archer quest 1
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Todos os mundos têm uma história, e todas as histórias merecem ser contadas,
vistas e vividas. Dedico, então, esse livro aos milhares de mundos que existem. Aos que
ainda estão invisíveis, e esperam as palavras de um autor para que venham a nós. Aos
que já estão entre nós, e nos encantam e maravilham. E aos que ainda virão a existir.
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Agradecimentos
A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para meu
crescimento moral, intelectual e espiritual;
A meus pais, verdadeiros guerreiros, por me darem meus maiores
tesouros;
A Flaubert, por ler antes de todos e me dar suas valiosas opiniões, que
tanto contribuíram e ajudaram na evolução do livro;
E ao leitor, pelo voto de confiança;
Muito obrigado.
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Sumário
Agradecimentos ............................................................................................................... 3
Sumário ........................................................................................................................... 4
Prologo ............................................................................................................................ 5
Capitulo Um .................................................................................................................... 8
Capitulo Dois ................................................................................................................ 10
Capitulo Três ............................................................................................................... 12
Capitulo Quatro ........................................................................................................... 14
Capitulo Cinco ............................................................................................................... 16
Capitulo Seis ................................................................................................................. 20
Capitulo Sete ................................................................................................................ 23
Capitulo Oito ................................................................................................................ 27
Capitulo Nove ............................................................................................................... 30
Capitulo Dez ................................................................................................................. 42
Capitulo Onze ............................................................................................................... 44
Capitulo Doze ............................................................................................................... 47
Capitulo Treze ............................................................................................................. 51
Capitulo Catorze ......................................................................................................... 55
Capitulo Quinze ............................................................................................................ 59
Capitulo Dezesseis ........................................................................................................ 65
Capitulo Dezessete ....................................................................................................... 69
Capitulo Dezoito .......................................................................................................... 78
Capitulo Dezenove ........................................................................................................ 86
Capitulo Vinte .............................................................................................................. 91
Capitulo Vinte e Um ..................................................................................................... 96
Capitulo Vinte e Dois ................................................................................................. 103
Capitulo Vinte e Tres ................................................................................................ 107
Capitulo Vinte e Quatro ............................................................................................ 117
Epilogo ......................................................................................................................... 137
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Prologo
O homem olhou para frente fixamente, com o capuz de seu negro manto
encobrindo completamente seu rosto. Seus olhos, com grandes írises vermelhas,
brilhavam maliciosos e frios. A escuridão predominava no recinto, com apenas
uma fonte de luz dissipando-a. O homem começou a caminhar na direção da
luz, lenta e firmemente.
- Como está o ritual? – perguntou ele, com sua voz fria ecoando alta pela
sala.
- Pronto, meu amigo. Apenas precisamos de você para fechar o círculo -
respondeu um vulto alto e magro à sua direita.
- Então, completemos a cerimônia – decidiu ele, dando as mãos para o
segundo homem que falara e para um ser baixo e atarracado à sua esquerda. O
homem fechou seus olhos vermelhos e concentrou-se. Quando falou
novamente, sua voz estava diferente. Mais grave e poderosa. – Aqui selamos
esta poderosa arma para que apenas a pessoa mais digna de possuí-la consiga
retira-la de seu túmulo. Nós, representantes de todas as raças, nos reunimos
para realizar a Jura de Vida que selará o objeto.
- Eu sou Ja-Fis, dos anões – disse o vulto atarracado à esquerda do homem.
- Sou Aelry, dos orcs – gritou um vulto grande e fedorento, a esquerda do
anão.
- Meu nome é Kethel, dos halflings. – sussurrou um vulto baixo a esquerda
do orc.
- Rial Ruil, dos elfos – disse o vulto alto e magro à direita do homem que
falara primeiro.
- Cael Kash, dos humanos – falou o homem. Ao som de seu nome, uma luz
dourada nasceu no centro do círculo e se expandiu, englobando toda a sala. A
inconsciência de quase todos foi imediata.
- Então, a última arma foi selada – sussurrou Cael Kash, caindo de bruços
no chão e morrendo.
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Capitulo Um
Corash acordou sobressaltado. Ele tivera um sonho muito estranho.
Algumas pessoas meio macabras estavam fazendo um ritual estranho. E havia
uma arma envolvida...
Talvez uma apresentação seja útil a essa altura. Corash Lam era um típico
elfo, alto e esguio. Sua pele era pálida, e seu cabelo castanho curto era
arrepiado.
Vindo de uma tradicional família de mercadores, Corash foi o primeiro
Lam a treinar para se tornar um guerreiro da vila. Mesmo enfrentando muito
preconceito por parte de seus pais e irmãos, ele conseguiu, por mérito próprio,
entrar no Esquadrão de Arquearia do exército. Mas ele ainda era apenas um
aprendiz, o que significava que ele não poderia combater junto aos formados,
sob pena de morte. Só que a vila precisava, agora mais que nunca, de guerreiros
qualificados, pois uma guerra contra orcs ameaçava todo o Reino de Lynzea, e a
vila de Sparon era o primeiro obstáculo do exército seguinte. E o exército de
Sparon necessitava urgentemente de combatentes para a guerra. Caso contrario,
todo o reino de Lynzea poderia ser esmagado.
Enquanto pensava nisso, Corash ouviu uma batida na porta.
- Entre! – disse ele – Ah!, olá, Mahslia. Como vai?
- Oi, Corash. Eu estou bem, e você? – disse a elfa, inclinando-se para beijar
Corash no rosto. Mahslia era uma bonita elfa, com cabelos ruivos presos em um
rabo de cavalo comprido. Ela parecia ser delicada e meiga. Coisa que,
realmente, ela era. O que não significava que ela era fraca. Pois Mahslia era uma
das melhores aprendizes de maga de toda a vila.
- Eu estou bem, Ma, mas eu tive um sonho realmente estranho.
- Como foi? – perguntou a amiga, solícita. Os sonhos de Corash eram
realmente incríveis. Eram quase que um oráculo para ela.
- Ah, um círculo de pessoas estava selando uma arma dourada. Mas não
pode ser de verdade, não é?
- Pode sim, Co, pode sim. Mas não se preocupe com eles. Preocupe-se em
treinar para se formar rapidamente.
Corash não respondeu. Ele queria, mas não tinha respostas para a amiga.
Afinal, alguma vozinha insistente no fundo de sua cabeça dizia
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incessantemente que a arma seria vital para a sobrevivência da vila, e que a
mesma arma vital estava na Montanha Selque, gigante e impenetrável.
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Capitulo Dois
Era meio-dia quando o sino da vila tocou, chamando todos os cidadãos
para uma reunião.
- Como todos devem saber, nossa vila está em mortal perigo. – O autor
desta frase foi o líder da vila, Nisual – E estou convocando a todos, pois creio
que ninguém deve ficar calado. Alguém tem algum plano?
- Líder, eu bolei um, que acho que deverá servir. Por que não plantamos
armadilhas pelo campo de batalha? Poderemos, assim, dizimar parte do
exército inimigo sem que eles ao menos possam revidar. – disse um elfo de voz
fria e estatura grande.
- Excelente, mesmo. Todos os melhores alquimistas e magos, já podem
começar. Mais alguém?
- Líder – disse Corash – eu tive um sonho hoje, sobre uma arma
muitíssimo poderosa. Talvez algum de nós possa sair numa missão para
recuperá-la?
- Corash, todos sabemos que seus sonhos são proféticos, – riu Nisual – mas
você quer mesmo que nós acreditemos que uma arma, apenas uma, poderá
salvar nossa vila? Pelo amor dos deuses!
Corash silenciou, e ele sentiu o olhar de Mahslia em sua nuca. Mas havia
mais alguém o olhando com interesse. Ele só não sabia quem.
Corash estava terminando de desenhar algo em um pergaminho, quando
Mahslia entrou em seu quarto.
- Corash! Eu te disse para esquecer esta arma!
- Desculpe-me, Mahslia, mas esta arma vai nos ajudar, eu tenho certeza. E
eu vou em busca dela, querendo você ou não!
- Onde você está pretendendo ir, posso saber?
- À Montanha Selque, e você não vai junto comigo – acrescentou ele,
captando o olhar da amiga.
- Ah, eu vou sim. E, mesmo eu não acreditando nessa missão, você precisa
de mim. Afinal, quem irá te proteger?
- Engraçadinha. Você não vai, não. Você está muito perto de se formar, eu
não posso deixá-la ir e perder a formatura.
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- Formatura? Isso só serve para participar do exército! Eu vou com você,
“querendo você ou não”. Assunto encerrado.
- Que seja, Mahslia, mas qualquer coisa que acontecer com você é de
inteira responsabilidade sua. Entendido?
- Tudo bem, Co. Quando nós partimos?
- Assim que você arrumar a sua mochila com cordas, comida, cantis com
água e um pouco de dinheiro. E não esqueça seu cajado!
- Muito bem, eu não me esquecerei. Dê-me meia hora e nós nos
encontramos no portal sul da cidade. Pode ser?
- Feito. Agora, apresse-se, pois eu quero começar esta jornada o quanto
antes.
Mal sabiam os dois amigos que havia uma terceira pessoa escutando sua
conversa pela janela.
Corash olhava para a sombra do relógio de sol da cidade, impaciente.
Mahslia estava atrasada.
- Co! Cheguei! – disse uma Mahslia ofegante.
- Aleluia, garota! Você demorou duas horas a mais que o previsto!
- Desculpe. Eu tive que me livrar dos meus pais. E você, como chegou aqui
no horário? – disse a garota, na defensiva.
- Você conhece meus pais. Eles me acham um fracassado, não ligam se eu
ficar fora até tarde. – respondeu o garoto, irritado.
- Co, desculpe! Eu... – começou a garota
- Deixa pra lá, ok? Vamos logo começar, quanto antes nós começarmos,
antes acabaremos.
- E onde vocês pensam que estão indo? – perguntou uma voz fria
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Capitulo Três
Corash se virou violentamente, e viu o elfo grande e frio que sugerira o
primeiro plano de batalha.
- O que você quer? – perguntou ele ao outro elfo, rudemente.
- Eu? Eu quero acompanhá-los. Eu não agüento mais essa vidinha pacata
do vilarejo.
- Nós nem sabemos quem é você! Como quer que confiemos em você? –
perguntou Mahslia.
- Meu nome é Avalas, ao seu dispor. E não, vocês não podem confiar em
mim. E a maior prova disso é que, se vocês não me deixarem acompanhá-los, eu
poderia “deixar escapar” para o Nisual que vocês saíram da vila sem a
permissão dele. E acho que ele não vai ficar muito feliz. Em compensação, se
vocês me deixarem ir com vocês, o Nisual irá achar que vocês foram até a
capital do reino buscar uma caravana de guerreiros, graças a um bilhetinho que
eu plantei para despistá-lo. Vocês decidem.
Corash pensou seriamente nisso. Talvez ter outra cabeça no time fosse
bom, mas eles não conheciam o tal Avalas. Corash já o havia visto com várias
garotas diferentes, mas era apenas isso que ele conhecia.
- Qual é a sua arma? – perguntou o aprendiz de arqueiro, desconfiado.
- Eu uso espadas. Mas sou apenas um aprendiz.
- E como você quer acompanhar-nos sem conhecer a fundo os segredos da
sua arma? – blefou Mahslia. Para a surpresa da elfa, o estranho sorriu.
- Do mesmo jeito que vocês, aprendizes, eu também tenho o direito de não
conhecer minha arma tão bem quanto os mestres. Ou não?
Mahslia enrubesceu e se calou. Corash ainda avaliava Avalas abertamente.
- Venha conosco então, Avalas. Mas você está desarmado. Como pretende
se defender de monstros? Apenas com os punhos?
- Quem disse que eu estou desarmado? – perguntou o gigante, virando-se
de costas. Ali, presa pelo cinto do elfo, havia uma bainha, que continha uma
espada grande, escondida por suas enormes costas. – Eu nunca ando
desarmado... qual é mesmo seu nome?
- Corash.
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- Eu nunca ando desarmado, Corash. – repetiu ele, virando-se para os
companheiros. – Ao contrário de vocês, eu sou precavido – disse ele, mostrando
uma mochila que até agora passara despercebida pelos amigos.
