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1 Archer Quest Autor: Klaus de Paula Schneesche

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Entertainment & Humor


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Archer Quest

Autor: Klaus de Paula Schneesche

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Todos os mundos têm uma história, e todas as histórias merecem ser contadas,

vistas e vividas. Dedico, então, esse livro aos milhares de mundos que existem. Aos que

ainda estão invisíveis, e esperam as palavras de um autor para que venham a nós. Aos

que já estão entre nós, e nos encantam e maravilham. E aos que ainda virão a existir.

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Agradecimentos

A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para meu

crescimento moral, intelectual e espiritual;

A meus pais, verdadeiros guerreiros, por me darem meus maiores

tesouros;

A Flaubert, por ler antes de todos e me dar suas valiosas opiniões, que

tanto contribuíram e ajudaram na evolução do livro;

E ao leitor, pelo voto de confiança;

Muito obrigado.

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Sumário

Agradecimentos ............................................................................................................... 3

Sumário ........................................................................................................................... 4

Prologo ............................................................................................................................ 5

Capitulo Um .................................................................................................................... 8

Capitulo Dois ................................................................................................................ 10

Capitulo Três ............................................................................................................... 12

Capitulo Quatro ........................................................................................................... 14

Capitulo Cinco ............................................................................................................... 16

Capitulo Seis ................................................................................................................. 20

Capitulo Sete ................................................................................................................ 23

Capitulo Oito ................................................................................................................ 27

Capitulo Nove ............................................................................................................... 30

Capitulo Dez ................................................................................................................. 42

Capitulo Onze ............................................................................................................... 44

Capitulo Doze ............................................................................................................... 47

Capitulo Treze ............................................................................................................. 51

Capitulo Catorze ......................................................................................................... 55

Capitulo Quinze ............................................................................................................ 59

Capitulo Dezesseis ........................................................................................................ 65

Capitulo Dezessete ....................................................................................................... 69

Capitulo Dezoito .......................................................................................................... 78

Capitulo Dezenove ........................................................................................................ 86

Capitulo Vinte .............................................................................................................. 91

Capitulo Vinte e Um ..................................................................................................... 96

Capitulo Vinte e Dois ................................................................................................. 103

Capitulo Vinte e Tres ................................................................................................ 107

Capitulo Vinte e Quatro ............................................................................................ 117

Epilogo ......................................................................................................................... 137

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Prologo

O homem olhou para frente fixamente, com o capuz de seu negro manto

encobrindo completamente seu rosto. Seus olhos, com grandes írises vermelhas,

brilhavam maliciosos e frios. A escuridão predominava no recinto, com apenas

uma fonte de luz dissipando-a. O homem começou a caminhar na direção da

luz, lenta e firmemente.

- Como está o ritual? – perguntou ele, com sua voz fria ecoando alta pela

sala.

- Pronto, meu amigo. Apenas precisamos de você para fechar o círculo -

respondeu um vulto alto e magro à sua direita.

- Então, completemos a cerimônia – decidiu ele, dando as mãos para o

segundo homem que falara e para um ser baixo e atarracado à sua esquerda. O

homem fechou seus olhos vermelhos e concentrou-se. Quando falou

novamente, sua voz estava diferente. Mais grave e poderosa. – Aqui selamos

esta poderosa arma para que apenas a pessoa mais digna de possuí-la consiga

retira-la de seu túmulo. Nós, representantes de todas as raças, nos reunimos

para realizar a Jura de Vida que selará o objeto.

- Eu sou Ja-Fis, dos anões – disse o vulto atarracado à esquerda do homem.

- Sou Aelry, dos orcs – gritou um vulto grande e fedorento, a esquerda do

anão.

- Meu nome é Kethel, dos halflings. – sussurrou um vulto baixo a esquerda

do orc.

- Rial Ruil, dos elfos – disse o vulto alto e magro à direita do homem que

falara primeiro.

- Cael Kash, dos humanos – falou o homem. Ao som de seu nome, uma luz

dourada nasceu no centro do círculo e se expandiu, englobando toda a sala. A

inconsciência de quase todos foi imediata.

- Então, a última arma foi selada – sussurrou Cael Kash, caindo de bruços

no chão e morrendo.

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Capitulo Um

Corash acordou sobressaltado. Ele tivera um sonho muito estranho.

Algumas pessoas meio macabras estavam fazendo um ritual estranho. E havia

uma arma envolvida...

Talvez uma apresentação seja útil a essa altura. Corash Lam era um típico

elfo, alto e esguio. Sua pele era pálida, e seu cabelo castanho curto era

arrepiado.

Vindo de uma tradicional família de mercadores, Corash foi o primeiro

Lam a treinar para se tornar um guerreiro da vila. Mesmo enfrentando muito

preconceito por parte de seus pais e irmãos, ele conseguiu, por mérito próprio,

entrar no Esquadrão de Arquearia do exército. Mas ele ainda era apenas um

aprendiz, o que significava que ele não poderia combater junto aos formados,

sob pena de morte. Só que a vila precisava, agora mais que nunca, de guerreiros

qualificados, pois uma guerra contra orcs ameaçava todo o Reino de Lynzea, e a

vila de Sparon era o primeiro obstáculo do exército seguinte. E o exército de

Sparon necessitava urgentemente de combatentes para a guerra. Caso contrario,

todo o reino de Lynzea poderia ser esmagado.

Enquanto pensava nisso, Corash ouviu uma batida na porta.

- Entre! – disse ele – Ah!, olá, Mahslia. Como vai?

- Oi, Corash. Eu estou bem, e você? – disse a elfa, inclinando-se para beijar

Corash no rosto. Mahslia era uma bonita elfa, com cabelos ruivos presos em um

rabo de cavalo comprido. Ela parecia ser delicada e meiga. Coisa que,

realmente, ela era. O que não significava que ela era fraca. Pois Mahslia era uma

das melhores aprendizes de maga de toda a vila.

- Eu estou bem, Ma, mas eu tive um sonho realmente estranho.

- Como foi? – perguntou a amiga, solícita. Os sonhos de Corash eram

realmente incríveis. Eram quase que um oráculo para ela.

- Ah, um círculo de pessoas estava selando uma arma dourada. Mas não

pode ser de verdade, não é?

- Pode sim, Co, pode sim. Mas não se preocupe com eles. Preocupe-se em

treinar para se formar rapidamente.

Corash não respondeu. Ele queria, mas não tinha respostas para a amiga.

Afinal, alguma vozinha insistente no fundo de sua cabeça dizia

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incessantemente que a arma seria vital para a sobrevivência da vila, e que a

mesma arma vital estava na Montanha Selque, gigante e impenetrável.

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Capitulo Dois

Era meio-dia quando o sino da vila tocou, chamando todos os cidadãos

para uma reunião.

- Como todos devem saber, nossa vila está em mortal perigo. – O autor

desta frase foi o líder da vila, Nisual – E estou convocando a todos, pois creio

que ninguém deve ficar calado. Alguém tem algum plano?

- Líder, eu bolei um, que acho que deverá servir. Por que não plantamos

armadilhas pelo campo de batalha? Poderemos, assim, dizimar parte do

exército inimigo sem que eles ao menos possam revidar. – disse um elfo de voz

fria e estatura grande.

- Excelente, mesmo. Todos os melhores alquimistas e magos, já podem

começar. Mais alguém?

- Líder – disse Corash – eu tive um sonho hoje, sobre uma arma

muitíssimo poderosa. Talvez algum de nós possa sair numa missão para

recuperá-la?

- Corash, todos sabemos que seus sonhos são proféticos, – riu Nisual – mas

você quer mesmo que nós acreditemos que uma arma, apenas uma, poderá

salvar nossa vila? Pelo amor dos deuses!

Corash silenciou, e ele sentiu o olhar de Mahslia em sua nuca. Mas havia

mais alguém o olhando com interesse. Ele só não sabia quem.

Corash estava terminando de desenhar algo em um pergaminho, quando

Mahslia entrou em seu quarto.

- Corash! Eu te disse para esquecer esta arma!

- Desculpe-me, Mahslia, mas esta arma vai nos ajudar, eu tenho certeza. E

eu vou em busca dela, querendo você ou não!

- Onde você está pretendendo ir, posso saber?

- À Montanha Selque, e você não vai junto comigo – acrescentou ele,

captando o olhar da amiga.

- Ah, eu vou sim. E, mesmo eu não acreditando nessa missão, você precisa

de mim. Afinal, quem irá te proteger?

- Engraçadinha. Você não vai, não. Você está muito perto de se formar, eu

não posso deixá-la ir e perder a formatura.

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- Formatura? Isso só serve para participar do exército! Eu vou com você,

“querendo você ou não”. Assunto encerrado.

- Que seja, Mahslia, mas qualquer coisa que acontecer com você é de

inteira responsabilidade sua. Entendido?

- Tudo bem, Co. Quando nós partimos?

- Assim que você arrumar a sua mochila com cordas, comida, cantis com

água e um pouco de dinheiro. E não esqueça seu cajado!

- Muito bem, eu não me esquecerei. Dê-me meia hora e nós nos

encontramos no portal sul da cidade. Pode ser?

- Feito. Agora, apresse-se, pois eu quero começar esta jornada o quanto

antes.

Mal sabiam os dois amigos que havia uma terceira pessoa escutando sua

conversa pela janela.

Corash olhava para a sombra do relógio de sol da cidade, impaciente.

Mahslia estava atrasada.

- Co! Cheguei! – disse uma Mahslia ofegante.

- Aleluia, garota! Você demorou duas horas a mais que o previsto!

- Desculpe. Eu tive que me livrar dos meus pais. E você, como chegou aqui

no horário? – disse a garota, na defensiva.

- Você conhece meus pais. Eles me acham um fracassado, não ligam se eu

ficar fora até tarde. – respondeu o garoto, irritado.

- Co, desculpe! Eu... – começou a garota

- Deixa pra lá, ok? Vamos logo começar, quanto antes nós começarmos,

antes acabaremos.

- E onde vocês pensam que estão indo? – perguntou uma voz fria

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Capitulo Três

Corash se virou violentamente, e viu o elfo grande e frio que sugerira o

primeiro plano de batalha.

- O que você quer? – perguntou ele ao outro elfo, rudemente.

- Eu? Eu quero acompanhá-los. Eu não agüento mais essa vidinha pacata

do vilarejo.

- Nós nem sabemos quem é você! Como quer que confiemos em você? –

perguntou Mahslia.

- Meu nome é Avalas, ao seu dispor. E não, vocês não podem confiar em

mim. E a maior prova disso é que, se vocês não me deixarem acompanhá-los, eu

poderia “deixar escapar” para o Nisual que vocês saíram da vila sem a

permissão dele. E acho que ele não vai ficar muito feliz. Em compensação, se

vocês me deixarem ir com vocês, o Nisual irá achar que vocês foram até a

capital do reino buscar uma caravana de guerreiros, graças a um bilhetinho que

eu plantei para despistá-lo. Vocês decidem.

Corash pensou seriamente nisso. Talvez ter outra cabeça no time fosse

bom, mas eles não conheciam o tal Avalas. Corash já o havia visto com várias

garotas diferentes, mas era apenas isso que ele conhecia.

- Qual é a sua arma? – perguntou o aprendiz de arqueiro, desconfiado.

- Eu uso espadas. Mas sou apenas um aprendiz.

- E como você quer acompanhar-nos sem conhecer a fundo os segredos da

sua arma? – blefou Mahslia. Para a surpresa da elfa, o estranho sorriu.

- Do mesmo jeito que vocês, aprendizes, eu também tenho o direito de não

conhecer minha arma tão bem quanto os mestres. Ou não?

Mahslia enrubesceu e se calou. Corash ainda avaliava Avalas abertamente.

- Venha conosco então, Avalas. Mas você está desarmado. Como pretende

se defender de monstros? Apenas com os punhos?

- Quem disse que eu estou desarmado? – perguntou o gigante, virando-se

de costas. Ali, presa pelo cinto do elfo, havia uma bainha, que continha uma

espada grande, escondida por suas enormes costas. – Eu nunca ando

desarmado... qual é mesmo seu nome?

- Corash.

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- Eu nunca ando desarmado, Corash. – repetiu ele, virando-se para os

companheiros. – Ao contrário de vocês, eu sou precavido – disse ele, mostrando

uma mochila que até agora passara despercebida pelos amigos.

- Ótimo. Estamos prontos, então. Vamos. – decidiu Corash. Ele virou-se

para o portão e saiu da vila, com seus companheiros às suas costas.

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Capitulo Quatro

Avalas não era um companheiro alegre, nem mesmo sorridente ou

animador. Parecia apenas um gigante emudecido, perdido em seus

pensamentos. Enquanto Mahslia e Corash aproveitavam a liberdade recém

conquistada com piadas, palavras e sorrisos, Avalas apenas olhava os novos

companheiros.

A história de vida do grande elfo parecia um livro. Nascera, para logo ser

abandonado por sua mãe. Seu pai, um elfo beberrão e despreocupado, entregou

o bebê para um orfanato assim que soube. Não queria a criança.

Com mais idade, Avalas percebera que não era igual as crianças do

orfanato. Ele era maior e mais forte. Até seu físico robusto destoava do físico

normal dos elfos. Por causa disso, aos treze anos ele se candidatou a aprendiz

do Exército de Lynzea. Quando o recrutador do exército viu sua altura

impressionante e seus ombros largos, aceitou-o imediatamente no esquadrão

dos espadachins. O recrutador nunca se arrependeu de sua escolha.

Com quinze anos, Avalas entrou no grupo dos formandos espadachins,

três anos mais cedo que o normal para quem começava com treze anos.

Conhecia centenas de técnicas, era o mais alto e mais forte entre os elfos e tinha

uma grande inteligência, fruto de muitas noites perdidas em nome do estudo.

Seus treinadores estavam orgulhosos: Avalas era o garoto modelo da academia!

O que eles não esperavam era que o grande elfo, um gigante

aparentemente manso, fosse capaz de se rebelar. Ele estava cansado da sujeira

política que era essa história do Exército de Lynzea. Seus esforços solitários, em

busca de técnicas de guerra e conhecimentos estratégicos de nada valiam?

Foram os professores que ensinaram isso? Não!

Assim, na calada da noite, enquanto seus instrutores e mentores dormiam,

ele pegou sua espada e, silencioso como um sussurro, matou todos os altos

generais, limpou o sangue da espada e voltou a dormir, com a consciência mais

leve.

O único porém é alguém havia visto ele levantar. Este alguém avisou um

professor, que avisou o novo general. Este, por sua vez, avisou o rei de Lynzea

que resolveu expulsar Avalas da capital do reino e mandá-lo para Sparon, sob o

pretexto de “colocá-lo em posição estratégica, em um lugar que o clima seja

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bom para seu temperamento e que ele possa esvaziar sua ira sem matar

pessoas.”. Essa, claro, era a versão oficial da história.

A vida calma na pequena vila de Sparon irritava Avalas. Ele nascera para a

grandiosidade, e não para uma pequena vila de aldeões simplórios. Assim que

a primeira oportunidade de sair do marasmo que era Sparon e ir a alguma

aventura apareceu, o grande elfo agarrou-a com unhas e dentes. Seria perfeito,

não fosse Corash e Mahslia. Que haviam parado e estavam discutindo alguma

coisa.

- ...temos que ir para a direita, Mahslia! – exclamava Corash. – Só assim

chegaremos rapidamente à Montanha Selque!

- Não, Co! Temos que dar a volta, indo pela esquerda! Se formos pela

direita, inevitavelmente passaremos pelas Dunas Congeladas! Certo, Avalas? –

retrucou Mahslia, surpreendendo o grande elfo com sua pergunta.

- Acho que sim. É melhor evitarmos as Dunas Congeladas, pois não

viemos preparados para encará-las. Além disso, elas são imensas, o que

significa que poderemos nos perder nelas facilmente. Melhor não arriscarmos e

irmos pela esquerda. – ponderou Avalas, sensatamente.

- Ótimo. Demoraremos mais um dia para chegar na montanha Selque. Um

dia em que Sparon pode ser destruída – respondeu Corash, amargamente.

- Não seja tolo, Corash. Nenhuma vila é destruída em um único dia, ainda

mais uma vila com tantos guerreiros como Sparon. Um dia não fará diferença. –

sentenciou Avalas.

Corash resmungou alguma coisa ininteligível e calou-se, seguindo os

companheiros pelo caminho da esquerda.

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Capitulo Cinco

Corash e seus companheiros já estavam caminhando há cinco horas. Os

sorrisos e brincadeiras entre ele e Mahslia haviam cessado, e só o que havia

entre os três era um silêncio cansado. Apesar disso, eles prosseguiam.

- Que som é esse? - perguntou Avalas, quebrando o silêncio e apurando os

ouvidos.

Realmente, um som abafado e ritmado chegava às orelhas pontudas dos

companheiros.

- Parece... – começou Corash

- Cavalos!!! Para a mata, rápido! – gritou Avalas, descontrolado,

empurrando os companheiros para dentro da mata fechada e pulando atrás

deles.

- Você ficou louco?! – berrou Corash, assustado. – Por que você...- tentou

continuar ele, antes que a manzorra de Avalas tapasse sua boca.

- Fale baixo, idiota! Esse som é de cavalo. Apenas o rei e sua comitiva real

possuem cavalos.

- E por que não podemos falar com o rei sobre nossa missão?! – perguntou

Mahslia – Tenho certeza que ele nos apoiará. Talvez ele até nos mande reforços!

- Apenas nos seus sonhos delirantes, Mahslia – respondeu Corash,

desvencilhando-se de Avalas. – É mais provável que o rei nos capture e nos

torture até falarmos tudo o que sabemos.

- Além disso, o rei não gosta muito de mim. – ajuntou Avalas,

concordando com Corash.

- E alguém gosta, Avalas? – perguntou uma voz cruel e cortante,

colocando uma espada no pescoço do grande elfo. Corash e Mahslia,

subitamente, foram dominados por dois elfos surgidos do meio da mata. –

Vocês vêm comigo. Com o que vocês sabem, minha vida está garantida.

Os três companheiros foram vendados e amarrados antes de começarem a

andar. Suas armas e mochilas foram entregues para o rei, que, ao invés de

torturá-los, colocou-os presos a cavalos, que por sua vez estavam amarrados a

outros cavalos. Onde a comitiva fosse, eles iriam atrás.

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- Ora, Avalas, há quanto tempo!!! Você aparenta ter dobrado de tamanho!

– disse o rei, pomposo

- E você parece ter dobrado seu vocabulário almofadinhas ridículo. –

cuspiu Avalas, com desprezo.

- Avalas, seja razoável! Nós não podemos esquecer os erros do passado e

nos concentrarmos no futuro? Sabe, uma guerra eclodirá logo, e eu não gostaria

de correr o risco de morrer sabendo que alguém não perdoou os meus erros. –

disse o rei, eloquentemente, sendo aplaudido pela comitiva.

- Se a sua preocupação se estendesse a qualquer pessoa do reino que não

pode te dar qualquer vantagem, ela seria tocante. Acontece que eu não sou

burro para acreditar que você se preocupe com qualquer um que não você. –

retrucou o grande elfo, astuto.

- Avalas, você está passando dos limites! – sibilou Mahslia.

- Silêncio, sua tola. Não meta seu nariz onde não foi convidada. –

repreendeu o rei, encarando o grande elfo abertamente. – Sabe, Avalas, você

merece a morte. Mas...

- Mas você sabe que você não conseguiria me matar se eu estivesse com

minha espada e não estivesse preso! – gritou o espadachim, corando de raiva.

- Não, meu pequeno súdito. – disse o rei, com um traço de irritação na voz

– Mas vocês três darão excelentes gladiadores. A Arena precisa de pessoas

como vocês.

Uma espada, um cajado, um arco e uma aljava com flechas foi tudo que

deram aos companheiros. Todas as armas eram toscas e vagabundas. Estava

claro que o rei não queria ver os três amigos vivos. Eles estavam em uma cela

minúscula de pedra, com uma porta de ferro maciço que só tinha uma

portinhola para a comida.

- E agora? – perguntou Mahslia, desesperada. Ela nunca estivera presa

antes.

- Não adianta tentarmos fugir – respondeu Avalas, calmo. – Essas grades

são, provavelmente, reforçadas com alquimia, e não magia. Reparem que eles

deram um cajado para Mahslia, sem medo de suas magias. E também nos

deram armas, o que significa que brutalidade não adiantará aqui.

Os argumentos de Avalas eram coerentes, então não foram contestados.

Os três ficaram em silêncio, até que um guarda os chamou.

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- Venham cá, cães sarnentos! – gritou o guarda, prendendo os pulsos dos

amigos e tirando-os da cela. – Andem por este corredor até o final! Vocês estão

sendo convocados para lutar! E não tentem nada! Eu tenho uma lança, e até hoje

eu nunca errei um alvo!

Os companheiros se entreolharam. Se estivessem com as mãos livres, eles

certamente poderiam dominar o guarda, mas... Era melhor não arriscar a vida

algemados.

- E agora, Avalas? – sussurrou Corash, por entre os dentes.

- Lutamos por nossas vidas, o que você esperava? Não temos outra opção:

ou lutamos ou morremos. E eu prefiro lutar. – retrucou o grande elfo.

Eles continuaram por um grande túnel escuro e saíram para a arena.

O chão redondo da arena era de terra batida. Uma grande multidão

urrava, olhando para os novos gladiadores com sede de sangue. Do ponto mais

privilegiado dos assentos, um camarote dourado era ostentado. O rei e seus

compinchas. As pedras que foram usadas na construção da arena eram negras e

lisas. Impossíveis de escalar.

Do outro lado de onde os companheiros estavam, um portão de ferro

fechado escondia o inimigo deles.

Enquanto esperavam o inimigo, Avalas começou a passar a mão nas

pedras e pisar mais forte que de costume.

- O que... – começou Mahslia.

- Testando terreno. Calculando probabilidades e possibilidades. Tentando

sobreviver. – respondeu Avalas, sem olhar para a companheira.

- Senhoras e senhores! Bem-vindos à Arena Querua! E hoje a luta será de

intensas emoções! – gritava o mestre de cerimônias, com a voz magicamente

ampliada.

“As regras são simples! Seis gladiadores lutarão entre si! Podem fazer

parcerias ou lutar por si próprios, com duas condições: três gladiadores lutarão

algemados, enquanto os outros três não!” disse o homem, para delírio do

público.

- Adivinhem só quem lutará algemado? – perguntou Avalas, por entre os

dentes. Sua voz pingava ódio.

- A segunda condição é que apenas três gladiadores serão classificados! Os

outros três morrerão! – continuou o Mestre de Cerimônias. – Agora, o rei vai

falar algumas palavras.

Altivo e imponente, o rei caminhou para a frente de seu pomposo

camarote, onde todos pudessem vê-lo. Posição de poder.

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- Gladiadores! – gritou ele. – Lutem como se suas vidas dependessem

disso!

O público riu e aplaudiu seu engraçado governante, que voltou para seu

assento, satisfeito.

“Que abram os portões!”, berrou o Mestre de Cerimônias.

Como mágica, os pesados portões se abriram e, de dentro de um corredor

mal-iluminado, saíram três figuras grandes, de pele negra como piche,

implacáveis, musculosas e feias, com machados enormes nas mãos e armaduras

completas de batalha.

Orcs sedentos de sangue. Isso nunca era uma visão bonita.

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Capitulo Seis

Avalas pegou sua espada presa às costas e falou para os companheiros

estenderem a mão. Quando obedeceram, o grande elfo quebrou as algemas

como se fossem feitas de manteiga.

- Quebre as minhas! Eu não luto com duas mãos! – pediu Avalas a Corash,

que também golpeou as algemas uma, duas, três vezes até quebrar, enquanto

Mahslia desferia esferas mágicas contra os orcs, mantendo-os afastados.

Avalas recuperou sua grande espada e a segurou na mão direita. O mais

impressionante, ele era o único elfo capaz de fazer isso. Os outros precisavam

das duas mãos.

- Corash, ataque o feio do meio. Mahslia, você cuida do feio da direita. O

da esquerda é meu! – disse ele, correndo para seu inimigo enquanto flechas e

esferas de magia passavam ao seu lado.

- Você acha mesmo que é páreo para mim, elfo desgraçado? Por esse

atrevimento, você vai morrer! – gritou o orc, levantando e abaixando o

machado na direção da cabeça de Avalas, que, por sua vez, aparou o golpe com

a espada e socou o inimigo no peito. Foi quase tão efetivo quanto tentar apagar

fogo com marshmallows, mas serviu para assustar o orc. Avalas era um

oponente a ser respeitado e temido, justamente porque ele era louco de socar

um orc quando tinha uma espada em mãos.

O orc do meio sabia que Corash não iria durar muito. Era impossível ele

ganhar: suas flechas eram limitadas. Quando acabassem suas flechas, acabaria

sua vida. A não ser que os amigos o ajudassem... As flechas estavam vindo

rápidas e em grande quantidade. Várias atingiam em pontos não vitais, ou

seja... era só esperar que ele veria sangue em seu machado.

Mahslia, apesar de frágil, era destemida. Não temia chegar perto do

inimigo para usar uma magia. Um erro, talvez, mas o inimigo não sabia o que

fazer, vendo uma maga assim tão perto dele. E isso o machucava. Seriamente.

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- Pare com isso, elfa maldita! - berrou o orc, irritado, quando um

relâmpago queimou seu braço.

- Venha me parar, então! - respondeu a elfa, provocando o inimigo a meros

dois metros de distância.

O orc saltou na direção dela numa velocidade que ela julgava impossível e

preparou o machado para bater na cabeça dela. A morte dela era certa.

Corash viu que a amiga estava em perigo. Ele não podia deixar que ela

morresse. Então, ele fez a única coisa que poderia. Atirou na cabeça do orc que

atacava Mahslia. E acertou.

Pena que o orc com quem ele estava lutando também viu a dúvida dele. E

partiu para cima do arqueiro.

Avalas estava com dificuldade de achar uma brecha na defesa do inimigo,

pois ele atacava rápido demais. O grande elfo nada podia fazer, a não ser se

defender e observar os companheiros.

O orc de Corash avançava sem freios, o machado pronto para cortar

qualquer parte élfica que cruzasse com ele. Avalas não podia deixar isso

acontecer. Ele aparou um outro golpe de machado com sua espada e empurrou

o inimigo, que caiu com o traseiro no chão, bufando, e correu para salvar

Corash.

- Morra, elfo! – berrou o orc, brandindo o machado contra o tronco

desprotegido de Corash.

- Não! – berrou Avalas, parando o golpe com sua espada e fazendo uma

acrobacia para passar por cima do machado do inimigo e girando, fazendo com

que a lâmina fizesse um arco luminoso que decepou a cabeça do adversário.

Dois já estavam mortos. Faltava um, que tentava estupidamente escalar as

pedras para fugir.

- Obrigado, Avalas. Você me salvou. Não é típico de você fazer isso.

-Não se acostume, também. Eu apenas não quero ser forçado a deixar um

orc vivo. – disse Avalas, para a surpresa de Corash. Como ele era frio!

- Ei, vocês dois... Temos um orc a solta. Deveríamos derrotá-lo, não?

- Verdade. Posso fazer as honras? – perguntou Corash, pegando sua última

flecha e preparando-a no arco.

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- Ele é seu – disseram os outros dois, se afastando. Corash mirou, mas

antes de consegui atirar, o orc se virou e saiu correndo em sua direção.

Imparável. Apenas cem metros de corrida. Avalas e Mahslia não conseguiriam

ajudá-lo agora, de tão rápido que estava o orc.

O fundo da garganta de Corash começou a coçar, como se algo quisesse

sair de lá. Ele abriu a boca e disse, enquanto soltava a flecha do arco:

- Eldr Or! – aquela com certeza não era sua voz. Era muito mais grave,

rouca e retumbante. Algo ancestral, antigo. Algo que fez com que a flecha

pegasse fogo.

A flecha flamejante viajou até chegar ao orc, que sentiu seu crânio se

esmigalhando e seu corpo queimando. A magia do elfo era forte. O suficiente

para pará-lo.

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Capitulo Sete

O rei levantou-se furioso. Como aqueles moleques não haviam morrido?!

Era inaceitável. Ele precisava fazer alguma coisa.

- Esse golpe não foi válido! – gritou o monarca, sorrindo consigo mesmo.

Sua palavra, em grande parte do tempo, era lei.

- Como assim? – berrou Avalas, alterado. Uma veia pulsava em sua testa. –

Como não valeu? Corash nunca infringiu uma única regra dessa arena

estúpida!

- Esse golpe foi, claramente, mágico. E Corash se disse arqueiro, não mago.

A não ser que a senhorita Mahslia o tenha ajudado, mas ela não moveu um

músculo sequer. Então, o golpe foi inválido. E eu condeno vocês a...

- Nada. Quem condena sou eu, e não Vossa Majestade – disse uma voz de

trovão. Um elfo alto e magro ergueu-se do seu trono no camarote do rei. – Por

favor, não se esqueça de quem é o Grande Juiz aqui.

O rei hesitou, mas cedeu a palavra ao outro elfo, com a cabeça baixa. Ele

parecia...

- ... derrotado. Humilhado. Não é o que parece? – perguntou Mahslia,

surpresa com a súbita mudança de postura do monarca.

- Sim. Lian Fiar sempre foi imponente. De fato, por sua imponência e

sabedoria, conquistou merecidamente o posto de Grande Juiz. – respondeu

Avalas.

- Lian Fiar? Que nome estranho. Como você o conhece? – questionou

Corash.

- Deixe de ser ignorante, Corash. “Lian” significa “Mestre”. – retrucou

Avalas, impaciente. - Eu fiz a Escola Militar antes de ser enviado para Sparon.

Ele era o professor de Arquearia e de Estratégias. As aulas dele eram excelentes.

- Calem a boca! – sussurrou Mahslia, mortificada – Lian Fiar quer falar!

Ambos Corash e Avalas coraram e silenciaram.

- Muito bem. Agora que temos silêncio, podemos começar o julgamento. –

sentenciou o elfo, magnânimo.

24

A esta altura, talvez seja apropriada uma breve descrição da política de

Lynzea.

Existiam cinco Poderes do governo, cada qual com vantagens e prejuízos

em relação aos outros, mas com igual influência.

O primeiro deles era a Aliança Real, formada pelos nobres e membros da

Família Real, ou simplesmente Família. A Aliança Real cuidava das questões

administrativas de Lynzea. Tinha muito poder, aparentemente, mas, na

verdade, era o governo mais fraco do continente, apesar de ser, de longe, o mais

luxuoso. Como exemplo de sua luxuosidade, só o rei e sua comitiva podiam

andar a cavalo no reino quando não fosse treinamento militar ou guerra.

O segundo Poder governamental era chamada de “O Tribunal”, ou

simplesmente “Tribunal”. Responsável por fazer cumprir as leis de Lynzea, O

Tribunal era composto por vários juízes, espalhados pelo território de Lynzea.

Em sua máxima instância, o Tribunal era composto por dez Juízes, que não

poderiam conversar com os outros para não serem influenciados em seu

julgamento. A sentença de cada Juiz tinha de ser explicada, ou o julgamento

seria refeito, até que a justiça fosse feita. Em caso de empate, o Grande Juiz

decidiria o que seria feito. O poder d’O Tribunal era, provavelmente, o maior.

Os outros poderes, invariavelmente, acabavam se curvando perante O Tribunal.

O terceiro Poder era conhecido como LPMC, Laboratório de Pesquisas

Mágicas e Cientificas, responsável pela promoção de novas tecnologias bélicas

(espadas mais resistentes, arcos que alcançassem mais longe, etc.) e

desenvolvimento de magias, tanto de cura quanto de luta. O chefe do LPMC,

conhecido apenas como Sarbrar, era um homem magro e pequeno, apesar de

ser inteligentíssimo e ter uma aura que dava medo. O LPMC era tratado como

um órgão a parte, livre para fazer o que quisesse, desde que fosse legalizado.

O quarto Poder se chamava Ministério da População. Oficialmente, claro.

Para o povo, o Ministério da População se chamava Bem-Estar. Na verdade,

esse deveria ser o objetivo final do Ministério. Zelar pelo interesse da

população, propondo novas leis, projetos sociais, construindo escolas e

hospitais... O Ministro, invariavelmente, era um elfo amado pelo povo.

O quinto e último Poder era o militar. O Eixo da Guerra era um dos

Poderes mais importantes, por ser o poder que defendia o reino de Lynzea nos

tempos de guerra. O Eixo da Guerra possuía um dos mais poderosos exércitos

da época, graças ao Comandante-Geral Malrua, também conhecido como

Estrela da Guerra, que era um gênio estratégico.

25

Todos os meses os chefes de governo se reuniam oficialmente para discutir

a política do reino e assistir algumas lutas na Arena. Nunca havia acontecido do

Grande Juiz em pessoa assumir um julgamento. O rei estava abismado com o

que havia acontecido.

