argan, giulio carlo. arte moderna do iluminismo aos movimentos

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ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos.São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992 ( principalmente o capítulo VI A época do funcionalismo). A idéia de que a obra de arte apresente um bem de valor intrínseco, estranho ao trabalho comum, permeia a maioria dos estudos sobre a arte. A obra do historiador e pensador da arte Giulio Carlo Argan (1909-1992) refuta tal noção e parte de uma premissa contrária: a de que a arte consista num modo de produção de valor entre outros, portanto circunscrito historicamente, e de que assim constitua uma forma paradigmática de trabalho. História da Arte Italiana, de Argan, lançada pela Cosac & Naif, é uma obra vasta e algo enciclopédica, em três volumes. Seu projeto é expressamente didático: dirige-se aos estudantes do ensino público médio e universitário, da Itália, e os livros também compreendem uma pequena coletânea, com textos de referência, de outros autores, organizados por Bruno Contardi, colaborador de Argan. Analogamente, o acervo de ilustrações é abundante, e tem qualidade inclusive na edição da Cosac & Naif e portanto dispensa a consulta, pelo menos para o básico, a outras fontes. Tudo isto torna a obra extremamente útil ao estudante. Mas o seu interesse ultrapassa em muito o horizonte prático das obrigações escolares e contribui efetivamente para a sua dignificação. Pois oferece uma história da arte muito superior em termos de densidade de reflexão e de riqueza de dados à História da arte, de E. H. Gombrich, que a Zahar publicou, e que, sem tirar aqui o mérito de sua fluência e clareza, foi concebida originalmente para o curso secundário inglês. Ademais, para o leitor brasileiro que já leu algo de Argan, o conjunto pode ensejar uma visão mais sistemática acerca da obra vasta e complexa do autor. Isto, no caso, é crucial, porque, diversamente da maior parte da historiografia didática de raiz anglo-saxã a que se recorre, a obra de Argan, precisamente por não ser de cunho empirista, pede uma aproximação ciente do raciocínio ambicioso e sistemático do autor. Com efeito, a se considerar o ponto de vista pós-moderno, que, como se sabe, gravita em torno da fragmentação e da recusa à historicidade ou que, no dizer de Robert Kurz, faz da incoerência virtude , o autor italiano será o último de uma linhagem de pensadores com a ambição de refletir sistematicamente. Já foram publicados de Argan no Brasil: História da arte como história da cidade (Martins Fontes, 1992); Arte moderna do Iluminismo aos movimentos

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Argan, Giulio Carlo.

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Page 1: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos

contemporâneos.São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992 ( principalmente

o capítulo VI – A época do funcionalismo).

A idéia de que a obra de arte apresente um bem de valor intrínseco, estranho ao

trabalho comum, permeia a maioria dos estudos sobre a arte. A obra do historiador e

pensador da arte Giulio Carlo Argan (1909-1992) refuta tal noção e parte de uma

premissa contrária: a de que a arte consista num modo de produção de valor entre

outros, portanto circunscrito historicamente, e de que assim constitua uma forma

paradigmática de trabalho.

História da Arte Italiana, de Argan, lançada pela Cosac & Naif, é uma obra

vasta e algo enciclopédica, em três volumes. Seu projeto é expressamente didático:

dirige-se aos estudantes do ensino público médio e universitário, da Itália, e os livros

também compreendem uma pequena coletânea, com textos de referência, de outros

autores, organizados por Bruno Contardi, colaborador de Argan.

Analogamente, o acervo de ilustrações é abundante, e tem qualidade –

inclusive na edição da Cosac & Naif – e portanto dispensa a consulta, pelo menos para o

básico, a outras fontes. Tudo isto torna a obra extremamente útil ao estudante. Mas o

seu interesse ultrapassa em muito o horizonte prático das obrigações escolares e

contribui efetivamente para a sua dignificação. Pois oferece uma história da arte muito

superior em termos de densidade de reflexão e de riqueza de dados à História da arte,

de E. H. Gombrich, que a Zahar publicou, e que, sem tirar aqui o mérito de sua fluência

e clareza, foi concebida originalmente para o curso secundário inglês. Ademais, para o

leitor brasileiro que já leu algo de Argan, o conjunto pode ensejar uma visão mais

sistemática acerca da obra vasta e complexa do autor.

