arlequim e modernidade

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ARLEQUIM E MODERNIDADE Tel Porto Ancona Para Jorge Coli e Luiz Dantas Penso que no se deve procurar uma coerncia de acordo com os moldes europeus para as figuras de nosso modernismo que ousaram teorizar e que se depararam com uma multiplicidade nunca vista de caminhos e opes. A originalidade de Mrio de Andrade e Oswald de Andrade - os nicos que buscaram uma construo esttica mais conseqente do ponto de vista da modernidade - deriva certamente da tentativa de entender o atraso cultural do pas, utilizando instrumentao s vezes excessiva, mas que se enquadra numa proposta ltima e subjacente: o conhecimento de nossa realidade. Ento, s se pode concordar com Ferreira Gullar quando nos afirma que a definio de vanguarda em um pas subdesenvolvido dever surgir de exame das caractersticas sociais e culturais prprias a esse pas, levando em conta a arte como expresso da particularidade, determinada e concreta no mundo. Pensando assim, torna-se realmente uma proposta vanguardista a arlequinalidade de Mrio de Andrade que faz de Paulicia desvairada, em 1922, a primeira obra realmente moderna, na medida em que j aparece como "reflexo crtica", na distino entre modernismo e modernidade, feita por Henri Lefbvre. O livro, formado por um "Prefcio interessantssimo", 23 poemas e um oratrio profano consegue uma sntese harmnica que supera os pormenores dos vrios "ismos" que concorrem para sua realizao, uma vez que as modernas tendncias estticas europias vo compor camadas de significao que partem do explcito e funcional, "pater le bourgeois" para chegar ao mais recndito do processo de criao, ao que une o esttico ao ideolgico, sem esquecer as solues tcnicas. evidente que no se pode ver, na perspectiva de um modernista de 1920, ou mesmo de 1922, uma conceituao de pas subdesenvolvido, pois estvamos ainda muito distantes dessa conscincia ou dessa formulao. O que se percebe uma descoberta primeira, quase uma intuio, manifestando-se com dinamismo e, s vezes, at com radicalidade (emocional), anunciando, para a continuao do movimento, o que Antonio

Candido chamar de "pr-conscincia de nosso subdesenvolvimento". Analisando o traje terico de arlequim que veste Paulicia desvairada, pode-se ver, no jogo dos ajustes, um componente bsico da vanguarda que o esttico procurando exprimir uma verdade de carter social, contestando as relaes estabelecidas na sociedade (Sanguineti), na medida em que toda a absoro do material europeu pode ser amarrada a duas preocupaes fundamentais do autor: o desejo de modernidade e a necessidade de participao nos destinos do mundo, sempre pensando na realizao do homem. Essa unio do projeto esttico ao ideolgico, com o sentido de ruptura, teria suas razes na descoberta que, em 1917, Mrio faz dos poetas da Abadia e do Unanimismo, ao mesmo tempo que chega at os respeitados mestres e aos "adhrents extrieurs" de Creteuil: Whitman, Verhaeren, Claudel. Sendo assim, entende-se que, apesar de toda a imaturidade condoreira (ou busca da tonalidade pica da Abadia?) e do Unanimismo tardio, o livro de estria de nosso poeta, H uma gota de sangue em cada poema vale como uma abertura para a modernidade. Ela estaria na poesia de participao conhecida em Jules Romains, no Cristianismo como prtica de vida, nos temas do sculo XX e nos primeiros passos de uma pesquisa formal renovadora. A obra, nesse ano de 1917, apesar das limitaes, no anseio de participao exibe um trao que repercutir em toda a trajetria do poeta e do intelectual Mrio de Andrade: a procura do cristianismo integral, ligado a uma reformulao do homem e da sociedade. Levando em conta estes dois aspectos - esforo em direo modernidade e necessidade de participao v-se que em Paulicia desvairada comea a se estruturar o trabalho de digerir e transformar, visando adequao, verdadeiro crivo crtico que seleciona, verificando a convivncia das variadssimas propostas das vanguardas europias. O crivo faz com que o fator influncia se torne uma nova perspectiva de criao: dinmica, original, crtica, capaz, portanto, de no se afundar no magma de tantas solicitaes modernistas. possvel que, para isso, tenha sido de grande valia a personalidade do intelectual estudioso que era Mrio de Andrade, dotado de grande cultura e sempre lutando contra a alienao, na medida de suas possibilidades de anlise. Esse fato certamente lhe conferiu o bom senso de examinar com cautela as sedues do seu tempo. Sua capacidade de evitar a

aceitao tcita - cabe consider-la hoje como um empenho na conquista da conscincia possvel (Goldmann) - comea a se mostrar em 1921, quando, em discusso com Menotti del Picchia, no incio da propaganda do modernismo na imprensa paulistana, desmascara a ineficcia ideolgica do futurismo, perguntando muito simplesmente: que futuro endireita?"(1) Desejo abordar aqui alguns aspectos da modernidade de Mrio de Andrade em Paulicia desvairada, entendendo-a como um processo cognitivo que busca a adequao crtica a seu tempo. Esses aspectos sero focalizados em seus possveis vnculos com as vanguardas europias em que se apiam; podem ser procurados tanto nos poemas, como nas leituras que o poeta deve ter feito entre 1918 e 1921. (2) O binmio modernidade-participao e/ou vivncia crtica (que, alis, j lhe inerente) - precisa ser estudado em funo do motivo que organiza esteticamente Paulicia desvairada: o arlequim, que tambm o "clown", ou do adjetivo "arlequinal", neologismo que expressa dialeticamente os aspectos mltiplos ou as antinomias. "Arlequinal" a palavra com que o poeta conota a realidade que apreende e a expresso que, sob o ngulo da crtica, pode qualificar a obra, acusada a presena de elementos de vrias estticas, compondo diferentes camadas de significao. Quem oferece o primeiro significado do arlequim em Paulicia desvairada o prprio autor, contemporaneamente redao dos poemas, quando, em uma de suas crnicas "De So Paulo", na Illustrao Brasileira, o define como "audcia vertical" (Rio de janeiro, mar., 1921). Esse epteto de raiz futurista valoriza a metrpole moderna e cosmopolita (So Paulo, entendidas as condies histricas brasileiras), a veloz "vida americana", to propalada por Oswald e por Menotti no mesmo momento. No se esquece, porm, de colocar em outra crnica, ainda que levemente, a existncia das contradies sociais ou de expor situaes que se opem (dez., 1920). No texto de maro de 1921, alm de revelar a natureza do primeiro arlequim, o cronista defende a loucura como uma nova tica, pronta para abalar os padres convencionais. Compreende-se ento que, nesse instante da propaganda modernista, o arlequim , da mesma forma que a loucura, o instrumento de organizao desejoso de enxergar alm das aparncias, percebendo que o lrico poderia estar fundido ao dramtico, ao pattico. A audcia modernizante, ou tica liberada, atingir o eu lrico, o prprio poeta em uma de suas