- Ótimo. Estamos prontos, então. Vamos. – decidiu Corash. Ele virou-se
para o portão e saiu da vila, com seus companheiros às suas costas.
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Capitulo Quatro
Avalas não era um companheiro alegre, nem mesmo sorridente ou
animador. Parecia apenas um gigante emudecido, perdido em seus
pensamentos. Enquanto Mahslia e Corash aproveitavam a liberdade recém
conquistada com piadas, palavras e sorrisos, Avalas apenas olhava os novos
companheiros.
A história de vida do grande elfo parecia um livro. Nascera, para logo ser
abandonado por sua mãe. Seu pai, um elfo beberrão e despreocupado, entregou
o bebê para um orfanato assim que soube. Não queria a criança.
Com mais idade, Avalas percebera que não era igual as crianças do
orfanato. Ele era maior e mais forte. Até seu físico robusto destoava do físico
normal dos elfos. Por causa disso, aos treze anos ele se candidatou a aprendiz
do Exército de Lynzea. Quando o recrutador do exército viu sua altura
impressionante e seus ombros largos, aceitou-o imediatamente no esquadrão
dos espadachins. O recrutador nunca se arrependeu de sua escolha.
Com quinze anos, Avalas entrou no grupo dos formandos espadachins,
três anos mais cedo que o normal para quem começava com treze anos.
Conhecia centenas de técnicas, era o mais alto e mais forte entre os elfos e tinha
uma grande inteligência, fruto de muitas noites perdidas em nome do estudo.
Seus treinadores estavam orgulhosos: Avalas era o garoto modelo da academia!
O que eles não esperavam era que o grande elfo, um gigante
aparentemente manso, fosse capaz de se rebelar. Ele estava cansado da sujeira
política que era essa história do Exército de Lynzea. Seus esforços solitários, em
busca de técnicas de guerra e conhecimentos estratégicos de nada valiam?
Foram os professores que ensinaram isso? Não!
Assim, na calada da noite, enquanto seus instrutores e mentores dormiam,
ele pegou sua espada e, silencioso como um sussurro, matou todos os altos
generais, limpou o sangue da espada e voltou a dormir, com a consciência mais
leve.
O único porém é alguém havia visto ele levantar. Este alguém avisou um
professor, que avisou o novo general. Este, por sua vez, avisou o rei de Lynzea
que resolveu expulsar Avalas da capital do reino e mandá-lo para Sparon, sob o
pretexto de “colocá-lo em posição estratégica, em um lugar que o clima seja
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bom para seu temperamento e que ele possa esvaziar sua ira sem matar
pessoas.”. Essa, claro, era a versão oficial da história.
A vida calma na pequena vila de Sparon irritava Avalas. Ele nascera para a
grandiosidade, e não para uma pequena vila de aldeões simplórios. Assim que
a primeira oportunidade de sair do marasmo que era Sparon e ir a alguma
aventura apareceu, o grande elfo agarrou-a com unhas e dentes. Seria perfeito,
não fosse Corash e Mahslia. Que haviam parado e estavam discutindo alguma
coisa.
- ...temos que ir para a direita, Mahslia! – exclamava Corash. – Só assim
chegaremos rapidamente à Montanha Selque!
- Não, Co! Temos que dar a volta, indo pela esquerda! Se formos pela
direita, inevitavelmente passaremos pelas Dunas Congeladas! Certo, Avalas? –
retrucou Mahslia, surpreendendo o grande elfo com sua pergunta.
- Acho que sim. É melhor evitarmos as Dunas Congeladas, pois não
viemos preparados para encará-las. Além disso, elas são imensas, o que
significa que poderemos nos perder nelas facilmente. Melhor não arriscarmos e
irmos pela esquerda. – ponderou Avalas, sensatamente.
- Ótimo. Demoraremos mais um dia para chegar na montanha Selque. Um
dia em que Sparon pode ser destruída – respondeu Corash, amargamente.
- Não seja tolo, Corash. Nenhuma vila é destruída em um único dia, ainda
mais uma vila com tantos guerreiros como Sparon. Um dia não fará diferença. –
sentenciou Avalas.
Corash resmungou alguma coisa ininteligível e calou-se, seguindo os
companheiros pelo caminho da esquerda.
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Capitulo Cinco
Corash e seus companheiros já estavam caminhando há cinco horas. Os
sorrisos e brincadeiras entre ele e Mahslia haviam cessado, e só o que havia
entre os três era um silêncio cansado. Apesar disso, eles prosseguiam.
- Que som é esse? - perguntou Avalas, quebrando o silêncio e apurando os
ouvidos.
Realmente, um som abafado e ritmado chegava às orelhas pontudas dos
companheiros.
- Parece... – começou Corash
- Cavalos!!! Para a mata, rápido! – gritou Avalas, descontrolado,
empurrando os companheiros para dentro da mata fechada e pulando atrás
deles.
- Você ficou louco?! – berrou Corash, assustado. – Por que você...- tentou
continuar ele, antes que a manzorra de Avalas tapasse sua boca.
- Fale baixo, idiota! Esse som é de cavalo. Apenas o rei e sua comitiva real
possuem cavalos.
- E por que não podemos falar com o rei sobre nossa missão?! – perguntou
Mahslia – Tenho certeza que ele nos apoiará. Talvez ele até nos mande reforços!
- Apenas nos seus sonhos delirantes, Mahslia – respondeu Corash,
desvencilhando-se de Avalas. – É mais provável que o rei nos capture e nos
torture até falarmos tudo o que sabemos.
- Além disso, o rei não gosta muito de mim. – ajuntou Avalas,
concordando com Corash.
- E alguém gosta, Avalas? – perguntou uma voz cruel e cortante,
colocando uma espada no pescoço do grande elfo. Corash e Mahslia,
subitamente, foram dominados por dois elfos surgidos do meio da mata. –
Vocês vêm comigo. Com o que vocês sabem, minha vida está garantida.
Os três companheiros foram vendados e amarrados antes de começarem a
andar. Suas armas e mochilas foram entregues para o rei, que, ao invés de
torturá-los, colocou-os presos a cavalos, que por sua vez estavam amarrados a
outros cavalos. Onde a comitiva fosse, eles iriam atrás.
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- Ora, Avalas, há quanto tempo!!! Você aparenta ter dobrado de tamanho!
– disse o rei, pomposo
- E você parece ter dobrado seu vocabulário almofadinhas ridículo. –
cuspiu Avalas, com desprezo.
- Avalas, seja razoável! Nós não podemos esquecer os erros do passado e
nos concentrarmos no futuro? Sabe, uma guerra eclodirá logo, e eu não gostaria
de correr o risco de morrer sabendo que alguém não perdoou os meus erros. –
disse o rei, eloquentemente, sendo aplaudido pela comitiva.
- Se a sua preocupação se estendesse a qualquer pessoa do reino que não
pode te dar qualquer vantagem, ela seria tocante. Acontece que eu não sou
burro para acreditar que você se preocupe com qualquer um que não você. –
retrucou o grande elfo, astuto.
- Avalas, você está passando dos limites! – sibilou Mahslia.
- Silêncio, sua tola. Não meta seu nariz onde não foi convidada. –
repreendeu o rei, encarando o grande elfo abertamente. – Sabe, Avalas, você
merece a morte. Mas...
- Mas você sabe que você não conseguiria me matar se eu estivesse com
minha espada e não estivesse preso! – gritou o espadachim, corando de raiva.
- Não, meu pequeno súdito. – disse o rei, com um traço de irritação na voz
– Mas vocês três darão excelentes gladiadores. A Arena precisa de pessoas
como vocês.
Uma espada, um cajado, um arco e uma aljava com flechas foi tudo que
deram aos companheiros. Todas as armas eram toscas e vagabundas. Estava
claro que o rei não queria ver os três amigos vivos. Eles estavam em uma cela
minúscula de pedra, com uma porta de ferro maciço que só tinha uma
portinhola para a comida.
- E agora? – perguntou Mahslia, desesperada. Ela nunca estivera presa
antes.
- Não adianta tentarmos fugir – respondeu Avalas, calmo. – Essas grades
são, provavelmente, reforçadas com alquimia, e não magia. Reparem que eles
deram um cajado para Mahslia, sem medo de suas magias. E também nos
deram armas, o que significa que brutalidade não adiantará aqui.
Os argumentos de Avalas eram coerentes, então não foram contestados.
Os três ficaram em silêncio, até que um guarda os chamou.
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- Venham cá, cães sarnentos! – gritou o guarda, prendendo os pulsos dos
amigos e tirando-os da cela. – Andem por este corredor até o final! Vocês estão
sendo convocados para lutar! E não tentem nada! Eu tenho uma lança, e até hoje
eu nunca errei um alvo!
Os companheiros se entreolharam. Se estivessem com as mãos livres, eles
certamente poderiam dominar o guarda, mas... Era melhor não arriscar a vida
algemados.
- E agora, Avalas? – sussurrou Corash, por entre os dentes.
- Lutamos por nossas vidas, o que você esperava? Não temos outra opção:
ou lutamos ou morremos. E eu prefiro lutar. – retrucou o grande elfo.
Eles continuaram por um grande túnel escuro e saíram para a arena.
O chão redondo da arena era de terra batida. Uma grande multidão
urrava, olhando para os novos gladiadores com sede de sangue. Do ponto mais
privilegiado dos assentos, um camarote dourado era ostentado. O rei e seus
compinchas. As pedras que foram usadas na construção da arena eram negras e
lisas. Impossíveis de escalar.
Do outro lado de onde os companheiros estavam, um portão de ferro
fechado escondia o inimigo deles.
Enquanto esperavam o inimigo, Avalas começou a passar a mão nas
pedras e pisar mais forte que de costume.
- O que... – começou Mahslia.
- Testando terreno. Calculando probabilidades e possibilidades. Tentando
sobreviver. – respondeu Avalas, sem olhar para a companheira.
- Senhoras e senhores! Bem-vindos à Arena Querua! E hoje a luta será de
intensas emoções! – gritava o mestre de cerimônias, com a voz magicamente
ampliada.
“As regras são simples! Seis gladiadores lutarão entre si! Podem fazer
parcerias ou lutar por si próprios, com duas condições: três gladiadores lutarão
algemados, enquanto os outros três não!” disse o homem, para delírio do
público.
- Adivinhem só quem lutará algemado? – perguntou Avalas, por entre os
dentes. Sua voz pingava ódio.
- A segunda condição é que apenas três gladiadores serão classificados! Os
outros três morrerão! – continuou o Mestre de Cerimônias. – Agora, o rei vai
falar algumas palavras.
Altivo e imponente, o rei caminhou para a frente de seu pomposo
camarote, onde todos pudessem vê-lo. Posição de poder.
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- Gladiadores! – gritou ele. – Lutem como se suas vidas dependessem
disso!
O público riu e aplaudiu seu engraçado governante, que voltou para seu
assento, satisfeito.
“Que abram os portões!”, berrou o Mestre de Cerimônias.
Como mágica, os pesados portões se abriram e, de dentro de um corredor
mal-iluminado, saíram três figuras grandes, de pele negra como piche,
implacáveis, musculosas e feias, com machados enormes nas mãos e armaduras
completas de batalha.
Orcs sedentos de sangue. Isso nunca era uma visão bonita.
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Capitulo Seis
Avalas pegou sua espada presa às costas e falou para os companheiros
estenderem a mão. Quando obedeceram, o grande elfo quebrou as algemas
como se fossem feitas de manteiga.
- Quebre as minhas! Eu não luto com duas mãos! – pediu Avalas a Corash,
que também golpeou as algemas uma, duas, três vezes até quebrar, enquanto
Mahslia desferia esferas mágicas contra os orcs, mantendo-os afastados.
Avalas recuperou sua grande espada e a segurou na mão direita. O mais
impressionante, ele era o único elfo capaz de fazer isso. Os outros precisavam
das duas mãos.
- Corash, ataque o feio do meio. Mahslia, você cuida do feio da direita. O
da esquerda é meu! – disse ele, correndo para seu inimigo enquanto flechas e
esferas de magia passavam ao seu lado.
