um milhão de veículos produzidos no Brasil. Outros saltos da década foram: primeira indústria do país a obter o certificado de garantia ISO 9001 e lançamento da nova geração de motores com gerenciamento eletrônico.

No campo da gestão de processos de trabalho, os anos 90 trouxeram notáveis transformações internas na Mercedes-Benz. Em 1994, foi trazida para a fábrica de São Bernardo a ferramenta Kaizen, com o objetivo de promover ações de melhoria contínua na produtividade da fábrica, o que implicou novos processos produtivos e administrativos permeados pelos princípios da qualidade total. Com o advento da globalização, instrumentos como o Kaizen foram essenciais para acompanhar a competitividade internacional. Logo em 1996, iniciou-se a formação do Trabalho em Grupo na Mercedes Benz, visando à intensificação das atividades em conjunto entre os trabalhadores, objetivando maior comprometimento e responsabilidade.

O ano de 2000 é marcado pela transformação da Mercedes-Benz na atual DaimlerChrysler do Brasil, e a fábrica de São Bernardo do Campo, além de iniciar a produção de plataformas de ônibus, é escolhida para produzir e exportar motores para equipar os caminhões pesados da Freightliner, nos Estados Unidos. Assim, além de a unidade do ABC aumentar em linhas de produção, passa a contar com equipamentos de mais avançada tecnologia. No mesmo ano, a empresa torna-se a única do setor automobilístico a instituir uma Comissão de Conciliação Prévia, esta com objetivo de solucionar conflitos individuais de trabalho de colaboradores e ex-colaboradores, possuindo a vantagem de solucionar problemas com a agilidade sem a intervenção do Estado na relação empresa-empregado.

A visão dos trabalhadores Para entender de fato a singularidade do modelo de relações de trabalho na

DaimlerChrysler do Brasil, além de se buscar informação institucional a respeito do histórico de mudanças e conquistas da empresa em si, é preciso, especialmente, analisar o ponto de vista dos trabalhadores em relação a cada período de atuação da DaimlerChrysler.

Com o objetivo de registrar não só histórico dos fatos marcantes para os trabalhadores da DaimlerChrysler, como também as opiniões deles frente a esses fatos, foi produzido um documentário em vídeo comemorativo dos 20 anos de Comissão de

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Fabrica da DaimlerChrysler, pela TVT, uma ONG criada para absorver recursos e aplicar em comunicação dos trabalhadores e com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Esse vídeo identifica a visão dos trabalhadores da empresa sobre a sua história de lutas, conquistas, negociações e acordos.

O contexto principal de início da luta dos trabalhadores na fábrica de São Bernardo do Campo da DaimlerChrysler é a fase da ditadura militar, em meados da década de 70. Esse período é marcado por brutal repressão popular, autoritarismo e diminuição das liberdades individuais democráticas. No contexto da fábrica em questão, as ações tomadas no ambiente externo, pelos militares, acabam se refletindo na própria atitude dos diretores e gerentes da DaimlerChrysler, os quais eram responsáveis por um autoritarismo desmedido para com seus subordinados trabalhadores. Um exemplo dado pelos funcionários da empresa na época é a contratação de seguranças, que funcionavam como “majores do exército” e vigiavam ininterruptamente cada trabalhador dentro da fábrica; além disso, os funcionários notavam que o próprio tratamento de seus diretores para com eles era ilustrativo de uma relação desigual, em que, segundo o operário Edson Silva, “a empresa tratava o trabalhador como uma simples máquina”.

A situação teve seu auge ainda no final do período do militar, sendo que o operário, nas palavras do funcionário Edílson Ferreira da Silva, “era o boi que fazia o serviço e depois ia para o açougue”. Essa situação representava a concepção de que o trabalhador só era de fato um cidadão dos portões da fábrica para fora. No entanto, os precedentes para a ruptura desse modelo autoritário começaram logo na década de 80, no bojo do movimento do novo sindicalismo.

Sucedeu-se, então, uma série de greves gerais no setor, mais especificamente dos operários da fábrica da então Mercedes que, conduzidos por um sindicato atuante, como era o dos Metalúrgicos do ABC, constituíram uma força de resistência jamais presenciada anteriormente pela classe operária brasileira. Tal resistência foi, segundo os funcionários, a grande responsável por proporcionar o começo das conquistas dos trabalhadores na fábrica de São Bernardo.

Embora o Sindicato tenha sido cassado entre 83 e 84, os trabalhadores permaneceram mobilizados na luta por melhores salários e melhores condições gerais de trabalho. O contexto era considerado um “momento rico” para a vivência dos trabalhadores na região do ABC. Nessa fase, tem início o projeto daquilo que seria a maior conquista dos trabalhadores na DaimlerChrysler: a Comissão de Fábrica.

De acordo com os líderes sindicais no ABC, mesmo sendo já planejada no início da década de 80, a idéia de concretizá-la ainda sofria bastante resistência por parte da empresa. Segundo Vicente Paulo da Silva, líder sindical, “a empresa dialogava a respeito, mas, não cedia”. A própria DaimlerChrysler procurou auxílio no Governo Federal, que a respondeu acusando o estabelecimento da Comissão de ser uma ameaça à segurança nacional.