caracterizaes como, por exemplo, em "O domador". Ali, ele o "esfuziante clown" que aplaude um modernismo evidente, mas exterior e ostensivo. Ou ainda, sarcasticamente, reconhece a mudana, no uma visceral transformao. E, depois da pardia do Hino Nacional, com que corta o tom grandiloqente e saudosista da primeira parte do poema, o "esfuziante clown", ou o componente de um alarde, aplaudindo, faz com que o momento captado na cidade se torne um espetculo em que o novo heri, o tecnizado, atravessa a cena louramente domando um automvel". Desta forma, a primeira parte do poema veste-se de ironia, cobrindo a altissonncia com o toque parodstico. A "audcia vertical", muito mais estratgia moderna do que futurismo rigoroso, estaria tomando a primeira e a mais popular das representaes do arlequim na Commedia dellArte: o bufo que se diverte, armado de sarcasmo. Pode assim habitar a dimenso do circo do cubismo e transpor os traos anarquistas de dad ("retablir la roue fconde dun cirque universel dans les puissances reles et la fantasie de chaque individu"). E, aqui, parece pesar com mais fora a marca do dadasmo, quando pensamos que o programa modernista de Mrio, o "Prefcio interessantssimo", define-se como expresso de uma anti-escola, aquela que zomba de si prpria, declarando no conhecer os limites entre a seriedade e a blague, ao mesmo tempo que se considera efmera (essa ltima idia semeada pelo futurismo em toda a arte moderna). Alm disso, a imagem do bufo-arlequim est no esboo da capa tipicamente "art-nouveau" que o poeta desenha em 1921 (3). Do cimo do "P" inicial, nica rea do desenho a lpis de cor que junta, bem midos, os losangos multicoloridos do arlequim no dorso de um elefante fantasia, partem, formando um caminhar em crculo, ps calados conforme os da figura sobejamente conhecida do bufo, do coringa e do rival de Pierrot. O humor de laivos dadastas impe-se no desafio do ttulo "Prefcio interessantssimo", que, no contexto brasileiro (ningum l prefcios!), vale como verdadeira antfrase. A classificao superlativa decorreria diretamente do contedo, ou seja, da proposta mxima da "escola" que inaugura: a da loucura, ou o desvairismo. Essa seria a primeira conotao, a loucura de cunho dadasta, ou a primeira camada de significao esttica, mais explcita e agressiva: o desvairismo. o "ismo" que, acompanhando dada, faz, j em sua denominao, a pardia de si prprio, enquanto apangio da anti-ordem, da loucura,

antecipando o repdio que o programa receberia de um pblico cheio de exigncias convencionais. A loucura proposta como uma nova forma de conhecimento, uma nova sabedoria. Essa idia, rica e revolucionria, contudo, havia sido proclamada pelos dadastas, que no a exploraram em profundidade (como o fizeram os expressionistas). Apesar disso, foi essa tica que abrigou a luta de laivos anarquistas contra o burgus, veiculando a imagem de um ente medocre e fechado, sem imaginao, imune novidade e moralmente hipcrita. O desvairismo ou Paulicia desvairada pretendem, como mensagem de tintas dadastas, revelar uma nova dimenso da cidade, a de um mundo moderno ldico, sem deixar, entretanto, de ser catico. Dad redimensiona, no tom jocoso, a percepo das contradies da cidade da era industrial, haurida em "Les villes hallucines" de Verhaeren, matriz confessada de Mrio de Andrade (4). Mensagem dirigida a So Paulo, ou ao Brasil, reveste-se, a partir do ttulo, de sarcasmo especial, se for lembrado o ataque com que a crtica havia acolhido em 1917 a exposio de Anita Malfatti, nossa primeira manifestao de modernidade. O desvairismo, esttica que se renega, mas que sabe construir uma base terica, est, de certo modo, respondendo pergunta feita por Lobato: "parania ou mistificao ?"(5). O arlequim-audcia, que aplaude e se encarrega de opor o riso tristeza (postura acintosamente moderna), enquanto atitude dad, sintetiza e trabalha com o humor. Sua iconoclastia no deixa, porm, de mascarar a descrena em uma ao mais conseqente, abrangendo no apenas a arte; isso faz com que o poeta, resguardado pelos limites do fato apenas esttico, apupe e vaie o "bom burgus", encerrando jocosamente a "Ode ao burgs". A vaia traduz muito bem a condio ideolgica de uma crtica inflamada, mas que se dilui no desrecalque verbal, movido pelo "rancor inebriante". Ao dio frio e firme - que glosa sonoramente a "ode" como gnero desgastado no gosto parnasiano - das estrofes anteriores, caracterizador das contradies sociais atravs do grotesco (o que nos traz mente o burgus dos desenhos de Grosz), numa perspectiva de traos expressionistas de que tratarei mais tarde, sucede a molecagem dadasta final: "Fora! Fu! Fora o bom burgus!..." (6). O prprio Mrio de Andrade, alis, acusar essa limitao ideolgica do esteticismo dadasta em anlise de 1925: "Dad niilista e abandona a realidade pela imagem. O expressionismo