- Qual o nome do arqueiro? – perguntou Lian Fiar

- Corash, senhor. Corash Lam. – respondeu Corash. Ele falaria antes do

rei?

- Muito bem, Corash. Conte-nos o que aconteceu.

- Bom... Meus companheiros e eu estávamos viajando. Para dar passagem

ao rei, que ouvimos à distância, nos embrenhamos na mata, onde não o

incomodaríamos. Porém, quando estávamos conversando, fomos capturados

por batedores do rei. Fomos trazidos para cá e... – hesitou Corash, pensando no

que acontecera. De fato, agora parecia surreal.

- Prossiga. E não se preocupe, o que for justo será feito. – encorajou Lian

Fiar, acenando positivamente com a cabeça.

- Bom, nós lutamos, como todos viram. E a flecha flamejante

simplesmente...

- Saiu. Veio do fundo de sua garganta, como algo ancestral despertado em

você. – completou o Juiz, acenando compreensivamente com a cabeça.

- Exato! Como o senhor...

- Não importa como sei, o que importa é que sei. – respondeu,

magnânimo, Lian Fiar. – Terminou, Corash?

- Sim... – respondeu o arqueiro, hesitante

- Então, é a vez de nosso queridíssimo monarca falar. – replicou Lian Fiar,

com certa ironia na voz. Era claro que existia uma rixa entre o rei e Lian Fiar.

Algo na relação deles não tinha ocorrido nada bem.

- Perfeito. – respondeu o rei, levantando-se. – Caro senhor Juiz, este

moleque disse a nós que era um arqueiro.

- Ele falou por vontade própria? - perguntou o Juiz, com sagacidade.

- É... Não. Nós os capturamos como reféns, após um de nossos batedores

ouvir coisas deles. Nós não fizemos interrogatórios, apenas perguntamos suas

classes e os amarramos. Eles foram trazidos como gladiadores.

- Certo, e qual o seu argumento? – tornou Lian Fiar, com tédio.

- Como ele se disse arqueiro, não pode usar magias! – respondeu o rei,

sorrindo maliciosamente.

- Entendo... Você lembra do que ele disse, especificamente? – questionou o

Juiz, com um brilho nos olhos. Um brilho que deveria ter alertado o monarca.

26

- Sim. Ao perguntarmos: “Você, garoto que usa um arco, é um arqueiro?”,

ele respondeu: “Sim, sou da vila de Sparon, arqueiro em treino”. Para começar,

como arqueiro em treino, nem poderia estar viajando sozinho.

- Discordo. Para começar, meu caríssimo monarca, os garotos nem

deveriam ter sido trazidos para a Arena. Apenas os guerreiros formados e

maiores de idade podem lutar aqui. Então, o senhor é tão ou mais culpado que

ele. Corash Lam omitiu informações, mas o senhor infringiu as leis. – disse Lian

Fiar, ferozmente. – Portanto, caro monarca, eu digo que Corash Lam é inocente,

em relação à sua acusação.

Avalas, Mahslia e Corash respiraram, aliviados. Livres, finalmente?

- Porém... – hesitou o Juiz, como que lutando contra si mesmo – Corash

Lam e seus colegas atuaram, respectivamente, como mentiroso e cúmplices. A

mentira é passível de punição, quando sua magnitude é grande. Uma morte é

grande coisa. E, segundo as leis de Lynzea, um participante só pode ser retirado

de um torneio que começou a participar de um modo: sendo impossibilitado de

lutar. Assim, condeno Corash Lam e seus amigos, Avalas e Mahslia, à prisão e à

luta na Arena.

27

Capitulo Oito

Eles estavam de volta à cela. Avalas havia achado uma pedra meio

quadrada, perfeita para amolar sua espada, e as flechas de Corash haviam sido

repostas.

- Estou inconformada com o Juiz! – disse Mahslia, subitamente.

- Não adianta preocupar sua cabeça com isso, Mahslia. Ele apenas seguiu a

lei. E, verdade seja dita, foi o mais justo possível, dentro dos limites legais de

Lynzea. – disse Avalas, friamente, enquanto afiava sua enorme lâmina.

- Então, se ele queria ser tão justo assim, por que não nos libertou? –

perguntou Corash.

- Ele é um juiz, Corash. A obrigação dele é fazer cumprir a lei, não fazer a

justiça. Não se esqueça que essas leis são muito mais velhas que ele.

- Oras, não tem desculpas! Ele é um...

- Cuidado com suas próximas palavras, seu verme! Ele está aqui para ver

vocês. Portanto, comportem-se decentemente! – disse o guarda, enquanto abria

a porta da cela. Lian Fiar entrou no minúsculo cubo de pedra e concreto e

ordenou que todos os seus guardas pessoais e os guardas da prisão fossem

embora.

- Mas, mestre... Não é adequado... – começou o guarda

- Por favor. É um pedido pessoal meu a todos vocês. – pediu Lian Fiar,

charmoso.

- Já estou indo, senhor. Tenha uma boa conversa com os prisioneiros. –

disse o guarda, saindo humildemente da cela e guiando todos os outros

guardas para longe. O Juiz tirou uma flecha de uma aljava em seu cinto e

atirou-a, com o arco que sacou das costas, na porta.

- Pronto. Agora podemos conversar com privacidade. Encantei essa porta,

de modo que os guardas só possam ouvir gritos. É bom vê-los com saúde. Meu

nome é Fiar. Suponho que vocês não sabiam, não é? – disse ele, dirigindo-se a

Corash e Mahslia.

- O que o senhor veio fazer aqui? – perguntou Corash, seco.

- Eu? Vim explicar algumas coisas. Tentar ajudá-los.

28

- Podia ter nos ajudado julgando corretamente. Poderíamos estar em nosso

caminho, sem fazer mal a ninguém, nesse exato momento. Agora, por sua

culpa, estamos aqui, esperando para morrer. – respondeu Corash, enraivecido.

- Bem que eu queria. No entanto, eu fiz isso para salvá-los. Se eu libertasse

vocês naquela hora, o rei iria ficar furioso e mandaria os guardas matá-los.

Desse modo, eu satisfiz os desejos do rei e consegui preservar suas vidas. Como

ele é um rei, qualquer processo judicial ou julgamento será negado. Mesmo as

minhas sentenças não serviriam de nada. Tive que fazer isso, pelo bem de

vocês.

- Certo. E como, exatamente, você pretende nos ajudar? – perguntou

Avalas, frio.

- Explicando como vão ser as coisas na Arena, para vocês conseguirem

sobreviver.

“Eram trinta e dois participantes, trinta e dois presos, em chaves

individuais. Como vocês três foram capturados juntos, também lutaram juntos.

Cada um daqueles orcs tinha um de vocês como objetivo. Por sorte, vocês

escaparam ilesos. Agora há dezesseis participantes – os sobreviventes das

batalhas. Esses dezesseis serão divididos em quatro grupos de quatro. Como

vocês, novamente, foram capturados juntos, ficarão juntos também. Um dos

outros participantes ingressará em seu grupo. Por sorte, tenho um companheiro

perfeito para vocês. Quando apenas sobrar um grupo, os participantes deverão

digladiar entre si, depois de dois dias de descanso. O último de pé será

considerado vencedor. Simples, mas brutal. Meu plano é que vocês cheguem na

final. Depois disso, vocês descansarão por um dia. No segundo dia de descanso

vocês fugirão. Infiltrarei um fiel servo aqui nas masmorras, para que ele lhes dê

suas armas. Não se preocupem com o mapa das masmorras, esse seu

companheiro já o tem, pois já conversei com ele.”

- Certo. É só isso? – perguntou Corash. Ele ainda não havia perdoado Lian

Fiar.

- Quanto ao plano de fuga, sim. Agora, vocês precisam saber de uma coisa.

Os três, sem exceção, lutam muito bem. Seriam excelentes soldados. No

entanto, vocês não estão se entendendo bem dentro do campo de batalha. Essa

última luta vocês ganharam por pura sorte.

“Para começar, vocês resolveram ir um contra um. Sem problemas se

fossem três espadachins, ou três bárbaros. Mas só um de vocês é espadachim.

Corash e Mahslia, vocês não têm condições de enfrentar bárbaros e espadachins

sozinhos, pois não conseguem lutar muito bem de perto. Assim, o papel de

29

vocês em uma batalha é de apoio, não de ataque direto. Mahslia, você é uma

excelente maga, diria que é uma formanda. Ajude Avalas alterando o campo de

batalha, elevando-o quando ele corre perigo, colocando paredes de pedras entre

os ataques... Você é boa o suficiente para isso. Corash, você é um ótimo

arqueiro, use suas habilidades para ferir quem ousar chegar perto de Avalas ou

Mahslia, ou até mesmo de você! Isso serve também para seu novo companheiro.

Lembrem-se disso, e com certeza vocês sobreviverão.”

- Lian Fiar, por que você quer nos ajudar? – perguntou Corash,

subitamente.

Os olhos do Juiz se desfocaram por um momento, e ele começou a contar.

30

Capitulo Nove

Parte Um

Quinze anos antes do desenrolar dessa história, Lian Fiar era conhecido

apenas como Fiar Lam. Ele havia recém-casado com a linda princesa de Lynzea,

Amaky, e recentemente fora promovido a um dos dez Juízes. Ele fora bem

aceito na Família Real, principalmente pelo sogro, que o recebera literalmente

de braços abertos, sorrindo de orelha a orelha. Apesar de sua vida parecer uma

maravilha, não estava tudo tão bem assim. Como Juiz, ele estava tendo muito

trabalho – Lynzea passava por uma crise de fome e pobreza, e os surtos de

roubo e assassinatos aumentaram absurdamente. Em todos os casos em que

havia apelação, e eram muitos, Fiar tinha que trabalhar. Por diversas vezes ele

ficara até tarde no trabalho, para depois se reunir com o Conselho de Lynzea

tentando achar um jeito de resolver a situação do reino. Mal tinha tempo para

dar atenção à sua esposa. E foi numa noite de reunião que tudo começou.

- Desculpem-me o atraso, senhores, eu estava até agora a pouco em

julgamento. Era o caso de um caçador que, para comer, assassinou um padeiro

e sua mulher. Terrível... – começou Fiar, para logo depois notar o semblante

sombrio de seus companheiros. – O que houve?

- Sente-se, Fiar. – disse o Grande Juiz da época, Lafreth, um velho senhor

de barbas brancas. Fiar obedeceu, e o seu superior começou a falar:

“Fiar, mandamos um arauto consultar o oráculo de Felkash, o Lago

Sagrado, e ele voltou com uma notícia terrível. Segundo o oráculo, os deuses

estão furiosos com Lynzea. Nós os temos ignorado por muito tempo, e essa é a

vingança deles. É o que eles dizem, ao menos.”

- Como assim, ignorado? Seguimos nossa religião fervorosamente, nunca

deixamos os feriados passar em branco... O que falta a eles? – perguntou Fiar,

revoltado. O silêncio pairou por um longo tempo antes de Lafreth responder.

- Sangue, Fiar. Sangue é o que eles querem.

- Como assim? Eles mesmos disseram que abdicavam dos sacrifícios de

sangue, que era algo brutal demais!

31

- Sim, Fiar, nós sabemos. Mas não podemos fazer nada. São deuses, afinal.

Possuem tradições de séculos. E eles, pelo jeito, gostam do gosto de sangue. E

essa é a pauta da reunião de hoje. Eles não querem sangue de camponês.

Segundo eles, o sangue dos que estão num alto escalão é mais saboroso.

- Então eu vou! Eu aceito ser o sacrifício!

- De modo algum, Fiar. Não podemos desperdiçar sua vida desse modo –

negou Sarbrar, líder do LPMC – Você ainda é jovem, é um excelente guerreiro e

é casado com a princesa de Lynzea. Um de seus deveres é gerar um herdeiro

para o reino, como você bem sabe. Não podemos te sacrificar. A princesa

enlouqueceria.

- Não precisam se preocupar com o herdeiro! Amaky está grávida! Eu...

- Amaky está grávida?! – gritou o rei, levantando-se com grande

velocidade, um olhar ensandecido nos olhos.

- Sim, senhor... Grávida. O que o senhor esperava, Majestade? – perguntou

Fiar, surpreso pela reação do sogro.

- Nada... Desculpem, é a alegria de ter um netinho. Prossigam – disse o rei,

sentando-se novamente e olhando para o tampo da mesa.

- Bom, pessoalmente eu acho que devemos prosseguir com o meu plano. –

continuou Lafreth, como se não houvesse tido interrupções.

- Vocês d’O Tribunal gostam de se sacrificar, não é? – perguntou Malrua,

comandante-geral do exército de Lynzea, olhando friamente para Lafreth.

- Na verdade, senhor Estrela da Guerra, nós aceitamos nos sacrificar

porque sabemos que, depois da morte, só há a justiça. Então, não gostamos de

nos sacrificar. Apenas não tememos a morte. – respondeu o Grande Juiz, ácido.

- Esperem um pouco, senhores... Eu entendi corretamente? Lian Lafreth

está querendo ir para o sacrifício? – perguntou Fiar, surpreso.

- Exatamente, meu jovem. Por isso que insisto em lhe chamar para todas as

reuniões, apesar de ninguém mais fazer isso. Eu sei que, se eu viver mais dez

anos, terei vivido muito. Não tenho tanto tempo de vida me restando, e devo

preparar meu sucessor, que no caso é você, para assumir este posto.

- Eu, seu sucessor? Não... E os outros Juízes? Deve haver uma hierarquia,

não há? O Juiz mais velho será o próximo Grande Juiz, ou algo do gênero.

- Não. Todos os dez Juízes têm poderes, direitos e influências iguais. Todos

têm a mesma chance de ser eleitos como Grande Juiz. E eu escolhi você.

- Mas por quê?

32

- Não interessa agora. Devemos nos preocupar em pensar na pessoa que

mandaremos para o sacrifício. Quanto mais cedo sacrificarmos, melhor ficará

Lynzea. – disse Malrua.

- Bom... Eu também não temo morrer... Posso muito bem ir para sacrifício.

Se não se incomodarem, é claro. – disse Sarbrar.

- Eu me incomodo, e muito. Sarbrar, você é um gênio da magia e da

tecnologia. Você é um dos grandes responsáveis pelo poderio militar de

Lynzea, e sabe muito bem disso. Ainda é um homem relativamente jovem, e

tem muito tempo pela frente. Use-o para suas pesquisas. – retrucou Lafreth, de

modo brilhante. Mesmo sendo muito velho, suas habilidades com a mente e

com as palavras continuavam em ordem.

- Se você insiste, velho teimoso, não sou eu que vou me opor. Só acho uma

pena Lynzea perder uma mente tão brilhante quanto a sua.

- Obrigado. Agora que o assunto está decidido, me dêem licença. Hoje o

dia foi longo, e não é porque meu sacrifício está marcado que eu vou me privar

do descanso. Senhores. – disse Lafreth, levantando-se e saindo da sala

rapidamente.

- Então... Creio que não temos muito mais o que fazer aqui, não é? Com os

problemas resolvidos, suponho que podemos voltar para nossas casas mais

cedo, hoje. Se não se importam... – disse Malrua, levantando-se da mesa.

Sarbrar o seguiu de perto, dando um cordial toque no ombro de Fiar, que

estava estacado perto da porta. Eles matavam com essa facilidade?

O Ministro da População, que se mantivera quieto até agora, recolheu suas

coisas e foi embora, após se despedir com um aceno de cabeça do rei e de Fiar.

O monarca, por sua vez, levantou-se e, antes de sair, murmurou para o genro:

- Acostume-se, meu jovem. Como Grande Juiz, você verá coisas muito

piores que isso.

Chegara o fatídico dia. O dia do sacrifício de Lafreth.

O céu de Lynzea, nesse dia, estava pesado e plúmbeo, indicando a

possibilidade de uma tempestade, com direito a raios e trovões. A temperatura

era baixa, e as pessoas se agasalhavam bem, se protegendo do cortante vento

que soprava pelas ruas da capital Orxh. Apesar do frio, todas as pessoas de

Orxh se dirigiram à praça central da cidade para assistir ao sacrifício do Grande

Juiz e à sagração da nova cabeça d’O Tribunal.

33

- Então, Fiar, como se sente? – perguntou Sarbrar, olhando para o próximo

Grande Juiz com certa apreensão. Eles estavam em um canto da praça,

afastados de todos os outros figurões do reino de Lynzea, esperando o toque do

sino que os chamaria para o palanque no centro da praça. Esperando pelo sino

que indicaria o início do fim de Lafreth.

- Não muito bem, Sarbrar. Lian Lafreth foi mais do que um simples

mentor, para mim. Ele foi um verdadeiro pai. E saber que hoje eu terei que

assistir seu sacrifício sem poder fazer nada para ajudá-lo me deixa mal. Além

disso, ele mesmo disse que me sagraria como Grande Juiz. Parece até que eu

estou roubando o posto que é dele por direito...

- Fiar... Sabe, meu menino, eu tenho alguns anos a mais de vida que você.

E sei, por conhecê-lo e ter conhecido muito bem o seu pai, que vocês, Lam, têm

um senso muito aguçado de honra e justiça, essenciais para um Grande Juiz.

Não se esqueça, por favor, que Lafreth chega a ser odioso: ele parece que prevê

o futuro. Sua sabedoria é algo fora de série. Decerto que Lafreth jamais faria

qualquer coisa sem antes refletir muito sobre suas ações.

- Aonde você quer chegar?

- Lafreth precisa de você no topo. Cá entre nós, esses Juízes que o

acompanham são ótimos em seguir a lei. Mas eles só fazem isso. Ser um Juiz é

muito mais que isso, Fiar, você sabe. Um bom Juiz segue a lei. Um ótimo Juiz

dobra a lei, para que ela sirva às suas necessidades. Um Grande Juiz faz a

justiça, ainda que isso o obrigue a passar por cima de leis, mesmo que essas

venham de tempos imemoriais. Para fazer isso, porém, eles devem ser sábios o

suficiente para conseguir prever o resultado de suas ações. Lafreth sabe que,

apesar de jovem, você é uma pessoa muito sensata. Em vinte anos, decerto que

você será um dos homens mais sábios de todo o reino. E ainda será jovem.

“Lafreth não está lhe passando o cargo de Grande Juiz porque você é mais

bonito que os outros Juízes. Ele está lhe passando porque você é o Juiz mais

promissor de todos: você é jovem, inteligente, sábio e muito justo. O povo lhe

ama, e sabe que pode contar com você. Pessoalmente, eu acho que a

responsabilidade que Lafreth está te passando é muito maior que você pensa.

Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de Lynzea. Você será

aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das massas,

Fiar. Lafreth está, enfim, lhe passando a responsabilidade de ‘seguro’ do reino.

E esse é o ato que mais demonstra a confiança dele em você.”

Fiar não respondeu. Ele não queria.

Ele não podia.

34

O sino da praça central de Orxh tocou três vezes, chamando os figurões da

política de Lynzea para o centro da praça, no palanque. Quase todos os Juízes,

vestidos de luto em respeito ao seu chefe, já estavam lá. Só faltava Fiar que,

junto de Sarbrar, se dirigiu funebremente ao palanque. Um gordo sacerdote,

vestindo uma enorme roupa branca e roxa, os ajudou a subir, dando um abraço

forte em cada um. Bem no meio do palanque, o rei estava acompanhado de

Malrua e do Ministro da População, com um de cada lado.

- Fiar. Sarbrar. Vocês estão prontos? – perguntou o rei.

- Infelizmente sim, Majestade. Eu estou, ao menos – respondeu Sarbrar,

sentando-se ao lado do Ministro da População.

- Eu não tenho muitas opções, não é? Vamos terminar com isso logo –

disse Fiar, dirigindo-se para o lado de seus colegas.

- Fiar! Onde pensa que está indo? – questionou Malrua.

- Para meu lugar. Ao lado dos Juízes.

- Seu lugar é conosco.

- Não é. Esse lugar ainda é de Lian Lafreth, e eu não pretendo tomá-lo até a

morte dele. – e, com essa nota ácida e fria, Fiar se dirigiu ao seu lugar, do lado

dos Juízes.

Começou com uma batida grave. Uma batida triste, que penetrou a alma

de cada um daqueles que amavam e conheciam Lafreth. A batida se repetiu, e

de novo, e de novo, até parecer que nunca mais ia parar de bater. Ao fundo, o

repique de tambores convocava os deuses de Lynzea para a cerimônia.

Lafreth estava vestido com uma garbosa roupa rubra. Um capuz, também

rubro, cobria seu rosto. Ele andou até o palanque, onde o gordo sacerdote o

ajudou a subir. Sem abraços. Sem palavras reconfortantes.

- Meus irmãos, estamos aqui hoje para sacrificarmos o Grande Juiz Lafreth,

com o objetivo de apaziguarmos a ira dos deuses que, ao custo de apenas uma

vida, nos darão em troca sua anistia. Louvados sejam!

- Verual! – disseram os fiéis, em uníssono.

Fiar estava abismado. Como aquele... Aquele sujo conseguia pregar a

benevolência divina a partir de atos tão escusos?

- Por favor, meus irmãos, orem pela alma do Grande Juiz Lafreth,

enquanto eu consumo o sacrifício.

- Um momento, caro pastor. Antes de morrer, eu gostaria de dizer algumas

palavras – pediu Lafreth, para a surpresa geral. O pastor, desnorteado, olhou

35

para o rei procurando uma orientação. O monarca assentiu com a cabeça, e o

clérigo disse:

- Muito bem, então... Suponho que não machucará ninguém...

O Grande Juiz olhou nos olhos de cada um daqueles que foram ver seu

sacrifício e começou o seu discurso.

- Antes de qualquer outra coisa, eu gostaria de agradecer a presença de

todos, e de cada um em particular. Pode parecer um pouco mórbido agradecê-

los por vir assistir minha morte, mas deixem-me explicar. Eu sou Grande Juiz

há quase cem anos. Antes mesmo de muitos de vocês nascerem, eu já era velho.

Em minha vida, vi coisas maravilhosas. Ah, sim, eu vi. Me casei com uma

mulher linda, tive dois filhos a quem pude ensinar os conceitos de honra, justiça

e bondade. Tive netos, bisnetos. Todos eles jovens que, ao meu ver, são

encantadores. Sim, eu sou um velho avô coruja e babão. – e, nesse momento, a

tensão palpável no ar da praça de Orxh quebrou com as risadas. Levemente. –

No entanto, eu também vi coisas tenebrosas. Vi magias proibidas serem

lançadas, guerras dizimarem reinos inteiros, pestes e doenças assolarem a terra

em que pisamos. Mesmo assim, eu sobrevivi a tudo. Eu nunca quis morrer.

Sempre soube que eu não poderia, não iria morrer para motivos tão esdrúxulos

como esses. Eu iria morrer por algo maior. No fim, acho que eu sempre quis dar

minha vida por milhares de outras.

“Eu sempre acreditei que faria isso num campo de batalha, com uma

espada em mãos. Nunca, jamais imaginei fazer isso numa praça no meio da

capital de Lynzea, aos cento e cinqüenta anos de idade. Engraçado como o

destino funciona, não é?

“Ah, perdoem a mente deste velho. Estou aqui falando, e acabei me

esquecendo de falar o porquê dos meus agradecimentos. Pois bem. Eu estou

agradecendo a vocês por me darem a chance de morrer como eu quis. Feliz é o

homem que pode escolher sua morte. Estou agradecendo pela consideração que

vocês estão tendo por mim, de sair do conforto de suas casas, nesse dia frio,

ventoso e cinzento. De vir aqui me prestar uma última homenagem.

Obrigado por me deixarem morrer.

Agora, vamos ao que interessa. Lynzea precisa de um Grande Juiz. E agora

eu vou anunciá-lo.”

Na sua cadeira, Fiar aprumou-se. Enfim, chegara a hora.

36

- Então, Lian Lafreth? Quem é seu sucessor? – perguntou o gordo

sacerdote.

- O meu sucessor é o único elfo com competência o suficiente para fazer

isso. E ele ainda é uma criança. De fato, será o Grande Juiz mais jovem da

história de Lynzea.

“Fiar Lam”

O nome reverberou pela praça, enquanto as pessoas absorviam o choque

da notícia. Para o mais alto escalão político, isso não era novidade alguma. Para

todos os outros, isso era uma verdadeira revolução.

E o povo, com lágrimas nos olhos, começou a aclamar o novo Grande Juiz

de Lynzea. Não mais o chamavam de Fiar. O título era outro. Um título que ele

carregaria por toda a vida.

Lian Fiar.

As palavras de Sarbrar reverberavam na mente de Lian Fiar.

“Pessoalmente, eu acho que a responsabilidade que Lafreth está te passando é

muito maior que você pensa. Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de

Lynzea. Você será aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das

massas, Fiar”

O herói de Lynzea. O herói do povo.

O sacrifício foi consumado. E, nesse dia, os céus de Lynzea choraram a

morte de um dos maiores Grandes Juízes da história do reino.

Lian Fiar, porém, não sabia se o que tinha em seu rosto eram as lágrimas

do céu ou as suas próprias.

37

Parte Dois

Nove meses haviam se passado desde o sacrifício de Lian Lafreth. Como

prometido pelos deuses, a terra de Lynzea voltara a ser fértil, e a paz fora

restabelecida.

Para o povo.

Lian Fiar percebera que, por alguma razão misteriosa, o rei de Lynzea

havia mudado drasticamente. Antes um rei sorridente, amigável, carismático e

alegre, ele agora era uma carranca imutável. Isso acontecera desde que o alto

escalão político de Lynzea recebera a mensagem do oráculo.

- Majestade? Mandou me chamar? – perguntou Lian Fiar, adentrando na

sala do trono e ajoelhando-se perante o monarca.

- Sim, Fiar. Levante-se. Guardas, estão dispensados. – disse o rei. Os

soldados bateram continência e se retiraram. – Fiar, temos um assunto muito

sério a tratar.

- Só nós? E Malrua, Sarbrar e o Ministro da População?

- Eles não podem saber sobre isso.

Não podem saber sobre isso?

- E qual é esse assunto tão misterioso, Majestade?

- Bom, você sabe que o oráculo nos ordenou sacrificar uma vida em troca

da fertilidade das terras de Lynzea. No entanto, havia mais uma mensagem,

direcionada especificamente a mim.

- E qual era essa mensagem, Majestade? – perguntou Lian Fiar,

desconfiado. Algo não parecia certo.

- Leia a profecia, Fiar. Então você entenderá. – disse o monarca,

entregando um pergaminho enrolado e amarelado para o Grande Juiz. Fiar

desenrolou a profecia e começou a ler

Fome, guerra, frio e morte

Assolam o território

Uma vida deve ser entregue,

Como bem compensatório

38

Uma faca de pedra nova,

Sem temor será usada.

Mas não com sangue de plebeu,

E sim de nobre será manchada.

Os Deuses estão furiosos

Por terem sido negligenciados

Mas, com esse sacrifício,

Vocês serão perdoados.

O rei de Lynzea terá um herdeiro

Que do trono o despojará

Filho da Bondade e da Justiça,

Sabiamente ele reinará.

E mesmo contra milhares

Contra milhões de inimigos

Seis sobreviverão

E reinarão como amigos

- Certo, Majestade. E qual o problema dessa profecia?

- Leia a quarta estrofe! Leia! – ordenou o rei, um pouco alterado.

- Eu já a li. E ainda não vejo problemas nela.

- Como não? Eu sou o rei de Lynzea!

- E em momento algum a profecia citou seu nome. Lynzea obviamente terá

outros reis. Para mim, o senhor está ligeiramente paranóico.

- Não seja cínico! Olhe a terceira linha! Filho da Bondade e da Justiça! É

óbvio que você, Fiar, é a “Justiça”, e minha filha Amaky é a “Bondade”!

- Eu não sou a única pessoa justa de Lynzea, e tampouco sua filha é a única

pessoa bondosa. E tem mais, sua herdeira é Amaky, não seu neto. – blefou Fiar.

- Você sabe bem que não, Fiar. Inclusive, sabe melhor que eu. Segundo as

leis de Lynzea, apenas os herdeiros homens do rei podem herdar o trono. Se

não houver descendentes, passa-se o cargo para o próximo homem na linha de

sucessão que, no caso, é você.

- Muito bem, e o que você pretende que eu faça? – perguntou Lian Fiar,

desconfiado. O rei riu.

39

- Você, Fiar, mandará matar o meu neto. – disse o monarca, virando-se e

saindo da sala do trono.

- Meu pai fez o que? – perguntou Amaky, esposa de Fiar, incrédula. Eles

estavam no quarto deles. Amaky estava sentada na cama, enquanto Fiar andava

de um lado para o outro no espaçoso recinto. O bebê dormia tranqüilo no berço.

- Exatamente, Amaky. Terei que matar nosso filho.

- Como, como meu pai ousa falar uma sandice dessas? Não, Fiar, eu não

consigo acreditar.

- Mas é verdade, querida. E eu não consigo ver outra saída.

Amaky olhou para seu filho, desnorteada. Poxa, ela sempre fora tão

bondosa! Nunca fizera nada de mal para ninguém. Por que tinha que passar por

isso? Seus belos olhos castanhos lacrimejaram.

- Fiar... Você é Grande Juiz. Você não pode enfrentar meu pai? Vocês têm o

mesmo poder, não é?

- Não e sim, Amaky. Sim, nós temos o mesmo poder. Mas não, não posso

enfrentá-lo. Mesmo que eu levasse isso para uma reunião só com a nata política

de Lynzea, seria ineficaz. O pulha do Ministro da População é um cachorrinho

de Malrua, que está ao lado do seu pai. Ainda que Sarbrar fique do meu lado,

serão três contra dois.

- Fiar, temos que fazer alguma coisa.

- Eu sei, Amaky, mas o quê? Estamos de mãos atadas!

Amaky pesou as palavras de Lian Fiar em silêncio, até que se levantou

resoluta e se dirigiu à porta.

- Onde vai, querida? – perguntou Lian Fiar, assustado.

- Vou falar com meu pai. Ele deve estar louco, só pode ser isso. Eu vou

tirar essa idéia da cabeça dele, nem que seja a última coisa que eu faça.

- E então, Amaky, conseguiu dissuadi-lo? – perguntou Fiar, ao ver a

esposa entrar no quarto.

- Não, Fiar. Pior. – respondeu a mulher, abatida.

- O que ele falou?

- Que, se você não fizer isso dentro de uma semana, ele mesmo fará. Em

praça pública.

- Sarbrar, preciso de você. – disse Fiar, adentrando no laboratório do

amigo com ímpeto.

40

- O que foi, Fiar? – perguntou Sarbrar, assustado. O Grande Juiz não

costumava ser assim.

- Prefiro falar com você em particular. – respondeu Fiar, olhando para os

assistentes de Sarbrar com desconfiança.

- Saiam. Depois continuamos nosso trabalho. – ordenou o pesquisador aos

seus assistentes. – O que houve, Fiar?

- Preciso da sua ajuda. O rei quer que eu mate meu filho, por causa de uma

profecia, mas eu não quero fazer isso. Eu não posso, Sarbrar.

- Conte-me tudo, Fiar. Depois achamos um plano de ação. – disse Sarbrar,

indicando uma cadeira com a mão para Fiar, enquanto puxava outra para si.

Fiar contou a história, e Sarbrar ficou em silêncio, ponderando.

- E então, Sarbrar, o que devo fazer?

- Fiar, a política é um negócio sujo. E eu sei como você é honesto. Mas,

desculpe, dessa vez você precisa jogar sujo. Se não por você, pelo seu filho. É

preciso que você cobre alguns favores. Sem medo.

Fiar assobiou. Ele tinha um bocado de favores a cobrar.

- Senhor rei, matarei meu filho na floresta, numa clareira. Depois o senhor

pode checar. – sussurrou Fiar, ao cruzar com o monarca num dos corredores do

castelo.

O aceno de cabeça foi o suficiente.

Todos estavam reunidos na clareira. O açougueiro, com um porco raspado

preso por uma coleira, o escultor, com uma sacola, o pastor e um mago leal aos

Lam. Fiar estava com seu filho nos braços. O bebê dormia inocentemente.

- Estão com o que lhes pedi, senhores? – perguntou Fiar. Todos

murmuraram um “sim”. – Então, comecemos. – disse ele.

O escultor ajoelhou-se, colocando delicadamente no chão pedaços de

argila em formato de ossos élficos de bebês no chão, para depois espalhá-los de

um modo aleatório, como se um animal faminto houvesse passado por lá e feito

um lanche com a criança abandonada. Alguns dos pedaços de argila menores

foram devolvidos à sacola, como se o lobo os houvesse ingerido junto.