- Você acha mesmo que é páreo para mim, elfo desgraçado? Por esse
atrevimento, você vai morrer! – gritou o orc, levantando e abaixando o
machado na direção da cabeça de Avalas, que, por sua vez, aparou o golpe com
a espada e socou o inimigo no peito. Foi quase tão efetivo quanto tentar apagar
fogo com marshmallows, mas serviu para assustar o orc. Avalas era um
oponente a ser respeitado e temido, justamente porque ele era louco de socar
um orc quando tinha uma espada em mãos.
O orc do meio sabia que Corash não iria durar muito. Era impossível ele
ganhar: suas flechas eram limitadas. Quando acabassem suas flechas, acabaria
sua vida. A não ser que os amigos o ajudassem... As flechas estavam vindo
rápidas e em grande quantidade. Várias atingiam em pontos não vitais, ou
seja... era só esperar que ele veria sangue em seu machado.
Mahslia, apesar de frágil, era destemida. Não temia chegar perto do
inimigo para usar uma magia. Um erro, talvez, mas o inimigo não sabia o que
fazer, vendo uma maga assim tão perto dele. E isso o machucava. Seriamente.
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- Pare com isso, elfa maldita! - berrou o orc, irritado, quando um
relâmpago queimou seu braço.
- Venha me parar, então! - respondeu a elfa, provocando o inimigo a meros
dois metros de distância.
O orc saltou na direção dela numa velocidade que ela julgava impossível e
preparou o machado para bater na cabeça dela. A morte dela era certa.
Corash viu que a amiga estava em perigo. Ele não podia deixar que ela
morresse. Então, ele fez a única coisa que poderia. Atirou na cabeça do orc que
atacava Mahslia. E acertou.
Pena que o orc com quem ele estava lutando também viu a dúvida dele. E
partiu para cima do arqueiro.
Avalas estava com dificuldade de achar uma brecha na defesa do inimigo,
pois ele atacava rápido demais. O grande elfo nada podia fazer, a não ser se
defender e observar os companheiros.
O orc de Corash avançava sem freios, o machado pronto para cortar
qualquer parte élfica que cruzasse com ele. Avalas não podia deixar isso
acontecer. Ele aparou um outro golpe de machado com sua espada e empurrou
o inimigo, que caiu com o traseiro no chão, bufando, e correu para salvar
Corash.
- Morra, elfo! – berrou o orc, brandindo o machado contra o tronco
desprotegido de Corash.
- Não! – berrou Avalas, parando o golpe com sua espada e fazendo uma
acrobacia para passar por cima do machado do inimigo e girando, fazendo com
que a lâmina fizesse um arco luminoso que decepou a cabeça do adversário.
Dois já estavam mortos. Faltava um, que tentava estupidamente escalar as
pedras para fugir.
- Obrigado, Avalas. Você me salvou. Não é típico de você fazer isso.
-Não se acostume, também. Eu apenas não quero ser forçado a deixar um
orc vivo. – disse Avalas, para a surpresa de Corash. Como ele era frio!
- Ei, vocês dois... Temos um orc a solta. Deveríamos derrotá-lo, não?
- Verdade. Posso fazer as honras? – perguntou Corash, pegando sua última
flecha e preparando-a no arco.
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- Ele é seu – disseram os outros dois, se afastando. Corash mirou, mas
antes de consegui atirar, o orc se virou e saiu correndo em sua direção.
Imparável. Apenas cem metros de corrida. Avalas e Mahslia não conseguiriam
ajudá-lo agora, de tão rápido que estava o orc.
O fundo da garganta de Corash começou a coçar, como se algo quisesse
sair de lá. Ele abriu a boca e disse, enquanto soltava a flecha do arco:
- Eldr Or! – aquela com certeza não era sua voz. Era muito mais grave,
rouca e retumbante. Algo ancestral, antigo. Algo que fez com que a flecha
pegasse fogo.
A flecha flamejante viajou até chegar ao orc, que sentiu seu crânio se
esmigalhando e seu corpo queimando. A magia do elfo era forte. O suficiente
para pará-lo.
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Capitulo Sete
O rei levantou-se furioso. Como aqueles moleques não haviam morrido?!
Era inaceitável. Ele precisava fazer alguma coisa.
- Esse golpe não foi válido! – gritou o monarca, sorrindo consigo mesmo.
Sua palavra, em grande parte do tempo, era lei.
- Como assim? – berrou Avalas, alterado. Uma veia pulsava em sua testa. –
Como não valeu? Corash nunca infringiu uma única regra dessa arena
estúpida!
- Esse golpe foi, claramente, mágico. E Corash se disse arqueiro, não mago.
A não ser que a senhorita Mahslia o tenha ajudado, mas ela não moveu um
músculo sequer. Então, o golpe foi inválido. E eu condeno vocês a...
- Nada. Quem condena sou eu, e não Vossa Majestade – disse uma voz de
trovão. Um elfo alto e magro ergueu-se do seu trono no camarote do rei. – Por
favor, não se esqueça de quem é o Grande Juiz aqui.
O rei hesitou, mas cedeu a palavra ao outro elfo, com a cabeça baixa. Ele
parecia...
- ... derrotado. Humilhado. Não é o que parece? – perguntou Mahslia,
surpresa com a súbita mudança de postura do monarca.
- Sim. Lian Fiar sempre foi imponente. De fato, por sua imponência e
sabedoria, conquistou merecidamente o posto de Grande Juiz. – respondeu
Avalas.
- Lian Fiar? Que nome estranho. Como você o conhece? – questionou
Corash.
- Deixe de ser ignorante, Corash. “Lian” significa “Mestre”. – retrucou
Avalas, impaciente. - Eu fiz a Escola Militar antes de ser enviado para Sparon.
Ele era o professor de Arquearia e de Estratégias. As aulas dele eram excelentes.
- Calem a boca! – sussurrou Mahslia, mortificada – Lian Fiar quer falar!
Ambos Corash e Avalas coraram e silenciaram.
- Muito bem. Agora que temos silêncio, podemos começar o julgamento. –
sentenciou o elfo, magnânimo.
24
A esta altura, talvez seja apropriada uma breve descrição da política de
Lynzea.
Existiam cinco Poderes do governo, cada qual com vantagens e prejuízos
em relação aos outros, mas com igual influência.
O primeiro deles era a Aliança Real, formada pelos nobres e membros da
Família Real, ou simplesmente Família. A Aliança Real cuidava das questões
administrativas de Lynzea. Tinha muito poder, aparentemente, mas, na
verdade, era o governo mais fraco do continente, apesar de ser, de longe, o mais
luxuoso. Como exemplo de sua luxuosidade, só o rei e sua comitiva podiam
andar a cavalo no reino quando não fosse treinamento militar ou guerra.
O segundo Poder governamental era chamada de “O Tribunal”, ou
simplesmente “Tribunal”. Responsável por fazer cumprir as leis de Lynzea, O
Tribunal era composto por vários juízes, espalhados pelo território de Lynzea.
Em sua máxima instância, o Tribunal era composto por dez Juízes, que não
poderiam conversar com os outros para não serem influenciados em seu
julgamento. A sentença de cada Juiz tinha de ser explicada, ou o julgamento
seria refeito, até que a justiça fosse feita. Em caso de empate, o Grande Juiz
decidiria o que seria feito. O poder d’O Tribunal era, provavelmente, o maior.
Os outros poderes, invariavelmente, acabavam se curvando perante O Tribunal.
O terceiro Poder era conhecido como LPMC, Laboratório de Pesquisas
Mágicas e Cientificas, responsável pela promoção de novas tecnologias bélicas
(espadas mais resistentes, arcos que alcançassem mais longe, etc.) e
desenvolvimento de magias, tanto de cura quanto de luta. O chefe do LPMC,
conhecido apenas como Sarbrar, era um homem magro e pequeno, apesar de
ser inteligentíssimo e ter uma aura que dava medo. O LPMC era tratado como
um órgão a parte, livre para fazer o que quisesse, desde que fosse legalizado.
O quarto Poder se chamava Ministério da População. Oficialmente, claro.
Para o povo, o Ministério da População se chamava Bem-Estar. Na verdade,
esse deveria ser o objetivo final do Ministério. Zelar pelo interesse da
população, propondo novas leis, projetos sociais, construindo escolas e
hospitais... O Ministro, invariavelmente, era um elfo amado pelo povo.
O quinto e último Poder era o militar. O Eixo da Guerra era um dos
Poderes mais importantes, por ser o poder que defendia o reino de Lynzea nos
tempos de guerra. O Eixo da Guerra possuía um dos mais poderosos exércitos
da época, graças ao Comandante-Geral Malrua, também conhecido como
Estrela da Guerra, que era um gênio estratégico.
25
Todos os meses os chefes de governo se reuniam oficialmente para discutir
a política do reino e assistir algumas lutas na Arena. Nunca havia acontecido do
Grande Juiz em pessoa assumir um julgamento. O rei estava abismado com o
que havia acontecido.
- Qual o nome do arqueiro? – perguntou Lian Fiar
- Corash, senhor. Corash Lam. – respondeu Corash. Ele falaria antes do
rei?
- Muito bem, Corash. Conte-nos o que aconteceu.
- Bom... Meus companheiros e eu estávamos viajando. Para dar passagem
ao rei, que ouvimos à distância, nos embrenhamos na mata, onde não o
incomodaríamos. Porém, quando estávamos conversando, fomos capturados
por batedores do rei. Fomos trazidos para cá e... – hesitou Corash, pensando no
que acontecera. De fato, agora parecia surreal.
- Prossiga. E não se preocupe, o que for justo será feito. – encorajou Lian
Fiar, acenando positivamente com a cabeça.
- Bom, nós lutamos, como todos viram. E a flecha flamejante
simplesmente...
- Saiu. Veio do fundo de sua garganta, como algo ancestral despertado em
você. – completou o Juiz, acenando compreensivamente com a cabeça.
- Exato! Como o senhor...
- Não importa como sei, o que importa é que sei. – respondeu,
magnânimo, Lian Fiar. – Terminou, Corash?
- Sim... – respondeu o arqueiro, hesitante
- Então, é a vez de nosso queridíssimo monarca falar. – replicou Lian Fiar,
com certa ironia na voz. Era claro que existia uma rixa entre o rei e Lian Fiar.
Algo na relação deles não tinha ocorrido nada bem.
- Perfeito. – respondeu o rei, levantando-se. – Caro senhor Juiz, este
moleque disse a nós que era um arqueiro.
- Ele falou por vontade própria? - perguntou o Juiz, com sagacidade.
- É... Não. Nós os capturamos como reféns, após um de nossos batedores
ouvir coisas deles. Nós não fizemos interrogatórios, apenas perguntamos suas
classes e os amarramos. Eles foram trazidos como gladiadores.
- Certo, e qual o seu argumento? – tornou Lian Fiar, com tédio.
- Como ele se disse arqueiro, não pode usar magias! – respondeu o rei,
sorrindo maliciosamente.
- Entendo... Você lembra do que ele disse, especificamente? – questionou o
Juiz, com um brilho nos olhos. Um brilho que deveria ter alertado o monarca.
26
- Sim. Ao perguntarmos: “Você, garoto que usa um arco, é um arqueiro?”,
ele respondeu: “Sim, sou da vila de Sparon, arqueiro em treino”. Para começar,
como arqueiro em treino, nem poderia estar viajando sozinho.
- Discordo. Para começar, meu caríssimo monarca, os garotos nem
deveriam ter sido trazidos para a Arena. Apenas os guerreiros formados e
maiores de idade podem lutar aqui. Então, o senhor é tão ou mais culpado que
ele. Corash Lam omitiu informações, mas o senhor infringiu as leis. – disse Lian
Fiar, ferozmente. – Portanto, caro monarca, eu digo que Corash Lam é inocente,
em relação à sua acusação.
Avalas, Mahslia e Corash respiraram, aliviados. Livres, finalmente?
- Porém... – hesitou o Juiz, como que lutando contra si mesmo – Corash
Lam e seus colegas atuaram, respectivamente, como mentiroso e cúmplices. A
mentira é passível de punição, quando sua magnitude é grande. Uma morte é
grande coisa. E, segundo as leis de Lynzea, um participante só pode ser retirado
de um torneio que começou a participar de um modo: sendo impossibilitado de
lutar. Assim, condeno Corash Lam e seus amigos, Avalas e Mahslia, à prisão e à
luta na Arena.