universalista e gigantiza a realidade pela deformao. [...] Dad sinttico sistematicamente" (7). Todavia, a sntese dad servira para dar um rtulo obra, respondendo, em seu ttulo e no prefcio, a necessidade de lanar a propaganda irreverente, chamando a ateno para o modernismo que nascia; estratgia, portanto. No adjetivo "desvairada", pode-se mesmo destacar a idia de gradao, de pice, abrangendo no apenas o sentido de "urbs" contraditria do poeta belga, como na invectiva e na qualificao dos representantes da burguesia, quando "palhao" pejorativo e se ope luminosidade do "clown", seguindo a acepo popular da palavra - oral, do cotidiano - para sugerir com humor a vida moderna. Entretanto, a atitude dadasta no domina os poemas e o estilo dad restringe-se irreverncia. O tratamento do tempo e do espao, bem como as solues poticas, estariam buscando na simultaneidade a decomposio dos conjuntos, fundindo-se ao futurismo. Sob esse ponto de vista - do tempo e do espao - o adjetivo "arlequinal", quando se refere natureza de Paulicia desvairada, possui um certo sentido futurista obviamente calcado no pensamento de Bergson e nas conquistas da psicologia e da psicanlise. Assim, o traje de losangos aglutina a variedade da vida metropolitana no sculo XX, na simultaneidade, transmitida no nvel da tcnica, atravs das "parole in libert" e do uso dos pares de substantivos para qualificar (soluo exemplarmente explorada na "Ode ao burgus"). E haveria traos do futurismo na teoria do verso harmnico, do verso meldico e da polifonia potica, at onde ecoaram notas de Russolo e Divoire, costurando mais facetas ao traje do arlequim. Eles estariam, porm, ligados refuso que Mrio de Andrade faz da noo de harmonia potica de Gustave Kahn, exposta no prefcio sobre o verso livre, na 3 edio de Premiers pomes, obra em sua biblioteca. Esses recursos visam construo da simultaneidade, bem conhecida por nosso poeta nos futuristas italianos (8). Cabe, ento, a hiptese: a prtica da simultaneidade poderia ter se irradiado com mais fora do livro de Soffici, Bif&zf+18 - Simultaneit Chimismi lirici, edio de 1920. Obra lida certamente pelo autor de Paulicia desvairada, explora a linguagem popular e, no poema "Firenzi", oferece o poeta como um "clown". Entretanto, ali, o interesse configurar uma viso multifacetada do tempo e do espao, atravs das metforas "arco-ris" e "girndola". Alis, desenhando a cidade, Soffici no esconde sua ternura

impressionista, deixando-a ao lado do extremo dinanismo com que pinta o presente. Seus letreiros e cartazes indicadores do cosmopolitismo da metrpole podem ter repercutido na viso de So Paulo no poema "Tiet", de Paulicia desvairada. E o poetaclown do modernista brasileiro externa uma atitude esttica, da mesma forma que o "arlecchino" de Soffici; a nica diferena que o futurista italiano mantm-se bem mais preso ao fio lgico da comparao ("Noia", por exemplo). Em ambos, a arma o sarcasmo, embora a crtica e a condenao implcitas e bemhumoradamente ambguas em Mrio, se tornem pesadamente amargas em Ardengo Soffici. Neste, o arco-ris transpe um conceito de arte, ao reunir os elementos do tempo na acepo futurista que incorpora o facetamento dos planos no espao - o futurismo derivando do cubismo conceitual, segundo Lhote - ou a idia de prisma "Arcobaleno/ che rotea e roza con una diffuzione di prismi (come nella creazione)" (9). Em Paulicia desvairada o prisma teria encontrado correspondncia no losango, uma brasileira geometria. Embora fique claro que o futurismo tem um papel conformativo no livro, estruturando uma boa parte de sua potica, a posio dos futuristas mais ortodoxos quanto ideologia do moderno, aplicada clula cidade, seria repudiada por Mrio de Andrade, apesar da adeso ao tema da metrpole, pois inclina-se para uma viso mais humanista, nada interessada em classificar sentimentos lcitos ou ilcitos do ponto de vista da contemporaneidade. Esse tipo de enfoque teria sido por ele encontrado em Folgore, Pallazeschi e Soffici, que lhe garantiram uma dimenso mais lrica, mais adequada sua ligao afetiva com a cidade de So Paulo. Em Soffici sobretudo, o lirismo no exclui a apresentao da adversidade, dos antagonismos ou da revolta contra a burguesia, limitando-se, porm, constatao e descrio. Pode-se pensar, portanto, que Mrio teria recebido de Soffici uma espcie de estmulo para desenvolver seu ponto de vista impressionista, o nico, alis, que faz questo de desvendar: "Livro evidentemente impressionista./ Ora, segundo os modernos, erro grave/ O Impressionismo." ("Prefcio Interessantssimo"). divertido observar-se o jogo que o prefcio faz com seu leitor. Se, por um lado, nos aforismos anti-aforismticos (Dad), fornece com rigor documental a autoria da maior parte das citaes que transcreve, por outro, silencia sobre elas, colocando apenas aspas em determinadas afirmaes (decifre-me) ou

simplesmente nada indicando a respeito de autores e caminhos que deixaram marca, certamente, na obra. Essa observao no diz respeito unicamente contribuio de Soffici, reconhecvel na prpria capa de Paulicia desvairada, mas ainda presena de seu impressionismo mais evidente, encontrado em Arlecchino, edio de 1918, obra na biblioteca do modernista brasileiro. O Arlecchino faz jus ao nome, pois recolhe textos de Soffici de vrias pocas, textos que podem ser considerados hbridos quanto ao gnero, ficando entre a crnica, o conto e as impresses de viagem registradas em dirio. O ttulo provm do stimo texto e transmite muito bem o ponto de vista do autor; este texto, no por acaso que se localiza logo aps "Impressioni", onde Soffici, ctico espectador, ao viajar no tempo e no espao, comunica suas impresses, isto , mostra a realidade segundo as imagens no olhar. O Arlecchino, retalhos que guardam sempre um espectador sarcstico, feroz no malhar a aparncia grotesca do burgus (todos os "ismos" esto unidos nesse ataque!), continua de certa forma preso Commedia dellArte entranhada na tradio italiana. A nacionalidade do arlequim, entendido como representao dinmica de uma Itlia presente, no o salva, contudo, do passado, pois a melancolia risca constantemente o sarcasmo (que transgresso ao futurismo!...). Sob esse aspecto, este arlequim-livro bem diferente do bufo cambalhotante dadasta ou cubista, voltado para o presente numa alegre irreverncia. Otto Maria Carpeaux encontra uma boa explicao para Soffici quando compreende que ele estava buscando no futurismo a segurana de que necessitava para assumir uma obra voltada para a nacionalidade, capaz de receber seu brilhante estilo toscano. Podia ento declarar que, apesar do rompimento do futurismo com o passado, ele, Soffici, no acreditava que a aceitao do classicismo pudesse comprometer o carter modernista de sua produo. O Arlecchino teria, portanto, oferecido a Mrio de Andrade um futurismo j bastante corrodo. As "Impressioni", as paisagens, as cenas bem vincadas pelo sentimento da nacionalidade, so realmente trabalhadas dentro da tcnica impressionista das pinceladas mltiplas, que oferecem imagens "floues", areas, cujos contornos so diludos pela luminosidade, pela fumaa ou pela bruma. As divises espaciais ficam definidas, mas, atravs de um processo de sucesso, no de acumulao simultnea. Na capa do livro, entretanto, a unio dos losangos