Após o escultor se retrair, o mago avançou, com uma magia preparada. Ele

levantou seu cajado e bradou “Argila em osso!”. Imediatamente, os pedaços de

argila se transformaram em verdadeiros ossos.

- Incrível. – sussurrou o pastor.

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- Mais do que o senhor imagina. Prossigamos. – respondeu Fiar, acenando

positivamente com a cabeça para o açougueiro, que se adiantou e cortou o

pescoço do porco. A seguir, cortou alguns pedaços do bicho, pequenos, e

colocou nos ossos recém formados.

Parecia que animais haviam devorado um bebê de colo.

- Senhor pastor, o senhor sabe o que fazer?

- Sim, Lian Fiar. Devo ir até Sparon, na casa dos mercadores Lam, e

entregar o bebê e essa carta a eles.

- Excelente. Faça uma boa viagem. – disse Fiar, com lágrimas nos olhos,

entregando o filho ao pastor.

- Mestre... Só tenho uma dúvida.

- Pois não?

- Qual é o nome da criança? Certamente que não quer que os mercadores

dêem o nome de seu filho, não é?

- O nome?

- Sim, senhor, o nome de seu filho.

- O nome que eu sempre quis para o meu filho. O nome que eu sempre

quis ter. Um nome forte. Um nome que certamente será honrado por esse

menino, senhor pastor. Pois, ainda que eu esteja de coração partido, e minha

mulher ainda mais, por não poder saber da verdade, sei que isso é o melhor a

ser feito. Então, damos um nome de um verdadeiro guerreiro, honrado, fiel,

justo e corajoso. Um nome digno dele.

“O nome é Corash Lam”

42

Capitulo Dez

- Seu filho? Como?! “Lam”, na língua antiga, significa “mercador”! – disse

Corash, atordoado.

- De fato. No entanto, uma palavra pode ter mais de um significado. Em

nosso caso, “Lam” significa “justo”.

- Não pode ser verdade, senhor! – disse Mahslia – Eu conheço Corash

desde criança, e sou quase fluente na língua antiga! “Lam” sempre significou

“mercador”!

- Não, minha jovem. Nos primórdios da linguagem, “Lam” significava

“justo”. No entanto, houve certo Lam, creio que o nome dele era Milonna Lam,

que não seguiu o mesmo rumo da família, e virou um mercador. A partir disso,

a família se dividiu entre os “Lam da justiça” e os “Lam do mercado”.

- E como o senhor sabe com certeza que o Corash é seu filho? – perguntou

Avalas, astuto. Lian Fiar olhou para ele, sorrindo.

- Avalas, me lembro de você em minhas aulas. Sempre foi um bom

arqueiro, mas suas melhores notas sempre foram no quesito da estratégia. Pelo

jeito você não perdeu esta característica. Bom, eu preciso de um pouco mais de

tempo para explicar isso.

“Vejam, a família Lam sempre foi uma família de arqueiros. Está no

sangue, não há uma explicação lógica. Os advindos da linhagem direta dos

‘Lam da justiça’ sempre terão uma habilidade inata com o arco e flecha. Sempre

fomos uma família abastada justamente porque nossa arquearia era muito boa.

Os grandes generais arqueiros, invariavelmente, eram Lam. O que nos

destacava dos demais é que tínhamos, em nosso sangue, certo poder mágico.

Não o suficiente para virarmos magos de elite, mas dava para nos defendermos.

Só que nós conseguíamos ‘aplicar’ essa magia em nossas flechas, deixando-as

mais poderosas do que seriam normalmente. Podíamos soltar flechas sonoras,

para atordoarmos nossos inimigos, flechas congelantes, para paralisarmos,

entre outras. Como eu disse, os ‘Lam da justiça’ têm habilidade inata com o arco

e flecha. Oras, o Corash é um arqueiro que conseguiu utilizar uma flecha

43

flamejante do nada! A única explicação lógica para isso é ele ser meu filho

perdido.”

- Faz sentido... Por isso que você nos protegeu, no julgamento. Para não

matar de vez seu filho, não é? – perguntou Avalas.

- Em partes. Lembre-se que eu gosto de ser o mais justo possível, enquanto

eu puder. Agora, eu sei que vocês precisam fugir. A Arena só permite um

campeão. Se vocês ganharem, serão obrigados a matar uns aos outros. Assim,

terão que fugir. De preferência imediatamente antes da final, assim o rei terá

dificuldade em armar um esquadrão para recapturá-los.

“A Arena está no exato limite da cidade, e possui duas saídas – uma a leste

e uma a oeste. A saída a leste dá na cidade, então é inútil. Vocês devem sair,

então, pelo oeste. O maior problema, no entanto, é que a saída a oeste

‘desemboca’ diretamente nas Dunas Congeladas. Caso vocês não saibam, as

Dunas Congeladas não formam um deserto tão grande assim. Ele é, na verdade,

pequeno. O grande problema é que ele é um lugar muito mágico, e ilude os

viajantes, para o bem e para o mal.”

- Hm... Então teremos que inevitavelmente cruzar as Dunas Congeladas? –

perguntou Corash, olhando de soslaio para Mahslia e Avalas, que

enrubesceram.

- Sim. As Dunas Congeladas também têm uma propriedade estranha, pois

ela sempre vai deixar os viajantes na Montanha Selque. É o único caminho para

lá, inclusive. De qualquer maneira, vocês estarão na Montanha Selque. De lá,

vocês devem seguir sempre rumo oeste. Assim, sairão perto de Sparon. Algo

mais?

- Acho que não. Mas... Como saberemos como sair da prisão? – perguntou

Mahslia, finalmente.

- Ah, isso vocês saberão no momento certo. Direi apenas que seu novo

amigo sabe. – respondeu Lian Fiar, sorrindo. E, com essas palavras enigmáticas,

ele rodopiou em seus calcanhares, destrancou a cela e saiu, com seu manto

vermelho e dourado esvoaçando atrás dele. Mas ele não se esqueceu de fechar

novamente as grades do cubículo de pedra que atrasava os amigos.

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Capitulo Onze

Dois dias haviam se passado desde a visita de Lian Fiar. Dois dias

silenciosos e longos, nos quais os únicos barulhos ouvidos foram a abertura da

cela para a entrada de comida e a pedra de amolar improvisada de Avalas indo

de encontro à espada tosca.

- Chega! Eu não agüento mais! – explodiu Corash, subitamente.

- Paciência, Corash. Eu entendo sua ânsia de sair daqui, mas não adianta

explodir. Espere. Temos que esperar nosso companheiro.

- Não vamos mudar para a cela dele?

- Ah, claro. É realmente muito mais fácil mudar três pessoas de cela do que

mudar uma. – respondeu Avalas, sarcástico. Mahslia começou a gargalhar.

- Qual a graça, Mahslia? – perguntou Corash, emburrado.

- Vocês! – disse ela, tentando respirar.

- O que temos nós? – questionou Corash, ficando nervoso.

- Olhem para vocês! Parecem duas crianças brigando!

Avalas esboçou um sorriso, e até Corash riu. Mahslia continuou rindo,

mesmo quando o guarda pediu silêncio.

- A que ponto chegamos, não? – perguntou Avalas, depois de uma hora,

parecendo um pouco triste. – Estamos rindo de brigas entre nós mesmos. Isso é

tão...

- Macabro? – sugeriu uma nova voz na cela. Uma voz rouca. Os três

amigos se viraram para a voz com as mãos nas armas. A porta da cela estava

aberta, e o guarda escoltava uma pessoa grande e forte, com as mãos algemadas

para trás. Sua pele era marrom, em contraste com a típica pele de orc, mas era

um marrom bonito. O rosto era até bonito, para um orc, sem ser muito rústico

nem muito delicado. Os olhos, que em orcs eram cruéis, tinham um brilho sábio

e bondoso, e seu sorriso branco era bonito de se ver.

- Entre, seu vagabundo – disse o guarda, rudemente empurrando o recém-

chegado para a cela. Quando o prisioneiro caiu de joelhos, o guarda

45

rapidamente retirou suas algemas, deixou cair um machado no chão e saiu,

trancando a porta.

- Desculpem-me entrar de modo tão brusco. Eu sou Krummel, seu novo

companheiro de cela, e, como podem ver, sou um meio-orc.

- É um prazer, Krummel. Meu nome é Avalas, e esses são Corash e

Mahslia. Somos um grupo, agora, de modo que é melhor se acostumar com a

sensibilidade da Mahslia e a idiotice aguçada do Corash. – disse o grande

espadachim, estendendo a mão para Krummel, que a apertou. Os dois gigantes

não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto Krummel tinha olhos

bondosos, calorosos, pele escura e sorriso fácil, Avalas tinha olhos frios e

calculistas, pele alvíssima e nunca sorria.

- É um prazer. Diga-me uma coisa, qual sua outra metade? – atropelou-se

Corash.

- Eu sou mestiço de humanos, também. – Corash contorceu o rosto. –

Algum problema?

- Não gosto de humanos. Eles são horríveis. Falsos, metidos, ignorantes,

grosseiros...

- E você está sendo quase tudo isso em dobro, além de preconceituoso. Os

seres pensantes são assim, independentemente da raça à qual pertencem. Elfos,

inclusive.

O silêncio pairou no recinto. As palavras de Krummel pesaram.

- E o plano, qual é? De sair da prisão, digo. – perguntou Mahslia.

- Ah, sim. Bom, vamos lá. A partir da cela em que estamos agora,

seguimos para a direita, viramos a segunda esquerda e vamos até a terceira

porta, também à esquerda. É o depósito de armas. Pegaremos nossas armas,

vestiremos armaduras e continuaremos andando, como se não houvéssemos

parado. Viraremos na primeira direita que encontrarmos, e nos separaremos em

dois grupos – Corash e Avalas vão para a direita, Mahslia e eu iremos para a

esquerda. Para abrirmos os portões, duas alavancas precisam ser acionadas.

Cada um dos grupos ativará a sua, e voltaremos correndo para a bifurcação,

seguindo reto até o portão e as Dunas Congeladas? Entenderam?

- Só vejo uma falha: a parada para pegarmos equipamentos. Certamente os

guardas notarão nossa falta. Quando conversamos, eles ouvem apenas ruídos.

Eles acham estranho, porém, que fiquemos quietos. – atestou Avalas, depois de

uma longa reflexão

- Sim. Só temos que ficar quietos por muito tempo, e poderemos disfarçar

bastante a nossa fuga. – respondeu Krummel, sorrindo.

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- Falar é fácil. Além disso, o que faremos quando encontrarmos os

guardas? Certamente eles patrulham os corredores, ou ao menos tem postos

estratégicos por esta masmorra. – perguntou Corash, sensatamente.

- Quando encontrarmos os guardas, se é que vamos encontrá-los, jovem

Corash, teremos que improvisar. E seria bom que suas flechas sejam precisas e

velozes. Eu garanto o sangue no meu machado, e pelo físico de Avalas, ele

também se garante. – retrucou o meio-orc, sorrindo.

Mas, apesar do sorriso gentil, seus olhos brilhavam, clamando por sangue.

Três dias depois, um guarda os chamou para a próxima luta.

47

Capitulo Doze

A Arena estava do mesmo jeito que eles a tinham deixado. Do outro lado,

um humano, um anão, um elfo e um halfling os observavam, desconfiados. O

humano tinha cabelos negros como a noite, e um rosto razoavelmente bonito,

apesar de um pouco sofrido. O anão era corpulento, forte e parecia perigoso. O

elfo os olhava com desprezo, e o pequeno halfling parecia analisá-los. Seus

olhos espertos pulavam de um para o outro.

- Avalas, deixo o anão para você. Minha armadura é mais leve que a sua, e

esse desgraçado parece forte. Eu vou lutar com o humano. – disse Krummel,

pensando rápido

- Parece justo. Mahslia, esse elfo tem jeito de ser mago. Você consegue

rebater as magias dele? – continuou Avalas.

- Posso tentar, Avalas, mas não posso garantir. Tudo bem?

- Vai ter que servir. Corash, você nos dê cobertura! – ordenou Avalas.

- Certo, mas vocês não estão se esquecendo do halfling, não? – perguntou

Corash.

Krummel trincou os dentes com força. Era verdade, eles haviam mesmo

esquecido do halfling.

- Certo. Alguma idéia do que ele é, Avalas? – perguntou o meio-orc.

- Pequenino e rápido? Um batedor, acho eu. Ou então um ladino.

- E qual o uso de um ladino em campo de batalha? – questionou Corash.

- Idiota. – suspirou Avalas. – Ladinos são mestres do disfarce, do roubo, da

furtividade. São guerreiros perfeitos para flanquear o inimigo, distraí-los... E

cuide bem de suas flechas. Ele pode afaná-las, e não queremos isso. – disse o

espadachim, puxando sua enorme espada. Krummel sacou seu machado, e

Mahslia preparou seu cajado.

Sem muitas opções, Corash preparou uma flecha e retesou seu arco.

E a luta começou.

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Enquanto Krummel e Avalas corriam contra os inimigos, Corash lançou

suas flechas certeiras. Uma pegou na coxa do humano, e a outra acertaria

perfeitamente a cabeça do anão, se ele não houvesse erguido o escudo. O

halfling saiu correndo pela Arena, enquanto o elfo começou a fazer gestos

esquisitos. Mahslia começou a sussurrar, conjurando uma magia.

Corash manteve os olhos no halfling, preparando uma flecha. O pequeno

ladino corria pela Arena, sem um padrão de direção. Ele tinha uma espada

curta nas mãos, e não usava escudo. Uma flechada poderia matá-lo.

Aquele maldito anão estava irritando Avalas. Profundamente.

Primeiro, era difícil de acertá-lo. Por ser muito alto, Avalas teria que

abaixar bastante para atacar o inimigo. Por conseqüência, Avalas só podia

atacar a cabeça e os ombros do outro, que defendia com o escudo. A sorte do

grande espadachim era que seus golpes eram tão poderosos que atordoavam o

inimigo, e ele não revidava os ataques.

A flecha de Corash tirara toda a graça da batalha, para Krummel. O

humano estava com a mobilidade comprometida, a armadura enfraquecida e

sua maça-estrela tinha espinhos em falta. Algumas machadadas do meio-orc

foram suficientes para eliminá-lo. Ridículo.

“Vamos, seu halfling maldito, fique parado!” pensou Corash, raivoso.

O elfo abriu os olhos, luzidios de poder.

- Bola de fogo maior! – conjurou ele. De suas mãos saiu um fogo que se

juntava numa bola enorme. E a bola começou a ir rapidamente na direção de

Corash. O mago voltou a seu transe, preparando mais uma magia.

E a técnica de Mahslia ainda não estava pronta.

Krummel olhou a situação dos companheiros, e decidiu que deveria atacar

o elfo. Ou seus companheiros morreriam. Aquele maldito elfo era perigoso. Mas

antes ele tinha que fazer uma coisa.

Corash atirou sua flecha na direção do halfling, e por pouco não o acertou.

Aquele maldito era rápido. Por que ele não se decidia para onde ia?

Foi então que Corash notou a enorme bola de fogo vindo em sua direção.

49

- Que inferno, Corash, será que você não consegue cuidar de si mesmo? –

urrou Krummel, pulando na frente do elfo e estendendo as mãos, segurando a

bola de fogo. O machado fora guardado novamente na cintura.

- Krummel! O que você está fazendo?

- Deixando o arqueiro estúpido vivo, não é óbvio? – respondeu ele, com

sarcasmo. Sua voz tinha uma nota de dor. – Mahslia, a magia está pronta? –

urrou ele para a maga.

- Só falta mais um pouco! – respondeu ela, cada vez mais concentrada.

Subitamente, Corash teve uma idéia.

- Mahslia! Alterne a magia para ajudar o Avalas! Deixe que eu cuido da

bola de fogo! – gritou o arqueiro para a amiga.

- O quê? Ficou louco? Você não é mago, Corash! – gritou Krummel.

- Confie em mim! – retrucou o elfo, armando uma flecha no seu arco. –

Diga-me onde está o mago deles, Krummel!

- Corash...

- Confie em mim!

- De onde você está, basta mirar no meio da bola de fogo.

- Excelente! Quando eu falar, você sai do caminho, entendido? – perguntou

Corash, pulando para trás e apontando a flecha para o meio da bola de fogo. E,

por conseqüência, para a cabeça de Krummel.

- Vamos logo! – gritou Krummel.

- Saia, Krummel! Eldr Or! – ordenou Corash, lançando a flecha no meio da

bola de fogo. A flecha flamejante atravessou o golpe do mago adversário, mas

algo de extraordinário aconteceu: as chamas que os atacavam se incorporaram

ao fogo de Corash, e as labaredas tomaram a forma de um dragão, voando na

direção do mago inimigo.

Avalas estava ficando realmente irritado com aquele anão. Já era para ele

ter morrido! No entanto, ele continuava firme em sua posição. E Avalas insistia

em seus brutais golpes.

- Vamos, maldito, abaixe esse escudo!

- Muito bem! – sorriu o anão perigosamente. Seus olhos brilhavam de um

modo maroto. Um modo que devia ter avisado Avalas.

Mas a raiva havia o cegado.

Com uma súbita e lancinante dor na perna esquerda, Avalas caiu de

joelhos. A parte posterior de sua coxa doía absurdamente, como se houvesse

tomado um golpe de espada. A enorme montante do elfo caiu no chão.

50

Então, de canto de olho, Avalas viu. O halfling já saía de seu alcance, mas

seu sorriso brilhava. E sua espada também, com o sangue do enorme elfo.

- Morra, seu idiota! – berrou o anão, erguendo um machado enferrujado

para brandi-lo na direção da cabeça de Avalas.

- Metal em Pedra! – gritou Mahslia, abrindo os olhos, que brilhavam

vermelhos.

O anão tombou para trás com a súbita mudança de peso. Não foi o

suficiente para machucá-lo. Não em um primeiro momento.

O tombo deu chance para a recuperação de Avalas. Agarrando o pé do

anão, ele o ergueu com ódio no olhar. Era hora da vingança. O grande

espadachim levantou-se com dificuldade e jogou longe o elmo do inimigo. Em

seguida, girou-o como um laço, para lançá-lo de cabeça na parede de pedra da

arena. Um horrível som de ossos quebrando se fez ouvir por todo o recinto,

fazendo com que um arrepio passasse frio pelas costas dos presentes.

Pegando seu montante, Avalas virou-se com ódio para os inimigos

restantes.

Mas a luta já havia acabado.

O halfling havia atacado Avalas e saído de costas, para ver o parceiro

matar o enorme inimigo. O problema, para ele, é que ele havia entrado

diretamente na linha de fogo da flecha flamejante de Corash que, apesar de

estar muito alta para atingi-lo, deslocava uma imensa quantidade de energia e

vento. O suficiente para fazê-lo voar.

Aproveitando-se da situação, Krummel lançou seu machado na direção do

halfling certeiramente. A morte do pequeno adversário foi instantânea.

O mago só teve tempo de abrir os olhos antes de ser atingido pelo dragão

flamejante. O fogo o consumiu instantaneamente.

Corash abaixou o arco. Sua fronte estava suada, mas seus olhos brilhavam

determinados. Ele olhou para os companheiros e sorriu.

- Conseguimos.

51

Capitulo Treze

De volta à cela, os amigos resolveram descansar. A luta, apesar de rápida,

havia sido extremamente cansativa, principalmente para Corash, graças à

técnica, e o ferimento de Avalas era mais profundo do que parecera em um

primeiro momento.

- Como você conseguiu se ferir aí, Avalas? – perguntou Corash, recostado

na parede.

- Eu não “me feri”. Eu fui ferido. Aliás, eu fui ferido pelo halfling que você

deveria ter matado.

- Ei, pare de me culpar! O mago jogou a bola de fogo em mim! Se a

Mahslia tivesse conjurado a contra-magia antes, não teria tido esse problema! –

reclamou Corash, olhando para a amiga.

- O quê?! Seu idiota, você não atacou o mago por quê?! Ele estava em

transe, inferno! – reagiu Mahslia, ofendida.

- Que eu me lembre, eu estava te protegendo de um halfling maluco que

corria por aí com uma espada na mão tentando nos cortar.

- E eu por um acaso pedi sua proteção, seu arqueiro de meia-tigela?

- Calem a boca! – urrou Krummel, levantando-se. – Ninguém aqui tem

culpa de nada, entenderam? Não vamos conseguir nada se continuarmos

brigando, exceto nos matar. Se qualquer um de vocês deseja morrer, basta me

avisar, e eu terei o maior prazer em realizar seus desejos. Mas eu ainda quero

viver.

Ambos Corash e Mahslia silenciaram, com o rosto um pouco vermelho de

vergonha. Krummel olhou para eles com um pouco de reprovação, e em

seguida continuou:

- Avalas, deixe-me ver sua perna. Deite de bruços no chão. – ordenou o

orc. O grande elfo o obedeceu. Krummel ajoelhou-se ao lado do colega e olhou

o corte.

52

O ferimento estava feio. Eles haviam limpado como podiam, mas aquela

cela era extremamente carente de materiais. O corte havia coagulado, mas

estava um pouco inchado e extremamente sensível.

- E então, doutor Krummel, o que acha? – perguntou Avalas, com um

pouco de sarcasmo na voz.

- Está bem ruim. Eu posso mexer um pouco? – perguntou o orc, ignorando

o veneno que o grande elfo cuspira em sua direção.

- Faça como quiser, mas resolva isso, por favor. – permitiu Avalas.

Krummel se levantou e se dirigiu à porta da cela.

- Guarda! Guarda! – urrou ele, batendo na porta com toda sua força,

fazendo bastante barulho.

- O que você quer, orc maldito? – perguntou o guarda, cuspindo um pouco

no rosto de Krummel. O bárbaro não fez questão de corrigir o guarda.

- Senhor, um dos nossos colegas de cela foi ferido. Sei que não pode nos

chamar um médico, mas queremos cuidar dele. O senhor pode me arranjar

lenços limpos? – perguntou o meio-orc, contendo-se para não se limpar. Ele

precisava parecer obediente.

- Verei o que posso fazer. – disse o guarda, saindo.

- Agora, nós esperamos. – disse Krummel, limpando o rosto e abaixando-

se para examinar a perna do amigo.

- Ei, vocês! – disse uma nova voz por detrás da porta.

Corash levantou a cabeça, assustado. Outra luta agora? Não estava na

programação! Ele estava cansado demais para isso.

- O que o senhor deseja? – perguntou Krummel, indo em direção à voz.

- Vim cuidar de seus ferimentos! O rei os quer prontos para a batalha

amanhã.

“Amanhã”? Os quatro se entreolharam. O rei aparentemente soubera da

tentativa de fuga, e adiantara a batalha.

- Deixem-no entrar logo. Se temos mesmo que batalhar, ao menos eu

poderei batalhar com a perna um pouco melhor do que esta. – sibilou Avalas,

deitado com dificuldade na cama.

- Pode vir! Estamos desarmados! – gritou Krummel, afastando-se da porta

da cela, que logo após se abriu. Um elfo baixo e gordo entrou, com uma maleta

em mãos.

- Eu sou o doutor Merkus. Quem é que está ferido?

53

- Quem é o único com um sangramento óbvio? – perguntou Avalas,

irascível. A dor o tornava verdadeiramente insuportável.

O médico acenou com a cabeça, e andou na direção do grande elfo.

- Os senhores que estão bem, podem segurá-lo? Isso vai ser difícil, e acho

que é fácil ver que eu não conseguirei contê-lo sozinho.

Krummel acenou afirmativamente com a cabeça.

- Mahslia, você pode conjurar um feitiço paralisante em Avalas? Será meio

caminho andado.

- Mas então não precisamos contê-lo, não é? – perguntou a elfa,

preparando a magia.

- Mahslia, você é linda, simpática e inteligente, mas não entende nada de

magias na prática e no cotidiano – sorriu Krummel. – Por favor, confie em mim.

Cinco minutos depois, Avalas estava imobilizado, de bruços, no chão.

Corash e Mahslia sentavam em suas costas, enquanto Krummel, que pesava

aproximadamente a mesma coisa que os dois juntos, estava deitado nos

calcanhares do grande elfo, que já estava afetado pela magia de Mahslia.

- Isso tudo é mesmo necessário? Porque eu estou bem desconfortável aqui!

– reclamou Avalas.

- Calado! Doutor, pode começar. – disse Krummel, pesando mais nos

calcanhares do amigo.

O rotundo elfo se ajoelhou ao lado da perna machucada de Avalas e pegou

um bisturi de sua maleta. Com um corte preciso, ele lancetou o inchaço, que

escorreu um fétido e amarelado pus. Avalas gemeu de dor.

Com muito cuidado, o médico pegou um pano reservado e começou a

limpar o ferimento do enorme elfo, que tentava se contorcer de dor. A magia de

Mahslia estava funcionando... ainda.

- Doutor, está doendo! – reclamou Avalas, por entre os dentes.

- Eu sei, Avalas. Por favor, agüente mais um pouco. – respondeu o médico,

sem sequer erguer os olhos. De sua maleta, também tirou um frasco lacrado

com uma rolha, que ele puxou com os dentes e derramou lentamente no

ferimento. Avalas urrou.

E começou subitamente a se contorcer.

- Segurem-no firmemente! – disse o médico.

- Mas... E minha magia?! – perguntou Mahslia, jogando seu corpo em cima

de Avalas.

54

- Eu avisei que seríamos necessários. Mahslia, a força bruta muito grande

pode anular os efeitos da magia de paralisação. Ou melhor, sobrepujá-los. A

força de Avalas já é grande, sabem os deuses. Como a dor é reflexa, a força que

os músculos empregam é desmedida. Por isso estamos aqui! – explicou

Krummel, pressionando ainda mais as pernas de Avalas no chão. O médico

aproveitou e derramou um pouco mais do líquido na perna.

- Calma, Avalas, estamos fazendo isso para seu próprio bem! – resmungou

Corash. A única resposta que obteve foram os urros de dor do grande elfo.

Com paciência, o médico pegou um outro pano em sua maleta, limpando

o excesso de líquido que havia na perna de Avalas. Surpreendentemente, não

sangrava mais. No entanto, devido à dor, o enorme elfo desmaiara.

- Que é isso, senhor? – perguntou Mahslia.

- É um tipo de ácido, menina. Ele cauteriza o ferimento, impedindo-o de

sangrar. Só que dói. Bastante. – respondeu Merkus, buscando outro frasco,

menor, também lacrado com uma rolha. Destampando-o, ele derramou todo o

seu conteúdo na ferida, passou novamente o pano com que limpara o ácido e,

enfim, puxou um rolo de bandagens da maleta, fazendo um bem cuidado

curativo. Logo em seguida, recolheu suas bagunças, exceto o rolo de curativo, e

dirigiu-se para a porta.

“Aqui, meninos e menina, deixarei com vocês este rolo de bandagens.

Troquem o curativo todos os dias, sim? Se possível, lavem o ferimento todas as

vezes antes que forem trocar.”

- Mas como... – começou Corash, que logo foi silenciado por uma

cotovelada de Krummel.

- Entendemos, doutor. Muitíssimo obrigado. – agradeceu ele, fazendo uma

mesura. Mahslia e Corash o imitaram, e até Avalas fez um grunhido e acenou

com a cabeça, logo perdendo a consciência novamente.

- Então, se me dão licença... – despediu-se o médico, virando-se e saindo.

Um pedaço de papel acidentalmente caíra de um de seus bolsos. Antes que

qualquer um pudesse falar alguma coisa, Krummel sinalizou um pedido de

silêncio, abaixou-se e mostrou o papel para Corash e Mahslia. Nele, em letras

elegantes, estava escrito um recado claríssimo.

“Amanhã de manhã. Haverá amigos. Cuidem-se bem.

Fiar Lam”

55

Capitulo Catorze

Os companheiros se entreolharam, nervosos. Lian Fiar os dera apenas

algumas horas. No entanto, eles encontravam-se feridos e exaustos. Como

conseguiriam?

- O que faremos agora? – murmurou Corash, olhando para os

companheiros, desolado, após uma hora de silêncio.

Avalas dormia a sono solto. A dor e o esforço excessivo, combinados com

o cansaço, fizeram com que seu cérebro decidisse que era hora de descansar – e

simplesmente desligou assim que o médico saiu.

Mahslia estava encolhida num canto, com os cabelos ruivos um tanto

quanto embaraçados caídos na frente do rosto. Ela abraçava os joelhos, e

parecia nervosa.

Krummel, por sua vez, estava sentado em posição de lótus, meditando.

Era o único realmente calmo, à exceção de Avalas, que sequer tinha consciência

do que ocorria à sua volta. Foi ele que respondeu, sem sequer abrir os olhos,

com uma voz que indicava, talvez, um pouco de sono.

- Acredito que tenhamos cinco horas até a hora final. Nesse tempo,

deveremos nos preparar na medida do possível. Em primeiro lugar, você e

Mahslia devem se acalmar. Se vocês ficarem nervosos, apenas farão com que

nossas possibilidades de falhas cresçam. Em segundo lugar, nossas mortes são

certas – seja se considerarmos o tempo como implacável, seja se considerarmos

que nossas chances de sobrevivermos à arena estão diminuindo – e, mesmo que

sobrevivamos, pode ser que sejamos executados. Ou seja, se vamos morrer, ao

menos que seja de forma a tentarmos viver.

Mahslia levantou os olhos para Krummel. Ela chorava.

Olhando para a amiga, Corash sentiu um aperto no coração. Ela sempre

fora mais forte do que ele... e lá estava ela, chorando desesperada.

56

“Não posso deixa-la assim”, decidiu Corash. O arqueiro se levantou e

sentou ao lado da amiga, puxando-a para seu ombro enquanto afagava a cabeça

da amiga com a outra mão. Mahslia começou a soluçar de modo forte, enquanto

suas lágrimas molhavam levemente o ombro do amigo.

- Você está certo, Krummel. Como podemos nos preparar para nossa fuga?

– perguntou o arqueiro, olhando firmemente para o bárbaro.

- Descansem. Precisaremos de toda força que pudermos reunir, e garanto a

vocês que não será pouca.

- E como saberemos quando chegar a hora?

Pela primeira vez desde que sentara, Krummel abriu os olhos, olhando

ferozmente para Corash.

- Não se preocupe. Eu os avisarei.

Corash assentiu, fechando os olhos. Sua mão continuava a afagar a cabeça

de Mahslia, que parara de chorar e agora ressonava levemente no ombro de

Corash.

Krummel olhou para os dois elfos e sorriu de leve. Eles eram ótimos

companheiros, pensou ele.

E voltou ao seu estado meditativo.

O deserto vermelho estava escaldante. O vento que soprava ciscos nos

olhos de Corash tampouco ajudava a dissipar o calor, uma vez que também

estava muito quente. O céu azul não tinha nuvens e, à toda a volta, só se via

areia e mais areia, vermelha e ameaçadora.

“Onde estou?” perguntou-se Corash, de modo vagaroso, olhando para o

céu, deitado. Logo depois, arrependeu-se da pergunta. Era óbvio que estava em

um deserto. O calor não estava permitindo que pensasse direito.

Tentou mover o braço direito. Ele se movia, com um pouco de lentidão, é

verdade, mas se movia. Isso era bom. Fez o mesmo com o outro braço e as

pernas. Todos os membros se moviam. Ótimo. No geral, parecia apenas que ele

acabara de acordar.

Corash espreguiçou-se, espantando o vagar dos músculos. Uma sensação

prazerosa percorreu seu corpo, o arrepiando. Em seguida, o jovem arqueiro

sentou-se na areia, sacudindo a cabeça para espanar do cabelo a sujeira.

“Bom, isso é estranho. Até agora há pouco eu estava em uma cela fedida

com a Mahslia, o Krummel e o Avalas. E agora, estou no deserto, sozinho. O

que houve?” perguntou-se, olhando fixamente para o oeste. Sabia que olhava

para o oeste porque o sol nascente queimava sua nuca violentamente.

57

Algumas teorias passaram por sua cabeça, mas nenhuma era plausível.

Não fora o rei que o enviara lá, uma vez que seu time era a mais nova sensação

da arena; tampouco fora Lian Fiar – sendo seu pai e desejando que os amigos

fugissem, teria no mínimo a decência de dar a eles suprimentos e de os deixar

juntos, e não espalhados por um deserto desconhecido.

Pensar em seu pai o lembrou de uma coisa de extrema importância: seu

arco. Levando a mão às costas, notou que estava desarmado.

“Excelente. Sozinho, desarmado e sem água ou comida no meio de um

deserto. Tem como ficar pior?”, perguntou-se ele, emburrado.

Naturalmente, tinha.

Os ouvidos de Corash captaram um som baixo e gutural, meio rasgado e

meio animalesco. Podia não ser nada.

“Nada é nada”, pensou o jovem arqueiro, repetindo a máxima que seu

mestre ensinara na vila de Sparon. Um pouco nervoso, Corash olhou para trás.