27
Capitulo Oito
Eles estavam de volta à cela. Avalas havia achado uma pedra meio
quadrada, perfeita para amolar sua espada, e as flechas de Corash haviam sido
repostas.
- Estou inconformada com o Juiz! – disse Mahslia, subitamente.
- Não adianta preocupar sua cabeça com isso, Mahslia. Ele apenas seguiu a
lei. E, verdade seja dita, foi o mais justo possível, dentro dos limites legais de
Lynzea. – disse Avalas, friamente, enquanto afiava sua enorme lâmina.
- Então, se ele queria ser tão justo assim, por que não nos libertou? –
perguntou Corash.
- Ele é um juiz, Corash. A obrigação dele é fazer cumprir a lei, não fazer a
justiça. Não se esqueça que essas leis são muito mais velhas que ele.
- Oras, não tem desculpas! Ele é um...
- Cuidado com suas próximas palavras, seu verme! Ele está aqui para ver
vocês. Portanto, comportem-se decentemente! – disse o guarda, enquanto abria
a porta da cela. Lian Fiar entrou no minúsculo cubo de pedra e concreto e
ordenou que todos os seus guardas pessoais e os guardas da prisão fossem
embora.
- Mas, mestre... Não é adequado... – começou o guarda
- Por favor. É um pedido pessoal meu a todos vocês. – pediu Lian Fiar,
charmoso.
- Já estou indo, senhor. Tenha uma boa conversa com os prisioneiros. –
disse o guarda, saindo humildemente da cela e guiando todos os outros
guardas para longe. O Juiz tirou uma flecha de uma aljava em seu cinto e
atirou-a, com o arco que sacou das costas, na porta.
- Pronto. Agora podemos conversar com privacidade. Encantei essa porta,
de modo que os guardas só possam ouvir gritos. É bom vê-los com saúde. Meu
nome é Fiar. Suponho que vocês não sabiam, não é? – disse ele, dirigindo-se a
Corash e Mahslia.
- O que o senhor veio fazer aqui? – perguntou Corash, seco.
- Eu? Vim explicar algumas coisas. Tentar ajudá-los.
28
- Podia ter nos ajudado julgando corretamente. Poderíamos estar em nosso
caminho, sem fazer mal a ninguém, nesse exato momento. Agora, por sua
culpa, estamos aqui, esperando para morrer. – respondeu Corash, enraivecido.
- Bem que eu queria. No entanto, eu fiz isso para salvá-los. Se eu libertasse
vocês naquela hora, o rei iria ficar furioso e mandaria os guardas matá-los.
Desse modo, eu satisfiz os desejos do rei e consegui preservar suas vidas. Como
ele é um rei, qualquer processo judicial ou julgamento será negado. Mesmo as
minhas sentenças não serviriam de nada. Tive que fazer isso, pelo bem de
vocês.
- Certo. E como, exatamente, você pretende nos ajudar? – perguntou
Avalas, frio.
- Explicando como vão ser as coisas na Arena, para vocês conseguirem
sobreviver.
“Eram trinta e dois participantes, trinta e dois presos, em chaves
individuais. Como vocês três foram capturados juntos, também lutaram juntos.
Cada um daqueles orcs tinha um de vocês como objetivo. Por sorte, vocês
escaparam ilesos. Agora há dezesseis participantes – os sobreviventes das
batalhas. Esses dezesseis serão divididos em quatro grupos de quatro. Como
vocês, novamente, foram capturados juntos, ficarão juntos também. Um dos
outros participantes ingressará em seu grupo. Por sorte, tenho um companheiro
perfeito para vocês. Quando apenas sobrar um grupo, os participantes deverão
digladiar entre si, depois de dois dias de descanso. O último de pé será
considerado vencedor. Simples, mas brutal. Meu plano é que vocês cheguem na
final. Depois disso, vocês descansarão por um dia. No segundo dia de descanso
vocês fugirão. Infiltrarei um fiel servo aqui nas masmorras, para que ele lhes dê
suas armas. Não se preocupem com o mapa das masmorras, esse seu
companheiro já o tem, pois já conversei com ele.”
- Certo. É só isso? – perguntou Corash. Ele ainda não havia perdoado Lian
Fiar.
- Quanto ao plano de fuga, sim. Agora, vocês precisam saber de uma coisa.
Os três, sem exceção, lutam muito bem. Seriam excelentes soldados. No
entanto, vocês não estão se entendendo bem dentro do campo de batalha. Essa
última luta vocês ganharam por pura sorte.
“Para começar, vocês resolveram ir um contra um. Sem problemas se
fossem três espadachins, ou três bárbaros. Mas só um de vocês é espadachim.
Corash e Mahslia, vocês não têm condições de enfrentar bárbaros e espadachins
sozinhos, pois não conseguem lutar muito bem de perto. Assim, o papel de
29
vocês em uma batalha é de apoio, não de ataque direto. Mahslia, você é uma
excelente maga, diria que é uma formanda. Ajude Avalas alterando o campo de
batalha, elevando-o quando ele corre perigo, colocando paredes de pedras entre
os ataques... Você é boa o suficiente para isso. Corash, você é um ótimo
arqueiro, use suas habilidades para ferir quem ousar chegar perto de Avalas ou
Mahslia, ou até mesmo de você! Isso serve também para seu novo companheiro.
Lembrem-se disso, e com certeza vocês sobreviverão.”
- Lian Fiar, por que você quer nos ajudar? – perguntou Corash,
subitamente.
Os olhos do Juiz se desfocaram por um momento, e ele começou a contar.
30
Capitulo Nove
Parte Um
Quinze anos antes do desenrolar dessa história, Lian Fiar era conhecido
apenas como Fiar Lam. Ele havia recém-casado com a linda princesa de Lynzea,
Amaky, e recentemente fora promovido a um dos dez Juízes. Ele fora bem
aceito na Família Real, principalmente pelo sogro, que o recebera literalmente
de braços abertos, sorrindo de orelha a orelha. Apesar de sua vida parecer uma
maravilha, não estava tudo tão bem assim. Como Juiz, ele estava tendo muito
trabalho – Lynzea passava por uma crise de fome e pobreza, e os surtos de
roubo e assassinatos aumentaram absurdamente. Em todos os casos em que
havia apelação, e eram muitos, Fiar tinha que trabalhar. Por diversas vezes ele
ficara até tarde no trabalho, para depois se reunir com o Conselho de Lynzea
tentando achar um jeito de resolver a situação do reino. Mal tinha tempo para
dar atenção à sua esposa. E foi numa noite de reunião que tudo começou.
- Desculpem-me o atraso, senhores, eu estava até agora a pouco em
julgamento. Era o caso de um caçador que, para comer, assassinou um padeiro
e sua mulher. Terrível... – começou Fiar, para logo depois notar o semblante
sombrio de seus companheiros. – O que houve?
- Sente-se, Fiar. – disse o Grande Juiz da época, Lafreth, um velho senhor
de barbas brancas. Fiar obedeceu, e o seu superior começou a falar:
“Fiar, mandamos um arauto consultar o oráculo de Felkash, o Lago
Sagrado, e ele voltou com uma notícia terrível. Segundo o oráculo, os deuses
estão furiosos com Lynzea. Nós os temos ignorado por muito tempo, e essa é a
vingança deles. É o que eles dizem, ao menos.”
- Como assim, ignorado? Seguimos nossa religião fervorosamente, nunca
deixamos os feriados passar em branco... O que falta a eles? – perguntou Fiar,
revoltado. O silêncio pairou por um longo tempo antes de Lafreth responder.
- Sangue, Fiar. Sangue é o que eles querem.
- Como assim? Eles mesmos disseram que abdicavam dos sacrifícios de
sangue, que era algo brutal demais!
31
- Sim, Fiar, nós sabemos. Mas não podemos fazer nada. São deuses, afinal.
Possuem tradições de séculos. E eles, pelo jeito, gostam do gosto de sangue. E
essa é a pauta da reunião de hoje. Eles não querem sangue de camponês.
Segundo eles, o sangue dos que estão num alto escalão é mais saboroso.
- Então eu vou! Eu aceito ser o sacrifício!
- De modo algum, Fiar. Não podemos desperdiçar sua vida desse modo –
negou Sarbrar, líder do LPMC – Você ainda é jovem, é um excelente guerreiro e
é casado com a princesa de Lynzea. Um de seus deveres é gerar um herdeiro
para o reino, como você bem sabe. Não podemos te sacrificar. A princesa
enlouqueceria.
- Não precisam se preocupar com o herdeiro! Amaky está grávida! Eu...
- Amaky está grávida?! – gritou o rei, levantando-se com grande
velocidade, um olhar ensandecido nos olhos.
- Sim, senhor... Grávida. O que o senhor esperava, Majestade? – perguntou
Fiar, surpreso pela reação do sogro.
- Nada... Desculpem, é a alegria de ter um netinho. Prossigam – disse o rei,
sentando-se novamente e olhando para o tampo da mesa.
- Bom, pessoalmente eu acho que devemos prosseguir com o meu plano. –
continuou Lafreth, como se não houvesse tido interrupções.
- Vocês d’O Tribunal gostam de se sacrificar, não é? – perguntou Malrua,
comandante-geral do exército de Lynzea, olhando friamente para Lafreth.
- Na verdade, senhor Estrela da Guerra, nós aceitamos nos sacrificar
porque sabemos que, depois da morte, só há a justiça. Então, não gostamos de
nos sacrificar. Apenas não tememos a morte. – respondeu o Grande Juiz, ácido.
- Esperem um pouco, senhores... Eu entendi corretamente? Lian Lafreth
está querendo ir para o sacrifício? – perguntou Fiar, surpreso.
- Exatamente, meu jovem. Por isso que insisto em lhe chamar para todas as
reuniões, apesar de ninguém mais fazer isso. Eu sei que, se eu viver mais dez
anos, terei vivido muito. Não tenho tanto tempo de vida me restando, e devo
preparar meu sucessor, que no caso é você, para assumir este posto.
- Eu, seu sucessor? Não... E os outros Juízes? Deve haver uma hierarquia,
não há? O Juiz mais velho será o próximo Grande Juiz, ou algo do gênero.
- Não. Todos os dez Juízes têm poderes, direitos e influências iguais. Todos
têm a mesma chance de ser eleitos como Grande Juiz. E eu escolhi você.
- Mas por quê?
32
- Não interessa agora. Devemos nos preocupar em pensar na pessoa que
mandaremos para o sacrifício. Quanto mais cedo sacrificarmos, melhor ficará
Lynzea. – disse Malrua.
- Bom... Eu também não temo morrer... Posso muito bem ir para sacrifício.
Se não se incomodarem, é claro. – disse Sarbrar.
- Eu me incomodo, e muito. Sarbrar, você é um gênio da magia e da
tecnologia. Você é um dos grandes responsáveis pelo poderio militar de
Lynzea, e sabe muito bem disso. Ainda é um homem relativamente jovem, e
tem muito tempo pela frente. Use-o para suas pesquisas. – retrucou Lafreth, de
modo brilhante. Mesmo sendo muito velho, suas habilidades com a mente e
com as palavras continuavam em ordem.
- Se você insiste, velho teimoso, não sou eu que vou me opor. Só acho uma
pena Lynzea perder uma mente tão brilhante quanto a sua.
- Obrigado. Agora que o assunto está decidido, me dêem licença. Hoje o
dia foi longo, e não é porque meu sacrifício está marcado que eu vou me privar
do descanso. Senhores. – disse Lafreth, levantando-se e saindo da sala
rapidamente.
- Então... Creio que não temos muito mais o que fazer aqui, não é? Com os
problemas resolvidos, suponho que podemos voltar para nossas casas mais
cedo, hoje. Se não se importam... – disse Malrua, levantando-se da mesa.
Sarbrar o seguiu de perto, dando um cordial toque no ombro de Fiar, que
estava estacado perto da porta. Eles matavam com essa facilidade?
O Ministro da População, que se mantivera quieto até agora, recolheu suas
coisas e foi embora, após se despedir com um aceno de cabeça do rei e de Fiar.
O monarca, por sua vez, levantou-se e, antes de sair, murmurou para o genro:
- Acostume-se, meu jovem. Como Grande Juiz, você verá coisas muito
piores que isso.