multicoloridos do traje de retalhos do arlequim - losangos inclinados - organiza uma composio cubista de autoria do prprio Soffici, que, em sua faceta de pintor, deixou bem marcada essa tendncia. O ttulo, Arlecchino, em maisculas negras, sobrepe-se aos losangos que ocupam apenas o centro do frontispcio. A nostalgia documental de Soffici para com sua prpria obra no sofre com a soluo cubista escolhida. O ttulo refora graficamente o contedo do volume; a justaposio das letras aos losangos (brancos, azuis, pretos, cor-de-rosa forte e amarelos), a interrupo nos fios delimitadores podem ilustrar os diversos "flashes" ou momentos captados pelo autor. Esta capa ecoar em Paulicia desvairada, inspirando o desenho de Guilherme de Almeida na escolha de losangos multicores (brancos, verdes, azuis, vermelhos, amarelos) dispostos verticalmente, preenchendo toda a superfcie (10). O livro exibese como se fosse a prpria cidade, trazendo no centro do frontispcio, em destaque de cartaz branco, emoldurado por traos negros, a identificao, tambm em preto: "Mrio de Andrade/ PAULICEA DESVAIRADA". A edio no d a conhecer a autoria do poeta modernista amigo de Mrio; esse fato s foi conhecido recentemente graas ao testemunho de Rubens Borba de Moraes, escritor que viveu a implantao do modernismo brasileiro. Sendo assim, passam a ter um valor de pista, as palavras de Menotti del Picchia que, em sua terceira carta a Crispim, apresentam Guilherme de Almeida em 1920: "L brochuras futuristas e adora Deus nas alturas e Soffici e Marinetti na terra" (11). Voltando ao papel clssico do arlequim, personagem da Commedia dellArte, deve-se destacar o interesse que suscitou na poesia brasileira entre 1919 e 1922. Em Carnaval, Manuel Bandeira, alm de explorar as figuras de Pierrot, Colombina e Pierrette, manifesta sua preferncia pelo Arlequim, no momento em que se liga aos crepusculares italianos e joga com a ironia, fazendo-a reverter sobre suas prprias personagens. Em 1920, tem lugar a aposta entre Menotti del Picchia e Martins Fontes para a produo de uma obra que retomasse o tringulo Arlequim - Colombina - Pierrot. Menotti escreve As mscaras, onde retoma a situao tradicional da Commedia dellArte italiana e coloca o choque entre o amor espiritual e o amor sensual, porm sem grandes novidades, dentro de uma perspectiva decadista. o Arlequim sofrendo o mal do amor, omitindo-se perante a vida e

aparecendo apenas como o espectador cheio de sarcasmo. As mscaras fazem grande sucesso junto ao pblico, justificando no mesmo 1922 da primeira, uma edio de luxo (a consagrao de Menotti um bom ponto de reflexo: a dificuldade do Brasil chegar contemporaneidade...). Nessa edio, Paim Vieira, o ilustrador, nas vinhetas com que abre cada parte do poema, isola fragmentos do traje de losangos do Arlequim, deixando-os como senha da obra. Quanto a Martins Fontes, sua Arlequinada hesita entre o parnasianismo de m construo e um modernismo que apalpa sem conhecer, merecendo pois as mais severas censuras de Mrio de Andrade. Trata-se realmente de moda vigorando: Di Cavalcanti j estampara em Panplia, em 1918, uma Arlequinada e Ferrignac, participante do grupo modernista em So Paulo (preocupado, alis, em dar a seus quadros ttulos ligados s vanguardas europias), dedica-se a arlequins e colombinas. O poema "Carnavalada", de Guilherme de Almeida, um bom exemplo de literatura e ilustrao associadas, nas pginas de Papel e Tinta, n 1, em 1920. Ali est um arlequim mascarado, erguendo uma cortina, de modo a abrir espao para o poema. composio em que Ferrignac (que a crtica aproxima nessa poca ilustrao de Di Cavalcanti) vislumbra algumas solues do cubismo, mas termina por mergulhar em cheio no "art-nouveau". Quanto ao poema de Guilherme, mostra-se francamente decadista, frisando a dimenso de passado e a melancolia na figura do arlequim. Ento, que arlequim diferente esse Mrio de Andrade, to fortemente marcado pelo presente? Onde buscar outras razes fora de antecessores to nostlgicos? Creio que nosso poeta poderia t-lo encontrado no "Impressionismo mgico" e na alegria da "ferie" de Salmon, no anti-intelectualismo de Appolinaire, considerando a realidade como um circo, ou de Delaunay e de Seurat, entendendo que cabe poesia a reflexo sobre si prpria. Mrio, em suas leituras de 1920, 1921, encontra Salmon, cujo "Mister clown est lugubre avec humour" e a "poesia imediata" de Andr Spire. As transformaes sofridas por Salmon e Cocteau e por outros antigos cubistas como Max Jacob e Paul Derme, que se tornam neo-clssicos, sero objeto de seu estudo nas pginas de LEsprit Nouveau. L teorizam sobre a poesia e a natureza dela, aproveitando a libertao instituda por Rimbaud e o rigor de Mallarm, sem esquecer a preocupao com a psicologia. Derme d valor especial conceituao do impulso lrico,