A areia se movia um pouco, como se borbulhasse. O som aumentava a

cada segundo, até que o chão pareceu explodir em som e vermelhidão

pulverizada. Um corpo cilíndrico, segmentado e comprido saíra do chão,

rugindo e mostrando a boca redonda, cheia de dentes e sem mandíbula. Dois

pequenos olhos malvados focavam no magro elfo, cheios de fome.

“Uma minhoca do deserto? Não é possível.”, pensou Corash, desesperado

com sua própria sorte; ou melhor, com sua falta de sorte. Entre todos os

predadores, a minhoca do deserto era conhecida como a mais cruel e voraz. Seu

cérebro minúsculo fora programado de modo binário, ou seja, ela alternava sua

vida entre a caça e o sono. Eram as duas únicas coisas que conseguia

compreender. Todo o resto estava fora de sua alçada cognitiva. Dor, tristeza,

felicidade, isso nunca afetara as minhocas do deserto.

A minhoca olhou Corash maldosamente e farejou o ar. Além do cheiro de

sua nova presa, só conseguia sentir o cheiro de outras de sua espécie, mas ela

estava cansada de caçar outras minhocas. Elas eram duras demais, molengas

demais, pouco nutritivas demais. Não, ela queria algo novo. Algo com um

cheiro mais doce, mais vivo, mais desesperado.

Exatamente como esse elfo que se apresentava a ela.

Seu cérebro binário ordenou que caçasse logo. A minhoca obedeceu. Ela

não tinha muita opção, é claro, mas se tivesse, teria feito o mesmo.

58

Com sede de sangue, a minhoca mergulhou no chão, engolindo diversos

quilos de areia por segundo e se dirigindo rapidamente a Corash. Logo mais,

ela teria um banquete.

Corash viu a minhoca mergulhar e a areia começar a se mover

ligeiramente em sua direção.

“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. O que faço?”

Corash deu um pulo para frente e saiu correndo desabalado.

Quinze minutos depois, Corash não aguentava mais correr. Seu lado dava

pontadas dolorosas, seu corpo gritava por água e seu pulmão pedia por ar

fresco.

Apoiando-se nos joelhos, Corash tentou recuperar o fôlego. Durara quinze

minutos; era um feito notável. No entanto, não sabia quanto mais poderia

durar, já que estava desarmado e extremamente cansado. Seus lábios estavam

grudentos, e seu corpo estava coberto por suor seco – quando notaram que a

água não viria, suas glândulas sudoríparas pararam de trabalhar.

O rugido voltou a se aproximar, dessa vez mais violento. A minhoca

parecia brava porque sua presa durara tanto.

Corash riu, aquele riso louco que precede a morte. Parecia engraçado que

correra tanto para nada; que lutara tanto na arena para nada; que finalmente

conhecera seu pai para nada.

Ele se virou para a minhoca. Se fosse para morrer, morreria encarando-a

de frente.

O chão novamente explodiu, e a minhoca se ergueu contra o céu, cinco

metros mais alta do que Corash, e apontou para ele sua boca.

Era agora. Corash olhou para o céu, desejando ter conhecido também sua

mãe. Era um sonho impossível, a essa altura do campeonato.

A minhoca avançou.

E sua cabeça segmentada explodiu, espirrando sangue verde e carne de

minhoca para todos os lados.

Limpando o rosto, Corash olhou para os lados, procurando a pessoa

responsável por esse ato.

Ao olhar para trás, foi quando viu. Uma mulher magra e razoavelmente

alta, com bonitas curvas e um lindo rosto, estava com a mão enluvada apontada

para onde estivera a minhoca. Ela vestia roupas extremamente elegantes, que

estavam absolutamente deslocadas do lugar em que estavam. Seus cabelos

59

castanhos eram bem cuidados, com duas pequenas tranças saindo de suas

têmporas para a parte de trás da cabeça. O resto do cabelo caía às suas costas,

numa cascata de lindos cachos. Sua cabeça era circundada por um delicado

diadema dourado, que era ornado por um brilhante rubi bem no centro de sua

testa. Sua pele morena era lisa e bem cuidada.

- Olá, meu filho. – cumprimentou Amaky, sorrindo para Corash

calorosamente.

Capitulo Quinze

- Corash... Corash... Acorde, elfo! – dizia a mulher, com uma voz muito

grossa. Muito mais grossa do que deveria, considerando seu tamanho. Aquela

voz era metálica, quase uma voz de orc.

Orc. Corash subitamente lembrou-se de Krummel.

Sobressaltado, o jovem arqueiro abriu os olhos, com o corpo se sacudindo

um pouco. Krummel encontrava-se acocorado à sua frente, com um pouco de

preocupação no rosto.

- Você está bem, Corash? – perguntou ele, levantando-se e estendendo a

mão para ajudar o amigo. Mahslia não mais estava dormindo em seu ombro.

- Sim, estou. Apenas tive um sonho estranho, mas não foi nada demais. Já

é hora? – perguntou ele, olhando pela cela.

Mahslia estava de pé, se alongando. Seu cabelo ruivo fora preso num rabo

de cavalo, e seus olhos pareciam pegar fogo. Ela olhou para Corash e sorriu

calorosamente para ele, acenando positivamente com a cabeça em resposta.

Essa, sim, era a Mahslia que ele conhecia.

Avalas, por sua vez, estava recostado na parede, com uma perna cruzada à

frente da outra. Sua espada descansava ao seu lado, e não às suas costas, como

de praxe. Apesar de toda a pose, ainda parecia um pouco pálido.

- Você está bem, Avalas? – perguntou Corash, olhando para o

companheiro.

- Sim. Obrigado por cuidarem de mim, a propósito. Se não fossem vocês,

provavelmente eu estaria num caminho sem volta para a morte. – disse ele,

tentando esboçar um sorriso.

Corash sorriu. Apesar de ser um humor um tanto quanto negro, já era um

começo, ele tinha que admitir.

60

- Bom, não temos muito tempo para conversar. Assim que sairmos daqui,

prometo que botaremos os assuntos em dia. Por ora, temos que nos focar.

Venham, vamos repassar o plano. – chamou Krummel, eficiente, tirando de um

bolso interno do seu colete de couro um pedaço de papel dobrado.

Ajoelhando-se no chão, o meio-orc desdobrou o papel, revelando uma

planta da masmorra na qual se encontravam.

- Vejam, estamos aqui – disse ele, colocando o dedo sobre uma cela. –

Temos dois caminhos que podemos seguir. Se virarmos à esquerda, chegaremos

à arena.

- Que suponho que seja o lugar que queremos evitar, certo? – perguntou

Corash.

- Eu quero. Se quiser ir para lá, porém, fique à vontade.

Corash corou, murmurando algo ininteligível. Krummel prosseguiu.

- Teremos, então que virar à direita. Viraremos à segunda esquerda e

vamos até a terceira porta, também à esquerda. Lá estarão nossas coisas – e,

segundo me falou Lian Fiar, o primeiro de nossos amigos. Ele tomará as vezes

do almoxarife do depósito de armas.

“Após isso, viraremos à direita, e continuaremos seguindo. Após

andarmos cerca de cinquenta metros, encontraremos uma trifurcação – e aqui

nos separaremos.”

Mahslia olhou para o meio-orc com cara de confusa.

- É simples, Mahslia. A prisão foi projetada para que nenhum prisioneiro

pudesse escapar sozinho. O caminho do meio leva ao portão para as Dunas

Congelada. No entanto, para se abrir os portões, é necessário que se ativem

duas alavancas. Uma se encontra pelo caminho da direita, e a outra pelo

caminho da esquerda. Para que alguém fuja, é necessário que se ative ambas as

alavancas. A ideia principal é a de que, como a pessoa deverá andar quatro

vezes por longos corredores, duas idas e duas voltas, a guarda terá tempo de se

mobilizar e prender o fugitivo novamente. – explicou Krummel, indicando no

mapa o que falava.

“Quando ativarmos as alavancas, voltaremos e seguiremos pelo caminho

do meio e, enfim, estaremos na Dunas Congeladas. Antes de sairmos, porém,

encontraremos mais um aliado, dessa vez com alguns suprimentos para nós.

Teremos, porém, que fazer uma pequena alteração no plano original.

“Antes, iríamos nos separar da seguinte forma: Corash e Avalas iriam pelo

caminho da esquerda, e Mahslia e eu iríamos pelo caminho da direita. Porém,

não contávamos com o ferimento de Avalas. Então nos dividiremos por

61

tamanho: Avalas e eu iremos pela esquerda, e Mahslia e Corash irão pela

direita.”

- Péssima ideia, Krummel. – disse Avalas, fitando o meio-orc.

Krummel olhou desconfiado para o espadachim.

- E por que seria?

- Porque precisamos de alguém com força bruta em ambos os grupos.

Suponhamos que os guardas já estejam avisados. Nós dois conseguiríamos

facilmente lidar com eles, mas Mahslia e Corash não. Decerto que têm poder,

mas usar magias cansa, e flechas são limitadas. De nada adiantará escapar se

não escaparmos juntos.

Krummel assentiu. O argumento de Avalas era ótimo.

- Então o que sugerem? – perguntou o meio-orc, olhando para os três.

- Mantenha as mesmas equipes. Eu não sou completamente leigo em

magias, de modo que os talentos de Mahslia provavelmente serão melhor

aproveitados se combinados com os seus. Além disso, Corash é fisicamente

mais forte que Mahslia. Se alguém precisar me carregar, vai precisar de força. A

única saída que temos é manter. – sugeriu Avalas, olhando para os

companheiros com intensidade.

Krummel assentiu devagar, olhando para o espadachim. Mahslia

murmurou uma concordância, e Corash perguntou:

- Estamos todos de acordo, então. Há mais alguma dúvida quanto ao

plano?

Os companheiros negaram com a cabeça. O plano era claríssimo.

- Então, vamos. – chamou o arqueiro.

Os amigos se deram quinze minutos, no qual se alongaram e aqueceram,

se preparando para o que viria. Em seguida, Krummel colocou-se ao lado da

porta, e Mahslia chamou o guarda de sua cela.

- Senhor guarda, por favor! Eu estou me sentindo um pouco mal... – disse

ela, com a voz um tanto quanto chorona.

- E o que você quer de mim, inferno? – respondeu a voz do guarda,

bastante rude.

- Será que o senhor não pode me trazer um pano? Acho que estou com

febre, e gostaria de resfriar minha testa com um pano úmido...

- Pois tire de sua roupa!

Mahslia revirou os olhos.

62

- Mas, seu guarda, eu sou uma elfa! Fêmea! Decerto que não quer que eu

exponha meu corpo em uma cela com tantos homens, não é?

O som do pensamento do guarda podia ser ouvido por detrás das paredes.

Finalmente, ele anuiu.

- Pois muito bem, prisioneira! Me dê um minuto! – disse ele. Sons de

passos afastaram-se da porta.

Vinte minutos depois, os passos se aproximaram novamente.

- Garota, levante-se! Eu trouxe seu maldito pano! – chamou o guarda,

abrindo a porta e entrando despreocupadamente na cela.

Krummel imediatamente derrubou o guarda no chão, fazendo com que

sua manzorra tapasse a mão do elfo. Em seguida, tirou o elmo do adversário,

agarrou-o pelos cabelos e bateu sua cabeça no chão de pedra até que este

estivesse desmaiado.

Avalas olhou surpreso para o meio-orc.

- Krummel, nunca pensei que você fosse tão delicado assim. – disse ele,

sorrindo com uma ponta de ironia.

Krummel sorriu de volta, jogando o elmo para o enorme elfo.

- Você ainda não me viu tentando passar linha numa agulha. A delicadeza

transborda dos meus dedos. Aqui, use este elmo. Pode te dar uma proteção

extra.

Avalas agarrou o elmo e jogou-o para Corash.

- Esqueça. A cabeça do guarda é pequena demais para que esse elmo caiba

em mim. Corash talvez faça um melhor uso disso.

O arqueiro pegou o elmo e olhou descrente para Avalas.

- Claro. Aí restrinjo meu campo de visão, o que é uma excelente ideia para

um arqueiro. A não ser que a Mahslia queira, vamos deixar isso aqui.

- Pode esquecer. O que vale para arqueiros, vale para magos. Além disso,

elmos interferem na conjuração de magias. – disse a maga, olhando para o

amigo.

Corash fez menção de colocar o elmo no chão, mas Avalas pediu-o

novamente. Corash jogou o objeto para o enorme espadachim, que o pegou com

a mão esquerda.

- Então vamos logo. Quanto antes pegarmos nossas coisas, antes sairemos

daqui. – disse ele, saindo da cela e virando à direita.

Krummel olhou para Mahslia e Corash, riu e seguiu Avalas. Dando de

ombros, os dois amigos seguiram os companheiros.

63

O medo é impressionante, pensou Corash. Sua razão afirmava que a

distância que teriam que percorrer era pequena, e que logo encontrariam

alguma paz e um amigo, subordinado de seu pai.

Mas o medo muitas vezes é mais forte que a razão. O corredor que

percorriam era pequeno – oras, ele conseguia ver onde deveriam virar! -, mas

parecia imenso, negro e opressivo com suas paredes de pedra estreitas e frias. O

instinto martelava na base de seu crânio, afirmando que logo mais iria pulular

um exército de sanguinários elfos subordinados ao rei, que os colocaria de volta

à cela, e dessa vez os jogaria na Arena sem suas armas.

Sentindo-se só, Corash olhou para Mahslia, e leu o medo em seu rosto. A

amiga olhou para ele e sorriu. Um sorriso manchado de medo, decerto, mas,

como todo sorriso manchado de medo, também era um sorriso resplandecente

de companheirismo e lealdade. O coração de Corash abrandou um pouco.

Ao virarem à direita, seguindo seu caminho, o arqueiro olhou para

Krummel. Seu rosto de meio-orc denotava tranquilidade, bem como seus olhos,

mas sua mão batia nervosamente contra a perna, tentando dissipar a ansiedade.

Krummel estava temeroso também. Quando o meio-orc olhou para Corash,

acenou com a cabeça, de modo bondoso. O aceno dizia para Corash que o que

ele sentia era perfeitamente normal, perfeitamente plausível, e nem um pouco

condenável. O coração de Corash esquentou um pouco.

Quando estavam chegando perto da cela onde ficavam seus pertences,

após uma longa caminhada por longos, negros e frios corredores de pedra,

opressores por sua estreiteza, Corash olhou para Avalas.

A linguagem corporal do enorme elfo não denotava nada, tampouco sua

expressão. A diferença estava nos olhos. Aqueles olhos frios do Avalas que os

acompanhara na saída de Sparon, um tanto quanto invasor, um tanto quanto

chantagista, um tanto quanto estranho, não existiam mais. No lugar deles, havia

olhos com incertezas, com sentimentos, com alma. Era possível ver quão grande

era o coração de Avalas, naqueles olhos temerosos, mas determinados.

Quando captou o olhar de Corash, Avalas deu uma rápida piscadela para

o arqueiro. Não era um gesto puro como o de Mahslia ou bondoso como o de

Krummel, mas era um gesto de cumplicidade extrema. Um gesto que, apesar de

pequeno, indicava amizade – o que, vindo daquele enorme elfo frio, era algo

muito grande. O coração de Corash pareceu crescer um pouco em seu peito.

E, subitamente, Corash Lam notou que não se importaria tremendamente

se não conseguissem fugir daquela prisão. Ao menos teriam tentado e, se

morressem, morreriam lutando por algo que acreditavam, e morreriam lutando

64

juntos. Talvez não fosse a morte nobre que todo ser deseja, mas, afinal, é mais

nobre morrer lutando por algo que se acredita ou viver sabendo que podia-se

ter feito mais?

Corash continuava com medo. Seu coração não estava leve como sempre,

não estava quente como sempre, não estava livre como sempre. O medo ainda

pesava, esfriava e oprimia seu peito. Mas Corash se sentia corajoso, pois a

leveza que Mahslia lhe trouxera, o calor que Krummel lhe dera e a pequena

liberdade com a qual Avalas lhe presenteara existiam dentro de si.

E isso bastava.

65

Capitulo Dezesseis

Ao chegarem à cela onde seus pertences os esperavam, os amigos se

depararam com enormes dunas de equipamento. Espadas brilhantes

amontoavam-se ao lado de grevas enferrujadas. Pilhas de capas equilibravam-

se precariamente sobre alguns peitorais jogados, e por todo o lado via-se elmos

de diferentes formas, cores e tamanhos.

À frente disso tudo, um elfo pequeno brincava com o fio de um machado

feio e bruto, passando pela lâmina uma pedra com o esmero que uma mãe

coruja usa para passar a esponja sobre seu filho recém-nascido. Seus olhos

denotavam esperteza, e as rugas às suas voltas indicavam sua idade.

Os amigos se entreolharam, curiosos, e Krummel se adiantou.

- É... com licença, senhor? – chamou ele, com sua voz grave ecoando de

modo estranho pela sala.

- Shh. Não fale, criança. – sussurrou o velho elfo, em resposta. Sua mão

continuou amolando o machado.

O meio-orc olhou para os amigos confuso. Ele claramente estava perdido.

Obedecendo ao elfo, os quatro companheiros ficaram alguns minutos em

silêncio, ouvindo metal raspar em pedra. O som era estranhamente

reconfortante, mas o tempo corria.

- Chega! – explodiu Avalas, subitamente. – Estamos com o tempo

apertado! Dê-nos nossas armas, já!

O velho elfo lançou a Avalas um olhar assustadoramente gélido, parando

de passar a pedra no fio do machado. O espadachim não recuou, mas tampouco

insistiu.

- Crianças, já mandei fazerem silêncio.

Sua mão voltou a passar a pedra no machado.

66

- Vamos embora. Sinceramente, não temos muito mais tempo a perder. –

disse Mahslia aos amigos, num sussurro quase inaudível.

- Fiquem. – ordenou o velho elfo, sem tirar os olhos do machado.

Os amigos se entreolharam. O velho parecia querê-los ali, ainda que

estivesse tomando o curto e, portanto, precioso tempo que lhes restava.

Com um aceno de cabeça, Krummel sentou-se no chão em posição de lótus

e fechou os olhos, meditando.

Claramente contrariado, Avalas apoiou-se na parede, olhando feio para o

velho.

Mahslia e Corash se entreolharam e, dando de ombros, sentaram e

recostaram-se na parede, descansando a cabeça na fria pedra da masmorra.

O ritual do velho durou mais dez longos minutos. Dez minutos em que o

elfo passava a pedra de amolar pelo machado lentamente, olhando o fio da

arma por diversos ângulos.

Mahslia ressonava levemente, tendo cochilado. Avalas se cansara da

parede, e agora andava pela sala com uma expressão irritada na face. Corash já

se levantara, e procurava por coisas interessantes na sala do tesouro. Krummel

não se movera.

- Pronto. – declarou o velho elfo, pousando a pedra de amolar ao seu lado

e estalando os dedos. O machado luziu brevemente, e depois voltou ao normal.

O ancião pousou o machado ao lado de um outro machado, idêntico ao

primeiro.

“Sirvam-se de suas armas.”

Avalas olhou desconfiado para o velho.

- Agora podemos falar?

O ancião olhou para ele de forma penetrante.

- Eu falei para se servirem de suas armas, não para abrirem a boca.

Isso fora o cúmulo. Urrando, Avalas puxou sua espada, dirigindo-se para

o velho elfo. Este, por sua vez, levantou-se, irradiando poder, e pegou uma

espada da pilha de equipamentos descartáveis.

- Chega! – gritou Krummel, com sua voz retumbando pela sala. Ambos os

gladiadores pararam. O ancião jogou a espada de qualquer jeito no topo de uma

das pilhas e sentou-se novamente. Avalas, relutantemente, guardou a tosca

espada. Mahslia, que havia acordado assustada, olhava confusa para todos os

lados. Corash, que subira em uma das pilhas, virou-se subitamente para a

67

origem dos gritos, com a expressão chocada contrastando violentamente com o

felpudo cachecol que usava à volta do pescoço, e que achara em uma das pilhas.

O meio-orc levantou-se, esticando-se e espreguiçando-se, antes de se

dirigir ao velho elfo.

- Por que o senhor nos fez esperar tanto? – questionou ele, de forma

penetrante.

O velho sacudiu negativamente com a cabeça, olhando firmemente para os

amigos.

- Façam silêncio, tolos. Peguem suas armas e vão embora daqui. Já tomei

tempo demais de vocês. Um dia, se nos reencontrarmos, eu talvez lhes conte

minha história. Por enquanto, basta que saibam que os ajudo por uma dívida de

gratidão a Lian Fiar. Agora, apressem-se!

Os amigos se entreolharam. Claro, o que o velho dizia fazia todo o sentido.

Só tinha um problema...

- Onde estão nossas armas? – perguntou Mahslia, com a voz um tanto

quanto embargada de sono, ainda.

- Aqui, crianças. – apontou o ancião, para uma pilha aparentemente

desorganizada de equipamentos. A pilha onde colocara o machado que estivera

amolando com tanto esmero.

Então, os amigos viram. A pilha estava organizadamente desorganizada,

de forma que, se um guarda resolvesse checar o trabalho do ancião, não

desconfiaria de nada. Porém, estava disposta de forma a acelerar ao máximo a

troca de equipamentos dos amigos.

Dois minutos depois, todos estavam reequipados da melhor forma que

podiam, com suas antigas armas e armaduras. Os amigos agradeceram ao

velho, que rispidamente acenou com a cabeça e estendeu a Mahslia uma bolsa

de couro.

- Aqui, mocinha, leve isso. Aqui tem itens essenciais para vocês: comida,

cantis com água, e alguns presentes. No entanto, sugiro que não abram essa

bolsa até saírem daqui. Agora, vão. Cuide desses cabeças-de-vento, mocinha.

Sabem os deuses que eles precisam.

Mahslia sorriu, olhando para os amigos. Avalas amarrou ainda mais a

cara.

- Vamos. Já perdemos muito tempo aqui. Obrigado por sua ajuda, senhor.

– disse Krummel, inclinando a cabeça em agradecimento e saindo do depósito

de armas.

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Avalas cumprimentou o velho de modo seco com a cabeça e saiu. Mahslia

abraçou o elfo, murmurou um agradecimento e saiu correndo. Corash apertou a

mão do aliado, mas, antes que pudesse sair, o velho segurou sua mão.

- Corash, um aviso.

- Pois não?

- Sonhos são mensagens, mas muitas vezes exigem mais do que a

superfície indica.

Corash arregalou os olhos.

- Como o senhor... – começou.

- Faça-me o favor. Você é filho de Amaky. Eu carreguei essa menina nos

braços, e te garanto, ela tinha potencial de ser o maior oráculo que Lynzea já

viu. A marca do sangue dela está nos seus olhos, Corash. Agora, chega de papo

furado. Adeus! – explicou o velho, rapidamente, largando a mão de Corash e

virando as costas para ele.

Sorrindo, o jovem arqueiro saiu da sala, juntando-se aos amigos.

69

Capitulo Dezessete

A moral do pequeno grupo de amigos aumentara consideravelmente.

Agora eles estavam com seus pertences, com as armas que estavam

verdadeiramente acostumados, as armaduras e roupas que costumeiramente os

vestiam. O peso delas trazia boas memórias... ou quase.

- Isso é estranho. – comentou Avalas, enquanto avançavam e faziam uma

curva à direita.

- O que houve? – perguntou Mahslia, olhando para o enorme espadachim.

- Até onde me lembro, minha placa de peito não era tão leve. Nem minhas

manoplas ou minhas grevas. Elas ainda têm algum peso, naturalmente, mas me

sinto dez quilos mais leve do que me lembrava de sentir quando vestia

armadura. – disse ele, mirando seus equipamentos.

Krummel concordou com a cabeça, correndo à frente do grupo.

- Eu também senti isso com relação aos meus machados. Será que o velho

encantou nossas armas?

- É possível! Por isso, talvez, ele tenha demorado tanto em amolar o seu

machado! – exclamou Mahslia, animada.

Os companheiros se entreolharam sorrindo. Lian Fiar realmente queria

que eles fugissem.

Subitamente, uma voz atrás deles quebrou a sorte.

- Ei, vocês aí, identifiquem-se! – disse a voz, rude.

Ainda correndo, Corash virou-se e, rapidamente, atirou uma flecha na

direção da voz, em meio à escuridão que eles iam deixando para trás. Um som

engasgado e úmido indicava que a flecha atingira a garganta do guarda.

70

- Belo tiro – comentou Krummel. – Eu não queria ser seu inimigo, mesmo

escondido pelas sombras. Por onde cada time vai? – questionou ele, ao

chegarem na trifurcação.

Avalas puxou a espada, apontando a ponta para o caminho da direita.

- Krummel, você e Mahslia vão por aqui. Corash e eu vamos pelo caminho

da esquerda. Nos encontramos no fim do caminho do meio em dez minutos.

- E se não nos encontrarmos? – perguntou Mahslia, olhando assustada

para o grande elfo.

- Não existe essa opção. Dez minutos, Mahslia, senão teremos que começar

a improvisar. – respondeu ele, com uma determinação assustadora no olhar.

A maga concordou fracamente com a cabeça. Krummel sacou os

machados, e, subitamente, ficou três vezes mais ameaçador. Corash colocou

uma flecha em seu arco.

- Esperem! – exclamou Mahslia, tendo uma ideia. – Algum de vocês pode

checar se não há ninguém vindo pelo corredor?

- Tenho uma ideia melhor. – disse Krummel, avançando dois passos na

direção do corredor.

O meio-orc inspirou fundo, enchendo sua enorme caixa torácica de ar e

concentrando toda sua energia na garganta. Depois, inclinando-se para frente,

Krummel soltou um enorme rugido.

Era digno de ser visto, ou melhor, ouvido. A voz de Krummel, em geral

confortadora, calma e aveludada, estava assustadoramente bélica, rouca e

metálica. Parecia um dragão rugindo. O grito soprou um forte vento pelo

corredor.

Assim que o ruído se dissipou, Mahslia começou a trabalhar, conjurando

as mais diversas magias. Quando terminou, falou aos amigos:

- Agora temos algumas linhas de defesa mágicas e um alarme para quem

cruzar aqui. Estaremos avisados se alguém vier.

- Excelente. Agora, vamos! – disse Avalas, correndo pelo corredor da

esquerda com Corash.

Após um segundo para rirem, Krummel e Mahslia seguiram pelo caminho

da direita.

A maga e o bárbaro faziam uma figura díspar. A diferença entre o

tamanho dos dois era cômica, nos estreitos corredores da masmorra.

- Krummel, o que foi aquilo que você fez agora há pouco? – perguntou

Mahslia, curiosa com a técnica do companheiro.

71

Krummel sorriu, com os olhos gentis brilhando.

- Ah, algo que meu pai me ensinou um dia: o Urro do Bárbaro. Nós,

bárbaros, concentramos nossa energia vital na garganta e impedimos que o ar

saia, aumentando sua pressão. Então carregamos nosso ar com a energia que

acumulamos, e o soltamos em forma de urro. É absurdamente útil para

amedrontar inimigos e afastá-los de nós.

Mahslia riu, virando à esquerda.

- Percebi! Mesmo eu fiquei com medo, e você está do nosso lado! Se eu

fosse um guarda, teria medo de encontrar um dragão.

Krummel sorriu, um pouco encabulado.

- Bom, na verdade, não foi só uma técnica do meu pai. Minha mãe, que era

a orc, era versada em magia. Ela me ensinou algumas artes mágicas, inclusive a

da ilusão. Utilizei um pouco de magia junto do Urro do Bárbaro para parecer

um dragão, mesmo.

Mahslia olhou para Krummel, espantada.

- Quer dizer que você também entende de magia?

- Alguma coisa, Mahslia, alguma coisa. Não sou, nem nunca serei, um

mago com a sua habilidade. Mas posso fortalecer um pouco minhas habilidades

com o que minha mãe me ensinou. – respondeu ele, humilde.

Mahslia balançou a cabeça, incrédula. Havia algo que Krummel não sabia?

Os amigos seguiram cinquenta metros em silêncio, chegando, no fim do

caminho, a uma alavanca de madeira levantada.

Krummel assentiu para Mahslia, que retribuiu o gesto. Então, o meio-orc

abaixou a alavanca.

Barulhos de engrenagens e mecanismos se fizeram ouvir através da parede

de pedra.

Krummel sorriu.

- Nossa parte foi feita. Vamos voltar para o ponto de encontro.

Mahslia sorriu de volta, aliviada.

- Isso está sendo mais fácil do que eu imaginei que seria. – comentou ela.

Obviamente, foi nesse momento que tudo começou a dar errado.

Corash e Avalas seguiram rapidamente pelo corredor, sem falarem um

com o outro. Não havia muito o que falar nesse curto tempo, afinal, e entre eles

havia ainda um certo constrangimento, aquele que vem de um silêncio de uma

amizade que ainda se consolida.

E, obviamente, esse silêncio incomodava absurdamente.

72

- Então, Avalas... como você entrou na academia militar? – perguntou

Corash, esperançoso.

Avalas negou com a cabeça.

- A história é muito longa, Corash. Precisamos de foco.

Corash fechou a boca, envergonhado, e olhou para o companheiro. Avalas

estava corado, e respirava um pouco pesado, o que era bem estranho – o

enorme elfo estava em ótima forma física.

Então, Corash se lembrou. Avalas estava ferido, ainda. Naturalmente, ele

não reclamava, mas seu desempenho não seria o que seria esperado dele

normalmente.

Os companheiros fizeram uma curva à direita e, um minuto depois,

estavam ao lado de uma alavanca levantada.

- Finalmente. – resmungou Avalas, um pouco ofegante. – Vamos logo com

isso, Corash. Já devemos estar um pouco atrasados.

Corash assentiu, abaixando a alavanca. Um zumbido elétrico fez-se ouvir.

- É isso? – perguntou o arqueiro, confuso. Ele esperava mais barulho.

Avalas assentiu.

- Eu imagino que sim. Essa alavanca deve controlar o fornecimento de

energia ao mecanismo da porta, enquanto a alavanca de Mahslia e Krummel

controla o mecanismo em si.

Respirando um pouco aliviado, Corash sorriu.

- Foi fácil, não é?

Obviamente, foi nesse momento que tudo começou a dar errado.

Dos dois lados da prisão, um alarme começou a soar, alto, como um grito

lamurioso e choroso de uma banshee. Junto ao som do alarme, som de chamas

crepitando, palavrões sendo gritados por vozes rudes e corpos caindo no chão.

- Merda. – disseram quatro companheiros, de forma estranhamente

uníssona.

Krummel olhou a alavanca que havia abaixado e lançou contra ela seus

machados uma, duas, três vezes, até a alavanca quebrar, em posição de ativada.

Mahslia olhou para ele com curiosidade.

- Se formos pegos, eles não conseguirão fechar o portão de forma tão

rápida quanto gostariam. Assim, talvez Avalas e Corash possam escapar.

Mahslia assentiu, assombrada pelo raciocínio rápido do meio-orc, e sacou

seu cajado.

73

- Vamos ter que lutar, certo?

Krummel fez que sim com a cabeça.

- Então eu vou na frente. – disse Mahslia, com os olhos reluzindo de poder.

Avalas olhou para o corredor, para Corash e para a alavanca. Em seguida,

puxou sua espada enorme e, com um único ataque, destroçou o mecanismo.

- Por que você quebrou a alavanca? – questionou Corash, estranhando o

comportamento de Avalas.

- Pense, Corash! Para o portão abrir, é necessário que ambas as alavancas

estejam ativas. Se uma desativar, o portão fechará. Dessa forma, tornamos mais

difícil que fechem o portão. Se formos capturados, Mahslia e Krummel podem

conseguir escapar.

- Ah. – disse Corash, bravo por não ter pensado nisso antes. Ele estava

desconcentrado.

“Foco, Corash Lam! Não vá morrer agora!” ecoou sua consciência.

Sacudindo a cabeça, Corash preparou uma flecha em seu arco, retesando

muito levemente a corda.

- Avalas, espero que você consiga me dar uma cobertura digna. –

provocou ele, indo à frente do espadachim.

O enorme elfo balançou a cabeçorra. O que fazer com Corash Lam?

Mahslia e Krummel viraram à direita, na direção da trifurcação, quando

viram os soldados do rei vindo em sua direção, com espadas nas mãos e ódio

nos olhos.

Não havia muito tempo para ser sutil.

Estendendo o cajado para os soldados, Mahslia conjurou uma magia

pessoal da qual sentia muito orgulho. Uma rajada de labaredas envolta por

raios que só se desvinculavam das chamas para atingir quem tentasse fugir de

qualquer forma do ataque.

O fogo rugiu pelo estreito corredor, lambendo as paredes de pedra com

vigor e consumindo o ar da masmorra, queimando violentamente em direção

dos inimigos.