Chegara o fatídico dia. O dia do sacrifício de Lafreth.
O céu de Lynzea, nesse dia, estava pesado e plúmbeo, indicando a
possibilidade de uma tempestade, com direito a raios e trovões. A temperatura
era baixa, e as pessoas se agasalhavam bem, se protegendo do cortante vento
que soprava pelas ruas da capital Orxh. Apesar do frio, todas as pessoas de
Orxh se dirigiram à praça central da cidade para assistir ao sacrifício do Grande
Juiz e à sagração da nova cabeça d’O Tribunal.
33
- Então, Fiar, como se sente? – perguntou Sarbrar, olhando para o próximo
Grande Juiz com certa apreensão. Eles estavam em um canto da praça,
afastados de todos os outros figurões do reino de Lynzea, esperando o toque do
sino que os chamaria para o palanque no centro da praça. Esperando pelo sino
que indicaria o início do fim de Lafreth.
- Não muito bem, Sarbrar. Lian Lafreth foi mais do que um simples
mentor, para mim. Ele foi um verdadeiro pai. E saber que hoje eu terei que
assistir seu sacrifício sem poder fazer nada para ajudá-lo me deixa mal. Além
disso, ele mesmo disse que me sagraria como Grande Juiz. Parece até que eu
estou roubando o posto que é dele por direito...
- Fiar... Sabe, meu menino, eu tenho alguns anos a mais de vida que você.
E sei, por conhecê-lo e ter conhecido muito bem o seu pai, que vocês, Lam, têm
um senso muito aguçado de honra e justiça, essenciais para um Grande Juiz.
Não se esqueça, por favor, que Lafreth chega a ser odioso: ele parece que prevê
o futuro. Sua sabedoria é algo fora de série. Decerto que Lafreth jamais faria
qualquer coisa sem antes refletir muito sobre suas ações.
- Aonde você quer chegar?
- Lafreth precisa de você no topo. Cá entre nós, esses Juízes que o
acompanham são ótimos em seguir a lei. Mas eles só fazem isso. Ser um Juiz é
muito mais que isso, Fiar, você sabe. Um bom Juiz segue a lei. Um ótimo Juiz
dobra a lei, para que ela sirva às suas necessidades. Um Grande Juiz faz a
justiça, ainda que isso o obrigue a passar por cima de leis, mesmo que essas
venham de tempos imemoriais. Para fazer isso, porém, eles devem ser sábios o
suficiente para conseguir prever o resultado de suas ações. Lafreth sabe que,
apesar de jovem, você é uma pessoa muito sensata. Em vinte anos, decerto que
você será um dos homens mais sábios de todo o reino. E ainda será jovem.
“Lafreth não está lhe passando o cargo de Grande Juiz porque você é mais
bonito que os outros Juízes. Ele está lhe passando porque você é o Juiz mais
promissor de todos: você é jovem, inteligente, sábio e muito justo. O povo lhe
ama, e sabe que pode contar com você. Pessoalmente, eu acho que a
responsabilidade que Lafreth está te passando é muito maior que você pensa.
Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de Lynzea. Você será
aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das massas,
Fiar. Lafreth está, enfim, lhe passando a responsabilidade de ‘seguro’ do reino.
E esse é o ato que mais demonstra a confiança dele em você.”
Fiar não respondeu. Ele não queria.
Ele não podia.
34
O sino da praça central de Orxh tocou três vezes, chamando os figurões da
política de Lynzea para o centro da praça, no palanque. Quase todos os Juízes,
vestidos de luto em respeito ao seu chefe, já estavam lá. Só faltava Fiar que,
junto de Sarbrar, se dirigiu funebremente ao palanque. Um gordo sacerdote,
vestindo uma enorme roupa branca e roxa, os ajudou a subir, dando um abraço
forte em cada um. Bem no meio do palanque, o rei estava acompanhado de
Malrua e do Ministro da População, com um de cada lado.
- Fiar. Sarbrar. Vocês estão prontos? – perguntou o rei.
- Infelizmente sim, Majestade. Eu estou, ao menos – respondeu Sarbrar,
sentando-se ao lado do Ministro da População.
- Eu não tenho muitas opções, não é? Vamos terminar com isso logo –
disse Fiar, dirigindo-se para o lado de seus colegas.
- Fiar! Onde pensa que está indo? – questionou Malrua.
- Para meu lugar. Ao lado dos Juízes.
- Seu lugar é conosco.
- Não é. Esse lugar ainda é de Lian Lafreth, e eu não pretendo tomá-lo até a
morte dele. – e, com essa nota ácida e fria, Fiar se dirigiu ao seu lugar, do lado
dos Juízes.
Começou com uma batida grave. Uma batida triste, que penetrou a alma
de cada um daqueles que amavam e conheciam Lafreth. A batida se repetiu, e
de novo, e de novo, até parecer que nunca mais ia parar de bater. Ao fundo, o
repique de tambores convocava os deuses de Lynzea para a cerimônia.
Lafreth estava vestido com uma garbosa roupa rubra. Um capuz, também
rubro, cobria seu rosto. Ele andou até o palanque, onde o gordo sacerdote o
ajudou a subir. Sem abraços. Sem palavras reconfortantes.
- Meus irmãos, estamos aqui hoje para sacrificarmos o Grande Juiz Lafreth,
com o objetivo de apaziguarmos a ira dos deuses que, ao custo de apenas uma
vida, nos darão em troca sua anistia. Louvados sejam!
- Verual! – disseram os fiéis, em uníssono.
Fiar estava abismado. Como aquele... Aquele sujo conseguia pregar a
benevolência divina a partir de atos tão escusos?
- Por favor, meus irmãos, orem pela alma do Grande Juiz Lafreth,
enquanto eu consumo o sacrifício.
- Um momento, caro pastor. Antes de morrer, eu gostaria de dizer algumas
palavras – pediu Lafreth, para a surpresa geral. O pastor, desnorteado, olhou
35
para o rei procurando uma orientação. O monarca assentiu com a cabeça, e o
clérigo disse:
- Muito bem, então... Suponho que não machucará ninguém...
O Grande Juiz olhou nos olhos de cada um daqueles que foram ver seu
sacrifício e começou o seu discurso.
- Antes de qualquer outra coisa, eu gostaria de agradecer a presença de
todos, e de cada um em particular. Pode parecer um pouco mórbido agradecê-
los por vir assistir minha morte, mas deixem-me explicar. Eu sou Grande Juiz
há quase cem anos. Antes mesmo de muitos de vocês nascerem, eu já era velho.
Em minha vida, vi coisas maravilhosas. Ah, sim, eu vi. Me casei com uma
mulher linda, tive dois filhos a quem pude ensinar os conceitos de honra, justiça
e bondade. Tive netos, bisnetos. Todos eles jovens que, ao meu ver, são
encantadores. Sim, eu sou um velho avô coruja e babão. – e, nesse momento, a
tensão palpável no ar da praça de Orxh quebrou com as risadas. Levemente. –
No entanto, eu também vi coisas tenebrosas. Vi magias proibidas serem
lançadas, guerras dizimarem reinos inteiros, pestes e doenças assolarem a terra
em que pisamos. Mesmo assim, eu sobrevivi a tudo. Eu nunca quis morrer.
Sempre soube que eu não poderia, não iria morrer para motivos tão esdrúxulos
como esses. Eu iria morrer por algo maior. No fim, acho que eu sempre quis dar
minha vida por milhares de outras.
“Eu sempre acreditei que faria isso num campo de batalha, com uma
espada em mãos. Nunca, jamais imaginei fazer isso numa praça no meio da
capital de Lynzea, aos cento e cinqüenta anos de idade. Engraçado como o
destino funciona, não é?
“Ah, perdoem a mente deste velho. Estou aqui falando, e acabei me
esquecendo de falar o porquê dos meus agradecimentos. Pois bem. Eu estou
agradecendo a vocês por me darem a chance de morrer como eu quis. Feliz é o
homem que pode escolher sua morte. Estou agradecendo pela consideração que
vocês estão tendo por mim, de sair do conforto de suas casas, nesse dia frio,
ventoso e cinzento. De vir aqui me prestar uma última homenagem.
Obrigado por me deixarem morrer.
Agora, vamos ao que interessa. Lynzea precisa de um Grande Juiz. E agora
eu vou anunciá-lo.”
Na sua cadeira, Fiar aprumou-se. Enfim, chegara a hora.
36
- Então, Lian Lafreth? Quem é seu sucessor? – perguntou o gordo
sacerdote.
- O meu sucessor é o único elfo com competência o suficiente para fazer
isso. E ele ainda é uma criança. De fato, será o Grande Juiz mais jovem da
história de Lynzea.
“Fiar Lam”
O nome reverberou pela praça, enquanto as pessoas absorviam o choque
da notícia. Para o mais alto escalão político, isso não era novidade alguma. Para
todos os outros, isso era uma verdadeira revolução.
E o povo, com lágrimas nos olhos, começou a aclamar o novo Grande Juiz
de Lynzea. Não mais o chamavam de Fiar. O título era outro. Um título que ele
carregaria por toda a vida.
Lian Fiar.
As palavras de Sarbrar reverberavam na mente de Lian Fiar.
“Pessoalmente, eu acho que a responsabilidade que Lafreth está te passando é
muito maior que você pensa. Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de
Lynzea. Você será aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das
massas, Fiar”
O herói de Lynzea. O herói do povo.
O sacrifício foi consumado. E, nesse dia, os céus de Lynzea choraram a
morte de um dos maiores Grandes Juízes da história do reino.
Lian Fiar, porém, não sabia se o que tinha em seu rosto eram as lágrimas
do céu ou as suas próprias.
37
Parte Dois
Nove meses haviam se passado desde o sacrifício de Lian Lafreth. Como
prometido pelos deuses, a terra de Lynzea voltara a ser fértil, e a paz fora
restabelecida.
Para o povo.
Lian Fiar percebera que, por alguma razão misteriosa, o rei de Lynzea
havia mudado drasticamente. Antes um rei sorridente, amigável, carismático e
alegre, ele agora era uma carranca imutável. Isso acontecera desde que o alto
escalão político de Lynzea recebera a mensagem do oráculo.
- Majestade? Mandou me chamar? – perguntou Lian Fiar, adentrando na
sala do trono e ajoelhando-se perante o monarca.
- Sim, Fiar. Levante-se. Guardas, estão dispensados. – disse o rei. Os
soldados bateram continência e se retiraram. – Fiar, temos um assunto muito
sério a tratar.
- Só nós? E Malrua, Sarbrar e o Ministro da População?
- Eles não podem saber sobre isso.
Não podem saber sobre isso?
- E qual é esse assunto tão misterioso, Majestade?
- Bom, você sabe que o oráculo nos ordenou sacrificar uma vida em troca
da fertilidade das terras de Lynzea. No entanto, havia mais uma mensagem,
direcionada especificamente a mim.
- E qual era essa mensagem, Majestade? – perguntou Lian Fiar,
desconfiado. Algo não parecia certo.
- Leia a profecia, Fiar. Então você entenderá. – disse o monarca,
entregando um pergaminho enrolado e amarelado para o Grande Juiz. Fiar
desenrolou a profecia e começou a ler
Fome, guerra, frio e morte
Assolam o território
Uma vida deve ser entregue,
Como bem compensatório
38
Uma faca de pedra nova,
Sem temor será usada.
Mas não com sangue de plebeu,
E sim de nobre será manchada.
Os Deuses estão furiosos
Por terem sido negligenciados
Mas, com esse sacrifício,
Vocês serão perdoados.
O rei de Lynzea terá um herdeiro
Que do trono o despojará
Filho da Bondade e da Justiça,
Sabiamente ele reinará.
E mesmo contra milhares
Contra milhões de inimigos
Seis sobreviverão
E reinarão como amigos
- Certo, Majestade. E qual o problema dessa profecia?
- Leia a quarta estrofe! Leia! – ordenou o rei, um pouco alterado.
- Eu já a li. E ainda não vejo problemas nela.
- Como não? Eu sou o rei de Lynzea!
- E em momento algum a profecia citou seu nome. Lynzea obviamente terá
outros reis. Para mim, o senhor está ligeiramente paranóico.