propondo uma frmula que ser acolhida no "prefcio interessantssimo". E, assim como LEsprit Nouveau toma como base a teoria de Freud, os estudos de Ribot e dAllendy, essas mesmas idias ecoaro em nosso modernista, como bem mostram Maria Helena Grembecki e Nites Feres em seus trabalhos sobre a formao potica e sobre as leituras em francs do autor de Paulicia desvairada (12). A descoberta de uma nova lgica na lio dos primitivos, feita pelos cubistas, sua depurao esttica entre os neo-clssicos, faria dos modernos os "primitivos de uma nova era", no dizer de Mrio de Andrade. Esses "primitivos" ousam enxergar de maneira nada convencional que a do "fou" de Verhaeren, aquela do "idiot-savant" de Dad, a do palhao do circo e, agora, atravs do inconsciente, de onde brota o impulso lrico. Ento, o arlequim, personagem liberta, coringa, poder valer como o impulso lrico que nasce no inconsciente e depois trabalhado pela arte, ou melhor, pela inteligncia. E, em LEsprit Nouveau, existem vrios textos que distinguem no circo (moda em Paris na poca) a capacidade de jogar uma viso liberada do peso exclusivo da razo. Pode-se concluir, quando se observa as leituras do autor de Paulicia desvairada, que existe concomitncia no estudo e na apresentao que manifesta das diversas linhas renovadoras, pois entre 1919 e 1921, ao mesmo tempo em que l os futuristas e os neo-clssicos, no perde de vista a poesia humanizadora e metafsica daqueles que haviam provocado o desencadear de sua modernidade, passando depois a escrever na Nouvelle Rvue Franaise, e em Les Feuillets Littraires: Romains, Verhaeren, Jammes, Claudel. O ideal de cristo de Mrio continua bem amparado pela espiritualidade de Max Jacob, de Luc Durtain e de Cocteau. A essas leituras, soma-se seu importante encontro com o expressionismo (13) que contribuir para a explorao da idia de uma nova lgica, aquela que aceita a viso do chamado primitivo e que concorrer particularmente para seu mergulho no "pathos" do homem. As posies que advm desses autores e dessa esttica dariam a camada tica a Paulicia desvairada, isto , a orientao que supe a liberdade, vendo-a como forma de conhecimento do indivduo, diretamente ligada s necessidades dos homens. Tenho para mim que o anseio por uma arte de participao que reforar a ligao de Mrio com o

expressionismo alemo, embora, entre todas as vanguardas, fosse a que menos lhe oferecia condies de leitura, dado seu desconhecimento inicial da lngua alem. possvel que a exposio de Anita Malfatti em 1917 tenha sido responsvel pelo acordar de sua curiosidade pelo expressionismo, mostrando-lhe a importncia de aprender o alemo, que comearia a estudar logo em 1918. As primeiras informaes que recebe sobre o expressionismo datam de 1919, quando resolve colecionar a Deutsch Kunst und Dekoration, revista que reproduz trabalhos de artistas plsticos e divulga textos tericos. l que descobre, certamente, em 1920, um fragmento do Genius de Worringer, "Natur und Expressionismus", em que o "belo" analisado em sua precariedade de moda e a arte diferenciada da natureza, cada qual regida por suas prprias leis (14). Mrio de Andrade encontra tambm, nessa revista, pesquisas sobre a deformao da natureza em artistas do passado, valorizados por uma leitura contempornea, e sobre as conquistas da arte primitiva na expresso deles (sobre as mscaras africanas, por exemplo). Alguns dos artistas ali destacados (e em LEsprit Nouveau) merecero aplauso no "Prefcio interessantssimo" (Rodin, por exemplo), quando cuida da diferena entre o "belo" da arte, o "belo" da natureza e da lio do passado. Sempre na mesma revista alem, chega tambm temtica social que desnuda contradies, angstia, os sofrimentos dos deserdados da fortuna e cenas do submundo nos trabalhos de Munch, Eugen Zak, Seewald etc. Durante a leitura, nosso poeta estudioso vai deixando, ao longo das pginas, tradues de palavras e outros sinais. Em 1920, teria se deparado, na Deutsch Kunst und Dekoration, com dois textos tericos a que atribuo particular importncia; ambos curiosamente ilustrados com a figura do arlequim: "Die Kunst und ihre Publikum" e "Der Quell der Kunst" ("A arte e seu pblico" e "A fonte da arte" (15)). No primeiro, o autor, H. Ritter, constata a existncia de uma luta aberta entre o artista e o pblico, entendendo-a como caracterstica do modernismo, decorrente da dificuldade deste mesmo pblico perante as novas propostas. Sendo assim, o artista deveria agir como um verdadeiro revolucionrio, tenaz na desmistificao das iluses do leigo. Este artigo ilustrado pela foto de um arlequim esguio, manequim de vitrine de Lotte Pritzel; sua imagem Modigliani est longe de pretender a

rplica exata da figura humana. No segundo artigo, a fotografia que rene quatro homens fantasiados de arlequim em posies bastante descontradas - "Mscaras para a festa dos artistas" - uma boa ilustrao para a idia ali desenvolvida: o papel do conhecimento na arte. Karl Heckel escreve que Eros e Vontade no so suficientes para a produo de uma obra de arte, pois necessria a sntese entre o sentimento e a vontade para que se chegue a um "resultado criativo". Continuando, Heckel considera a vontade criadora como a fonte do trabalho artstico, localizando-a no inconsciente, onde tambm se aloja a intuio. Como se pode perceber, essas explicaes de ordem psicolgica casam-se muito bem com s outras descobertas que Mrio de Andrade faz nesse momento: as teorias de Ribot, de Freud e, principalmente, as discusses sobre arte e psicologia em LEsprit Nouveau. Entende-se, ento, que tudo concorre para a sntese "arlequinal", almejando a adequao e a coerncia. Todas as linhas modernizadoras, de uma forma ou de outra - ou, segundo seus diferentes contedos ideolgicos - postulam o advento de uma nova lgica para permitir a revelao livre do subconsciente e do inconsciente e quebrar a perspectiva gasta do antigo conceito de razo. Dentro desse cadinho de descobertas, possui, sem dvida, peso significativo, a pesquisa dos expressionistas visando a contribuio popular, a do "primitivo", a dos esquizofrnicos, possuidores de uma nova tica, de outros modos de ver o mundo. E escolhida para enriquecer e aprofundar uma prtica, imprimindo-lhe aspectos transformadores e mesmo revolucionrios. A idia de uma arte voltada para o social, que no expressionismo literrio pretende fazer da palavra ao, ambicionando a reformulao do mundo e reconhecendo a existncia de vnculo natural entre o artista e a humanidade, inclina-se para o universal, na medida em que est propondo um homem novo. idia que surgir mais tarde em Mrio de Andrade, com traos nietzchianos, quando, nA escrava que no Isaura, d ao poeta a misso de restabelecer a "sacra fria". O contato de nosso modernista com o expressionismo literrio tem incio provavelmente entre 1920 e 1921, na leitura penosa que faz da antologia de Kurt Pintus, Menschheits Dmmerung: Symphonie Jngster Dichtung (ed. 1920), quando satura as pginas de tradues manuscritas sobre palavras e versos. Mas, ao lado dessas anotaes de acesso aos textos, esto outras mais substanciosas: os sinais que destacam na margem