No entanto, o momento era bastante propício para criar e institucionalizar no âmbito da empresa a comissão de fábrica, visto que se realizava simultaneamente o primeiro intercâmbio entre trabalhadores brasileiros e trabalhadores alemães na Alemanha. Neste contato internacional, o que se conferiu foi que as empresas multinacionais dos países avançados, como a Alemanha, França e Suécia entre outros, em sua maioria, contavam com uma comissão de fabrica ou forma de representação dos trabalhadores nos locais de trabalho. Então, com a grande greve de 1984 no ABC e

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a grande mobilização dos funcionários, a Comissão de Fábrica foi instituída em 1984 na DaimlerChrysler em São Bernardo do Campo.

Mesmo após sua criação, a Comissão de Fabrica era vigiada e não dispunha de muita liberdade de atuação. Segundo o consultor de Relações Trabalhistas da empresa, Eliseu Prata, ela configurava “um sindicato dentro da empresa”. Com o gradativo desenvolvimento da Comissão, surgia uma disputa de poder entre trabalhadores e gestores que, mais adiante, refletiria um certo equilíbrio de forças entre o pólo do trabalho e do capital.

Na opinião dos trabalhadores da Daimler, “a autoridade permanecia, mas não o autoritarismo”. Ou seja, a chefia ainda dispunha de poder, mas o que surgiu como novo foi o respeito pelo trabalhador e sua opinião nas atividades da empresa. Outro aspecto novo que surgiu nas relações sociais entre os trabalhadores foi o fato de se sentirem então como “uma família” ou uma comunidade mais unida.

Com a chegada da década de 90 e a abertura comercial característica desse período, começaram a ser introduzidos novos processos de trabalho e, principalmente, uma nova tecnologia, pautada pelo sucesso do modelo japonês e pela lacuna de competitividade da DaimlerChrysler com o advento da globalização nas empresas.

Esse momento foi significativo, portanto, por representar a fase de reestruturação produtiva. Esse processo admitia que as mudanças tecnológicas e aquelas concernentes à organização do trabalho teriam de ser implementadas rapidamente e radicalmente, sendo que uma das conseqüências foi o aumento considerável de demissões na fábrica de São Bernardo do Campo.

Os trabalhadores notaram o que acontecia e começaram a se articular para negociar que as mudanças ocorressem mais cuidadosamente, sem prejuízos maiores para a classe trabalhadora. No entanto, o corpo diretor da empresa, que se preocupava com a falta de competitividade, argumentava que essas transformações no processo produtivo deveriam ser rápidas e eficientes, fazendo com que os trabalhadores e seus órgãos representativos acabassem pensando mais em adaptar as mudanças do que em barrá-las. Para Walter Sanches, uma das lideranças sindicais de fábrica e representante na comissão internacional dos trabalhadores da DaimlerChrysler, houve uma mudança na estratégia de luta dos trabalhadores, da reivindicação por melhores condições de trabalho para o estudo e adaptação do novo processo produtivo.

Assim, a reestruturação produtiva foi implementada como preparação do Plano 2000 da empresa. Inovações como o Programa de Qualidade Total, a introdução do Kaizen e do Kanban (modalidades do modelo japonês de organização e controle do trabalho), a manufatura em células e o trabalho em grupo foram instalados na fábrica. Ainda assim, os funcionários percebiam que o grande objetivo da empresa com isso era claramente melhorar a qualidade do produto e a eficiência, sendo que logo perceberam que deveriam clamar por direitos que melhorariam simultaneamente sua qualidade de vida no trabalho.

Portanto, os novos acordos coletivos obtidos pela Comissão de Fabrica na década de 90 acabaram aceitando a reestruturação produtiva, porém reivindicando benefícios aos trabalhadores como recompensa. Um exemplo disso foi o lançamento, logo após a reestruturação, do Programa de Qualidade de Vida no Trabalho, entre 1994 e 1995.

Pode-se admitir então a existência de dois momentos da reestruturação produtiva: até 1995, quando a DaimlerChrysler estava perdendo competitividade ao

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demorar para implementar as mudanças, com forte resistência em torno do direito de negociação dos trabalhadores, o que acabou gerando corte de custos e demissão do pessoal; e o segundo momento, após 1995, marcado por estreito acompanhamento dos trabalhadores em cada mudança nos processos produtivos, sendo que suas articulações e mobilizações passaram a ser mais “pensadas e menos emocionais”, como dizem os próprios trabalhadores.

A partir dessa fase, então, sucederam-se vários acordos coletivos entre os trabalhadores e os gestores da empresa, como os que envolviam: terceirização, manufatura celular, Kaizen, trabalho em grupo, reestruturação salarial de horistas. E a grande vitória reconhecida pelos trabalhadores foi a posterior redução da jornada de trabalho, de 42 horas para 40 horas semanais em 1999. Tal acordo é hoje considerado pelos trabalhadores o mais importante na história da atuação dos operários na DaimlerChrysler do Brasil. Segundo o funcionário Walter de Souza Filho, “nenhum acordo foi concessão, foi resultado da nossa capacidade de organização e luta”, e, na opinião de Luis Scheuer, gestor de RH da DaimlerChrysler na ocasião, a participação ativa dos trabalhadores foi positiva pelo fato de “integrar o trabalhador no processo de decisão”.

Assim, defendido tanto pelos trabalhadores como pelos diretores da empresa – que afirmam que, com essa maior transparência, ambos os lados ganham – o modelo de relações de trabalho na DaimlerChrysler do Brasil constitui de fato um paradigma, sendo que, em relação ao futuro, tanto trabalhadores como gestores pretendem mantê-lo e acreditam que estarão mais preparados para quaisquer mudanças como, por exemplo, a Reforma Sindical e a implantação da organização no local de trabalho.

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