- Não seja cínico! Olhe a terceira linha! Filho da Bondade e da Justiça! É
óbvio que você, Fiar, é a “Justiça”, e minha filha Amaky é a “Bondade”!
- Eu não sou a única pessoa justa de Lynzea, e tampouco sua filha é a única
pessoa bondosa. E tem mais, sua herdeira é Amaky, não seu neto. – blefou Fiar.
- Você sabe bem que não, Fiar. Inclusive, sabe melhor que eu. Segundo as
leis de Lynzea, apenas os herdeiros homens do rei podem herdar o trono. Se
não houver descendentes, passa-se o cargo para o próximo homem na linha de
sucessão que, no caso, é você.
- Muito bem, e o que você pretende que eu faça? – perguntou Lian Fiar,
desconfiado. O rei riu.
39
- Você, Fiar, mandará matar o meu neto. – disse o monarca, virando-se e
saindo da sala do trono.
- Meu pai fez o que? – perguntou Amaky, esposa de Fiar, incrédula. Eles
estavam no quarto deles. Amaky estava sentada na cama, enquanto Fiar andava
de um lado para o outro no espaçoso recinto. O bebê dormia tranqüilo no berço.
- Exatamente, Amaky. Terei que matar nosso filho.
- Como, como meu pai ousa falar uma sandice dessas? Não, Fiar, eu não
consigo acreditar.
- Mas é verdade, querida. E eu não consigo ver outra saída.
Amaky olhou para seu filho, desnorteada. Poxa, ela sempre fora tão
bondosa! Nunca fizera nada de mal para ninguém. Por que tinha que passar por
isso? Seus belos olhos castanhos lacrimejaram.
- Fiar... Você é Grande Juiz. Você não pode enfrentar meu pai? Vocês têm o
mesmo poder, não é?
- Não e sim, Amaky. Sim, nós temos o mesmo poder. Mas não, não posso
enfrentá-lo. Mesmo que eu levasse isso para uma reunião só com a nata política
de Lynzea, seria ineficaz. O pulha do Ministro da População é um cachorrinho
de Malrua, que está ao lado do seu pai. Ainda que Sarbrar fique do meu lado,
serão três contra dois.
- Fiar, temos que fazer alguma coisa.
- Eu sei, Amaky, mas o quê? Estamos de mãos atadas!
Amaky pesou as palavras de Lian Fiar em silêncio, até que se levantou
resoluta e se dirigiu à porta.
- Onde vai, querida? – perguntou Lian Fiar, assustado.
- Vou falar com meu pai. Ele deve estar louco, só pode ser isso. Eu vou
tirar essa idéia da cabeça dele, nem que seja a última coisa que eu faça.
- E então, Amaky, conseguiu dissuadi-lo? – perguntou Fiar, ao ver a
esposa entrar no quarto.
- Não, Fiar. Pior. – respondeu a mulher, abatida.
- O que ele falou?
- Que, se você não fizer isso dentro de uma semana, ele mesmo fará. Em
praça pública.
- Sarbrar, preciso de você. – disse Fiar, adentrando no laboratório do
amigo com ímpeto.
40
- O que foi, Fiar? – perguntou Sarbrar, assustado. O Grande Juiz não
costumava ser assim.
- Prefiro falar com você em particular. – respondeu Fiar, olhando para os
assistentes de Sarbrar com desconfiança.
- Saiam. Depois continuamos nosso trabalho. – ordenou o pesquisador aos
seus assistentes. – O que houve, Fiar?
- Preciso da sua ajuda. O rei quer que eu mate meu filho, por causa de uma
profecia, mas eu não quero fazer isso. Eu não posso, Sarbrar.
- Conte-me tudo, Fiar. Depois achamos um plano de ação. – disse Sarbrar,
indicando uma cadeira com a mão para Fiar, enquanto puxava outra para si.
Fiar contou a história, e Sarbrar ficou em silêncio, ponderando.
- E então, Sarbrar, o que devo fazer?
- Fiar, a política é um negócio sujo. E eu sei como você é honesto. Mas,
desculpe, dessa vez você precisa jogar sujo. Se não por você, pelo seu filho. É
preciso que você cobre alguns favores. Sem medo.
Fiar assobiou. Ele tinha um bocado de favores a cobrar.
- Senhor rei, matarei meu filho na floresta, numa clareira. Depois o senhor
pode checar. – sussurrou Fiar, ao cruzar com o monarca num dos corredores do
castelo.
O aceno de cabeça foi o suficiente.
Todos estavam reunidos na clareira. O açougueiro, com um porco raspado
preso por uma coleira, o escultor, com uma sacola, o pastor e um mago leal aos
Lam. Fiar estava com seu filho nos braços. O bebê dormia inocentemente.
- Estão com o que lhes pedi, senhores? – perguntou Fiar. Todos
murmuraram um “sim”. – Então, comecemos. – disse ele.
O escultor ajoelhou-se, colocando delicadamente no chão pedaços de
argila em formato de ossos élficos de bebês no chão, para depois espalhá-los de
um modo aleatório, como se um animal faminto houvesse passado por lá e feito
um lanche com a criança abandonada. Alguns dos pedaços de argila menores
foram devolvidos à sacola, como se o lobo os houvesse ingerido junto.
Após o escultor se retrair, o mago avançou, com uma magia preparada. Ele
levantou seu cajado e bradou “Argila em osso!”. Imediatamente, os pedaços de
argila se transformaram em verdadeiros ossos.
- Incrível. – sussurrou o pastor.
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- Mais do que o senhor imagina. Prossigamos. – respondeu Fiar, acenando
positivamente com a cabeça para o açougueiro, que se adiantou e cortou o
pescoço do porco. A seguir, cortou alguns pedaços do bicho, pequenos, e
colocou nos ossos recém formados.
Parecia que animais haviam devorado um bebê de colo.
- Senhor pastor, o senhor sabe o que fazer?
- Sim, Lian Fiar. Devo ir até Sparon, na casa dos mercadores Lam, e
entregar o bebê e essa carta a eles.
- Excelente. Faça uma boa viagem. – disse Fiar, com lágrimas nos olhos,
entregando o filho ao pastor.
- Mestre... Só tenho uma dúvida.
- Pois não?
- Qual é o nome da criança? Certamente que não quer que os mercadores
dêem o nome de seu filho, não é?
- O nome?
- Sim, senhor, o nome de seu filho.
- O nome que eu sempre quis para o meu filho. O nome que eu sempre
quis ter. Um nome forte. Um nome que certamente será honrado por esse
menino, senhor pastor. Pois, ainda que eu esteja de coração partido, e minha
mulher ainda mais, por não poder saber da verdade, sei que isso é o melhor a
ser feito. Então, damos um nome de um verdadeiro guerreiro, honrado, fiel,
justo e corajoso. Um nome digno dele.
“O nome é Corash Lam”
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Capitulo Dez
- Seu filho? Como?! “Lam”, na língua antiga, significa “mercador”! – disse
Corash, atordoado.
- De fato. No entanto, uma palavra pode ter mais de um significado. Em
nosso caso, “Lam” significa “justo”.
- Não pode ser verdade, senhor! – disse Mahslia – Eu conheço Corash
desde criança, e sou quase fluente na língua antiga! “Lam” sempre significou
“mercador”!
- Não, minha jovem. Nos primórdios da linguagem, “Lam” significava
“justo”. No entanto, houve certo Lam, creio que o nome dele era Milonna Lam,
que não seguiu o mesmo rumo da família, e virou um mercador. A partir disso,
a família se dividiu entre os “Lam da justiça” e os “Lam do mercado”.
- E como o senhor sabe com certeza que o Corash é seu filho? – perguntou
Avalas, astuto. Lian Fiar olhou para ele, sorrindo.
- Avalas, me lembro de você em minhas aulas. Sempre foi um bom
arqueiro, mas suas melhores notas sempre foram no quesito da estratégia. Pelo
jeito você não perdeu esta característica. Bom, eu preciso de um pouco mais de
tempo para explicar isso.
“Vejam, a família Lam sempre foi uma família de arqueiros. Está no
sangue, não há uma explicação lógica. Os advindos da linhagem direta dos
‘Lam da justiça’ sempre terão uma habilidade inata com o arco e flecha. Sempre
fomos uma família abastada justamente porque nossa arquearia era muito boa.
Os grandes generais arqueiros, invariavelmente, eram Lam. O que nos
destacava dos demais é que tínhamos, em nosso sangue, certo poder mágico.
Não o suficiente para virarmos magos de elite, mas dava para nos defendermos.
Só que nós conseguíamos ‘aplicar’ essa magia em nossas flechas, deixando-as
mais poderosas do que seriam normalmente. Podíamos soltar flechas sonoras,
para atordoarmos nossos inimigos, flechas congelantes, para paralisarmos,
entre outras. Como eu disse, os ‘Lam da justiça’ têm habilidade inata com o arco
e flecha. Oras, o Corash é um arqueiro que conseguiu utilizar uma flecha
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flamejante do nada! A única explicação lógica para isso é ele ser meu filho
perdido.”
- Faz sentido... Por isso que você nos protegeu, no julgamento. Para não
matar de vez seu filho, não é? – perguntou Avalas.
- Em partes. Lembre-se que eu gosto de ser o mais justo possível, enquanto
eu puder. Agora, eu sei que vocês precisam fugir. A Arena só permite um
campeão. Se vocês ganharem, serão obrigados a matar uns aos outros. Assim,
terão que fugir. De preferência imediatamente antes da final, assim o rei terá
dificuldade em armar um esquadrão para recapturá-los.
“A Arena está no exato limite da cidade, e possui duas saídas – uma a leste
e uma a oeste. A saída a leste dá na cidade, então é inútil. Vocês devem sair,
então, pelo oeste. O maior problema, no entanto, é que a saída a oeste
‘desemboca’ diretamente nas Dunas Congeladas. Caso vocês não saibam, as
Dunas Congeladas não formam um deserto tão grande assim. Ele é, na verdade,
pequeno. O grande problema é que ele é um lugar muito mágico, e ilude os
viajantes, para o bem e para o mal.”
- Hm... Então teremos que inevitavelmente cruzar as Dunas Congeladas? –
perguntou Corash, olhando de soslaio para Mahslia e Avalas, que
enrubesceram.
- Sim. As Dunas Congeladas também têm uma propriedade estranha, pois
ela sempre vai deixar os viajantes na Montanha Selque. É o único caminho para
lá, inclusive. De qualquer maneira, vocês estarão na Montanha Selque. De lá,
vocês devem seguir sempre rumo oeste. Assim, sairão perto de Sparon. Algo
mais?
- Acho que não. Mas... Como saberemos como sair da prisão? – perguntou
Mahslia, finalmente.
- Ah, isso vocês saberão no momento certo. Direi apenas que seu novo
amigo sabe. – respondeu Lian Fiar, sorrindo. E, com essas palavras enigmáticas,
ele rodopiou em seus calcanhares, destrancou a cela e saiu, com seu manto
vermelho e dourado esvoaçando atrás dele. Mas ele não se esqueceu de fechar
novamente as grades do cubículo de pedra que atrasava os amigos.
44
Capitulo Onze
Dois dias haviam se passado desde a visita de Lian Fiar. Dois dias
silenciosos e longos, nos quais os únicos barulhos ouvidos foram a abertura da
cela para a entrada de comida e a pedra de amolar improvisada de Avalas indo
de encontro à espada tosca.
- Chega! Eu não agüento mais! – explodiu Corash, subitamente.
- Paciência, Corash. Eu entendo sua ânsia de sair daqui, mas não adianta
explodir. Espere. Temos que esperar nosso companheiro.
- Não vamos mudar para a cela dele?
- Ah, claro. É realmente muito mais fácil mudar três pessoas de cela do que
mudar uma. – respondeu Avalas, sarcástico. Mahslia começou a gargalhar.
- Qual a graça, Mahslia? – perguntou Corash, emburrado.
- Vocês! – disse ela, tentando respirar.
- O que temos nós? – questionou Corash, ficando nervoso.
- Olhem para vocês! Parecem duas crianças brigando!
Avalas esboçou um sorriso, e até Corash riu. Mahslia continuou rindo,
mesmo quando o guarda pediu silêncio.
- A que ponto chegamos, não? – perguntou Avalas, depois de uma hora,
parecendo um pouco triste. – Estamos rindo de brigas entre nós mesmos. Isso é
tão...