determinados poemas e autores e uma entusiasmada observao sobre os dirigentes da Spartakusbund alem (p. 249). Ao lado do poema de Rudolf Leonhard, "Der Tote Liebeknecht", Mrio escreveu: "O maior comunista alemo. Ele com Rosa de Luxemburgo, a maior comunista, foram horrivelmente assassinados. Idealistas formidveis". Da poesia expressionista, conhecida nesse momento na antologia de Kurt Pintus, receber sobretudo um programa esttico (a introduo do organizador) e a influncia da temtica. Ambos lhe asseguram muito mais a prtica da unio entre o esttico e o ideolgico do que as solues de ordem tcnica, devido s dificuldades na leitura. Mostrando a contemporaneidade como uma reflexo crtica, o expressionismo veicula uma tica muitas vezes pincelada por notas socialistas, em que o grotesco serve denncia do "status quo", como se v claramente no tratamento dado ao burgus. A deformao conduzir o "pathos" social em sua apreenso da marginalidade, da mercantilizao do sexo, da fome e da misria. Essa ligao do expressionismo com o sub-mundo ser muito bem assimilada em Paulicia desvairada, quando, em "Caada" e "Noturno", a repetio do signo - "arlequinal" - sintetiza as contradies com ntida carta expressionista. ento que se pode encontrar um trgico arlequim Picasso (fase do circo), parente prximo do palhao de Fernando Pessoa. Esse arlequim, em "Noturno", o prprio poeta, aquele que desmistifica a alegria em "Tristura". "Arlequinal", em "Noturno" , poema estruturado a partir do refro de rua do vendedor de batata doce assada, externa a sexualidade represada, o poeta invejoso diante da liberao do erotismo que observa nas personagens do "bas-fond" da cidade. Nesse poema surge na poesia de Mrio um trao que ir marcar as horas noturnas, percorrendo outros textos: a noite como a hora da liberao da libido. Em "Noturno" desvenda-se a matriz Baudelaire, "Crpuscule du soir" dos "Tableaux parisiens" de Les fleurs du mal. Ali, onde Baudelaire marca o epteto da noite: "soir charmant, amie du criminel" e v demnios soltos no ar, o leitor poeta assinala o ttulo. Em "Noturno" a recriao se faz: "Luzes do Cambuci pelas noites de crimes..." (V. 1); "Calor... Os diabos andam soltos no ar Corpos de nuas carregando..." (v. 27-28). (16) Alm disso, a prostituta tem por metfora "flor do mal"...

Entende-se, ento, que o autor de Paulicia desvairada faz, no prprio texto, a costura do arlequim, lidando com o universo da poesia que absorveu. Voltando s vanguardas com programas, compreende-se, ainda, que a carga expressionista do refro "arlequinal" est, por exemplo, na mascara que, em "Paisagem n 3", o poeta deve colocar a conselho de sua Loucura (no de sua musa!) e que ter, como no teatro grego, a funo de desmascarar, seguindo as pegadas do pensamento de Nietzsche. O dado expressionista completa magnificamente a idia unanimista de participao e a representao da cidade como ncleo transformador dos sentimentos e do comportamento do homem, encontrada por nosso poeta em Jules Romains. A carga expressionista faz sentido tambm ao lado da poesia de Whitman e de Verhaeren que recortam a cidade como o centro da vida moderna. Principalmente ao lado do mestre belga na capacidade de perceber as contradies. Nesse sentido, pode-se lembrar "La bourse"; em Paulicia desvairada est a sugesto de uma cruel bolsa de valores, velozmente lanada no verso harmnico - "A cainalha... A Bolsa... As jogatinas... Rua So Bento"). E Verhaeren quem fornecer a epgrafe para o Prefcio interessantssimo", aceitando juntamente com as antinomias, o papel do pioneiro, do "primitivo de uma nova era": "Dans mon pays de fiel et dor jen suis la loi". Essa modernidade bem diversa, em seu caminho humanista, da modernolatria futurista, prenncio de uma tecnocracia que Mrio de Andrade, assim como os expressionistas, tiveram a lucidez de vislumbrar e repudiar. E o repdio se d exatamente em funo do lastro que recebe do expressionismo: a crtica das estruturas sociais, com a noo implcita de classes em oposio. Ela redime nosso modernista de uma escolha de moda puramente modernista do tema da cidade. A "posie imdiate", que conhece em Spire, a poesia da Abadia, a do Unanimismo, a de Whitman, considerado Mestre pelos expressionistas, e a de Romains, convergindo para a "poesia de ao" do expressionismo da Alemanha so, quem sabe, responsveis pelo conceito de "poesia de circunstncia" que Mrio desenvolver logo depois da publicao de Paulicia desvairada. "Poesia de circunstncia" ou "literatura de circunstncia", para ele, aquela que se inscreve no presente bem definido de seu pas, que no mais se volta para a idias de universalidade e de perenidade, mas empenha-se na reflexo crtica e na atuao