Isto, no caso, é crucial, porque, diversamente da maior parte da historiografia

didática de raiz anglo-saxã a que se recorre, a obra de Argan, precisamente por não ser

de cunho empirista, pede uma aproximação ciente do raciocínio ambicioso e sistemático

do autor. Com efeito, a se considerar o ponto de vista pós-moderno, que, como se sabe,

gravita em torno da fragmentação e da recusa à historicidade – ou que, no dizer de

Robert Kurz, faz da incoerência virtude –, o autor italiano será o último de uma

linhagem de pensadores com a ambição de refletir sistematicamente.

Já foram publicados de Argan no Brasil: História da arte como história da

cidade (Martins Fontes, 1992); Arte moderna – do Iluminismo aos movimentos

Page 2: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

contemporâneos (Companhia das Letras, 1993); Clássico Anticlássico – o

Renascimento de Brunelleschi a Brueghel (Companhia das Letras, 1999);Projeto e

destino (Ática, 2000). Há também uma ensaística notável e consistente, de autores

brasileiros que discutem o pensamento de Argan (1).

Na obra presente, porém, se distingue mais facilmente o fio do pensamento do

autor. Apesar do que o título sugere, a obra não se prende ao meio italiano. O título e a

destinação ensejaram a Argan uma estratégia: dirigir-se a um público jovem e amplo,

sujeito a uma educação de massa e a uma indústria cultural, já pautadas pela irreflexão e

pela recusa do juízo histórico.

Se o estudante italiano é o primeiro interlocutor circunstancial, o móvel é levá-

lo a se situar num ponto de vista histórico, dialético e materialista, extensivo a uma

escala bem maior de interlocutores. Em síntese, o propósito do autor foi o de fazer uma

história reflexiva – da arte ocidental, por certo-, que vem desaguar e nutrir os debates

sobre a arte moderna.

Nesse sentido, o pretexto serve, porque a arte italiana, mais do que nenhuma

outra, esteve ao longo de muitos séculos no centro dos acontecimentos da história da

arte. O tema propicia, pois, um raciocínio sobre o desenvolvimento histórico das várias

práticas e experiências denominadas de “arte”, que, no caso desta obra, abrange da pré-

história e, a seguir, da arte minóica, de Creta, a um breve capítulo sobre o romantismo e

o futurismo italianos.

A brevidade se explica; é que os três volumes em questão se ligam

argumentativamente a um quarto, Arte Moderna, publicado originalmente, em 1970, ou

seja, logo após os três em questão. E a mudança do título, apesar dos elos de ligação,

também é explicável; não cabia aqui persistir sob a mesma denominação, uma vez que

com o advento da arte moderna as linhas mestras desta independem do campo italiano,

reduzido na modernidade a uma posição periférica.

De fato, a arte moderna, para Argan, se engendrou a partir do Iluminismo e em

estreita conexão, mesmo se antitética, com a Revolução Industrial. Assim, com a

industrialização tardia da Itália se somando ao peso de sua tradição de excelência

artesanal e do individualismo autoral correlato, a arte italiana não dispôs da condição

básica da nova arte e caiu fora da nova dinâmica produtiva. Com efeito, a lógica e a

energia das transformações da arte moderna passavam a decorrer de uma confrontação

ou tensão estabelecida com o sistema geral da produção, dado pela superação do modo

de trabalho artesanal e pela produção em larga escala.

Page 3: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

O leitor poderá notar que a perspectiva moderna de Argan se delineia a partir

da consciência de um descentramento. Falará isso algo ao leitor brasileiro? Decerto, a

excentricidade italiana, frente à dinâmica da arte moderna, comporta a valorização da

excelência artesanal, conforme dito acima. Já, no Brasil, o descentramento frente a arte

moderna é de outro teor e comporta, na sua bagagem, a desvalorização escravocrata do

trabalho artesanal.