Mahslia sustentou a magia por cinco segundos, depois abaixou o cajado.

Quando os resquícios da técnica se dissiparam, os inimigos estavam caídos no

chão, desmaiados de dor ou mortos.

Krummel assobiou.

74

- Bela magia, ruiva. Agora, se me permite, eu fico com o resto. – disse o

meio-orc, com o olhar ficando subitamente sério e sanguinário.

Fazendo os machados soarem um contra o outro uma vez, o enorme

bárbaro saiu de trás da pequena maga, atacando brutalmente a nova leva de

soldados que aparecera no corredor.

Mahslia deteve-se um minuto para observar o companheiro lutando. Ele

era genial. Seus machados tornaram-se meros resquícios de luz, cortando todos

à sua volta, enquanto seu corpo girava, torcia, abaixava e pulava de uma

maneira leve que seu tamanho e constituição jamais deixariam transparecer.

Subitamente, Mahslia se deu conta de que ninguém estava conseguindo

passar por Krummel. Ele era como uma parede inquebrável, não deixando

nenhum de seus inimigos passar.

Quando a segunda leva de inimigos terminou de cair, Krummel olhou

para Mahslia de modo cansado, mas satisfeito, e olhou para o corredor por

onde Avalas e Corash tinham se entranhado.

- Oi! – cumprimentou o meio-orc, levantando um machado em saudação.

A onda de inimigos surgiu no corredor de Avalas e Corash muito antes do

esperado. Para azar dos soldados, porém, Corash estava de tocaia com o arco

preparado.

Atirando flechas rapidamente, Corash conseguiu manter os inimigos a

uma saudável distância de quinze metros. Só havia um problema.

- Corash, pare de atirar, ou vamos ter dificuldade para sair daqui! – disse

Avalas, olhando para a pilha de corpos que se formava na curva do corredor.

Corash obedeceu, considerando o que o companheiro falara. De fato, a

pilha de corpos estava ficando um pouco alta demais para o seu gosto, e eles

não iriam querer virar um corredor sem conseguir ver o que os esperava.

- O que você sugere?

Avalas sorriu malignamente.

- Me dê cobertura.

O enorme elfo tomou a frente, correndo contra os inimigos e castigando-os

com sua enorme espada. Mirando com muita cautela, Corash atirava algumas

de suas flechas para atacar inimigos que Avalas não alcançaria com tanta

facilidade.

O problema todo era a envergadura e o estilo de batalha do espadachim.

Com uma espada de dois metros, além do tamanho de seu braço, Avalas mal

75

tinha espaço no estreito corredor para batalhar como gostava: rodopiando e

brandindo a espada em enorme velocidade. Corash, assim, cobria suas falhas.

- Vamos virar, Corash! – gritou Avalas, apressando o companheiro.

O arqueiro correu o corredor, virando à esquerda. Uma segunda leva de

inimigos estava chegando, rápida e brutal.

Avalas xingou, colocando a espada à frente do corpo e usando ambas as

mãos para segurá-la. O suor escorria pela testa do elfo, e uma de suas pernas

parecia estar suportando muito mais peso que a outra.

“A perna”, notou o arqueiro. “Sua perna deve estar atrapalhando”.

- Avalas, você tem alguma técnica que consiga eliminá-los todos de uma

vez? – perguntou Corash, atirando uma flecha num inimigo. O soldado morreu,

caindo no chão da masmorra e atrapalhando o fluxo de soldados.

Avalas assentiu, falando rápido.

- Tenho, mas não vou conseguir usar. Não com minha perna do jeito que

está. Tenho focado minha energia para prosseguir o combate, então não

conseguirei canalizá-la na espada e no movimento.

Corash assentiu, atirando uma segunda flecha de advertência. Eles

precisavam correr, pois suas flechas já estavam no fim.

- Consegue fazer um dos dois? O movimento ou a canalização na arma?

Avalas considerou a pergunta de Corash com seriedade.

- Sim. O que tem em mente?

Corash disparou suas últimas flechas com um pouco de poder, de modo

que elas explodiram em vento e empurraram os inimigos assustados para trás.

- Concentre-se no movimento. Deixe que eu energizo a espada.

Avalas olhou incrédulo para Corash.

- Você consegue fazer isso?

O arqueiro deu de ombros

- Tenho alguma opção?

Avalas sorriu, posicionando-se de um modo mais pesado. Segurou a

espada com a mão direita, a ponta da arma apoiada no chão, e colocou-se de

lado para os adversários, levantando o braço esquerdo como uma guarda, com

a mão aberta.

- No três. – disse ele, pressionando os pés no chão e abaixando um pouco o

centro de gravidade. Corash colocou a mão na espada, fazendo com que sua

energia se impregnasse no metal.

Os soldados aproximaram-se, com raiva.

- Um.

76

Eles estavam mais perto. Era possível sentir o cheio de suor que eles

exalavam, e já dava para ver a raiva e o medo em seu olhar.

- Dois.

A espada começou a luzir levemente em tons azuis, de modo

desordenado. Sentindo uma pressão estranha, Corash parou um pouco de

enviar energia. Subitamente, a energia na espada ficou absurdamente cortante,

como água em alta pressão.

“Avalas está me mostrando como moldar a energia” entendeu Corash,

absorvendo os detalhes da técnica e reproduzindo-a. A pressão sumiu.

- Três! – gritaram Avalas e Corash, em uníssono.

O arqueiro tirou as mãos da espada no momento certo em que o

espadachim pulou em altíssima velocidade contra os inimigos, brandindo a

espada violentamente.

Por um instante o tempo pareceu congelar. Depois, os soldados caíram,

todos mortos. Avalas se encontrava no fim do corredor, apoiado pesadamente

na espada, com o peito arfante e a testa pingando.

Corash correu para o companheiro.

- Você está bem?

Avalas, orgulhoso, desvencilhou-se de Corash, endireitando as costas.

- Nunca estive melhor.

Os dois olharam para o outro lado do corredor, por onde os companheiros

haviam se embrenhado. Krummel estava parado, olhando para trás. Depois,

virou a cabeça e levantou um machado em saudação.

- Oi!

Corash sorriu para o meio-orc, enquanto Avalas levantou a espada,

saudando o companheiro de volta.

Os quatro se reuniram novamente no centro.

- O portão está aberto? – perguntou Mahslia para Corash.

O arqueiro confirmou.

- Tudo indica que sim. Isso é, se a alavanca de vocês continua abaixada.

Krummel riu.

- Eu quebrei a alavanca. Não queria que ela fosse levantada tão cedo.

- Viu só, pateta? Eu não sou o único nesse grupo com bom-senso. – riu

Avalas para Corash, tossindo fortemente.

Mahslia olhou preocupada para o enorme espadachim, colocando a mão

em sua testa e tirando-a rapidamente.

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- Meus deuses, Avalas, você está ardendo em febre! Você está bem?

O grande elfo tossiu.

- Eu aceitaria um pouco de água.

Mahslia assentiu, abrindo a bolsa que o elfo das armas havia dado a eles e

revirando-a rapidamente com a mão, até achar um cantil. Quando tirou o item

da bolsa, porém, o grande elfo perdeu a consciência, caindo desmaiado no chão.

- Idiota orgulhoso. – xingou Krummel, pondo a espada de Avalas na

bainha e pegando o enorme elfo no colo, não sem algum esforço.

Os três companheiros seguiram com Avalas a tiracolo pelo caminho do

meio na trifurcação, em direção ao portão, esperando encontrar o segundo

aliado que Lian Fiar os prometera. Porém, estavam sozinhos.

- Nosso segundo aliado não vai aparecer, não é? – perguntou Corash,

desesperançoso.

- Acredito que não. – respondeu Mahslia, proporcionalmente pessimista.

- Então vamos sair logo daqui. Avalas está começando a pesar. Lá fora

poderemos tratar dele com calma – resmungou Krummel, olhando para as

areias convidativas das Dunas Congeladas.

Os dois elfos assentiram, e os três companheiros, com Avalas a tiracolo,

saíram para a liberdade.

78

Capitulo Dezoito

A masmorra da Arena de Lynzea tinha um problema muito sério. Um

segredo, na verdade: a saída para as Dunas Congeladas era enfeitiçada.

Esse segredo era muito bem guardado pelos monarcas do reino élfico, uma

vez que não seria interessante que soubessem que o lugar era mais amaldiçoado

do que parecia. A Arena era um ótimo entretenimento para o público, um lugar

onde os plebeus podiam apreciar batalhas, derramamento de sangue, o alto

escalão político de Lynzea e ainda fazer uma respeitada e admirada atividade

social.

As Dunas Congeladas possuíam um segredo que não mais era tão secreto,

ainda que diversas pessoas não o conhecessem: apenas o portador de uma

bússola feita com cristais extraídos do leito do Rio Moravher poderiam achar

seu caminho no deserto sem se perder.

Quando o construtor da Arena de Lynzea projetara o portal, tivera uma

ideia simples, porém assustadoramente engenhosa: a posse dos cristais de

Moravher seria a chave que decidiria o destino da pessoa que estivesse saindo.

Se a pessoa possuísse os cristais, sairia para as Dunas Congeladas de forma

normal. No entanto, se não possuísse, cairia em um labirinto adimensional, cuja

única saída, curiosamente para as Dunas Congeladas, era guardada por um

dragão.

Desta forma, os comerciantes de escravos que entravam na Arena pelas

Dunas Congeladas poderiam sair sem serem prejudicados, e não notariam o

encantamento. No entanto, os mesmos escravos, se tentassem fugir e,

porventura, fossem bem-sucedidos, acabariam caindo em uma outra prisão,

muitas vezes mais terrível. Seria uma última punição: afinal, quem não morre

79

na Arena lutando, morre no Labirinto do Dragão lutando, pensara o arquiteto

da Arena de Lynzea.

Naturalmente, os companheiros não tinham cristais extraídos do leito do

Rio Moravher.

Eles ultrapassaram o portão da masmorra da Arena de Lynzea respirando

felizes, quando notaram que o ar estava ainda viciado. Não tanto quanto na cela

ou na masmorra, mas ainda viciado.

Os companheiros olharam para o lado, desesperados. Não havia portão às

suas costas. Eles estavam em um aposento amplo e sem teto, com paredes de

pedras.

- O que aconteceu? Por que não estamos nas Dunas Congeladas? –

perguntou Corash, irritado.

Krummel pousou Avalas num canto ao lado da parede, sentando aos pés

do amigo logo em seguida para descansar os braços.

- Não faço a menor ideia. Imagino que tenhamos feito algo de errado, mas

o quê? Será que havia uma ordem para ativarmos as alavancas?

Mahslia negou com a cabeça.

- Isso não faria sentido, Krummel. Deve ter sido alguma outra coisa. Mas o

mais importante agora é: como sairemos daqui?

Os companheiros se entreolharam.

- Bom, suponho que deveríamos tratar de Avalas antes, não é? – comentou

Corash, olhando para o enorme elfo.

Os companheiros assentiram. Mahslia abriu a bolsa e tirou seus conteúdos

meticulosamente. Logo o chão estava coberto por cantis, sacos de comida,

pergaminhos, bandagens e poções. Corash rapidamente se apropriou de uma

aljava reserva que vinha na bolsa.

- Incrível como em uma bolsa pequena cabem tantas coisas, não é? –

perguntou o arqueiro, afivelando a aljava na cintura.

- Essa bolsa é encantada, Corash. Provavelmente, um encantamento de

leveza aliado a um encantamento de tamanho, de forma a tornar o espaço

interno algumas vezes maior do que seria naturalmente. – explicou Krummel,

analisando uma das poções.

Mahslia sentou-se no chão, chateada.

- Eu nunca vi algumas dessas poções. Como curaremos Avalas dessa

forma?

Krummel pousou a poção que analisava com pessimismo.

- Se ao menos um de nós tivesse treino como curandeiro... – disse ele.

80

- Se me permitem, acredito que poderei ajuda-los nisso. – disse uma voz

suave do corredor.

A reação dos companheiros foi rápida. Corash levantou-se com o arco

armado, a flecha já pronta para atirar; Mahslia tinha o cajado apontando para os

recém-chegados, enquanto Krummel levantara-se de um salto, com os

machados prontos para atacar e o corpo pronto para lançar-se contra

adversários.

No corredor situava-se um elfo magro e baixo, apoiado num cajado de sua

altura. Seus cabelos castanhos estavam cortados curtos, e suas roupas pesadas

indicavam uma boa hierarquia em algum tipo de ordem. Ele vestia um grosso

manto branco com ornamentos roxos e dourados no peito.

Ao seu lado, postava-se um atarracado, baixo e rotundo anão, com uma

barba emaranhada preta e olhos de besouro. Carregava um martelo de seu

tamanho, com a aparência de pesado, e vestia um meio-elmo e cota de malha.

- Quem são vocês? – inqueriu Corash, apontando a flecha para o recém-

chegado elfo.

O estranho levantou as mãos, em gesto de paz. O anão continuou firme em

sua posição.

- Viemos em paz, senhores. Meu nome é Skrumppel, e este meu feroz

amigo chama-se Tuhrster. Sentimos sua chegada, e viemos dar a vocês nossas

boas-vindas. – disse o elfo, sorrindo.

Krummel olhou desconfiado.

- Tem algo de errado. Skrumppel é um nome tipicamente halfling.

Skrumppel sorriu, voltando-se levemente para Krummel.

- De fato, senhor. Por um acaso, sou um meio-halfling e meio-elfo.

Acredito que isso explique um pouco de minha estatura.

Fazia sentido.

Corash abaixou o arco sem relaxar a corda. Ele ainda não confiava

plenamente nos recém-chegados.

- Você disse que pode curar nosso amigo.

Skrumppel assentiu serenamente.

- Sou treinado nas artes de cura. Nunca tive muita chance com as artes da

guerra, por razões óbvias.

- E como saberemos que podemos confiar em você? – perguntou Mahslia.

- Eu me ofereço como garantia. – falou Tuhrster, pela primeira vez. Sua

voz era grave, áspera e ressonante.

Os amigos se entreolharam. Parecia bom.

81

- E como saberemos que Skrumppel não nos atacará? – perguntou Corash,

olhando para os recém-chegados.

- Não sei como atacar alguém. Mesmo porque, se vocês matarem Tuhrster,

terão amputado meus braços e pernas. – respondeu o baixo elfo.

- E por que isso? – questionou Krummel, curioso.

Tuhrster olhou para Krummel e sorriu de um jeito torto.

- Porque além de fisicamente fraco, Skrumppel é cego. – disse o anão,

começando a despir a armadura.

Skrumppel ajoelhou-se ao lado de Avalas, virando o rosto como quem

olhasse para a perna do enorme elfo. Tuhrster estava sob o fio do machado

- Ele foi cortado aqui, não é? – perguntou ele, apontando para a

panturrilha do espadachim.

- Sim. – confirmou Mahslia, surpresa. – Como você sabe?

Skrumppel sorriu.

- A energia que a perna dele está diferente da energia que o resto do corpo

exala. Não consigo ver o mundo real, mas vejo muito mais do mundo

energético.

Mahslia assentiu. Fazia algum sentido, ainda que de forma difícil.

Skrumppel passou o cajado levemente por cima da perna de Avalas. A

madeira brilhava branca, e a boca do curandeiro murmurava diversos feitiços.

Lentamente, Avalas começou a recuperar um pouco de cor.

Com delicadeza, Skrumppel flexionou e estirou a perna de Avalas diversas

vezes, sentindo como estava.

- A perna dele vai ficar boa. Aparentemente ele foi tratado por um médico,

de forma que o pior foi evitado em tempo. O problema com ele foi que ele

forçou demais essa perna antes de fortalece-la e se recuperar completamente.

Krummel levantou o machado e afastou-se de Tuhrster.

- Aparentemente você manteve sua promessa. Seu amigo está vivo.

Estamos quites.

Tuhrster negou com a cabeça enquanto vestia sua cota de malha.

- Não estamos acabados. Se quiserem sair desse labirinto, terão que nos

acompanhar.

Krummel, Corash e Mahslia se entreolharam.

- Como assim? – perguntou Corash, olhando torto para o anão.

- Estamos em um labirinto, elfo. Skrumppel e eu vivemos nesse labirinto

há algum tempo, então já o conhecemos. Sem nós vocês se perderão.

82

- Então vocês conhecem alguma saída? – perguntou Mahslia, olhando para

o anão e para o meio-halfling, esperançosa.

Skrumppel sorriu bondosamente.

- Minha querida, se tivéssemos achado algum tipo de saída, acredita de

verdade que estaríamos aqui conversando com vocês? Nós dois, Tuhrster e eu,

estamos presos nesse labirinto. Não podemos explicar a vocês agora. Sigam-

nos, e o dragão os explicará tudo.

Os companheiros se entreolharam.

- Não vamos a lugar algum sem Avalas. – disse Corash, olhando

firmemente para Skrumppel e Tuhrster. Krummel e Mahslia concordaram com

a cabeça.

O anão assentiu.

- Podemos espera-lo.

Avalas acordou com o corpo letárgico e as costas doloridas. Abriu os olhos

e esfregou-os, para limpá-los. A primeira coisa que notou foi o azul do céu.

Depois, a dureza de onde estava deitado. Provavelmente pedra.

Espreguiçando-se, o enorme elfo se sentou, olhando ao redor. Sua espada

estava cuidadosamente disposta ao seu lado. Krummel, Mahslia e Corash

estavam deitados com as costas e as cabeças apoiadas nas pedras, ressonando

levemente. Dois desconhecidos estavam na mesma posição, na parede oposta à

dos companheiros.

Avalas estendeu as pernas, alongando-as um pouco e estendendo as

costas. Ele estava surpreendentemente bem: nem mesmo sua perna ferida o

incomodava.

O único porém era a coceira em suas costas. Isso não era um bom sinal.

O grande elfo se levantou, pegando sua espada do chão e vibrando-a no ar

um pouco. Ela estava mais leve do que de costume. Decerto o velho armeiro da

masmorra conhecia seu ofício, e muito bem. Apesar de sua petulância.

Só então Avalas notou: ele estava em um lugar fechado, não em um lugar

aberto como se esperaria de um deserto.

O que raios estava acontecendo?

Guardando sua espada, Avalas ajoelhou-se ao lado de Corash e sacudiu-o

de leve.

- Vamos, Corash, acorde.

O arqueiro murmurou algumas coisas ininteligíveis. Avalas sacudiu-o com

mais firmeza.

83

- Acorde, Corash!

Corash Lam abriu os olhos sonolentos, limpando-os com as costas da mão

e focalizando o rosto do companheiro.

- Avalas! Você acordou! Como se sente?

Avalas sorriu brevemente.

- Já me senti muito pior algumas vezes na vida. Obrigado por cuidarem de

mim. Agora, o que interessa: onde estamos?

Corash desviou o olhar, um pouco envergonhado.

- Não sei. Aqueles dois – disse ele, apontando para Skrumppel e Tuhrster –

te curaram. Aparentemente eles já vivem aqui há algum tempo. Sabemos

apenas que estamos num labirinto, e que tem um dragão em algum lugar por

aqui.

Um dragão. Isso era perturbador.

- Certo. E quem são eles? Como eles vieram parar aqui?

Corash balançou a cabeça.

- Desculpe, Avalas. Isso é muito mais do que sei responder. Mas acredito

que possamos resolver isso logo. Me ajude a acordar eles – disse o arqueiro,

virando-se para Mahslia e sacudindo-a gentilmente.

Avalas dirigiu-se para Krummel e lhe deu alguns tapas no ombro. O meio-

orc acordou com um olhar bravo, que logo serenou, enquanto Mahslia acordou

lânguida e quieta.

Após os abraços, agradecimentos e cumprimentos entre os companheiros,

os quatro acordaram Skrumppel e Tuhrster.

- Então você é o tão falado Avalas. De fato, você é impressionante. Mais do

que seus colegas deixaram transparecer. – comentou Skrumppel, após espantar

o sono.

- Vou considerar isso um elogio. Obrigado. – agradeceu Avalas, lacônico.

Skrumppel sorriu, e começou a guiar os companheiros pelo labirinto.

Porém, nem mesmo o quieto Tuhrster não pode evitar uma piada.

- Você tem muito jeito com desconhecidos, não Avalas? Já pensou em

seguir carreira diplomática? – perguntou ele, enquanto se embrenhavam no

corredor.

Cinco bocas explodiram em risadas. Avalas olhou feio para o anão, mas,

depois, acabou sorrindo. Era realmente engraçado porque, quando na

Academia Militar de Lynzea, Avalas havia considerado seguir a carreira

diplomática.

84

Sua pretensão terminara quando o professor lhe dissera que Avalas era

flexível como uma montanha.

Os quatro companheiros e seus dois novos guias embrenharam-se pelos

corredores do labirinto. Enquanto Skrumppel e Tuhrster estavam

extremamente à vontade, Krummel, Mahslia, Avalas e Corash estavam arredios

e ariscos.

Isso não passou despercebido a Skrumppel.

- Não precisam ficar tão nervosos. Não há monstros nesses corredores.

Tampouco armadilhas.

Os companheiros não relaxaram.

Andando em ritmo rápido, os seis viraram pelos corredores sem um

padrão lógico. Quatro vezes à direita, uma à esquerda, em frente três vezes e à

direita novamente. Os companheiros não mais conseguiam acompanhar a

quantidade de viradas que faziam.

Depois de uma hora andando, Avalas se irritou.

- Onde estamos indo, afinal?! Será que vocês realmente sabem o caminho?

Porque me parece que estamos andando em círculos.

Skrumppel sorriu.

- Apenas parece. Acabamos de chegar. Deem olá ao senhor do labirinto. –

disse ele, entrando num amplo salão.

O labirinto era estoico, feito de pedra e sem ornamentos. O salão, porém,

era brilhante e belo. Um tapete escarlate resplandecia no chão, iluminado por

um lustre dourado cheio de cristais. Das paredes pendiam espadas e machados

brilhantes. Armaduras completas, pesadas e prateadas, guardavam as paredes

rigidamente.

Na outra ponta do salão, um majestoso dragão dormia. Suas escamas cor

de creme eram brilhantes e de aparência dura, cobrindo todo seu corpo. Suas

asas coriáceas repousavam sobre o corpo largo e poderoso, que terminava

numa cauda forte e larga.

A sala, além de melhor iluminada, também estava mais aquecida, por uma

estranha razão: a respiração do dragão. Vapor saía de suas narinas largas,

aquecendo o ambiente de forma agradável.

- Então esse é o famoso dragão? – perguntou Krummel, cruzando os

braços.

Skrumppel assentiu, solene.

85

Por cinco minutos, os seis ficaram em silêncio. Então, uma voz cavernosa e

áspera surgiu.

- Vocês demoraram. Estava esperando-os.

Skrumppel abaixou a cabeça, em reverência.

- Perdoe-nos, senhor. Tivemos que cuidar do espadachim.

O dragão abriu os olhos. Eles eram dourados, com fendas como pupilas, e

profundamente sábios e sofridos.

- Avalas. Você veio, como prometido.

86

Capitulo Dezenove

Todas as cabeças voltaram-se para Avalas, que estava absurdamente

atônito – pela primeira vez seu rosto deixava transparecer tanta emoção.

- Como você sabe quem eu sou?

O dragão rosnou com prazer, seu modo de rir.

- Se você procurar bem dentro de você, também saberá quem sou.

Avalas fechou os olhos, concentrando-se.

- Drudhgar. Seu nome é Drudhgar, o dragão amaldiçoado pelos deuses

por rebelar-se contra eles. Fadado a guardar o Labirinto do Dragão, ou o

Labirinto Negro, como chamam os deuses, até que aparecesse a sua contraparte

élfica na rebelião. Aquele que, ao seu lado, se rebelou contra os deuses.

O dragão bufou, satisfeito.

- Você poderia ter escrito minha biografia. Meus parabéns, Vhrastnar. Ou,

como devo te chamar agora, Avalas.

O enorme elfo sacudiu a cabeça, incrédulo.

- Não pode ser possível.

- Mas é.

Avalas olhou para o dragão, perdido. Tudo estava terrivelmente errado.

Krummel pigarreou.

- Desculpem-me interromper o belo reencontro, mas há assuntos dos quais

eu gostaria de tratar. Senhor Drudhgar, meus companheiros e eu gostaríamos

de sair deste labirinto. Como podemos fazer isso?

O dragão olhou para Krummel.

- Veja, meu caro orc...

- Meio-orc.

- Meio-orc. O trabalho de guardar um lugar por tempo indeterminado

pode se tornar bastante tedioso. Ainda mais nesse labirinto. Assim, estipulei um

pedágio. Se vocês pagarem meu pedágio, estarão livres para ir.

Krummel assentiu.

- Senhor Drudhgar, não temos posses, tampouco dinheiro.

87

O dragão riu.

- Que uso poderia eu fazer de dinheiro, meu amigo? Estou preso aqui por

tempo indefinido. Não há mercadores por aqui. Não há mercadorias. Dinheiro,

aqui, torna-se peso morto. Não se preocupem, vocês têm exatamente o que eu

preciso.

Mahslia olhou desconfiada para o dragão.

- E que preço é esse?

O dragão sorriu, mostrando os enormes dentes pontiagudos.

- Tudo que exijo é um companheiro.

O silêncio pairou entre os presentes. Krummel, Mahslia, Corash e Avalas

se entreolharam. Corash balançou a cabeça negativa e veementemente.

- Não vamos deixar ninguém para trás.

Drudhgar sorriu.

- Por mim, tanto melhor. Terei mais companheiros para conversar.

Skrumppel interveio.

- Corash, não há saídas deste labirinto. A única existente é guardada pelo

senhor Drudhgar.

O arqueiro mordeu o lábio inferior, nervoso. Eles tinham um tempo curto.

Drudhgar olhou para Corash, rosnando.

- Veja, vocês são um grupo pequeno, mas serei justo. A cada dez pessoas

que passam, uma deve ficar. Foi assim que consegui o Skrumppel aqui.

O meio-halfling assentiu. O dragão continuou.

- Quero que saibam que vocês têm toda uma eternidade para decidir. Aqui

no Labirinto sentimos o tempo passar, mas, efetivamente, o tempo não passa.

Tuhrster, por exemplo, foi meu primeiro companheiro: está aqui comigo há

cerca de seiscentos anos. Skrumppel mesmo está comigo há trezentos anos.

Corash olhou para seus companheiros.

- Podemos conversar a sós, senhor Drudhgar?

O dragão assentiu, sorrindo.

- Fiquem à vontade.

Os companheiros afastaram-se para um canto, olhando desconfiados para

o dragão.

- Algum de nós vai ter que ficar, não é? – perguntou Corash, desanimado.

Mahslia assentiu.

- Aparentemente sim. Mas quem?

Os companheiros se entreolharam.

88

- Eu fico. – sugeriu Krummel. – A missão precisa ser cumprida, e eu entrei

de gaiato nessa história. Vocês, porém, estão nisso desde o começo. Devem

cumpri-la.

Corash balançou a cabeça.

- Não, eu ficarei. De nós quatro, claramente sou o mais fraco. Se alguém

tem que ficar, sou eu.

Mahslia negou.

- Perdão? Você é essencial! É o herdeiro legítimo do reino, foi quem nos

colocou nessa missão, e acabou de reencontrar seu verdadeiro pai. Seria injusto

com você e com ele. Eu fico!

- Você está louca? Você é nossa única maga! Não podemos...

- Quietos! – explodiu Avalas, olhando bravo para os companheiros. –

Quem vai ficar sou eu.

Os três companheiros começaram a protestar simultaneamente. Avalas,

porém, levantou a mão para silenciar os amigos.

- Não tenho nenhum diferencial. Corash tem os sonhos e a herança do

reino, Mahslia tem as magias, Krummel tem a força e o conhecimento. Além do

que, vocês já notaram que tenho um passado que desconheço com Drudhgar.

Quero falar com ele.

- Mas...

- Corash, por favor.

O arqueiro assentiu, contrafeito. Avalas era teimoso como uma mula.

Drudhgar olhou para os companheiros, sorrindo.

- Decidiram-se?

Avalas assentiu.

- Sim, Drudhgar. Mas antes, quero que você permita que Skrumppel e

Tuhrster saiam junto dos que saírem.

Drudhgar inclinou a cabeça para a esquerda, com os olhos brilhando.

- Por que eu deveria permitir isso?

Avalas olhou firmemente para Drudhgar.

- Porque eles já estão com você há muito tempo. Não é justo que prenda-os

mais. Todos seus conhecidos, amigos e parentes já devem estar mortos há anos.

Eles gastaram a vida deles toda aqui. Deixe-os viver novamente.

- E eu, Avalas?

- Terá a mim. E, de qualquer forma, sabe que resolveremos isso logo mais.

Só precisamos que eles saiam.

Drudhgar assentiu, com os olhos brilhando.

89

- Você não mudou nada. Muito bem. Tuhrster, Skrumppel, vocês estão

livres para ir com os outros. Se quiserem.

Tuhrster olhou emocionado para Avalas.

- Obrigado, senhor Avalas. Serei eternamente grato ao senhor.

- Seremos. – corrigiu Skrumppel, sorrindo bondosamente para Avalas.

Desajeitado, o enorme elfo cumprimentou-os com a cabeça. Krummel

abraçou Avalas pelo ombro.

- Te esperaremos na Montanha Selque, Avalas.

- Resolvam tudo. Se as coisas forem como esperadas, ouvirei falar de

vocês. Nos encontraremos, eu prometo.

Corash pôs a mão no ombro de Avalas, e Mahslia deu um abraço e um

rápido beijo na bochecha do espadachim.

Drudhgar afastou-se ligeiramente da saída, e os cinco companheiros

saíram do labirinto sem olhar para trás. O dragão postou-se novamente na

saída.

Avalas encarou o dragão.

- Agora podemos começar.

O enorme espadachim sacou sua arma, correndo contra Drudhgar e

girando o corpo. A espada fez um arco prateado na direção do dragão, que

utilizou uma de suas garras para aparar o golpe. Com a outra pata, atacou

Avalas, que voou longe, bateu na parede e caiu no chão.

- Você era mais habilidoso. – resmungou o dragão, olhando bravo para

Avalas. – Os deuses devem estar de piada comigo.

Avalas levantou-se, rosnando.

- Não me subestime.

O enorme elfo levantou a espada, cortando na direção do dragão. Um arco

de energia foi lançado na direção de Drudhgar, que pulou para a esquerda de

forma muito mais leve que seu robusto corpo sugeriria.

Em resposta, o dragão soltou uma bola de fogo de sua boca, que Avalas

cortou ao meio com a espada.

Os oponentes se fitaram, bravos.

Um segundo se passou. Dois.

Avalas pulou contra Drudhgar, mirando a ponta da espada contra a testa

do dragão para perfura-la. A lâmina atingiu o couro com um som seco, e a força

do golpe reverberou no cotovelo de Avalas.

O formidável golpe, porém, sequer arranhou o couro de Drudhgar.

90

Com displicência, o dragão atacou Avalas. Dessa vez, porém, utilizando a

afiada garra, que cortou a armadura de Avalas como papel e atingiu seu tronco

logo abaixo das costelas. O enorme elfo voou longe novamente, com o profundo

corte vazando sangue, e bateu no chão com um som seco.

Avalas levantou a cabeça com dificuldade, olhando para Drudhgar. Sua

visão estava embaçada, e o corte vazava sangue profusamente. Todo seu corpo

parecia em chamas.

Subitamente, a dor passou. A imagem de Drudhgar foi se diluindo em

uma luz forte. Curiosamente, a luz não feria as retinas do enorme elfo.

Foi então que ele começou a ver.

91

Capitulo Vinte

Tudo começara há séculos atrás. Avalas, naquele tempo, era chamado de

Vhrastnar. Um grande herói do povo élfico, cujos feitos lendários haviam

resultado em riquezas, fama e poder.

Segundo os boatos que se ouviam nas ruas de Orxh, àquela época uma

pequena vila de elfos, Vhrastnar era descendente dos deuses – e sua

ascendência lhe garantira o poder e a habilidade de proteger o povo élfico dos

outros povos que estavam em guerra contra eles.

Por seus feitos, sua sabedoria e sua bondade, Vhrastnar fora declarado o

primeiro rei de Lynzea. No entanto, Lynzea era um reino entre muitos – e,

sendo um reino jovem, era também um reino cuja força militar era carente.

Utilizando-se de diplomacia e inteligência, Vhrastnar enviara mensageiros

a todas as vilas élficas existentes, com acordos de paz e votos de prosperidade.

Os mensageiros foram recebidos com muita alegria e, de forma inteligente,

fizeram com que as vilas élficas notassem um denominador comum entre si,

uma semelhança cultural que ia muito além das picuinhas entre vilarejos.