- Macabro? – sugeriu uma nova voz na cela. Uma voz rouca. Os três
amigos se viraram para a voz com as mãos nas armas. A porta da cela estava
aberta, e o guarda escoltava uma pessoa grande e forte, com as mãos algemadas
para trás. Sua pele era marrom, em contraste com a típica pele de orc, mas era
um marrom bonito. O rosto era até bonito, para um orc, sem ser muito rústico
nem muito delicado. Os olhos, que em orcs eram cruéis, tinham um brilho sábio
e bondoso, e seu sorriso branco era bonito de se ver.
- Entre, seu vagabundo – disse o guarda, rudemente empurrando o recém-
chegado para a cela. Quando o prisioneiro caiu de joelhos, o guarda
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rapidamente retirou suas algemas, deixou cair um machado no chão e saiu,
trancando a porta.
- Desculpem-me entrar de modo tão brusco. Eu sou Krummel, seu novo
companheiro de cela, e, como podem ver, sou um meio-orc.
- É um prazer, Krummel. Meu nome é Avalas, e esses são Corash e
Mahslia. Somos um grupo, agora, de modo que é melhor se acostumar com a
sensibilidade da Mahslia e a idiotice aguçada do Corash. – disse o grande
espadachim, estendendo a mão para Krummel, que a apertou. Os dois gigantes
não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto Krummel tinha olhos
bondosos, calorosos, pele escura e sorriso fácil, Avalas tinha olhos frios e
calculistas, pele alvíssima e nunca sorria.
- É um prazer. Diga-me uma coisa, qual sua outra metade? – atropelou-se
Corash.
- Eu sou mestiço de humanos, também. – Corash contorceu o rosto. –
Algum problema?
- Não gosto de humanos. Eles são horríveis. Falsos, metidos, ignorantes,
grosseiros...
- E você está sendo quase tudo isso em dobro, além de preconceituoso. Os
seres pensantes são assim, independentemente da raça à qual pertencem. Elfos,
inclusive.
O silêncio pairou no recinto. As palavras de Krummel pesaram.
- E o plano, qual é? De sair da prisão, digo. – perguntou Mahslia.
- Ah, sim. Bom, vamos lá. A partir da cela em que estamos agora,
seguimos para a direita, viramos a segunda esquerda e vamos até a terceira
porta, também à esquerda. É o depósito de armas. Pegaremos nossas armas,
vestiremos armaduras e continuaremos andando, como se não houvéssemos
parado. Viraremos na primeira direita que encontrarmos, e nos separaremos em
dois grupos – Corash e Avalas vão para a direita, Mahslia e eu iremos para a
esquerda. Para abrirmos os portões, duas alavancas precisam ser acionadas.
Cada um dos grupos ativará a sua, e voltaremos correndo para a bifurcação,
seguindo reto até o portão e as Dunas Congeladas? Entenderam?
- Só vejo uma falha: a parada para pegarmos equipamentos. Certamente os
guardas notarão nossa falta. Quando conversamos, eles ouvem apenas ruídos.
Eles acham estranho, porém, que fiquemos quietos. – atestou Avalas, depois de
uma longa reflexão
- Sim. Só temos que ficar quietos por muito tempo, e poderemos disfarçar
bastante a nossa fuga. – respondeu Krummel, sorrindo.
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- Falar é fácil. Além disso, o que faremos quando encontrarmos os
guardas? Certamente eles patrulham os corredores, ou ao menos tem postos
estratégicos por esta masmorra. – perguntou Corash, sensatamente.
- Quando encontrarmos os guardas, se é que vamos encontrá-los, jovem
Corash, teremos que improvisar. E seria bom que suas flechas sejam precisas e
velozes. Eu garanto o sangue no meu machado, e pelo físico de Avalas, ele
também se garante. – retrucou o meio-orc, sorrindo.
Mas, apesar do sorriso gentil, seus olhos brilhavam, clamando por sangue.
Três dias depois, um guarda os chamou para a próxima luta.
47
Capitulo Doze
A Arena estava do mesmo jeito que eles a tinham deixado. Do outro lado,
um humano, um anão, um elfo e um halfling os observavam, desconfiados. O
humano tinha cabelos negros como a noite, e um rosto razoavelmente bonito,
apesar de um pouco sofrido. O anão era corpulento, forte e parecia perigoso. O
elfo os olhava com desprezo, e o pequeno halfling parecia analisá-los. Seus
olhos espertos pulavam de um para o outro.
- Avalas, deixo o anão para você. Minha armadura é mais leve que a sua, e
esse desgraçado parece forte. Eu vou lutar com o humano. – disse Krummel,
pensando rápido
- Parece justo. Mahslia, esse elfo tem jeito de ser mago. Você consegue
rebater as magias dele? – continuou Avalas.
- Posso tentar, Avalas, mas não posso garantir. Tudo bem?
- Vai ter que servir. Corash, você nos dê cobertura! – ordenou Avalas.
- Certo, mas vocês não estão se esquecendo do halfling, não? – perguntou
Corash.
Krummel trincou os dentes com força. Era verdade, eles haviam mesmo
esquecido do halfling.
- Certo. Alguma idéia do que ele é, Avalas? – perguntou o meio-orc.
- Pequenino e rápido? Um batedor, acho eu. Ou então um ladino.
- E qual o uso de um ladino em campo de batalha? – questionou Corash.
- Idiota. – suspirou Avalas. – Ladinos são mestres do disfarce, do roubo, da
furtividade. São guerreiros perfeitos para flanquear o inimigo, distraí-los... E
cuide bem de suas flechas. Ele pode afaná-las, e não queremos isso. – disse o
espadachim, puxando sua enorme espada. Krummel sacou seu machado, e
Mahslia preparou seu cajado.
Sem muitas opções, Corash preparou uma flecha e retesou seu arco.
E a luta começou.
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Enquanto Krummel e Avalas corriam contra os inimigos, Corash lançou
suas flechas certeiras. Uma pegou na coxa do humano, e a outra acertaria
perfeitamente a cabeça do anão, se ele não houvesse erguido o escudo. O
halfling saiu correndo pela Arena, enquanto o elfo começou a fazer gestos
esquisitos. Mahslia começou a sussurrar, conjurando uma magia.
Corash manteve os olhos no halfling, preparando uma flecha. O pequeno
ladino corria pela Arena, sem um padrão de direção. Ele tinha uma espada
curta nas mãos, e não usava escudo. Uma flechada poderia matá-lo.
Aquele maldito anão estava irritando Avalas. Profundamente.
Primeiro, era difícil de acertá-lo. Por ser muito alto, Avalas teria que
abaixar bastante para atacar o inimigo. Por conseqüência, Avalas só podia
atacar a cabeça e os ombros do outro, que defendia com o escudo. A sorte do
grande espadachim era que seus golpes eram tão poderosos que atordoavam o
inimigo, e ele não revidava os ataques.
A flecha de Corash tirara toda a graça da batalha, para Krummel. O
humano estava com a mobilidade comprometida, a armadura enfraquecida e
sua maça-estrela tinha espinhos em falta. Algumas machadadas do meio-orc
foram suficientes para eliminá-lo. Ridículo.
“Vamos, seu halfling maldito, fique parado!” pensou Corash, raivoso.
O elfo abriu os olhos, luzidios de poder.
- Bola de fogo maior! – conjurou ele. De suas mãos saiu um fogo que se
juntava numa bola enorme. E a bola começou a ir rapidamente na direção de
Corash. O mago voltou a seu transe, preparando mais uma magia.
E a técnica de Mahslia ainda não estava pronta.
Krummel olhou a situação dos companheiros, e decidiu que deveria atacar
o elfo. Ou seus companheiros morreriam. Aquele maldito elfo era perigoso. Mas
antes ele tinha que fazer uma coisa.
Corash atirou sua flecha na direção do halfling, e por pouco não o acertou.
Aquele maldito era rápido. Por que ele não se decidia para onde ia?
Foi então que Corash notou a enorme bola de fogo vindo em sua direção.
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- Que inferno, Corash, será que você não consegue cuidar de si mesmo? –
urrou Krummel, pulando na frente do elfo e estendendo as mãos, segurando a
bola de fogo. O machado fora guardado novamente na cintura.
- Krummel! O que você está fazendo?
- Deixando o arqueiro estúpido vivo, não é óbvio? – respondeu ele, com
sarcasmo. Sua voz tinha uma nota de dor. – Mahslia, a magia está pronta? –
urrou ele para a maga.
- Só falta mais um pouco! – respondeu ela, cada vez mais concentrada.
Subitamente, Corash teve uma idéia.
- Mahslia! Alterne a magia para ajudar o Avalas! Deixe que eu cuido da
bola de fogo! – gritou o arqueiro para a amiga.
- O quê? Ficou louco? Você não é mago, Corash! – gritou Krummel.
- Confie em mim! – retrucou o elfo, armando uma flecha no seu arco. –
Diga-me onde está o mago deles, Krummel!
- Corash...
- Confie em mim!
- De onde você está, basta mirar no meio da bola de fogo.
- Excelente! Quando eu falar, você sai do caminho, entendido? – perguntou
Corash, pulando para trás e apontando a flecha para o meio da bola de fogo. E,
por conseqüência, para a cabeça de Krummel.
- Vamos logo! – gritou Krummel.
- Saia, Krummel! Eldr Or! – ordenou Corash, lançando a flecha no meio da
bola de fogo. A flecha flamejante atravessou o golpe do mago adversário, mas
algo de extraordinário aconteceu: as chamas que os atacavam se incorporaram
ao fogo de Corash, e as labaredas tomaram a forma de um dragão, voando na
direção do mago inimigo.
Avalas estava ficando realmente irritado com aquele anão. Já era para ele
ter morrido! No entanto, ele continuava firme em sua posição. E Avalas insistia
em seus brutais golpes.
- Vamos, maldito, abaixe esse escudo!
- Muito bem! – sorriu o anão perigosamente. Seus olhos brilhavam de um
modo maroto. Um modo que devia ter avisado Avalas.
Mas a raiva havia o cegado.
Com uma súbita e lancinante dor na perna esquerda, Avalas caiu de
joelhos. A parte posterior de sua coxa doía absurdamente, como se houvesse
tomado um golpe de espada. A enorme montante do elfo caiu no chão.
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Então, de canto de olho, Avalas viu. O halfling já saía de seu alcance, mas
seu sorriso brilhava. E sua espada também, com o sangue do enorme elfo.
- Morra, seu idiota! – berrou o anão, erguendo um machado enferrujado
para brandi-lo na direção da cabeça de Avalas.
- Metal em Pedra! – gritou Mahslia, abrindo os olhos, que brilhavam
vermelhos.
O anão tombou para trás com a súbita mudança de peso. Não foi o
suficiente para machucá-lo. Não em um primeiro momento.
O tombo deu chance para a recuperação de Avalas. Agarrando o pé do
anão, ele o ergueu com ódio no olhar. Era hora da vingança. O grande
espadachim levantou-se com dificuldade e jogou longe o elmo do inimigo. Em
seguida, girou-o como um laço, para lançá-lo de cabeça na parede de pedra da
arena. Um horrível som de ossos quebrando se fez ouvir por todo o recinto,
fazendo com que um arrepio passasse frio pelas costas dos presentes.
Pegando seu montante, Avalas virou-se com ódio para os inimigos
restantes.
Mas a luta já havia acabado.
O halfling havia atacado Avalas e saído de costas, para ver o parceiro
matar o enorme inimigo. O problema, para ele, é que ele havia entrado
diretamente na linha de fogo da flecha flamejante de Corash que, apesar de
estar muito alta para atingi-lo, deslocava uma imensa quantidade de energia e
vento. O suficiente para fazê-lo voar.
Aproveitando-se da situação, Krummel lançou seu machado na direção do
halfling certeiramente. A morte do pequeno adversário foi instantânea.
O mago só teve tempo de abrir os olhos antes de ser atingido pelo dragão
flamejante. O fogo o consumiu instantaneamente.
Corash abaixou o arco. Sua fronte estava suada, mas seus olhos brilhavam
determinados. Ele olhou para os companheiros e sorriu.
- Conseguimos.