Não obstante essas diferenças opostas ou em simetria, acha-se, entretanto,

alguma tangência hodierna entre tais descentramentos? O certo é que o interesse por

Argan no Brasil é de fato bem maior do que em países mais próximos da Itália e nos

quais a história da arte está bem arraigada, em outras bases teóricas – talvez, menos

consistentes e sistemáticas-, como é o caso da França, da Inglaterra, sem falar nos EUA.

Sem opinar nessa discussão, que não cabe aqui, há um dado, no quadro

brasileiro de caos e carência bibliográfica, que pode atuar para a compreensão no país

da obra de Argan como surpreendente “vantagem comparativa” em relação ao ambiente

intelectual dos países centrais. O dado, no caso, é que o autor enciclopédico e o

especialista no patrimônio histórico italiano foi introduzido no Brasil como o

observador da arte e da arquitetura modernas. Isso pode ter um efeito catalisador para a

compreensão das premissas de Argan. O viés moderno ou o foco na atualidade constitui

o prisma de Argan, segundo um partido filosófico que, além de já se delinear no Kant

que se mostra interpelado pela Revolução Francesa e pelo destino do Iluminismo,

explicita-se com o Hegel que prioriza a tarefa filosófica de investigar o presente.

Assim, o travelling, o modo de prospecção adotado por Argan deriva

estruturalmente da experiência formadora da arte moderna. A urgência crítica de julgar

a hora, que estrutura, além das suas sínteses, também a sua dicção e os seus pólos de

interlocução, como os estudantes, o distingue dentre os demais historiadores e o leva a

equiparar a história e a crítica de arte.

Fundar-se no saber da arte moderna não é um ponto de gosto pessoal. Esse

partido está diretamente ligado à escolha filosófica de Argan, de tomar a arte como

modo paradigmático de trabalho, e este, por sua vez, como base da consciência,

seguindo a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e também a obra de Marx. Nesse

sentido, a arte moderna foi, dentre todas as demais modalidades artísticas históricas,

aquela que se concebeu fundamental e completamente como trabalho, totalizando-se

reflexivamente como tal. Assim, ela tornou uma lei a explicitação de sua própria

produção, mostrando os insumos, a ordem da produção e criticando o seu próprio valor.

Page 4: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

Desse modo, Argan não só concebe a arte como uma entre outras formas de produção

de valor, mas como “liberação do trabalho de suas negatividades sociais” (Occasioni di

critica).

Logo, é a partir da arte moderna, posta como negação frontal da alienação que

rege o trabalho assalariado no sistema geral da produção, que Argan analisa as

formações passadas. O juízo de determinação histórico lhe permite, por um lado, situar

a experiência artística entre outros modos de produção e apropriação do valor, próprios

à época.

Julgada historicamente, a arte figurativa ou mimética do período clássico grego

(séc. 5 a.C.) surge não como algo intemporal, mas como a resultante de uma mescla de

consciência e idealização, a forma cognitiva da sua atualidade, um mergulho na

premissa de então, de unidade essencial entre a Physis (Natureza) e o Logos, como

princípio da consciência. Analogamente, a arte dos mosaicos cristão-imperiais de

Ravena é correlacionada ao princípio do neoplatonismo plotiniano de negar a

especificidade da matéria para transubstanciá-la em luz.

Neste modo de julgar, como noutro, marcadamente sintético e reflexivo, vale o

que foi formulado por Walter Benjamin no Trabalho das Passagens (nº 2, 6):

“Descobrir, na análise do pequeno momento particular, o cristal do acontecimento

total”. Assim, o prisma da arte moderna, como trabalho, leva-o a ver em cada

experiência o que jaz armazenado como trato próprio e específico da matéria

transformada, como trabalho concentrado no intento material da experiência

configurada a partir do indicativo preciso e urgente do agir.