Nesse momento, Vhrastnar apresentou às vilas suas propostas de

unificação, que foram aclamadas por unanimidade. O povo élfico comemorou

e, nesse dia, os vilarejos orcs temeram.

Por muitos anos, Vhrastnar governou. No entanto, sabia que não poderia

governar sozinho. Assim, dividiu o poder com seu melhor amigo, Rial Ruil

Lam. Vhrastnar faria as leis, ouviria o povo e administraria o reino, enquanto

Rial Ruil faria garantir o cumprimento das leis, comandaria o exército e

investiria na ciência. E Lynzea prosperou.

A época do governo de Vhrastnar não foi muito turbulenta. Houvera um

enorme salto cultural, social e científico, mas fora uma época de paz. Logo nos

primeiros anos, os orcs tentaram destruir Lynzea, atacando os mais diversos

vilarejos élficos sem piedade. Vhrastnar, porém, era um elfo de ação. Pegando

92

em armas, protegeu seu reino na linha de frente e conquistou os territórios

antes pertencentes aos orcs.

O segredo de Vhrastnar para lutar era seu companheiro. O dragão

Drudhgar dava suporte a Vhrastnar das mais variadas formas. Fosse atacando

na linha de frente, fosse assustando os adversários, fosse carregando seu

companheiro, Drudhgar era uma presença constante e fiel na vida de Vhrastnar.

O dragão e o elfo haviam se conhecido quando Vhrastnar era pouco mais

do que um bebê, e Drudhgar acabara de atingir a maioridade dracônica, ou seja,

tinha por volta de duzentos anos de idade. Drudhgar fora atacar uma casa de

campo, e, rapidamente, puxou a casa pelo teto. A casa descolou do chão. Dentro

da casa havia três seres: um elfo de meia idade, forte e bronzeado pelo trabalho

na lavoura; uma elfa jovem e bela, de olhos límpidos e mãos tremelicantes; e

um bebê elfo num berço, embalado em seus cueiros com os braços livres.

O elfo de meia idade rapidamente pegou uma lança e atirou em Drudhgar,

que a desviou para o lado com displicência. Eles não sabiam que não

funcionaria nada do tipo?

O dragão considerou a situação. O bebê certamente era o mais macio e

saboroso dos três. O elfo de meia idade parecia ter a carne dura, e as lágrimas

da jovem elfa davam a impressão de que sua carne estaria encharcada.

Drudhgar optou por comer o bebê primeiro. Com curiosidade, aproximou

o focinho do berço, olhando fixamente para a criança. A criança olhou de volta

para o dragão.

E estapeou o focinho de Drudhgar.

O dragão não sentira dor, é claro. Tampouco ficara com medo de um bebê

de colo. Não, ele estava surpreso com a ousadia do bebê. Aquela criança era

extraordinária. Não seria certo matá-la.

Drudhgar gargalhou com seu rosnado típico, e olhou para o elfo de meia

idade e a jovem elfa.

- Cuidem muito bem dessa criança. Amanhã voltarei para visita-la. Espero

que não se incomodem. Não farei mal a ela, eu prometo.

E, com essas palavras, Drudhgar voou para o céu azul, buscando uma

presa não tão inteligente quanto um elfo.

Os anos passaram, e Vhrastnar cresceu, alto e poderoso. Suas habilidades

com a espada foram refinadas com a ajuda de Drudhgar, e ele logo aprendeu

algumas magias. Quando fez vinte e cinco anos, maioridade élfica, porém,

Vhrastnar saiu de casa. Desde esse dia, Drudhgar não mais foi visto no pasto

onde conhecera o companheiro.

93

Dez anos depois, Vhrastnar voltou sozinho. Seu pai, agora um elfo quase

idoso, saudou-o com lágrimas nos olhos. Sua mãe, uma elfa ainda jovem, mas

que perdera um pouco de sua beleza, jogou-se nos braços do filho amado. No

entanto, Vhrastnar não era mais o mesmo que saíra de casa, jovial e sorridente.

Agora ele tinha olhos maduros, de quem vira muito e de pouco gostara, e sua

expressão séria denotava que sempre estava perdido em pensamentos,

considerações silenciosas cujo teor era desconhecido.

Alguns anos depois os pais de Vhrastnar morreram num assalto. Uma

horda de orcs que por ali passava precisava de alimentos, e decidiram que

pilhar a fazenda era uma boa ideia. Enquanto os orcs atacavam a fazenda tão

caprichosamente cuidada, Vhrastnar encontrava-se distante, caçando o jantar.

O jovem guerreiro voltou algumas horas depois. Os orcs ainda estavam na

fazenda, comendo, bebendo e gritando. O pai de Vhrastnar fora cruelmente

empalado e colocado como espantalho, e a mãe do jovem elfo estava sob céu

aberto com um orc por cima dela, grunhindo.

Quando avistaram Vhrastnar, os orcs soaram um corno de guerra. O orc

que estava sobre a mãe do elfo deu nela uma precisa facada, cortando seu

pescoço de lado a lado. A horda orc enfileirou-se com seus escudos levantados e

lanças em riste.

A fúria do jovem elfo era surda. Muda. No entanto, irradiava por seus

poros, penetrando cada célula de seu corpo de forma maligna. Seus sentidos

estavam embotados. O vento soprava, mas ele não sentia ou ouvia. Sua visão

não via a paisagem, apenas os orcs. Os malditos orcs.

Sua mão puxou a espada. Seu braço tremia.

- Drudhgar. – chamou ele, não mais que um sussurro. Suas costas

começaram a coçar, arder, queimar. Atrás dele, um dragão começou a surgir,

com suas asas poderosas furando o ar e levantando seu robusto corpo do chão.

Quando o dragão materializou-se, suas costas pararam de coçar.

Vhrastnar atacou os adversários impiedosamente.

Em um minuto, toda uma horda de orcs jazia morta no chão, e Vhrastnar

chorava sobre o cadáver de sua mãe.

Nesse dia, o jovem elfo abandonou a fazenda. Ele fora incapaz de proteger

seus pais. Agora eles estavam mortos, e era culpa dele.

Infelizmente, seu dever com seus pais terminara. Vhrastnar enterrou-os

com lágrimas nos olhos, tocou o braço de Drudhgar e absorveu o amigo

novamente, fundindo-se com o dragão. Suas costas voltaram a queimar, até que

a tatuagem de dragão que representava o amigo estivesse completa.

94

Vhrastnar recolheu algumas roupas, amarrou a espada à cintura. Colocou

uma das pequenas argolas que a mãe usava como brincos em sua orelha

esquerda e calçou uma luva de couro que seu pai usara quando era um jovem

espadachim na mão direita.

E foi-se da fazenda para conquistar sua vida.

Vários anos depois, Vhrastnar era um rei, sábio e poderoso. Ele unificara o

povo élfico, conquistara territórios, casara com uma bela elfa que lhe dera

diversos filhos e filhas. Tudo parecia ir bem, e o rei estava satisfeito.

Mas a vida de heróis nunca se assenta facilmente assim.

A classe dos clérigos prosperava grandemente. Os fiéis pagavam taxas

não-oficiais altíssimas a eles, em troca das bênçãos dos deuses. O povo estava

empobrecendo por causa das absurdas taxas impostas pelos clérigos. E

Vhrastnar não gostava disso. Ele unificara os elfos para que, juntos, eles

pudessem crescer com fartura e irmandade. No entanto, parecia que seu reino

estava entrando em decadência. Ele não podia permitir isso de forma alguma.

Reunindo os melhores soldados do reino, Vhrastnar criou a Ordem do

Dragão, cujo objetivo era impedir que os clérigos extorquissem o povo de

Lynzea. Membros da Ordem do Dragão foram enviados aos mais ermos rincões

de Lynzea, e, por meio da força, prenderam clérigos e destruíram templos. Em

todos os lugares em que pessoas foram extorquidas, passou a espada e o fogo

da Ordem do Dragão.

Isso, porém, ia contra o desígnio dos deuses, que queriam suntuosos

templos para si. Por meio de um oráculo, eles ordenaram a extinção da Ordem

do Dragão. Vhrastnar não a extinguiu. Novamente eles ordenaram. Novamente

Vhrastnar recusou.

Da terceira vez, eles ordenaram a formação de um santo exército, que

atacou a Ordem do Dragão. Os dois grupos se digladiaram infinitamente, sem

qualquer resultado definido.

Vhrastnar, por fim, irritou-se. Malditos deuses! Por que se achavam no

direito de extorquir seu povo? Por que eles queriam que os elfos vivessem na

pobreza, enquanto os clérigos viviam suntuosamente, cultivando gordas

barrigas e bolsas de dinheiro? Isso não era justo!

Irascível, Vhrastnar nomeou Rial Ruil Lam como regente interino,

enquanto seus filhos não eram maduros o suficiente para assumir o reino, sacou

novamente sua espada e convocou novamente Drudhgar. Montado no dragão,

Vhrastnar dirigiu-se à morada dos deuses, o Vale de Trivash, e lá os desafiou.

95

Uma verdadeira guerra tomou início: os deuses contra Vhrastnar e

Drudhgar. A batalha era dos deuses antes mesmo de ter começado. O fogo de

Drudhgar e a espada de Vhrastnar feriram os deuses, mas estes utilizaram-se de

magia proibida, antiga, e derrotaram os rebeldes que os feriram. Então, as

divindades tiveram uma ideia.

Usando de mais magia proibida, os deuses criaram um labirinto mágico,

com um caminho tortuoso e racionalmente ilógico, e colocaram Drudhgar como

guardião eterno do labirinto. Haveria apenas uma saída e diversas entradas, e o

dragão nunca poderia deixar ninguém passar. Mais tarde, Drudhgar os

desobedeceria com uma alegria selvagem.

Quanto a Vhrastnar, condenaram sua alma a vagar perdida por Lynzea em

diversas encarnações. Sempre sofrendo, sempre perdendo quem amava, sempre

sendo injustiçado.

Generosamente, porém, os deuses resolveram dar uma chance de quebrar

os encantamentos. Em uma piada de péssimo gosto, decretaram que suas

maldições seriam levantadas mutuamente, desde que, quando Drudhgar e uma

das encarnações de Vhrastnar se encontrassem, apenas um dos dois ficasse

vivo.

96

Capitulo Vinte e Um

Avalas saiu de sua regressão subitamente, acordado pela dor em seu

tronco onde Drudhgar o cortara. Ele olhou para o dragão. Sua visão estava clara

novamente.

Drudhgar tinha lágrimas nos olhos.

- Você entende, não entende, Vhrastnar?

Avalas levantou-se com muita dificuldade, apoiando-se em sua enorme

espada.

- Não. – sussurrou ele, com a cabeça abaixada e todo o peso apoiado em

sua arma

- Não?

- Meu nome não é Vhrastnar.

O dragão olhou para o elfo com intensidade curiosa.

- O quê?

Avalas levantou a cabeça, olhando ferozmente para Drudhgar.

- O meu nome não é Vhrastnar. Eu me chamo Avalas.

Drudhgar balançou a cabeça, incrédulo.

- Como pode dizer isso, depois de ver o que viu? Sabe que foi amaldiçoado

como Vhrastnar, que morreu como Vhrastnar, que me conheceu como

Vhrastnar! Carrega a maldição de Vhrastnar, e ainda diz que não é ele.

Avalas confirmou com a cabeça.

- Vhrastnar morreu. Carrego seu espírito, seus traços, e, agora, suas

memórias. Mas não sou Vhrastnar. Vhrastnar não tinha Corash, Krummel ou

Mahslia. Vhrastnar não tinha Sparon. Vhrastnar só tinha você.

O dragão arregalou os olhos, com um princípio de susto na feição

reptiliana.

97

Avalas jogou seu peso na perna direita, levantando a espada mais uma

vez. Sua barriga sangrava menos, agora, mas doía horrivelmente. Esse era seu

golpe derradeiro.

- Por fim, Drudhgar, entenda uma coisa. Vhrastnar jamais faria o que eu

farei agora.

O dragão fitou Avalas incrédulo.

- Você não vai me matar.

O enorme elfo riu. Um riso louco.

- Você já está morto. Apenas não viu isso ainda.

Drudhgar arregalou ainda mais os olhos.

- Vhrastnar, não!

Avalas pulou. Drudhgar lançou uma poderosa rajada de chamas, que

rapidamente consumiram a armadura e as roupas do enorme elfo.

- O meu nome é Avalas! – exclamou Avalas, enquanto atirava a espada

contra o olho de Drudhgar.

A espada perfurou o olho do dragão e seu crânio, para finalmente atingir o

cérebro. A morte de Drudhgar foi quase imediata, e seu último pensamento foi:

“Livres”.

A espada de Avalas começou a sugar a alma do dragão para seu dono,

estabelecendo uma conexão entre ambos enquanto brilhava fortemente.

Avalas sentiu o calor da alma de Drudhgar penetrando suas mãos,

correndo por seu braço e alcançando suas costas, que começaram a queimar.

A tatuagem de Avalas, seu segredo mais bem guardado, começou a arder.

O dragão adormecido em suas costas, enrolado e diminuto, abriu os olhos e

ascendeu, enquanto as feridas de Avalas se fechavam e seu corpo produzia

mais sangue e ganhava uma força renovada.

Quando tudo acabou, a carcaça de Drudhgar havia sumido. A sala estava

vazia, à exceção de um Avalas nu – seu corpo fora protegido por uma camada

brutal de energia que, em sua quase morte, Avalas exalara. Suas costas largas e

fortes ostentavam um dragão subindo em direção ao céu, e sua espada tinha um

punho de dragão, como se a lâmina saísse da boca de Drudhgar.

Avalas suspirou. Ele, surpreendentemente, estava vivo e bem. Claro,

estava um pouco menos vestido do que gostaria de estar, em especial

considerando que sairia em um deserto, mas era o que tinha para o momento.

Nenhuma das armaduras que Drudhgar possuíra serviriam nele. Por que o

dragão tinha que ter sido tão despreparado?

98

Resignado, Avalas olhou uma última vez para o aposento, absorvendo os

detalhes do lugar. Depois, virou as costas para a masmorra e abriu a porta do

Labirinto Negro, abandonando o lugar para todo o sempre e saindo, finalmente,

para as Dunas Congeladas.

O sol atacou violentamente os olhos de Avalas, momentaneamente

machucando suas retinas. Numa reação rápida, o enorme elfo sombreou os

olhos com o antebraço e olhou em volta.

Ele estava no meio do deserto. Isso era bom.

Ele não sabia onde, exatamente, estava. Isso era ruim.

A areia queimava seus pés descalços. Isso também era ruim.

A porta da masmorra sumira no ar. Isso era bom.

A poucas centenas de metros havia uma cabana de madeira.

Surpreendente. Avalas jamais imaginaria que alguém se daria ao trabalho de

construir qualquer coisa num deserto se não houvesse ao menos um rio por

perto.

Mas era o que tinha para o momento. Dando de ombros, o enorme elfo

apressou o passo para chegar o mais rápido possível.

Andar pelo deserto era bastante desconfortável. O vento que soprava era

abusivamente quente, a areia era abusivamente monótona e o sol queimava

abusivamente partes do corpo de Avalas que o enorme elfo nunca fizera

questão de bronzear.

No entanto, apenas parte da mente de Avalas computava e considerava

esses fatos. A outra metade estava trabalhando numa única frequência,

repetindo incessantemente a pergunta que não queria calar: “Onde estão os

outros?”.

Após cinco minutos de uma rápida caminhada, Avalas chegou ao seu

destino. A cabana era bem cuidada, e não estava carcomida pelo ambiente.

Além disso, perto da inusitada moradia o clima estava surpreendentemente

agradável. O sol não mais o queimava tanto, a areia não mais o incomodava

tanto, o vento soprava em uma temperatura agradável e o próprio ar parecia

um pouco mais úmido. O mais importante, porém, era que Avalas ouvia uma

voz falando de um dos outros lados da cabana.

- Não, não, isso é errado! O pergaminho claramente diz para você

fragmentar a energia, menina, não para lança-la toda de uma vez! – esbravejava

uma voz rouca e fina. Uma voz idosa.

99

Erguendo a espada, o enorme elfo andou para o outro lado da cabana,

pronto para terminar a curva em um ataque. Mas não havia inimigos.

Havia Mahslia.

- Avalas! – gritou ela, quando o viu. Largando um pergaminho e o cajado

na areia, a maga jogou-se no pescoço do enorme elfo, abraçando-o fortemente.

Avalas, desajeitado, deixou cair a espada e deu desajeitados tapinhas nas costas

da amiga. Cada tapinha parecia um golpe de raquete.

- Olá, Mahslia. Você está bem?

Mahslia soltou-o e afastou-se, olhando para os olhos do amigo com

felicidade.

- Estou ótima! Ficamos preocupados com você, seu maluco! Por onde

andou todo esse tempo?

Avalas fez cara de confuso.

- Todo esse tempo? Devemos ter ficado separados por cerca de cinco

horas, se muito!

Mahslia negou com a cabeça, incrédula.

- Não, Avalas. Você esteve sumido por uma semana. Nós achamos até que

você estava morto.

- E, obviamente, estávamos enganados. – disse uma voz suave vinda do

outro lado da cabana. Skrumppel surgiu, acompanhado por Tuhrster. – Senhor

Avalas, mais uma vez me sinto na obrigação de agradecê-lo por sua gentileza.

Foi um ato muito nobre de sua parte. No entanto, o senhor me parece estar...

diferente.

- E bem mais ousado. – resmungou Tuhrster, olhando para Avalas

despudorado.

Avalas ficou subitamente consciente de sua nudez. E Mahslia também.

Corando furiosamente, a maga virou-se e saiu correndo para dentro da cabana.

- E quanto a mim, seu moleque mal-educado? Não vai falar comigo? –

resmungou uma senhora idosa, encostada à cabana com o cajado e o

pergaminho de Mahslia nas mãos.

Avalas não tinha notado a velha senhora até então.

- Perdão, madame. Não tinha visto a senhora. Meu nome é Avalas. Peço

perdão pelo jeito com que me apresento.

A velha riu, cacarejante.

- Não é como se eu ligasse, menino. Já vi coisas muito feias na vida, mas

certamente você não é uma dessas coisas.

Avalas ficou rubro.

100

- Tuhrster, Skrumppel, onde está Krummel? – perguntou ele, agachando-

se com cuidado para pegar a espada e cobrindo-se com a mão.

- Pescando. – respondeu o anão, de braços cruzados.

- Quais as chances de ele ter ao menos uma calça para me emprestar?

- Baixas. – respondeu Skrumppel, sorrindo divertido.

Avalas resmungou algo ininteligível.

- Ei, moleque. Eu tenho roupas para você. – disse a idosa, analisando o

enorme elfo com calma.

Avalas olhou para a velha com desconfiança.

- Por que a senhora teria roupas do meu tamanho?

A velha riu novamente.

- Porque eu posso criar as roupas que eu quiser, moleque. Entre na cabana.

Já tem algo esperando por você lá.

- E cubra-se. – disse Tuhrster, sorrindo maliciosamente para Avalas e

jogando para o enorme elfo uma capa que havia escondido dentro de sua cota

de malha. – A pobre Mahslia não precisa ver essa coisa feia novamente.

Avalas amarrou a capa à cintura resmungando, enquanto entrava na

cabana sob o som de gargalhadas.

Algumas centenas de metros afastada da cabana repousava uma lagoa. Era

uma lagoa consideravelmente grande, abastecida por água subterrânea.

Diversos peixes viviam nessa lagoa límpida, nadando preguiçosamente.

Corash e Krummel encontravam-se na beirada da lagoa, com a bainha das

calças enrolada, e enfiados até os joelhos na fresca água. Cada um tinha nas

mãos uma tosca lança de madeira, que utilizavam para pescar.

Corash jogou os braços para cima, alongando-se, e secou o suor da testa.

- Diga, Krummel, você acha que Avalas voltará?

O meio-orc olhou para Corash, apoiando-se na lança.

- Para ser sincero, Corash, eu não faço ideia. Gostaria de poder te

responder, mas qualquer coisa que eu falar será mero chute. Eu realmente não

sei o que pensar.

- A velha disse que ele voltaria.

- A velha disse. – concordou Krummel, abaixando os olhos.

Os companheiros haviam chegado na casa da velha senhora uma semana

antes. Após terem saído do labirinto, eles vagaram sem rumo para frente por

algumas horas, até enxergarem, ao longe, a pequena construção. Eles pararam

por algumas horas, consumiram um pouco das provisões que Mahslia

101

carregava na bolsa e, com as energias renovadas, seguiram para a cabana da

velha elfa.

Quando chegaram à simples construção de madeira, a velha senhora os

esperava. Ela acenou com a cabeça algumas vezes, com os olhos detendo-se em

todos por um segundo, até fixarem-se em Mahslia.

- Ah, aqui temos uma menina talentosa. Imagino que você seja uma maga.

Mahslia enrubesceu.

- Sim, eu sou. Por quê?

A velha cacarejou uma gargalhada.

- Você fede a magia, menina. O garoto do arco também, mas menos, bem

menos. – a elfa idosa virou-se para Corash. – Você é um herdeiro Lam,

aparentemente.

Corash assentiu, sem fala.

- Imaginei. Você tem a mesma expressão crédula daquele idiota, aquele

Fiar Lam. Vocês são todos iguais.

- De onde a senhora conhece meu pai? – perguntou Corash, ávido.

A velha cacarejou novamente.

- De outras vidas, meu garoto. Foi esse desgraçado que você chama de pai

que me colocou nessa prisão de areia.

Corash negou com a cabeça. Não era possível! Seu pai era um bom

homem. Talvez um pouco endurecido, mas essencialmente bom! Não fazia

sentido que ele tivesse prendido alguém, principalmente em um lugar tão ermo

quanto as Dunas Congeladas.

- Eu não acredito na senhora.

A velha cacarejou pela terceira vez.

- Se quiser, criança, acredite até que as minhocas do deserto te farão

cafuné. Por mim não importa.

Fez-se um silêncio constrangido.

Tuhrster, então, falou.

- Perdão pela indelicadeza, senhora, mas podemos contar com um pouco

de sua hospitalidade? Estamos perdidos nesse deserto, e gostaríamos de poder

descansar um pouco nas sombras.

A velha sorriu para o anão.

- Ah, alguém sem vergonhas tolas. Entrem, meus jovens.

Krummel, porém, não se moveu.

- Senhora, não temos como pagar por sua hospitalidade. Não possuímos

dinheiro, e nossas coisas de valor são essenciais para nossa sobrevivência.

102

A velha olhou de uma forma marota para o meio-orc.

- Não se preocupem. Poderão ficar aqui até que aquele que vocês esperam

junte-se a nós, ou até mais. Tudo o que peço é o comprometimento da maga

aqui.

Mahslia olhou para a velha, desconfiada.

- Comprometimento com o quê?

A velha sorriu de uma forma um tanto quanto malvada.

- Não é algo que eu possa compartilhar facilmente. Conversaremos a sós, e

então você me dará sua resposta.

Ali, então, estavam eles, uma semana após chegarem à cabana da velha

elfa. Pescando no deserto.

Corash considerou sua situação por alguns segundos. Ele estava num

lugar aparentemente mágico. As roupas surgiam do nada, havia água parada

em um deserto, comida muito farta. Algo estava estranho.

Além disso, havia o fato de que Mahslia estava passando um tempo muito

grande com a anfitriã do grupo. Treinando, diziam Tuhrster e Skrumppel. Que

a velha elfa era uma maga, e uma maga poderosa, isso era claro. No entanto,

saberia ela também moldar a magia para as batalhas?

Por fim, o que mais incomodava Corash: será que seu pai realmente

condenara a velha a vagar pelas Dunas Congeladas? Pelo que ele conhecia de

Lian Fiar, isso era um tremendo absurdo.

“Mas quanto você conhece seu pai, Corash?”, perguntou uma voz

irritante. O arqueiro sacudiu a cabeça e deixou esses assuntos para outra hora.

Agora ele precisava pescar.

Corash enfiou a lança na água uma, duas, três vezes, conseguindo, assim,

dois peixes no processo. Era o suficiente. Krummel havia pescado mais um, e

eles já tinham três numa sacola.

Enquanto tiravam os peixes da lança, os dois companheiros ouviram

vozes. Uma enorme algazarra, mas isso era comum. Mahslia costumava fazer

um pouco de bagunça enquanto treinava, e a velha anfitriã achava isso deveras

irritante.

Dois minutos depois, a jovem maga apareceu na beirada do lago, ainda

muito vermelha.

- O que houve, Mahslia? Você está com febre? Deveria tomar cuidado para

não ter uma insolação, pode ser perigoso. – disse Krummel, preocupado com a

cor da amiga.

103

- Não, não é isso, Krummel. Avalas voltou.

Krummel e Corash se entreolharam. Seria possível?

- Você tem certeza disso? – perguntou o jovem arqueiro, olhando para a

amiga.

- Absoluta.

Krummel e Corash se entreolharam mais uma vez, e saíram correndo para

a cabana da velha senhora.

Capitulo Vinte e Dois

Quando Krummel e Corash entraram na surpreendentemente ampla

cabana, Avalas encontrava-se de calção, passando uma pomada no corpo que a

velha havia lhe dado.

- Então, seu elfo teimoso, você está vivo! – saudou Krummel, sorrindo para

o amigo.

Avalas sorriu para o meio-orc e Corash, enquanto esfregava um dos

braços.

- Por incrível que pareça, sim. Nem eu mesmo acreditei quando vi que

estava inteiro.

Corash assentiu, olhando feliz para o grande elfo.

- Seja bem-vindo de volta, Avalas.

- É bom estar de volta. Agora, onde está Mahslia? Precisamos decidir logo

nosso próximo passo.

Corash e Krummel se entreolharam por um segundo rápido, mas o gesto

não passou despercebido ao enorme elfo.

- O que foi? O que eu não estou sabendo? – questionou ele, parando de

passar a pomada.

Corash coçou a cabeça, um pouco encabulado.

- Mahslia fez um pacto com a nossa anfitriã. Ela não poderá sair das Dunas

Congeladas por cerca de dois anos.

- O quê?! – berrou Avalas, irritado. Uma veia pulsava em seu pescoço. –

Que história maluca é essa?!

- É verdade, moleque. Eu tomei Mahslia como minha aprendiz. – disse a

velha, adentrando sorrateiramente no quarto e fitando Avalas severamente. –

104

Esse é o preço da hospedagem de vocês, e Mahslia está pagando-o com

satisfação.

- Isso é um absurdo! Krummel, como é que você pode compactuar com

uma sandice dessas? E você, Corash! Mahslia não era sua melhor amiga? Como

pôde?! – perguntou Avalas, absurdamente alterado. Seu olhar denotava pura

loucura.

Mahslia entrou no quarto, olhando fixamente para Avalas.

- Eles não tiveram nada a ver com isso, Avalas. A decisão foi minha,

exclusivamente. Eles sequer tinham como impedir.

Avalas balançou a cabeça, irritado.

- Qual é o seu problema, Mahslia? Por que você fez essa idiotice?

Mahslia fulminou Avalas com o olhar.

- Porque essa é a única maneira de fazer vocês chegarem à Montanha

Selque sem morrerem no deserto.

As cabeças de Corash e Krummel, até então abaixadas, viraram-se

rapidamente para Mahslia. Isso era algo novo na história.

- Como assim, Mahslia? Você não nos contou isso. – acusou Corash,

pálido.

Mahslia abaixou a cabeça e respirou fundo uma, duas, três vezes.

- As Dunas Congeladas formam um deserto enfeitiçado por divindades. Só

há duas formas de passar por elas sem se perder: ou portando cristais do leito

do rio Moravher, que fica na terra dos anões... ou tendo a permissão do Zelador.

“Quando as Dunas foram criadas, os deuses decidiram que um deserto

vivo não poderia ser uma ideia tão boa. Seres vivos dão trabalho, ainda mais

um ser de tamanha extensão. Assim, eles nomearam um mago para cuidar do

deserto.

“Esse mago teria livre acesso a todas as áreas das Dunas Congeladas,

controlaria todos os seres vivos que aqui habitam, teria pleno conhecimento do

que acontece na área do deserto e poderia, à sua escolha, dar passagem para as

pessoas que escolhesse. Em troca disso, porém, teria que abrir mão de sua

liberdade de ir e vir.

“Junto com a abdicação da liberdade, vem também uma maldição: o

Zelador perderá toda sua juventude, e viverá até que encontre um mago

poderoso o suficiente para substituí-lo. Quando esse mago, designado como

próximo Zelador, completar determinado ritual, o Zelador anterior morrerá.

- É isso, então. – disse Krummel, olhando chocado para Mahslia. – Você é a

sucessora desta velha senhora.

105

Mahslia assentiu com a cabeça, olhando para os pés sem mais forças para

falar.

- Por que, Mahslia? Que inferno, por quê?! – questionou Avalas, socando a

parede da cabana.

- Porque não temos cristais do leito do Rio Moravher. – respondeu Corash,

fitando intensamente o rosto da amiga. – A nossa única possibilidade de chegar

à Montanha Selque é com a permissão da Zeladora, e esse foi o preço que essa

velha nos cobrou.

Mahslia assentiu.

Todos ficaram em silêncio por alguns segundos. Então, Avalas olhou a

velha anfitriã diretamente nos olhos.

- A senhora não pode nos separar de Mahslia.

A velha retribuiu com firmeza o olhar do enorme elfo.

- E por que não?

Avalas olhou para todos. Quando seu olhar pousou em Corash, este teve

uma súbita ideia.

- Porque Mahslia é nossa única maga. – respondeu o arqueiro, olhando

para Avalas e Krummel com intensidade.

“Me ajudem nessa”, pedia o olhar.

A velha cacarejou uma risada.

- E o que eu tenho a ver com isso, moleque?

- Tudo. Mahslia é uma menina muito talentosa, sim, mas também é

extremamente carinhosa. Ela se preocupa conosco.

- E daí? – pressionou a velha.

Krummel interveio.

- E daí que enquanto estivermos ausentes, ela não renderá tanto quanto

seu potencial sugere. Além disso, se eventualmente morrermos, ou falharmos

em nossa missão, ela vai ficar muito chateada. Não é, Mahslia? – perguntou o

meio-orc, voltando-se para a maga.

Mahslia assentiu, com o olhar brilhando com um início de compreensão.

- E, como a senhora certamente sabe, fortes emoções geram efeitos

imprevisíveis na magia de alguém. Se Mahslia ficar tão triste, quem sabe quais

efeitos isso pode gerar no potencial dela? – questionou Avalas, olhando para a

velha de forma incisiva.

- Ela pode ficar ainda mais forte... ou pode perder tudo. A senhora quer

arriscar o potencial da sua sucessora de uma forma tão estúpida? – finalizou

Corash, sorrindo para a velha.

106

A velha cacarejou novamente.

- Muito bonito, isso tudo. Mas vocês são fortes. Para que precisam de uma

maga?

Foi a vez de Mahslia falar.

- Porque a Montanha Selque é um lugar cuja própria essência remete à

magia. Krummel e Avalas podem ser instruídos em magia, mas nenhum deles

sabe exatamente como lidar com ela da forma correta. Sem mim, eles estarão

mortos. – disse ela, olhando firmemente para a velha.

- Eu não ligo para a vida deles.

- Mas eu ligo. E, no caso de a senhora não me permitir ir com eles, pode

considerar nosso trato desfeito. – respondeu Mahslia, com um pouco de raiva

no olhar.

- Você não faria isso. Morreria no deserto.

- Morreria. Mas não me arrependeria nem por um segundo.

A velha olhou para Mahslia por longos segundos, examinando a jovem

maga de cima a baixo várias vezes. Por fim, cacarejou uma terceira vez.

- Você é uma menina voluntariosa. Me lembra muito a mim mesma,

quando eu ainda possuía o viço da juventude. Você me promete que, assim que

terminarem seus afazeres na Montanha Selque, voltarão aqui? E você

continuará ao meu lado, como minha aprendiz e futura Zeladora das Dunas

Congeladas?

- Juro.

- Jura por sua magia?

- Juro.

- Então aperte minha mão. – disse a velha elfa, estendendo uma mão

enrugada para a jovem maga. Mahslia apertou-a com firmeza.

Por um segundo, as mãos de ambas as elfas foram envoltas por uma luz

branca. Depois, o brilho sumiu.

A velha sorriu maliciosamente.

- Foi bom fazer negócios com você, Mahslia.

E saiu.

107

Capitulo Vinte e Tres

Krummel, Avalas e Corash olharam atônitos para Mahslia. Aquela elfa

tinha muito mais fibra do que parecia.

Corash estava absurdado.

- Uau, Mahslia. Isso foi...

- Impressionante. – disse Avalas, olhando para Mahslia com novos olhos,

cheios de respeito.

- Altruísta. – disse Krummel, sorrindo bondosamente para a maga.