direta sobre a realidade de seu tempo. E a importncia de nossa particularidade, a busca de nossa fisionomia nacional , j se delineiam no livro de 1922. Esto sobretudo no uso corajoso da lngua portuguesa falada pelo povo brasileiro, bem como na colagem da poesia popular - prego da batata-doce assada, pardia do Hino Nacional etc. - que reforam o vnculo da poesia de Mrio com a msica. Ento, na medida em que faz colagem, trabalha estruturalmente, na poesia, as costuras do arlequim. No volume preparado por Kurt Pintus, as notas marginais de nosso poeta distinguem, no mais das vezes, poemas ligados denncia de aspectos nefastos na realidade, poemas de Trakl, Klemm, Van Hoddis, Leonhard, Werfel. Destacam de forma especial - marcando com trs cruzinhas - "Der Mensch" de L. Rubiner e "An den Leser" de Franz Werfel (p. 234-35, 239). O primeiro enfatiza o valor da criao artstica como um novo tipo de conhecimento e o segundo, a importncia da fraternidade entre os homens, renegando o militarismo e atribuindo ao poeta a misso de viver todos os destinos: "Denn ich habe alle Schiksale drchgemacht" ("Pois eu vivi todos os destinos" (17)). A loucura, que Mrio viu to bem explorada no expressionismo, pode ter repercutido na iluminao com que caracteriza o delrio em "Noturno", mesclando-se ao satanismo baudelairiano, como se pode observar nos versos da matriz Les fleurs du mal citados anteriormente. Ou no alucinar, em "O rebanho", onde a ironia "Oh! minhas alucinaes!", repetida em refro, prope, sem dvida, o conhecimento mais profundo da realidade, como, por exemplo, na comparao implcita no inslito desta cena: os deputados pastando. A loucura a nova fora organizadora que foge aos padres estabelecidos e os denuncia (como o faziam, no passado, os bufes dos reis, possuidores de afiada conscincia). um atributo do poeta, ou melhor, sua companheira e conselheira. sua atitude esttica e ideolgica que, nAs enfibraturas do Ipiranga, se transforma na personagemchave, com destaque de solista. Nesse oratrio profano que encerra Paulicia desvairada, espcie de novo hino nacional para a independncia que se comemorava em 1922, Minha Loucura a personagem que se coloca sempre ao lado das Juvenilidades Auriverdes, encarregadas de caracterizar um nacionalismo que se deseja bem moderno, insurgindo-se contra a alienao e o passadismo na arte e na cultura do Brasil. Como se pode perceber, manifesta-se agora, no quadro das ligaes de Mrio de

Andrade com as vanguardas europias, uma outra camada de significao, esta bem mais densa, mais profunda, ultrapassando o sentido de propaganda do dadasino, o recurso das tcnicas futuristas, a teorizao esttica neoclssica, para buscar, no expressionismo, um instrumento de anlise voltado para a literatura, e para as estruturas da sociedade tambm. A loucura, esse tipo de conhecimento, que se quer mais profundo, liga o plano dos sentimentos (o lrico) aos planos esttico e ideolgico, desejando a unificao. E o poeta tem inteira conscincia da fora de Minha Loucura. Ento, em um ato de humildade, dentro de sua firme convico de catlico, deposita aos ps de Santa Maria, "A coroa de luz de minha loucura!". Na loucura expressionista poder ser sublinhada a idia de vivncia, que o sentido mais revolucionrio de "arlequinal". Est certo que em Paulicia desvairada existe um programa explcito, com valor de manifesto: o "Prefcio interessantssimo". Porm, logo a seguir, o segundo poema, "O trovador", responsabiliza-se pela profisso de f do poeta: o nacionalismo e, ali, a assimilao crtica de aspectos das diferentes vanguardas da Europa. A adoo do primitivismo (ou da criao popular) firma-se no plano psicolgico, com raiz expressionista (versos 1 e 2). seguida pelo reconhecimento de uma atitude dad, no sarcasmo da arlequinalidade e na sugesto sobre a existncia de vrios caminhos para construo potica (versos 3 e 4), escolhidos conforme as necessidades, na oscilao do querer: ("Intermitentemente (...)/ Intermitentemente..."). Ento, a tristeza e a dor, a loucura, de contedo expressionista, valem-se da tcnica futurista, desenhando na sonoridade do neologismo e da onomatopia, a expresso direta dos sentimentos do poeta: "Cantabona! Cantabona! Dlorom..." (versos 8 e 9). Estes versos fazem eco para a assonncia do outro verso harmnico que os antecede: "na minha alma doente como um longo som redondo" E chegou o momento da importantssima concluso, que ser a sntese do processo de criao de Mrio de Andrade, sua definio: o verso final, bem destacado pela separao estrfica: "Sou um tupi tangendo um alade!". Este verso, cuja raiz se perde em Musset "Pote, prends ton luth [...]" fundamental. Caracteriza no apenas Paulicia desvairada, mas tambm o papel de Mrio em nosso modernismo. Externa o reconhecimento do poeta de sua dupla condio de "primitivo": aquele que cria e difunde uma esttica nova,

particular e o que descobre sua condio de ser brasileiro, diferente, por sua prpria natureza, do europeu e portador de seu modo prprio de ver o mundo. Possui sua nova lgica, isto , tem conscincia de que deve encarar sua realidade. Existir como "tupi", atitude nacionalista de 1922, assumir a condio de colonizado (ainda que os olhos estejam mais voltados para o fenmeno esttico) e transform-lo em um crivo crtico, selecionando, na cultura europia imposta, apenas os elementos capazes de suprir nossas necessidades. O alade do arlequim, instrumento da cultura europia, uma realidade incorporada e valorizada... mas reformulada pelo "tupi" que passa a tang-lo, como a sua lira. Desta maneira, a ironia que exclama - "Sou um tupi tangendo um alade!" - no um absurdo (ao no ser aos olhos de um rgida lgica passadista... ) ou mero fecho jocoso para um poema que se chama "O trovador". No se cogita da "blague" dadasta, muito sintomaticamente uma vez que o poeta no escolhe o papel de jogral (que poderia ser adequado significao dadasta de "arlequinal"), aquele que interpreta composies alheias, mas se define como o trovador, criador original. Ser trovador compreende suas "razes de trovar", teoria, o que tentar organizar contando com a contribuio do modernismo europeu (18). Ser trovador significa tambm arcar com os sofrimentos que vm do culto de sua dama, sua senhora. Para Mrio, a dama escolhida a cidade, particularizada em um momento da humanidade, vivido em seu pas. Sob esse ngulo, a escolha do nome "Paulicia" e no So Paulo (este ltimo empregado apenas no primeiro poema, "Inspirao", a dedicatria que d as coordenadas da realidade), est rejeitando a mecanizao da chamada vida moderna, padronizadora das metrpoles: no o topnimo e sim o apelativo da dama que o cativou. A cidade no estar presente na sua profisso de f de trovador que se conserva no despojamento da sntese; em "Tristura" que ela se impe como uma complementao afetiva, tomada como a mulher a quem o poeta se une em uma relao de sofrimento e angstia bem expressionista, que abrange seu dilaceramento individual e o da humanidade. Alis, preciso perceber: exatamente nesse poema que o poeta faz questo de demonstrar que sua atitude de arlequim no o descompromisso alienado. Muito mais se poderia trabalhar em torno da penetrao de aspectos das vanguardas europias em Paulicia