Logo, o trabalho como organização e esforço que em cada contexto prefigura a

experiência segundo um projeto de futuro, mas que, no calor da ação, resta sujeito ao

regime de valor da época, desponta decantado pela análise. Assim, o trabalho,

beneficiado pela análise moderna que o confronta à historicidade do valor, é redimido.

Ou seja, liberado das cadeias de antes, desperta para vir alimentar a experiência presente

e atual da arte, mesmo no caso do objeto antigo, que, como evidência de trabalho,

subsiste e apresenta um novo valor resultante da síntese atualizadora.

Desse modo, ao mesmo tempo em que toda experiência artística histórica, sob

o prisma da arte moderna, surge como trabalho e, logo, como transformação intencional

do seu presente, as raízes da experiência moderna, em contrapartida, se aprofundam e se

redefinem, porquanto afloram os seus elementos constitutivos passados, extraídos pelo

juízo que diferencia e pela reflexão que os atualiza e totaliza dialeticamente.

Page 5: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

Nesse sentido, por exemplo, a arte medieval românica é desdobrada como

reafirmação da obra de Deus, revelada também pelo trabalho humano. Por sua vez, o

processo de glorificar a Deus via o ato do trabalho serve ao homem novo, do burgo,

para se liberar da servidão ancestral ao castelo, auto-afirmar-se como produtor de bens e

do próprio presente e faz da catedral a obra máxima da arte românica, uma construção

multiplamente funcional, que serve de memória cívica, de tesouro comunal e como

proteção física da população.

A reinterpretação de modalidades artísticas do passado também explicita

elementos constitutivos da arte moderna e correlatamente afirma o teor desta como

construção histórica. Em suma, é possível afirmar que a “artisticidade”, exposta como

trabalho acumulado, ao ser combinada ao juízo histórico arma uma reflexão que volta

necessariamente ao contexto moderno. Dessa forma, afirma-se também que a arte é uma

prática de conhecimento do presente e que este, como objeto de trabalho e portanto em

transformação, comporta um projeto de futuro, entrevisto como o do trabalho

emancipado, à luz exemplar da arte moderna.

O que advirá daí para o debate da situação da arte no Brasil? Com certeza, já se

poder prever que tanto mais fecundos serão os desdobramentos quanto mais largo o

círculo de leitores atingidos. Para tal, é importante que a editora responsável pela versão

brasileira venha a atender ao espírito originário do projeto, que concebeu a História da

Arte Italiana como equipamento de uso corrente para o estudante do sistema público

italiano.

Se é importante a preservação do patamar de reprodução visual alcançado nesta

edição, cumpre, por outro lado, oferecer também ao estudante daqui, com menor poder

aquisitivo, uma versão acessível. Sem o que, no fogo lento que faz o caldo das

exclusões à brasileira, haveremos de provar mais um caso de “idéias fora do lugar”. Um

exemplo? Interpretar a obra de Argan e a arte moderna como modelos de linguagem.

Este ponto de vista seria o de um novo “classicismo”, o que, para Argan, ao contrário do

“clássico”, significa “desconfiança na capacidade da arte de exprimir a realidade

histórica presente”, vale dizer, denegação da urgência moderna de entender o presente e

projetar autonomamente o futuro.

Nota

1

Ver Rodrigo Naves. “Prefácio”, in G.C.A., "Arte Moderna – Do

Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos", op. cit., págs. XI-XXIV;

Paulo Sergio Duarte, “A história que se escuta e vê”, "Jornal do

Page 6: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna Do Iluminismo Aos Movimentos

Brasil", suplemento "Idéias", 12/12/92, págs. 6-7; Lorenzo Mammì,

“Prefácio à edição brasileira”, in G. C. Argan, "História da Arte

Italiana". Ademais, o Centro Maria Antonia, da USP, realizou um

seminário Argan (10-12/11/2003), com seis palestras e que reuniu um

público grande.

[resenha publicada originalmente na seção Trópico da UOL]