- Estúpido. Se você não tivesse feito esse trato, poderíamos ter burlado ela

de alguma forma. Agora, porém...

Mahslia balançou a cabeça, irritada.

- Isso não seria certo, Corash. Eu havia combinado com ela de que seria

sua sucessora. E não se esqueça, teríamos que voltar para Sparon. Para isso,

temos que passar pelas Dunas Congeladas de qualquer jeito. Ela saberia que

estaríamos por aqui. Ela é a Zeladora.

Avalas assentiu.

- O acordo foi uma mera formalidade para te permitir ir, certo?

Mahslia assentiu.

Corash sentou-se num canto da cabana.

- Por que você tinha que fazer isso, Mahslia? Que inferno!

A maga sentou-se ao lado do amigo, puxando a cabeça dele para seu

ombro e fazendo um cafuné.

- Não se preocupe, Corash. Tenho certeza de que daremos um jeito de

tudo sair da melhor forma possível. Tenha fé.

108

Avalas deu um risinho irônico.

- Se uma coisa a vida me ensinou é que os deuses não são misericordiosos.

Faça por onde, Corash. Procure as saídas. A única fé que te sustentará e te

manterá vivo é a fé em si próprio, apenas.

Krummel assentiu.

Corash olhou para os amigos e deu um sorriso triste.

- E então, Avalas, como você veio parar aqui?

Dois dias depois, os quatro companheiros acordaram junto do sol.

Prepararam provisões para vários dias, colocando-as na bolsa que o elfo mestre

de armas do castelo de Orxh dera a Mahslia.

Em seguida, todos colocaram suas armaduras. Encaixaram peitorais,

grevas e braçadeiras, prenderam capas e colocaram chapéus para protegerem-se

do sol.

Por fim, checaram rapidamente suas armas. O gume dos machados de

Krummel estava perfeito, do mesmo jeito que saíra do castelo: o mestre de

armas havia encantado as armas para que mantivessem o fio.

O cajado de Mahslia estava em perfeito estado, repleto de magia. Além

disso, agora que Mahslia estava mais poderosa, devido ao treinamento com a

velha maga que lhes hospedara, o cajado reagia, emitindo uma nesga de luz

leve.

O arco de Corash também estava bom. O jovem elfo notara que ele parecia

deixar fluir a energia com maior facilidade, o que o facilitaria na hora de atirar

flechas mágicas. Além disso, sua corda não parecia ressecada. Decerto, outro

presente do mestre de armas.

A espada de Avalas, porém, era o que mais surpreendia. Desde que o

enorme elfo enfrentara Drudhgar, sua espada sofrera uma enorme modificação

física. O punho da espada parecia escamado, e a guarda da arma tinha forma de

cabeça de dragão. Além disso, ela não mais brilhava ao sol – ao contrário,

parecia absorver a luz. Avalas, treinando no dia anterior, também descobrira

que agora podia lançar bolas de fogo de sua lâmina sem gastar quase nada de

sua energia – outro presente de Drudhgar, decerto.

No geral, os próprios companheiros estavam surpresos por estarem em tão

boas condições.

Os quatro saíram da cabana e viraram-se para o vulto agigantado da

Montanha Selque.

109

- Então é isso? Nós realmente vamos chegar lá? – perguntou Corash,

desacreditado.

- É o que parece. – assentiu Avalas.

Mahslia pôs as mãos nos ombros dos amigos.

- Animem-se, meninos. Logo mais isso tudo vai estar acabado, e

poderemos proteger Sparon.

Krummel sorriu.

- Parece errado terminar uma missão dessas, depois de tantas histórias,

não é?

Os outros três assentiram.

E partiram.

Quando deram cinco passos, porém, foram chamados.

- Mahslia! Corash! Krummel! Avalas!

Era Skrumppel.

Eles voltaram-se para o meio-halfling, que corria na direção deles,

acompanhado de Tuhrster.

- Está tudo bem, Skrumppel? – perguntou Mahslia, olhando para o outro

com um pouco de preocupação.

- Sim, está. É só que... Bom, isso é um tanto quanto estranho de se pedir... –

começou ele, envergonhado.

- Skrumppel quer saber se nós podemos acompanha-los em sua missão. –

disse Tuhrster, diretamente, olhando para os quatro companheiros com

firmeza. Seus olhos negros não denotavam emoção.

Os companheiros se entreolharam.

- Bom, seria fantástico, mas a Montanha Selque é um lugar perigoso. Não

queremos arriscar a vida de vocês assim, dessa forma. Não tenho certeza se é

algo correto. – disse Corash, olhando para os companheiros em busca de

orientação.

- Vocês certamente têm muito conhecimento, isso é claro só de olhar para

vocês. Mas conhecimento não é o tipo de coisa que manterá vocês vivos.

Teremos que cuidar de nós mesmos, em uma batalha. Não queremos que

percam a vida. – disse Krummel, com sensatez.

- E se soubermos lutar? – perguntou Tuhrster, com um olhar maroto.

- Vocês sabem? – questionou Mahslia, sorrindo.

Skrumppel conjurou um cetro, e Tuhrster tirou das costas um enorme

martelo.

110

- Temos nossos truques. – respondeu Skrumppel, sorrindo. – Posso não ser

um luminar das batalhas ou das magias arcanas, mas tenho alguma conexão

com o divino. Posso utilizar magias sagradas para curar e conjurar aliados.

- E eu tenho um martelo. E entendo um pouco de mecanismos. – disse

Tuhrster, mostrando o martelo.

Os quatro companheiros se entreolharam.

- Por mim, parece bom. – disse Krummel, dando de ombros e sorrindo.

- Acho que por mim também. Pode ter sido a fusão com Drudhgar, mas

acho que eles são bons de papo. – respondeu Avalas.

- Eu acho uma excelente ideia. – disse Mahslia, radiante.

- Então está decidido. Vocês vêm conosco. – decidiu Corash, sorrindo para

os dois novos companheiros.

Uma voz cacarejou uma risada. A velha aparecera atrás de Skrumppel e

Tuhrster, com um brilho meio maquiavélico no olhar.

- Que beleza. A trupe está completa, então. Agora vocês só precisam

chegar na Montanha Selque, não é?

Corash assentiu.

- Você pode nos ajudar com isso? Digo, nos mostrar o melhor caminho,

evitar que monstros nos ataquem, coisas do tipo?

A velha cacarejou novamente.

- Farei melhor que isso. A Zeladora sempre pode transportar pessoas para

qualquer lugar das Dunas Congeladas.

Mahslia arregalou os olhos.

- A senhora vai nos deixar aos pés da Montanha Selque?

A velha assentiu com a cabeça e estendeu os braços para cima. Um círculo

mágico começou a brilhar na areia.

- Entrem no portal.

Os seis companheiros obedeceram, postando-se no centro do círculo

mágico.

Subitamente, uma dúvida perpassou a mente de Corash.

- Espere um segundo, senhora. Qual o seu nome?

A velha soltou uma gargalhada louca, que ecoou macabramente pelas

Dunas Congeladas.

- Se quer saber quem eu era antes de ser amaldiçoada, garoto, eu te direi.

Eu era chamada por meus iguais de Amaky Lam.

E riu de novo, uma gargalhada ensandecida.

Corash deu um pulo, estendendo a mão para a mulher, chocado.

111

E sumiu junto de seus companheiros.

- Mãe! – gritou Corash, com a mão estendida. No entanto, o jovem elfo

acabou caindo na grama nascente que dividia as Dunas Congeladas da

Montanha Selque.

- Corash! – chamou Mahslia, correndo para o amigo. Ela ajoelhou-se ao

lado dele, ajudando-o a levantar-se. No entanto a mão de Corash afastou-a

bruscamente. A mão de Krummel pousou no ombro da maga, afastando-a

gentilmente de Corash, que socava o chão com um ódio atípico para ele.

- Que inferno! – gritou ele. – Por que isso está acontecendo? Primeiro eu

descubro que fui criado por parentes distantes porque meu avô é um idiota

crédulo que queria me matar. Depois descubro que meu pai está vivo, mas não

posso viver perto dele. Agora descubro que minha mãe não morreu, como era

esperado, mas tornou-se uma velha louca que é a Zeladora das Dunas

Congeladas. Daí ela toma minha melhor amiga como aprendiz, e, quando

Mahslia não tiver mais nada para aprender, minha mãe vai de fato morrer! Por

quê? – perguntou ele, ainda socando o chão. Sua mão já estava sangrando na

areia.

Avalas agarrou as costas da roupa de Corash, levantando-o.

- Foco, Corash.

Corash virou-se para Avalas, ensandecido.

- Não me diga o que fazer, desgraçado!

Avalas deu com as costas da mão no rosto de Corash, que voou longe.

- Eu disse para ter foco, Corash! Você não é o único aqui que passou por

maus bocados, sabia? Skrumppel e Tuhrster perderam toda a vida deles em um

labirinto, conversando com um dragão. Todas as pessoas que eles conheciam e

amavam morreram, pessoas que eles jamais terão a possibilidade de ver

novamente ou conversar. Eu nunca conheci meus pais, e fui jogado em Sparon

por coisas que nunca fiz, assumindo uma culpa que não era minha porque

acreditei em uma amizade falsa. Krummel foi rejeitado tanto pelos orcs quanto

pelos elfos, e jamais seria aceito com facilidade em um reino humano. Ele não

pertence a lugar algum. Todos nós sofremos muitas dificuldades, mas o único

que está dando chilique aqui é você. Foco, Corash!

Corash levantou-se com a cabeça baixa.

- Você tem razão, Avalas. Me perdoe. É só que... É muita informação em

muito pouco tempo.

112

- Você terá tempo suficiente para processar todas essas informações

quando essa história acabar. Até lá, porte-se. – disse Avalas, olhando com

dureza para o arqueiro.

Corash assentiu com a cabeça.

Krummel olhou para a montanha, agigantada contra o céu.

- Teremos que ir até o cume?

Tuhrster negou com a cabeça.

- Dificilmente. Ninguém em sã consciência faria qualquer coisa no cume de

uma montanha. É um lugar de difícil acesso, aberto aos mandos e desmandos

da natureza e perigoso.

Skrumppel virou curioso a cabeça para Tuhrster.

- Me parecem excelentes razões para se fazer qualquer coisa secreta no

cume de uma montanha.

Os outros quatro concordaram com a cabeça.

Tuhrster negou novamente com a cabeça.

- Há um lugar de acesso ainda mais difícil, fechado e muitas vezes mais

perigoso que o cume de uma montanha.

Os outros se entreolharam. Skrumppel fez cara de confuso. Subitamente,

Mahslia arregalou os olhos, assustada.

- O coração da montanha!

Tuhrster assentiu.

- É verdade! O ritual não foi feito a céu aberto, foi feito em uma sala! –

lembrou-se Corash.

- Então acho que devemos procurar a entrada. – disse Avalas.

Mahslia sorriu marotamente.

- Acho que posso ajudar nisso. Amaky me ensinou uma magia muito útil

para situações como essa.

A maga postou-se na grama e levantou o cajado, colocando-o na frente do

corpo e segurando-o com ambas as mãos verticalmente. Em seguida, começou a

transferir sua energia para o cajado, que começou a emitir uma luz violeta.

Subitamente, essa luz dividiu-se em diversos raios, que dirigiram-se a várias

partes da montanha. Diversas portas apareceram.

- Achamos as portas. Mas são muitas. Quais delas levam ao coração da

montanha? – perguntou Corash, pensativo.

- Provavelmente todas. – respondeu Tuhrster, tomando a dianteira do

grupo. – Não é comum que se criem portas para despistar alguém. É muito

demorado se criar uma porta em uma montanha, mas, depois de criada, é fácil

113

terminar a construção até o destino final. De forma que acredito que o que difira

entre as portas seja principalmente os empecilhos no caminho.

Avalas sorriu.

- Então é só escolher uma porta qualquer e entrar por ela?

- Acredito que possamos pensar um pouco antes de entrar em qualquer

porta, senhor Avalas.

O enorme elfo olhou para Mahslia.

- Há alguma forma de descobrir qual das portas tem um caminho mais

fácil?

Mahslia negou com a cabeça.

- Então não acho que pensar nos ajude, nesse caso. – disse Avalas.

Krummel interveio.

- Avalas, podemos tentar algumas coisas antes. Não deveríamos contar

com nossa sorte. Sabem os deuses que ela não anda bem das pernas.

Avalas assentiu, emburrado.

- O que tem em mente, Krummel? – perguntou Mahslia.

- Corash, será que pode lançar uma flecha em cada porta?

Corash assentiu.

- Algumas portas estão muito altas para minhas flechas alcançarem, mas

farei o possível. – disse ele, sacando seu arco.

Mirando na primeira porta, logo à frente do grupo, Corash atirou uma

flecha. A seta entrou pela escuridão e não fez barulho. No entanto, fez-se ouvir

um rugido de dentro da porta.

- Um dragão. Não acho bom. – disse Krummel, negando com a cabeça.

Corash mudou um pouco de posição, mas abaixou o arco.

- Não tenho ângulo para o tiro.

- Deixa comigo. – disse Mahslia, apontando o cajado para um lugar três

metros à frente de Corash. Um vórtex violeta surgiu, flutuando no ar. Em

seguida, Mahslia apontou para a segunda porta, e um outro vortex, idêntico ao

primeiro, pairou à frente da entrada.

“Tente agora.”, disse ela.

Corash mirou no vórtex e atirou. A flecha foi engolida pela magia e

reapareceu saindo da segunda parte do portal criado, em ângulo perfeito para

entrar na porta.

A flecha fez um barulho úmido e, depois de cinco segundos, fez-se ouvir o

barulho de sucção.

114

- Areia movediça, eu diria. Ou alguma coisa tão ou mais perigosa. Não

gostaria de ter que encarar isso. – disse Skrumppel.

Mahslia reposicionou a saída do portal, e Corash atirou novamente. Dessa

vez, não se ouviu barulho algum por longos segundos.

- Sem barulho é bom, não é? – perguntou ele, esperançoso.

Tuhrster negou com a cabeça.

- Vai saber o que abafou o barulho da flecha. Eu não arriscaria.

Mahslia novamente reposicionou o segundo portal, e Corash atirou de

novo. A flecha entrou na porta e, dois segundos depois, fez um barulho meio

metálico e meio seco, como se estivesse encravada numa parede ou no chão.

Avalas acenou afirmativamente com a cabeça.

- Esse barulho é conhecido. Acho que podemos nos arriscar nessa.

Curiosamente, a porta em que eu estava planejando entrar.

- Claro que era, Avalas. – disse Krummel, abafando um risinho. – Mas eu

concordo. Não acho que fique muito melhor que isso. Vamos por aquela porta

mesmo.

Mahslia, Corash, Skrumppel e Tuhrster acenaram afirmativamente com a

cabeça.

Quando chegaram à entrada, tudo o que viam era escuridão.

- Imagino que isso seja assim, mesmo, não? – perguntou Corash, forçando

as vistas para tentar enxergar mais longe.

Tuhrster acenou afirmativamente com a cabeça.

- Cavernas costumeiramente são escuras, sim. Essa é exagerada, mas

acredito que seja pela própria natureza da Montanha Selque.

Skrumppel, que não podia ver, comentou:

- Pessoalmente, não sinto nenhum tipo de presença maligna vindo de

dentro dessa entrada. Acredito que seja realmente o melhor caminho.

Avalas cutucou a escuridão com a espada, mas não encontrou nada que

barrasse o caminho.

- Bom, se nada nos impede, não vamos nos atrasar, não é mesmo? –

perguntou o enorme elfo, entrando. Os outros o seguiram.

Tudo era breu. A própria frieza que a montanha proporcionava era escura.

- Estão todos aqui? – chamou Mahslia, acendendo uma chama com a mão.

Seu rosto iluminou-se fantasmagoricamente.

Todas as vozes responderam afirmativamente.

115

- Esperem um pouco aí, devíamos ter acendido algumas tochas antes de

termos entrado aqui. – resmungou Mahslia, mantendo o fogo com uma mão.

Com a outra, remexia em sua bolsa. De dentro tirou algumas tochas, que

acendeu com sua magia. Em seguida, distribuiu-as. Uma para Krummel, uma

para Tuhrster, e uma para si.

Agora o lugar onde estavam era ligeiramente mais visível. Pareciam estar

em uma sala ampla, com chão ladrilhado. Nada mais era visível.

Nada.

- Ei, onde está a saída? – perguntou Corash, olhando para todos os lados,

assustado.

Ninguém sabia.

Uma sensação de claustrofobia foi tomando conta do peito de Corash, que

forçou a se acalmar. Não era tão ruim assim. Eles podiam ver, ao menos. Só

estavam numa sala fechada, sem saídas de ar aparente, com tochas flamejantes

consumindo o oxigênio deles.

Certo, era bem pior do que parecia.

- Mahslia, temos que apagar essas tochas.

- Por quê?

- É fogo, Mahslia. Se alimenta do nosso ar. Não sabemos se existe troca de

ar nessa montanha. É perigoso ficarmos com fogo aceso.

Mahslia xingou. Fazia sentido, é claro.

- Mas como iremos ver?

Skrumppel bateu na testa, lembrando-se.

- Eu em teoria sei conjurar magias de luz.

Avalas olhou para o meio-halfling.

- Como assim, “em teoria”?

Skrumppel sorriu tristemente.

- Eu não tenho certeza se faço isso do modo correto, senhor Avalas. Meus

olhos infelizmente não captam a luz.

Avalas corou, de forma visível até na parca luz das tochas.

- Então tente conjurar luz em algo, Skrumppel. – sugeriu Tuhrster.

Mahslia tirou uma tocha apagada de sua bolsa e colocou-a na mão do

meio-halfling. Este murmurou algumas palavras com sonoridade estranha,

fazendo alguns gestos com a mão. Subitamente, a tocha acendeu, com uma luz

branca e poderosa.

- Funcionou! – gritou Mahslia, alegre. Ela apagou a própria tocha e

segurou a que Skrumppel encantara.

116

O meio-halfling sorriu radiante, e rapidamente encantou mais duas tochas.

Agora a sala estava bem melhor iluminada. A magia de Skrumppel era

bastante potente.

Um pouco mais calmos, os amigos iluminaram as paredes até encontrarem

um corredor estreito. Apenas poderia passar uma pessoa por vez.

Tuhrster, então, tomou a dianteira. Podendo utilizar sua enorme marreta

para cima e para baixo, e sendo menor que Krummel e Avalas, teria vantagem

nessa posição.

Logo atrás dele foi Corash, com o arco preparado. Por causa da baixa

estatura do anão, seria fácil lançar as flechas.

Atrás de Corash foi Skrumppel, posicionado para que pudesse curar no

caso de uma eventualidade.

Depois vinha Mahslia, com algumas magias preparadas para ataque e

defesa, de modo que pudessem ser conjuradas sem muita perda de tempo.

Após Mahslia vinha Avalas, sentindo-se apertado e inútil.

Na retaguarda vinha Krummel, sempre olhando para trás. Como precisava

de menos espaço para lutar que Avalas, sua posição ideal era essa.

E, sem certeza do que havia pela frente, os companheiros avançaram.

117

Capitulo Vinte e Quatro

Pelo que pareceram várias horas, os companheiros caminharam pelo

corredor. Nada à frente, nada atrás. Nada em lugar algum.

- Nós estamos saindo do lugar? – perguntou Corash, chateado. Ele gostava

das coisas rápido, e isso não era nada como esperado.

- Imagino que sim. Ao menos, minhas pernas me dizem que sim. –

respondeu Avalas, ainda mais irritado.

Tuhrster estacou, com Corash quase batendo nele.

- Tuhrster! Por que você parou do nada? – perguntou o arqueiro,

assustado.

- Acho que mais à frente tem uma sala.

Os companheiros se entreolharam, na medida do possível.

Corash entregou uma flecha para Skrumppel.

- Skrumppel, por favor, encante essa flecha com luz.

O meio-halfling fez o que lhe fora pedido e retornou a seta a Corash, que a

colocou no arco e atirou à frente.

De fato, após cinco metros, a flecha parou de iluminar o corredor,

espalhando sua luz para um lugar muito mais amplo.

- Sim, é uma sala! – exclamou Tuhrster, apressando o passo. Quando todos

chegaram à sala, porém, notaram uma coisa: o chão estava coberto de

esqueletos.

Os companheiros se entreolharam, aflitos. Isso não era um bom sinal.

- Devemos voltar? – sussurrou Avalas.

- Você está com medo de mortos, Avalas? – perguntou Corash, rindo para

o enorme elfo.

118

- Estou. Você já viu o que um zumbi é capaz de fazer com um ser vivo? –

retrucou o espadachim, irritado.

- Não.

- Agradeça aos seus deuses por isso. Vamos voltar. Deve haver outro

caminho.

Corash riu.

- Não se preocupe, Avalas. Olhe, eles estão mortos. – disse ele, chutando

um crânio que estava aos seus pés.

O crânio rolou pela sala e parou ao lado da flecha iluminada.

- Lembram que eu não sentia nenhuma presença maligna? – perguntou

Skrumppel.

- Sim.

- Estou sentindo agora.

Os ossos do chão da sala começaram a se mexer e se levantar sozinhos.

Mahslia começou a recuar, mas deu com as costas na parede. A saída

estava fechada.

Avalas fez questão de dar um tapa na nuca de Corash antes de sacar sua

espada.

- Veja só o que você fez, seu panaca. Espero que saiba resolver isso.

Krummel colocara a tocha na boca e já sacara seus machados. Seu olhar

denotava preocupação e ferocidade.

Mahslia sacou seu cajado e jogou a tocha para Avalas, que prendeu a fonte

de luz ao cinto. Tuhrster imitou-o, e puxou seu martelo.

Skrumppel fez uma prece rápida, criando uma pequena área de proteção

contra mortos-vivos.

- Aqui estamos seguros. – disse ele. – Mahslia e Corash, fiquem aqui

enquanto dão suporte aos outros. Eu vou tentar uma coisa nova.

- Nova? – perguntou Avalas, desconfiado.

- Sim. Infelizmente, nunca pude completar meu treinamento como

clérigo... mas farei o possível para executar essa magia.

Avalas deu de ombros, e saiu da área protegida junto com Tuhrster e

Krummel para destruir alguns esqueletos. Mahslia atirava magias, espalhando

ossos para todos os lados, e Corash encantava suas flechas para torna-las

explosivas.

E Skrumppel fazia suas rezas.

119

Avalas girava, com sua pesada espada cortando costelas, destruindo

crânios e esfarelando meniscos. Era incrível: depois de sua fusão com

Drudhgar, seu corpo parecia mais forte, leve e flexível.

Por um segundo, Avalas parou para analisar a situação. Os esqueletos

pareciam estar se recompondo, mesmo com os esforços dele, de Krummel, de

Tuhrster, de Mahslia e até daquele idiota do Corash.

Secando o suor de cima dos olhos, Avalas voltou a destruir alguns

esqueletos.

Tuhrster lutava muito bem. Ele não era um soldado treinado, era um

simples minerador. No entanto, as minas eram lugares perigosos. Muitos

monstros subterrâneos e mineradores traiçoeiros espreitavam seus tortuosos

corredores. Assim, todos os mineradores deveriam lutar bem para

sobreviverem.

O anão parecia um pequeno tornado, rodopiando e aproveitando o ímpeto

do martelo para causar o máximo de estrago possível.

Aproveitando a própria velocidade, Tuhrster pulou e começou a dar

cambalhotas no ar, com o martelo estendido por cima da cabeça. Quando uma

das cabeças do martelo atingiu o chão, uma enorme onda de energia se

espalhou, destruindo vários esqueletos, que pouco depois começavam a se

reconstruir.

“Eu acho que odeio o Corash.”, pensou Tuhrster, secando o suor da face e

voltando a rodopiar com seu martelo.

“Corash, por que raios você tinha que ser tão infantil?”, pensou Krummel,

com raiva, enquanto esmigalhava esqueletos.

“Corash, por que raios você tinha que ser tão infantil?”, pensou Corash

Lam, enquanto atirava suas flechas. Uma, duas, três... e sua mão não encontrou

mais flechas.

“Essa não...”.

Mahslia conjurou uma magia explosiva no meio de um conglomerado

particularmente denso de esqueletos. Ela estava exausta. Não era normal ela

usar tanta energia assim.

Curiosa, ela olhou para Corash, que olhava desesperado para a própria

aljava.

120

Não havia flechas.

“Essa não...”.

- Skrumppel, falta muito para essa magia nova sair? – perguntou ela,

ofegante.

O meio-halfling acenou levemente com a cabeça. Um sim.

- Porcaria. Me ajude com as magias, Corash.

Vinte minutos depois, todos estavam novamente reunidos na pequena

área sagrada que Skrumppel conjurara. Tuhrster, Avalas e Krummel estavam

claramente exaustos, suando em bicas. Avalas tinha um feio corte abaixo de um

dos olhos, Krummel fora mordido violentamente em um dos braços, e o elmo

de Tuhrster fora tão golpeado que estava deformado, e Krummel e Avalas

precisaram se unir para tirá-lo da cabeça do anão. Mahslia estava quase

desmaiando de cansaço, e Corash olhava desesperado para Skrumppel.

O meio-halfling balançou a cabeça negativamente.

- Não adianta. Não tenho energia suficiente para manter a barreira e

conjurar a magia simultaneamente.

- Então baixe a barreira! – disse Avalas, irritado.

- Não é tão simples. Se eu fizer isso, estaremos mortos.

- Então passe a barreira para mim. – disse Corash, ansioso. – Eu posso não

ser um grande mago, mas acho que posso segurar essa barreira por algum

tempo.

Skrumppel encarou Corash com seus olhos vazios por um segundo. Em

seguida, tocou o ombro do jovem elfo, que subitamente curvou as costas.

- Essa magia é pesada. – disse Corash por entre os dentes.

- Um pouco. Tente segurar por cinco minutos, Corash.

Corash grunhiu alguma coisa.

E Skrumppel começou a conjurar sua magia.

Dois minutos depois, Corash esmurrava o chão, concentrando-se e suando.

- Quanto tempo se passou?

- Dois minutos. – respondeu Tuhrster, olhando para Corash com

curiosidade. – Por que você está se estrebuchando tanto? Skrumppel conseguiu

segurar essa barreira tão tranquilamente...

Krummel negou com a cabeça.

- A fonte de energia de ambos é diferente. Skrumppel utiliza-se de magia

sagrada. Corash usa magia arcana. Assim, antes de conseguir enviar a energia

121

para a barreira, Corash tem que converter a própria energia, o que consome,

por si só, mais energia. Além disso, toda conversão implica uma perda. A

quantidade de energia que Corash está utilizando é absurda. Estou

sinceramente impressionado que ele tenha conseguido manter por tanto tempo.

Tuhrster assentiu com a cabeça. Krummel era muito sabido.

- Skrumppel, se apresse. – pediu Corash, com uma voz sofrida. Ele estava

sofrendo fisicamente, já.

O meio-halfling sequer respondeu. Já estava em transe.

Agora era aguentar.

O abdômen de Corash doía horrivelmente. Aquela barreira estava

sugando cada gota de energia do seu ser. Sua cabeça já estava latejando, seu

peito parecia apertado e sua garganta ardia.

E Corash socava o chão, com raiva. Ele precisava fazer aquilo. Ele

começara tudo aquilo, era dever dele garantir que todos saíssem ilesos.

Ou o mais ilesos que fosse possível.

Corash começou um mantra para se focar.

“Quando sair daqui, conversarei com minha mãe e morarei com meu pai.

Quando sair daqui, conversarei com minha mãe e morarei com meu pai.

Quando sair daqui, conversarei com minha... mãe... e morarei... com meu pai.”

Skrumppel abriu os olhos, luzidios de poder. Sua voz gentil tinha tons

metálicos, e seu corpo estava envolto numa poderosa aura branca.

- Mais um minuto e estaremos fora daqui.

“Quando sair daqui... conversarei... com minha mãe... e morarei... com

meu pai. Quando... sair... daqui... quando... sair... sair... sair...”

Um som agudo começou a apitar.

- A barreira está se desfazendo! Corash desmaiou! – exclamou Avalas,

sacando sua espada e saindo da área ainda segura para afastar a maioria dos

esqueletos.

Krummel seguiu o enorme elfo, falando enquanto lutava.

- Ele ainda não está completamente desmaiado, senão a barreira já teria

sido destruída.

122

- Vamos afastar esses monstros daqui para Skrumppel terminar sua magia.

– disse Tuhrster, pulando ao lado dos amigos e martelando alguns esqueletos

no processo.

O som agudo aumentou mais, enquanto os três guerreiros eram

empurrados contra a área segura e, infrutiferamente, tentavam lutar.

O som aumentou.

Aumentou.

Aumentou.

E sumiu.

Avalas largou a espada e puxou Krummel e Tuhrster com violência para

dentro da área segura novamente.

Quando olharam, Corash estava caído no chão, desmaiado. Mahslia estava

segurando seu ombro, com os olhos luzindo vermelhos.

Mahslia estava segurando a barreira.

Os companheiros respiraram um pouco aliviados, mas isso tampouco era

uma garantia. Mahslia estava claramente utilizando a reserva de suas reservas

de energia.

Então, os olhos de Skrumppel perderam o brilho branco. Ele estendeu as

mãos para frente e liberou toda a energia que acumulara.

Um brilho cegante tomou conta da sala. Avalas cobriu seus olhos e os

olhos de Mahslia, enquanto os outros protegiam seus próprios olhos.

Quando descobriram os olhos, os amigos viram que os esqueletos tinham

sumido.

Mahslia deixou-se desabar junto com a barreira.

Skrumppel sorriu, com seus olhos cegos brilhando de felicidade.

- Eu consegui.

E desmaiou também, sendo aparado por Tuhrster.

Avalas recolheu sua espada e pegou Mahslia no colo.

- Vamos. Devemos prosseguir.

Krummel assentiu, recolhendo Corash.

Tuhrster pegou Skrumppel nos braços.

E os três guerreiros carregaram seus companheiros para a próxima sala.

123

Capitulo Vinte e Cinco

Quando os três companheiros carregaram Corash, Mahslia e Skrumppel

para dentro da outra sala tiveram uma grata surpresa: a sala era bem

iluminada, e, em seu centro, um arco dourado repousava de pé. O teto possuía

arabescos dourados, e portentosas tapeçarias enfeitavam as paredes.

- Acho que chegamos. – disse Tuhrster, olhando maravilhado para a sala.

Anões eram verdadeiramente apaixonados por ouro.

Avalas pousou Mahslia com delicadeza no chão e dirigiu-se para o arco.

Quando estendeu a mão para a arma, porém, foi jogado longe.

- É uma arma bastante voluntariosa, não? – resmungou ele, levantando-se

do chão e espanando a poeira da roupa.

- Acho que precisaremos do Corash para isso. – disse Krummel, olhando

para Tuhrster e Avalas.

Os dois concordaram.

- Então vamos descansar. Se quiserem dormir, eu assumo o primeiro

turno.

Os outros dois, porém, mantiveram-se acordados. Pegaram a bolsa de

Mahslia, alimentaram-se um pouco, tomaram água.

E, sem avisar, o sono os dominou.

Corash estava numa sala escura. No centro da sala havia apenas um arco

dourado, de pé como que por magia. Nada mais existia, só ele.

124

E o arco.

Curioso, o arqueiro se aproximou da arma. Ela não parecia poderosa o

bastante para proteger Sparon. Decerto ela fora feita com um esmero absurdo,

mas quanto a poder, não parecia tudo isso.

- Curioso, meu jovem? - perguntou uma voz gélida atrás dele. Corash

pulou, sobressaltado, procurando seu arco. Não estava com ele.

O homem que falara era alto e magro, vestindo uma túnica negra com

capuz. Por baixo do capuz brilhavam frios olhos vermelhos. Suas mãos estavam

formalmente postas às costas.

- Lembra-se de mim? - perguntou o homem.

Corash negou com a cabeça, sem poder articular as palavras do modo

correto. Aquele homem exalava poder e perigo. O homem riu.

- É uma pena. No entanto, fico feliz que tenha conseguido chegar até aqui.

Tenho acompanhado sua trajetória, e admito, não foi tarefa fácil. Devo

congratulá-lo.

- Eu não fiz nada demais. - conseguiu balbuciar Corash. - Todos os outros

ajudaram muito mais que eu.

O homem assentiu.

- É verdade. Mas você teve um papel muito mais importante do que

imagina. Sem você, nenhum deles estaria aqui, não é verdade?

- Talvez eles estivessem melhores. - disse Corash.

Os olhos do homem flamejaram, rubros.

- Você estaria incrivelmente triste numa pequena vila de elfos, sendo

criado por primos distantes que jamais deram a menor importância a você.