desvairada, considerando diversos nveis. Entretanto, o que se pretende nesta tentativa de compreenso trazer a idia de que, bem alm daquilo que pode parecer, primeira vista, simples euforia modernista ou mesmo uma certa ingenuidade provinciana na perseguio de tantos "ismos", est nascendo um importantssimo projeto original de independncia. Marca o empenho na identificao e na anlise dos elementos que convm poesia brasileira absorver e transformar. Ecletismo? Sem dvida... tambm! No se deve esquecer que nosso modernismo tem os impulsos do adolescente. Mrio de Andrade, em sua formao de intelectual brasileiro do incio do sculo e em sua condio particular de pequeno-burgus, portador de envolvimentos de classe muito complexos, no poderia atingir, em 1922, maior coerncia ideolgica. Sua coerncia, nesse instante, a liberdade com que se dispe a descobrir e a analisar, liberdade que o faz moderno. So Paulo, 1976; 1979. Notas (1)ANDRADE,.Mrio de. Curemos Pery: Carta aberta a Menotti del Picchia. Jornal do Commercio. So Paulo, 31 jan., 1921. (Recortes - Arquivo MA - IEB-USP) (2) O acervo Mrio de Andrade pertence ao patrimnio do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB-USP). (3) Embora no seja desenho assinado, com base em outros trabalhos de Mrio, pode-se supor a autoria dele (Coleo Mrio de Andrade. IEB-USP) (4 )As cartas de Mrio de Andrade a Srgio Milliet e a Anita Malfatti tratam de Verhaeren como autor de cabeceira na poca da criao de Paulicia desvairada. (5)A interrogao resume o ataque de Monteiro Lobato pintora: A propsito de exposio Malfatti. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 20 dez., 1917. (6) ANDRADE, Mrio de. "Ode ao burgus". In: Paulicia desvairada. So Paulo, Mayena, 1922, p. 69. (7) Oswald de Andrade: Pau Brasil. In. BATISTA, Marta Rossetti et al. ed. Brasil- 1 tempo modernista - 1917-29: Documentao. So Paulo, IEB-USP, 1973, p. 229. (8) Mrio conhecia tambm os cubo-futuristas traduzidos por revistas francesas; a nfase de suas leituras recai, porm, sobre os italianos.

(9) SOFFICI, Ardengo - "Poesia". In: Bif&zf+ 18- Simultaneit Chimismi lirici. Florena, Vallecchi, 1919, p. 13. Na biblioteca de Mrio est tambm Primi principi di una esttica futurista de Soffici (Florena, Vallecchi, 1920), obra que bem lhe definiu a simultaneidade: "Simultaneit - Posto lartista come centro mobile delluniverso vivente, tutte le sensazione ed emozioni, senza prospettiva di spazio o di tempo, attirate e fuse in un atto creativo poetico./ Simultaneit di stati danimo polarizzatti per vie analogiche di ricordi, di pensieri remoti, dimpressioni daltri luoghi e daltri tempi, come luci dastri erranti concentrati in un specchio." (p. 84). (10) A capa de Paulicia foi objeto da ateno dos modernistas, pois, alm do desenho, talvez de Guilherme, o escolhido, Di Cavalcanti tambm traou uma representao, sem contar o esboo do prprio Mrio, em 1921. Alm disso, o volume possui a ilustrao de Moya, Paulicia desvairada. (11) HELIOS (Menotti dei Picchia). Cartas a Chrispim III". Correio Paulistano. So Paulo, 14 out. 1920, p. 3. In. DEL PICCHIA, Menotti - O Gedeo do modernismo. Ed. org. por Yoshie Sakyama Barreirinhas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1982, p. 198. (12) FERES, Nites. Leituras em francs de Mrio de Andrade. So Paulo, IEB-USP, 1969 e GREMBECKI, Maria Helena Mrio de Andrade e LEsprit Nouveau. So Paulo. IEB-USP, 1969. (13) A conferncia de Gilda de Mello e Souza sobre a dcada de 20 chamou minha ateno para a presena do expressionismo na formao do pensamento esttico de Mrio de Andrade (IEB, 1972). (14) WORRINGER, W. Natur und Expressionismus. Deutsch Kunst und Dekoration, n. 5. Darmstadr, fev., 1920, p. 265. (15) RITTER, Heinrich. Die Kunst und ihr Publikum. Ibidem, n 6, mar., 1920, p. 361-62. O nmero apresenta tambm a pintura de Lovis Corinth, o mestre de Anita Malfatti. HECKEL, Karl Der Quell der Kunst. Ibidem, n 7-8, abr.-maio, 1920, p. 62-3. (16) Exemplar de Les fleurs du mal anotado por Mrio de Andrade. Paris, Calman-Lvy, (1868), p. 273. (17) WERFEL, Franz - An den Leser. ln: PINTUS, Kurt, ed. Menschheits Dmmerung: Symphonie Jngster Dichtung. Berlim, Ernst Rewohlt, 1920, p. 239.

(18) Cumpre lembrar que o expressionismo valoriza a figura do criador popular - os poetas medievais, os ilustradores dos panfletos gticos, as mscaras consagradas no carnaval do povo (entre elas, as mais comuns da Commedia Italiana). (in: Mariodeandradiando. So Paulo,Hucitec,1996,p.17-35).