Jamais teria conhecido seus pais, o que, independentemente das circunstâncias,

foi uma experiência incrivelmente positiva. Mahslia estaria se formando como

maga, mas não teria a maturidade e a força que tem hoje, tanto emocional

quanto marcial. Avalas estaria incrivelmente irascível, preso naquela vila que

ele tanto odeia, culpado por um crime que não cometeu. Como ainda estaria lá,

jamais teria a oportunidade de descobrir mais sobre si e seu passado, porque

não teria confrontado Drudhgar. Como conseqüência, Tuhrster e Skrumppel

ainda estariam presos ao Labirinto, sem poderem sair. E, como vocês jamais

teriam passado pela prisão, Krummel teria sido colocado no time daqueles três

orcs que vocês mataram. E aqueles orcs não seriam páreo para o segundo time

que vocês enfrentaram. Em suma, Krummel estaria morto.

Corash olhou assustado para o homem, sem palavras.

O homem deu um rosnado desdenhoso.

125

- Seja sincero comigo, Corash. Ainda acredita sinceramente que eles

estariam melhores se você não tivesse começado sua missão? Acredita

sinceramente que você estaria melhor?

O elfo abaixou e balançou a cabeça, negando.

O silêncio pairou entre ambos, constrangedor.

- Quem é o senhor? - perguntou Corash, levantando a cabeça para encarar

o homem na túnica.

- Você sabe quem eu sou.

- Se eu soubesse, não estaria te perguntando.

- Você sabe quem eu sou. Apenas não está juntando as coisas.

Corash coçou a cabeça.

- Pai? - arriscou ele.

O sorriso do homem brilhou mesmo por trás do gorro.

- Você sabe que não. Seu pai é mais alto que eu, e tem uma voz totalmente

diferente. Além de que, seu pai jamais usaria uma túnica dessas. Como

arqueiro, você deve saber o porquê.

Corash assentiu, franzindo a testa. De fato, em algum lugar ele já ouvira

aquela voz fria ecoando pelas paredes daquela sala, enquanto vermelhos e

gélidos olhos esquadrinhavam as pessoas com quem ele falava, como que

analisando-as.

E então, ele percebeu.

- Você é Cael Kash.

O homem assentiu.

- Eu sou Cael Kash. Muito bem, Corash. Você se lembrou.

- Tenho perguntas a te fazer. Muitas.

Cael Kash deu de ombros.

- Como quiser.

Corash sentou-se ereto contra a parede, deixando que a luz emanada pelo

arco iluminasse macabramente seu rosto.

- Por que eu?

Cael Kash deu de ombros.

- Porque você é filho de Amaky, e herdou alguns poderes dela. Você era o

único com o qual eu poderia me comunicar decentemente.

- Nada mais?

Cael Kash negou com a cabeça. Corash suspirou.

- Bom, não posso dizer que não imaginava sua resposta. Mas isso é um

tanto quanto decepcionante.

126

O homem em túnicas não falou nada.

- Como eu libero o arco? - perguntou o elfo, ainda um tanto quanto

desapontado.

Cael Kash deu de ombros.

- Não posso dizer. Perdoe-me.

- Existe algo que você possa me dizer?

O homem na túnica pensou sinceramente na pergunta.

- Na verdade, existe sim. Não se deixe levar, menino.

Corash olhou-o, confuso.

- Como assim?

Cael Kash suspirou.

- Olhe para você. Está decepcionado porque achou que tinha sido

escolhido por ser especial, quando o motivo foi bem outro. Percebe o quanto

isso é infantil?

Corash silenciou, e o homem tomou isso como um sinal para seguir.

- Entenda uma coisa, menino, ninguém é especial. Ninguém, em absoluto.

Somos nós que nos fazemos especiais.

- Mas Avalas é encarnação do primeiro rei de Lynzea.

- E isso não o torna especial. Se Avalas não tivesse sofrido o que sofreu,

lutado o quanto lutou, treinado quanto treinou, não estaria tão poderoso quanto

está. Percebe? O fato de ele ser a encarnação do rei de Lynzea não tem nada a

ver com as habilidades dele, ou qualquer coisa do tipo. É o mesmo com você.

Ser neto do rei e filho do Grande Juiz não te faz especial. Ser filho de Amaky e

por isso ter herdado alguns de seus poderes não te faz especial. Te faz

meramente diferente dos outros – e você terá que aprender a lidar com essas

diferenças.

Corash olhou para Cael Kash, envergonhado. Ele nunca, em momento

algum, pensara desse modo. Saíra na missão com a pretensão de ser o salvador

de Sparon e, talvez, até de Lynzea, como um escolhido dos deuses. Nunca

pensara que fora uma escolha que fizera, e que isso decidira seu destino.

- Eu entendo, Cael Kash. Eu realmente entendo. - murmurou o arqueiro,

envergonhado.

O homem assentiu, satisfeito.

- Ótimo. Agora, Corash Lam, mostre-me que você pode ser tão especial

quanto achou que era. - disse ele, levantando as mãos. O cenário começou a

sumir aos poucos, junto com o mago humano. As últimas coisas a sumir foram

suas pupilas vermelhas e flamejantes, penetrando na alma de Corash.

127

E tudo ficou escuro.

Corash acordou sobressaltado. Ele estava na mesma sala com a qual

sonhara e, surpreendentemente, no mesmo lugar onde se sentara para

conversar com Cael Kash. Agora, porém, a sala estava bem iluminada,

revelando as belas tapeçarias e os arabescos dourados que enfeitavam as

paredes. No centro do recinto repousava o arco que viera buscar, esplendoroso.

Como que hipnotizado, Corash levantou-se e andou cambaleante em

direção à arma. Ela brilhava, brilhava demais. Era bonita. Era grandiosa. Uma

arma digna de um deus, com certeza.

Quando chegou próximo o bastante para alcançar o arco, o jovem elfo

estendeu a mão lentamente para a arma, com um temor respeitoso. Sua mão se

aproximou.

Se aproximou.

E roçou a arma.

Como vindo do próprio arco, um rugido ensurdecedor fez-se ouvir,

enquanto um poderoso campo de força se expandia, jogando Corash longe. O

arqueiro bateu na parede doloridamente, caindo torto no chão.

Avalas levantou-se sobressaltado, com a mão já puxando a espada.

Krummel também assustou-se, fazendo seus machados saírem de sua cintura

como que por mágica para suas mãos. Mahslia e Skrumppel acordaram muito

sonolentos, ainda um pouco abalados pela última batalha. Tuhrster ajoelhara-se

com o martelo em riste, pronto para saltar e atacar.

- O que foi isso? - perguntou Krummel, irritado.

- Eu não sei. O arco simplesmente me rejeitou quando eu tentei alcançá-lo.

- respondeu Corash, levantando-se com dificuldade.

Avalas estapeou a testa, deixando a mão escorregar pelo rosto, descrente.

- Corash, você é surpreendentemente burro, às vezes. Você mexeu no arco

quando todos estavam dormindo?

Mahslia balançou a cabeça, incrédula.

- Você não sonhou que a arma tinha sido selada por magia, Corash? É

óbvio que ela não vai ser levada tão facilmente. Tem uma magia sobre ela!

Corash corou.

- Ah, é. Esqueci. - disse ele, com um risinho nervoso. Lá estava ele fazendo

bagunça de novo. Foco, Corash.

Krummel foi mais pragmático.

128

- Bom, já que estamos aqui, vamos botar a cabeça para funcionar. Afinal, o

que temos mais para fazer?

Skrumppel assentiu.

- Não muito mais, isso é certo. Corash, o que precisamos saber?

O arqueiro deu de ombros.

- Bom, a arma foi selada aqui por cinco pessoas. Lembro do nome de um,

era Cael Kash. Eles se dispuseram em um círculo ao redor do arco e esse Cael

Kash recitou uma fórmula mágica, ou algo que parecia muito com uma. E então

eles morreram.

Tuhrster olhou ao redor.

- Eles morreram aqui? - perguntou ele, nervoso.

Corash assentiu.

- Qual o problema?

Tuhrster mostrou a sala com seu martelo.

- Não acha que faltam alguns esqueletos vestidos por aqui?

Corash olhou. Realmente, a sala parecia intocada. Não parecia que alguém

morrera ali: o chão estava limpíssimo, até cheiroso, de certa forma, e o ambiente

da sala era leve. O que será que acontecera?

Avalas deu de ombros.

- Acho bem provável que tenhamos enfrentado esses cinco lá atrás. Afinal,

nada nos garante que essa sala também não tem uma maldição que faça os

esqueletos levantarem.

Skrumppel negou com a cabeça.

- Essa sala é segura. Não há nada de errado, em absoluto. Tem que haver

outra explicação.

Krummel deu de ombros.

- Não acho que isso faça muita diferença, a essa altura. Digo, essa sala é

segura. Nosso foco deve ser a arma. Mahslia, o que sugere?

A maga abaixou a cabeça, deixando os cabelos ruivos cobrirem seu rosto.

- Bom, a lógica da magia nos diz que todo feitiço tem seu contrafeitiço.

Mas a magia que foi usada é uma incógnita para mim. Pela reação do arco, é

uma magia poderosa, mas pode ser um engodo. Não temos como saber com

certeza sem antes vermos.

- Uma só pessoa pode desfazer um selo feito por cinco? - perguntou

Skrumppel, virando o rosto na direção da voz da maga.

- A princípio sim, Skrumppel. O que tem em mente?

129

O meio-halfling sorriu e, pela primeira vez, os amigos viram a sombra da

esperteza marota dos halflings em Skrumppel.

- Eu tento desfazer o selo, enquanto você fica observando a reação da

magia. Se der certo, tanto melhor. Se der errado, você saberá o que fazer.

Mahslia assentiu. Era um bom plano.

- Comece.

Skrumppel concentrou-se com ambas as mãos em seu cetro. Sua aura

começou a brilhar mais e mais forte, polarizada no cajado. Um círculo mágico

apareceu embaixo de seus pés, com inscrições no alfabeto halfling que ninguém

sabia ler fazendo um movimento giratório ao redor de uma estrela de oito

pontos.

Skrumppel murmurava alguns encantamentos e orações, de olhos

fechados. Sua magia nunca estivera tão bela, tão poderosa.

O arco parecera notar isso, também. A corda do arco começou a vibrar

sozinha, enquanto um círculo mágico apareceu sob o pedestal no qual estava a

arma. No entanto, as inscrições estavam escritas no alfabeto élfico antigo, e a

estrela no centro tinha cinco, e não oito pontas.

Um pequeno som ressonante começou a fazer-se ouvir. O cetro de

Skrumppel e a corda do arco vibravam junto, na mesma frequência e crescendo.

Quando a vibração tornou-se insuportável, Skrumppel liberou sua magia.

Um raio de energia de forma similar à de uma chave foi em direção do arco,

rugindo. No entanto, ao chegar perto da arma, ricocheteou contra o meio-

halfling. Por sorte, a magia atacou diretamente o cetro, que rachou ao meio. O

impacto do feitiço assustou Skrumppel, que ficou pálido.

- Vocês viram isso? - perguntou Mahslia, fascinada.

- Na verdade, não. - respondeu Skrumppel, sorrindo fracamente. Os

meninos riram francamente, enquanto Mahslia corou.

- Desculpe, eu não...

- Não se preocupe, Mahslia. O que você viu?

- Você usou uma chave halfling de oito pontos, certo? Mas parece que o

arco foi seguro com uma tranca élfica de cinco pontos.

- Entendi. Você consegue desfazer essa tranca?

Mahslia suspirou.

- Eu não sei. Tudo indica que sim, porque eu treinei um bocado desse

feitiço no ano passado, enquanto estudava para maga do exército. Mas uma

coisa me incomodou um pouco...

130

As orelhas de Skrumppel se remexeram levemente, nervosas.

- O que houve?

- Dois dos pontos da tranca brilharam muito fortemente quando sua chave

atingiu o arco. - respondeu Avalas, de braços cruzados. Para ele também era um

mistério, e Avalas detestava mistérios.

Corash olhou para os companheiros, confuso.

- O que isso significa?

Krummel sorriu.

- Sabe, Corash, mesmo a magia deve seguir algumas leis universais. Uma

dessas leis é a imprevisibilidade dos efeitos. Basicamente, se eu desconhecer o

objeto da minha ação, suas ações serão, ao meu ver, aleatórias, ainda que no

contexto global elas façam todo o sentido. Se a tranca reagiu de uma forma

inesperada, significa que não se trata de uma tranca simples, e sim de uma

tranca com algum tipo de requisito especial que nós não conhecemos.

Corash assentiu, fitando Krummel com admiração. Fazia sentido, é claro.

Ainda assim, parecia que a resposta ao enigma da tranca estava em seus olhos,

mas ele não conseguia ver.

- Eu acho que eu vou tentar desfazer com um feitiço de chave simples. -

resolveu Mahslia. - Se não funcionar, ao menos confirmaremos as suspeitas de

Krummel.

Os companheiros assentiram. Mahslia posicionou-se de frente para o arco,

colocando seu cajado na frente do tronco e concentrando sua magia nele. Um

círculo com inscrições élficas rotativas e um pentagrama surgiu sob seus pés.

Como ocorrera com Skrumppel, um círculo com inscrições élficas rotativas

e um pentagrama surgiu sob o arco. A corda da arma começou a vibrar,

primeiro lenta, depois freneticamente.

Mahslia lançou sua magia sobre o arco. Uma chave, menor que a de

Skrumppel, atingiu o arco e por ele foi absorvida. O pentagrama sob a arma

desapareceu por um segundo.

Dois.

E surgiu novamente, brilhando ainda mais forte, lançando a chave contra

Mahslia novamente.

- Não! - urrou Avalas, colocando-se na frente da maga. O feitiço pegou em

cheio no seu peito, arrastando-o alguns centímetros para trás e deixando uma

feia queimadura em sua roupa.

131

Mahslia olhou para Avalas, chocada. Decerto, quando o enorme

espadachim entrara no precário time composto por ela e Corash, ele não teria

feito isso.

- Obrigada, Avalas. - murmurou ela, corando um pouco.

O enorme espadachim corou visivelmente. Seu corpo se movera antes de

seu cérebro poder pensar racionalmente.

- Não foi nada. Só não queria que você ficasse machucada. Se perdêssemos

nossa maga, estaríamos em grandes dificuldades. - respondeu ele, dando de

ombros.

Corash e Krummel se entreolharam, sorrindo um para o outro. Avalas

estava escondendo alguma coisa. Será que Mahslia quebrara o gelo do coração

do enorme elfo?

Tuhrster trouxe todos de volta à realidade, eficientemente.

- Vamos, vamos, não temos tempo para devaneios. O que achou desse

selo, Mahslia?

A elfa considerou a pergunta.

- Veja bem, Tuhrster, o feitiço que lancei com certeza estava certo. Tanto

estava que vocês viram que o selo do arco sumiu por alguns segundos. No

entanto, ele voltou. O que me faz pensar que não estamos cumprindo alguma

condição.

Krummel olhou para o teto, pensativo. Skrumppel começou a mexer os

dedos nervosamente, enquanto Avalas abaixou a cabeça, concentrado.

Corash olhou para os amigos, considerando. Eles nem pareciam um grupo,

na verdade. Pareciam um monte de gente que se juntou por acaso em uma

determinada aventura, um grupo tão eclético quanto o que selara a arma que

repousava no centro da sala.

Então, uma luz se acendeu na mente de Corash.

- Mahslia? - chamou o arqueiro, com os olhos vidrados.

A maga olhou para o amigo.

- É possível que quantidade e raça dos que venham a buscar a arma sejam

condições específicas?

Mahslia considerou a pergunta.

- Bom, acredito que sim. Seria uma magia com um nível de complexidade

absurdo, mas acho que não é algo tão impossível assim, uma vez que já

notamos que esse selamento não foi um selamento ordinário, não é?

Corash assentiu, olhando para os companheiros com novos olhos. Mahslia

olhou para o amigo com um pouco de suspeita no olhar.

132

- O que está tramando, Co? - perguntou ela, intrigada.

Corash sorriu.

- E se tentarmos desfazer o selo da mesma forma como ele foi feito: cinco

membros, cada um de uma raça, juntando seus poderes para isso?

Mahslia sorriu. Claro, era tão óbvio! Todos os princípios da dissolução de

magia apontavam para isso. A voz de velha de Amaky surgiu cacarejando em

sua cabeça: “Se você não consegue desfazer determinado feitiço, criança,

reproduza as condições sob as quais ele foi feito, e garanto que você achará a

resposta”. Como ela pudera se esquecer disso?

Krummel e Skrumppel também estavam animados. O meio-orc esfregava

as mãos, contente, enquanto o meio-halfling sorria para quem quisesse ver.

O único que parecia mais emburrado ainda era Avalas.

- Só temos um problema nisso tudo. - disse o enorme espadachim, do seu

canto da sala.

- E qual é, seu pessimista? - perguntou Tuhrster, um pouco chateado. A

negatividade de Avalas era contagiante, num sentido muito ruim.

O enorme elfo levantou a cabeça e olhou para os companheiros.

- Nós não temos membros das cinco raças que selaram essa arma.

Corash balançou a cabeça, discordando.

- Você, Mahslia e eu somos elfos. Skrumppel pode representar os halflings,

tendo sangue de um, enquanto Tuhrster é um puro anão. Krummel é meio-orc,

meio-humano, de forma que ele pode contar como dois.

O meio-orc balançou a cabeça, negando.

- Odeio dizer isso, mas Avalas está certo. É um princípio básico da magia

que cada participante atua como um elemento no feitiço. - disse Krummel, em

voz baixa.

Corash olhou confuso para Mahslia, que traduziu.

- Vamos supor que queiramos executar um feitiço que exija a presença de

cinco magos. Não importa que eu, sozinha, tenha energia suficiente para

substituir os cinco magos por mim mesma: ainda contarei apenas como uma

das magas entre os cinco necessários. Isso significa, então, que o Krummel não

poderá representar os orcs e os humanos simultaneamente. Ele terá que

escolher um. - explicou Mahslia, chateada.

Avalas bufou.

- É impressionante como todas as vezes que resolvemos um problema,

conseguimos criar outro. - disse o enorme elfo, jogando-se emburrado no chão

da sala.

133

Uma hora se passou. Todos os amigos estavam sentados, extremamente

irritados, tentando pensar numa solução. Corash olhava para a parede

desacorçoado. Por que eles não pensaram naquilo antes?

Um som leve chamou a atenção do arqueiro. Pareciam... passos? Seria

possível? Com cuidado, sem fazer barulho, o elfo postou-se de joelhos e armou

uma flecha na direção da porta, atraindo o olhar dos companheiros.

- Corash, que m... - começou Avalas, antes de ouvir um ríspido “Shhh!” de

Corash.

Os passos ficaram mais fortes, até pararem na porta. Quem, ou o que, quer

que estivesse do outro lado parecia estar mexendo na maçaneta.

A porta se abriu.

A flecha voou.

Um jovem de cabelos dourados, alto e forte, apareceu na porta. Quando

viu a flecha, agarrou-a pela haste antes que perfurasse sua barriga. Seus reflexos

eram extraordinários.

- Ei, cuidado com isso. Pode machucar alguém, sabia? - disse ele. Sua voz

era grave e tinha tonalidades escuras, e passava a sensação de calma e

confiança.

O jovem era bonito. Seus olhos eram sarcásticos, de um profundo azul, e

um sorriso irônico enfeitava seus lábios. Não tinha o porte de Avalas ou

Krummel, mas, de alguma forma, sua presença suplantava até mesmo a dos

dois enormes companheiros.

- Quem são vocês? - perguntou ele, sorrindo amigavelmente.

- Quem pergunta somos nós, não é mesmo? - questionou Avalas, puxando

sua espada. Apesar da bravata, ele estava receoso. Era óbvio que aquele jovem

era muito poderoso.

O jovem assentiu, concordando.

- Claro, vocês estão em maior número, e já estavam aqui antes de mim.

Acho justo que eu me apresente. O meu nome é Michelangelo Sechz, ao seu

dispor.

Michelangelo, afinal, fora uma resposta às preces dos companheiros. Ele

era um humano (apesar de insistir em ser chamado de zear), era poderoso e,

acima de tudo, tinha muito boa vontade.

Como fora parar ali, na verdade, era uma história bem simples. Da mesma

forma que Cael Kash enviara Corash por meio de sonhos, também contatara

134

Michelangelo. O jovem humano atravessou o portal que unia as dimensões dos

humanos e dos elfos e, com um objetivo claro ditado por seu sonho, começou

sua jornada. O único empecilho, segundo ele, fora nas Dunas Congeladas.

- Vejam bem, uma velha senhora que se chamava de Zeladora me levou

até ela. Aparentemente, ela controla aquele deserto. Eu falei que queria vir até

aqui, e ela disse que não ia me permitir chegar, porque eu ia atrapalhar os

planos de outros. Naturalmente eu não fazia ideia de quem eram os outros, mas

notei que ela estava um pouco confusa. A mim parecia uma maldição.

- E o que você fez? - perguntou Corash, ansioso. Ele acabara de reencontrar

a mãe, não aceitaria que um humano a tivesse matado.

Michelangelo olhou de um jeito estranho para Corash.

- Oras, fiz o que seria razoável: desfiz a maldição. Ela ficou bem sã depois

que fiz isso. Parecia que ela estava sob algum tipo de transe divino. Como se

linhas de marionete se ligassem à mente dela. Algumas vezes ela conseguia se

mover por iniciativa própria, mas muitas vezes algum tipo de divindade a

controlava, confundia. Eu basicamente cortei essas linhas.

Corash assentiu, emocionado.

Michelangelo contou o resto da história. Chegando à montanha, descobrira

uma entrada e aventurara-se por ela. Para chegar à sala, enfrentara uma

minhoca do deserto (“era um bicho esquisito, com uma boca sem mandíbulas,

sem olhos, atacando cegamente... um pouco espalhafatosa demais para uma

predadora decente”), um troll (“bom, ele era um pouco mais inteligente que a

minhoca. E tinha articulações. Que ele gostava muito de estalar.”) e um dragão

(“admito que não era muito poderoso, mas foi bem chato de botar para

dormir”).

- Você matou um dragão? - perguntou Avalas, cheio de dúvidas.

Michelangelo sorriu.

- Não. Gosto demais de dragões para sair matando-os a torto e a direito.

Não, eu realmente apenas o botei para dormir com um feitiço de sono.

E lá estava ele. Pronto para cumprir sua missão e voltar para sua terra. Os

amigos contaram ao jovem humano seu plano e ele assentiu, satisfeito.

- Me parece muito bom. Vamos fazer!

Dispuseram-se em círculo. Corash, Michelangelo, Tuhrster, Krummel e

Skrumppel deram-se as mãos, fechando Mahslia num círculo. A maga

recomeçou a conjurar seu feitiço de quebra de selo. As cinco pontas da estrela

sob seus pés alcançavam os cinco membros das cinco raças.

Vindo do nada, um vento forte começou a soprar.

135

Novamente, a corda do arco vibrava na mesma frequência do cajado de

Mahslia.

Era uma sensação estranha, pensou Corash. Ele não mais sabia exatamente

onde terminavam suas mãos e onde começavam Michelangelo e Skrumppel.

Tudo o que havia era a magia, sugando sua energia com voracidade.

“Acho que você nunca participou de uma quebra de selo, não é, Corash?”

perguntou a voz de Michelangelo Sechz em sua mente.

“Não...”

“Relaxe, você vai gostar. É um pouco... hã... chato, digamos assim, se você

quiser manter sua privacidade intacta. Mas, não sendo isso, é uma experiência

bastante divertida.”

Corash franziu o cenho. O que a privacidade tinha a ver com isso?

Então, ele entendeu.

A energia dos outros penetrou no corpo do arqueiro, trazendo milhares de

informações sobre todos, mais informações do que Corash podia processar de

uma só vez A imagem de Mahslia conjurando sua magia foi substituída por

uma enorme orc berrando (seria a mãe de Krummel?), uma igreja repleta de

halflings rezando (o monastério de Skrumppel!), uma fila de anões dirigindo-se

a um túnel numa montanha, carregando ferramentas de aspecto estranho (os

amigos de Tuhrster na mineração...) e, por fim, diversos humanos, de alturas e

larguras diversas, com cabelos e feições muito distintas, rindo e se divertindo

(as pessoas importantes para Michelangelo...). Memórias, cheiros, visões,

lembranças de ontens e amanhãs passando como um filme desconexo na mente

de Corash.

E, subitamente, as coisas passaram. Mahslia recolhera toda a energia.

- Abram o círculo. - ordenou ela, com a voz ressoando poder.

Os cinco abriram espaço, não querendo ser atingidos. Mahslia apontou o

cajado para o arco e lançou sua magia. Desta vez, uma chave multicolorida

atacou o selo, que sumiu debaixo do arco.

Por um segundo.

Dois.

E três.

Estava feito.

Corash pegou o arco e, para sua surpresa, este pesava muito mais do que

devia.

136

- Isso é abusivo. - disse ele, emburrado, usando ambas as mãos para

sustentar o arco decentemente.

Michelangelo aproximou-se por trás, olhando as lâminas do arco com

curiosidade.

- Isso é magia, Corash. Um selamento dentro da arma. Vê essas runas

entalhadas na lâmina? Pois então, num arco comum elas estariam douradas,

mas estão vermelhas. Se me permite...

O jovem Sechz afanou uma flecha da aljava de Corash e usou-a para cortar

a própria mão. Em seguida, passou um pouco do seu sangue nas runas e

estalou os dedos.

Cinco orbes de energia dourada saíram do arco, penetrando nas armas dos

companheiros de Corash. Imediatamente, todas adquiriram uma leve

tonalidade dourada e algumas runas inscritas. Mesmo o cetro de Skrumppel

fora devidamente consertado.

Agora o arco estava leve.

- Como você sabia? - perguntou Corash, não completamente desprovido

de ciúmes.

Michelangelo sorriu.

- Cael Kash era um zear, assim como eu. É meio que minha obrigação

reconhecer selamentos da minha raça.

Corash assentiu. Fazia todo o sentido.

Os amigos se entreolharam. Avalas estava com o rosto sereno. Mahslia

sorria, e Skrumppel parecia brilhar de felicidade. Tuhrster não falava nada, mas

era visível o prazer em seus olhos, e Krummel parecia satisfeito.

- Vamos voltar. - disse Corash.

Todos concordaram.

137

Epilogo

Os seis companheiros e Michelangelo Sechz saíram da sala onde as armas

estavam seladas e, para surpresa geral, já saíram ao pé da montanha.

- Inteligente... - comentou Krummel, curioso. - Depois de chegarmos ao

centro, não faz sentido nos fazer andar tanto. Então, para a saída, já nos botam

fora da montanha. Gosto disso.

Michelangelo sorriu.

- Se eu quisesse proteger algo, faria questão de dificultar até na saída a

vida dos outros. Mas acho que essas armas só poderiam ser libertadas por

pessoas determinadas, de bom coração. Se isso for verdade, de fato não faz

sentido dificultar a vida de ninguém.

Corash olhou para os companheiros com calor no coração. Era bom ter

terminado a missão.

Quando chegaram à orla do deserto, porém, Michelangelo deixou-se ficar

para trás.

- Devo voltar à minha dimensão, agora. Mas confesso que foi um enorme

prazer conhecê-los. Não esperava que seria recebido com tanto calor. -

comentou Michelangelo.

Corash sorriu, olhando para Avalas, Skrumppel, Tuhrster e Krummel.

- Digamos que o mais idiota dos membros, que poderia ter te tratado mal,

aprendeu muito nesta vida com alguns companheiros.

Michelangelo sorriu de volta.

- Obrigado, a todos vocês. Foi uma experiência inesquecível para mim,

acreditem.

O jovem estendeu a mão para o lado e criou um portal, mas, antes de

entrar, virou-se para os companheiros.

138

- Um último aviso, se me permitem. Não se demorem muito tempo nesse

deserto. Ele suga a energia de quem se mantém nele. É possível que vocês não

tenham notado, porque são jovens e produzem muita energia. Mas pode ser

perigoso. - disse ele, remexendo num bolso – Se precisarem, usem isso. -

Michelangelo atirou um saquinho com sementes para eles. - É um saco de

sementes especiais da minha dimensão. Elas foram criadas com o fim específico

de restaurar a energia de alguém. Não usem isso em excesso, porque poderão

morrer de overdose de energia. Mas pode ajudar, numa emergência.

Mahslia sorriu, profundamente agradecida.

- Obrigada, Michelangelo. Fique bem.

- Vocês também. - sorriu o jovem Sechz de volta, com muito charme, e

entrou no portal.

Os companheiros olharam por alguns segundos para o lugar onde o

improvável ajudante deles havia sumido.

- Vamos indo. - chamou Avalas, com a voz um pouco mais gutural do que

de costume.

Só um pouco.

Quando pisaram na areia das Dunas Congeladas, um portal abriu-se e os

companheiros entraram nele. Quando se deram conta, viram Amaky

esperando-os, com lágrimas nos olhos.

- Meu filho. - disse ela.

Corash correu para abraçá-la, sem conseguir conter as lágrimas também.

Ele tentou dizer, naquele abraço, tudo o que as palavras não podiam expressar.

O quando sentira falta dela, mesmo sem conhecê-la; o quanto ele queria que

tudo tivesse sido diferente; o quanto ele estava feliz por tê-la conhecido; o

quanto ele queria continuar ao lado dela.

O quanto as coisas iriam mudar, a partir de então.

Mahslia enxugou uma lágrima.

- Você está chorando? - perguntou Avalas, curioso.

- É claro que estou, seu panaca. Corash merece essa felicidade. - disse

Mahslia, olhando brava para o companheiro.

“Como ele consegue ser tão insensível?!”, pensou ela. Então, notou o canto da

boca do amigo tremendo levemente.

E sorriu.

139

- Eu estou feia, meu filho. Me desculpe. - soluçou Amaky, entristecida.

Corash balançou a cabeça.

- Não seja boba, mãe. A senhora está linda. Minha mãe jamais será feia aos

meus olhos, e não admitirei que seja aos olhos de ninguém, porque ninguém em

sã consciência pensaria algo do tipo.

A velha jovem mulher sorriu fracamente, abraçando o filho mais uma vez.

- Obrigada, meu filho.

Krummel aproximou-se lentamente.

- Desculpem-me... sei que não é o momento ideal, mas senhorita Amaky,

não pude deixar de ouvir o que a senhora disse.

A velha olhou para Krummel.

- Você pode me ajudar, Krummel?

O meio-orc sorriu, com o belo sorriso iluminando a bruta face.

- Acredito que sim. Veja a senhora, há uma teoria de que o envelhecimento

é causado pelo gasto de energia não recuperada. Se conseguirmos recuperar

toda a energia que gastamos, em teoria, conseguimos também recuperar a

juventude. Como sua juventude foi brutalmente sugada por meios não-

naturais, é razoável supor que, ao repor a energia rapidamente, a senhora

consiga recuperar a juventude externa, não?

Amaky assentiu, ainda agarrada ao filho.

- Você tem como fazer isso?

O meio-orc puxou um saquinho do cinto, com algumas sementes dentro.

- Talvez eu tenha. Aqui, coma duas. - disse ele, catando as sementes e

estendendo para a velha.

Amaky mastigou as sementes e as engoliu. Subitamente, arquejou de dor,

e todo seu corpo começou a brilhar. O vento soprou violentamente. Quando

tudo acabou, a mulher com quem Corash sonhara estava à sua frente. Cachos

castanhos muito bem cuidadas, rosto lindo, roupas garbosas... sua mãe, tal qual

seus sonhos lhe haviam mostrado.

Amaky sorriu. Ela se sentia ela novamente.

- Obrigada, Krummel. E olá, meu filho.

Ao fim de tudo, os companheiros decidiram voltar para Orxh. Eles

queriam falar com Lian Fiar sobre o sucesso de sua missão, e queriam a ajuda

dele para planejar o próximo passo.

140

- Mas antes, vocês irão descansar. - disse Amaky, severamente. - Mahslia

precisa treinar, bem como todos vocês, e não conseguirão fazer nada sem

estarem bem alimentados.

Os companheiros concordaram. Afinal, a comida era dada gratuitamente

pelo deserto, bem como as roupas. E a cabana era confortável o suficiente para

todos. Descansar seria bom.

Corash olhou para o teto, deitado numa confortável cama. Ele mal

acreditava como, em pouco menos de um mês, sua vida havia mudado.

Conhecera seu pai, sua mãe, excelentes amigos. Ganhara poder, e amadurecera

tremendamente. Se sentia como uma pessoa totalmente diferente do garoto que,

cerca de um mês antes, saíra da pequena vila de Sparon com um sonho

delirante.

Corash sorriu, pensando em como fora inocente. E, confortável na casa de

sua mãe, dormiu, pela primeira vez em algum tempo com a certeza de que o

amanhã seria um dia infinitamente melhor do que o hoje fora.