51
Capitulo Treze
De volta à cela, os amigos resolveram descansar. A luta, apesar de rápida,
havia sido extremamente cansativa, principalmente para Corash, graças à
técnica, e o ferimento de Avalas era mais profundo do que parecera em um
primeiro momento.
- Como você conseguiu se ferir aí, Avalas? – perguntou Corash, recostado
na parede.
- Eu não “me feri”. Eu fui ferido. Aliás, eu fui ferido pelo halfling que você
deveria ter matado.
- Ei, pare de me culpar! O mago jogou a bola de fogo em mim! Se a
Mahslia tivesse conjurado a contra-magia antes, não teria tido esse problema! –
reclamou Corash, olhando para a amiga.
- O quê?! Seu idiota, você não atacou o mago por quê?! Ele estava em
transe, inferno! – reagiu Mahslia, ofendida.
- Que eu me lembre, eu estava te protegendo de um halfling maluco que
corria por aí com uma espada na mão tentando nos cortar.
- E eu por um acaso pedi sua proteção, seu arqueiro de meia-tigela?
- Calem a boca! – urrou Krummel, levantando-se. – Ninguém aqui tem
culpa de nada, entenderam? Não vamos conseguir nada se continuarmos
brigando, exceto nos matar. Se qualquer um de vocês deseja morrer, basta me
avisar, e eu terei o maior prazer em realizar seus desejos. Mas eu ainda quero
viver.
Ambos Corash e Mahslia silenciaram, com o rosto um pouco vermelho de
vergonha. Krummel olhou para eles com um pouco de reprovação, e em
seguida continuou:
- Avalas, deixe-me ver sua perna. Deite de bruços no chão. – ordenou o
orc. O grande elfo o obedeceu. Krummel ajoelhou-se ao lado do colega e olhou
o corte.
52
O ferimento estava feio. Eles haviam limpado como podiam, mas aquela
cela era extremamente carente de materiais. O corte havia coagulado, mas
estava um pouco inchado e extremamente sensível.
- E então, doutor Krummel, o que acha? – perguntou Avalas, com um
pouco de sarcasmo na voz.
- Está bem ruim. Eu posso mexer um pouco? – perguntou o orc, ignorando
o veneno que o grande elfo cuspira em sua direção.
- Faça como quiser, mas resolva isso, por favor. – permitiu Avalas.
Krummel se levantou e se dirigiu à porta da cela.
- Guarda! Guarda! – urrou ele, batendo na porta com toda sua força,
fazendo bastante barulho.
- O que você quer, orc maldito? – perguntou o guarda, cuspindo um pouco
no rosto de Krummel. O bárbaro não fez questão de corrigir o guarda.
- Senhor, um dos nossos colegas de cela foi ferido. Sei que não pode nos
chamar um médico, mas queremos cuidar dele. O senhor pode me arranjar
lenços limpos? – perguntou o meio-orc, contendo-se para não se limpar. Ele
precisava parecer obediente.
- Verei o que posso fazer. – disse o guarda, saindo.
- Agora, nós esperamos. – disse Krummel, limpando o rosto e abaixando-
se para examinar a perna do amigo.
- Ei, vocês! – disse uma nova voz por detrás da porta.
Corash levantou a cabeça, assustado. Outra luta agora? Não estava na
programação! Ele estava cansado demais para isso.
- O que o senhor deseja? – perguntou Krummel, indo em direção à voz.
- Vim cuidar de seus ferimentos! O rei os quer prontos para a batalha
amanhã.
“Amanhã”? Os quatro se entreolharam. O rei aparentemente soubera da
tentativa de fuga, e adiantara a batalha.
- Deixem-no entrar logo. Se temos mesmo que batalhar, ao menos eu
poderei batalhar com a perna um pouco melhor do que esta. – sibilou Avalas,
deitado com dificuldade na cama.
- Pode vir! Estamos desarmados! – gritou Krummel, afastando-se da porta
da cela, que logo após se abriu. Um elfo baixo e gordo entrou, com uma maleta
em mãos.
- Eu sou o doutor Merkus. Quem é que está ferido?
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- Quem é o único com um sangramento óbvio? – perguntou Avalas,
irascível. A dor o tornava verdadeiramente insuportável.
O médico acenou com a cabeça, e andou na direção do grande elfo.
- Os senhores que estão bem, podem segurá-lo? Isso vai ser difícil, e acho
que é fácil ver que eu não conseguirei contê-lo sozinho.
Krummel acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mahslia, você pode conjurar um feitiço paralisante em Avalas? Será meio
caminho andado.
- Mas então não precisamos contê-lo, não é? – perguntou a elfa,
preparando a magia.
- Mahslia, você é linda, simpática e inteligente, mas não entende nada de
magias na prática e no cotidiano – sorriu Krummel. – Por favor, confie em mim.
Cinco minutos depois, Avalas estava imobilizado, de bruços, no chão.
Corash e Mahslia sentavam em suas costas, enquanto Krummel, que pesava
aproximadamente a mesma coisa que os dois juntos, estava deitado nos
calcanhares do grande elfo, que já estava afetado pela magia de Mahslia.
- Isso tudo é mesmo necessário? Porque eu estou bem desconfortável aqui!
– reclamou Avalas.
- Calado! Doutor, pode começar. – disse Krummel, pesando mais nos
calcanhares do amigo.
O rotundo elfo se ajoelhou ao lado da perna machucada de Avalas e pegou
um bisturi de sua maleta. Com um corte preciso, ele lancetou o inchaço, que
escorreu um fétido e amarelado pus. Avalas gemeu de dor.
Com muito cuidado, o médico pegou um pano reservado e começou a
limpar o ferimento do enorme elfo, que tentava se contorcer de dor. A magia de
Mahslia estava funcionando... ainda.
- Doutor, está doendo! – reclamou Avalas, por entre os dentes.
- Eu sei, Avalas. Por favor, agüente mais um pouco. – respondeu o médico,
sem sequer erguer os olhos. De sua maleta, também tirou um frasco lacrado
com uma rolha, que ele puxou com os dentes e derramou lentamente no
ferimento. Avalas urrou.
E começou subitamente a se contorcer.
- Segurem-no firmemente! – disse o médico.
- Mas... E minha magia?! – perguntou Mahslia, jogando seu corpo em cima
de Avalas.
54
- Eu avisei que seríamos necessários. Mahslia, a força bruta muito grande
pode anular os efeitos da magia de paralisação. Ou melhor, sobrepujá-los. A
força de Avalas já é grande, sabem os deuses. Como a dor é reflexa, a força que
os músculos empregam é desmedida. Por isso estamos aqui! – explicou
Krummel, pressionando ainda mais as pernas de Avalas no chão. O médico
aproveitou e derramou um pouco mais do líquido na perna.
- Calma, Avalas, estamos fazendo isso para seu próprio bem! – resmungou
Corash. A única resposta que obteve foram os urros de dor do grande elfo.
Com paciência, o médico pegou um outro pano em sua maleta, limpando
o excesso de líquido que havia na perna de Avalas. Surpreendentemente, não
sangrava mais. No entanto, devido à dor, o enorme elfo desmaiara.
- Que é isso, senhor? – perguntou Mahslia.
- É um tipo de ácido, menina. Ele cauteriza o ferimento, impedindo-o de
sangrar. Só que dói. Bastante. – respondeu Merkus, buscando outro frasco,
menor, também lacrado com uma rolha. Destampando-o, ele derramou todo o
seu conteúdo na ferida, passou novamente o pano com que limpara o ácido e,
enfim, puxou um rolo de bandagens da maleta, fazendo um bem cuidado
curativo. Logo em seguida, recolheu suas bagunças, exceto o rolo de curativo, e
dirigiu-se para a porta.
“Aqui, meninos e menina, deixarei com vocês este rolo de bandagens.
Troquem o curativo todos os dias, sim? Se possível, lavem o ferimento todas as
vezes antes que forem trocar.”
- Mas como... – começou Corash, que logo foi silenciado por uma
cotovelada de Krummel.
- Entendemos, doutor. Muitíssimo obrigado. – agradeceu ele, fazendo uma
mesura. Mahslia e Corash o imitaram, e até Avalas fez um grunhido e acenou
com a cabeça, logo perdendo a consciência novamente.
- Então, se me dão licença... – despediu-se o médico, virando-se e saindo.
Um pedaço de papel acidentalmente caíra de um de seus bolsos. Antes que
qualquer um pudesse falar alguma coisa, Krummel sinalizou um pedido de
silêncio, abaixou-se e mostrou o papel para Corash e Mahslia. Nele, em letras
elegantes, estava escrito um recado claríssimo.
“Amanhã de manhã. Haverá amigos. Cuidem-se bem.
Fiar Lam”
55
Capitulo Catorze
Os companheiros se entreolharam, nervosos. Lian Fiar os dera apenas
algumas horas. No entanto, eles encontravam-se feridos e exaustos. Como
conseguiriam?
- O que faremos agora? – murmurou Corash, olhando para os
companheiros, desolado, após uma hora de silêncio.
Avalas dormia a sono solto. A dor e o esforço excessivo, combinados com
o cansaço, fizeram com que seu cérebro decidisse que era hora de descansar – e
simplesmente desligou assim que o médico saiu.
Mahslia estava encolhida num canto, com os cabelos ruivos um tanto
quanto embaraçados caídos na frente do rosto. Ela abraçava os joelhos, e
parecia nervosa.
Krummel, por sua vez, estava sentado em posição de lótus, meditando.
Era o único realmente calmo, à exceção de Avalas, que sequer tinha consciência
do que ocorria à sua volta. Foi ele que respondeu, sem sequer abrir os olhos,
com uma voz que indicava, talvez, um pouco de sono.
- Acredito que tenhamos cinco horas até a hora final. Nesse tempo,
deveremos nos preparar na medida do possível. Em primeiro lugar, você e
Mahslia devem se acalmar. Se vocês ficarem nervosos, apenas farão com que
nossas possibilidades de falhas cresçam. Em segundo lugar, nossas mortes são
certas – seja se considerarmos o tempo como implacável, seja se considerarmos
que nossas chances de sobrevivermos à arena estão diminuindo – e, mesmo que
sobrevivamos, pode ser que sejamos executados. Ou seja, se vamos morrer, ao
menos que seja de forma a tentarmos viver.
Mahslia levantou os olhos para Krummel. Ela chorava.
Olhando para a amiga, Corash sentiu um aperto no coração. Ela sempre
fora mais forte do que ele... e lá estava ela, chorando desesperada.
56
“Não posso deixa-la assim”, decidiu Corash. O arqueiro se levantou e
sentou ao lado da amiga, puxando-a para seu ombro enquanto afagava a cabeça
da amiga com a outra mão. Mahslia começou a soluçar de modo forte, enquanto
suas lágrimas molhavam levemente o ombro do amigo.
- Você está certo, Krummel. Como podemos nos preparar para nossa fuga?
– perguntou o arqueiro, olhando firmemente para o bárbaro.
- Descansem. Precisaremos de toda força que pudermos reunir, e garanto a
vocês que não será pouca.
- E como saberemos quando chegar a hora?
Pela primeira vez desde que sentara, Krummel abriu os olhos, olhando
ferozmente para Corash.
- Não se preocupe. Eu os avisarei.
Corash assentiu, fechando os olhos. Sua mão continuava a afagar a cabeça
de Mahslia, que parara de chorar e agora ressonava levemente no ombro de
Corash.
Krummel olhou para os dois elfos e sorriu de leve. Eles eram ótimos
companheiros, pensou ele.
E voltou ao seu estado meditativo.
O deserto vermelho estava escaldante. O vento que soprava ciscos nos
olhos de Corash tampouco ajudava a dissipar o calor, uma vez que também
estava muito quente. O céu azul não tinha nuvens e, à toda a volta, só se via
areia e mais areia, vermelha e ameaçadora.
“Onde estou?” perguntou-se Corash, de modo vagaroso, olhando para o
céu, deitado. Logo depois, arrependeu-se da pergunta. Era óbvio que estava em
um deserto. O calor não estava permitindo que pensasse direito.
Tentou mover o braço direito. Ele se movia, com um pouco de lentidão, é
verdade, mas se movia. Isso era bom. Fez o mesmo com o outro braço e as
pernas. Todos os membros se moviam. Ótimo. No geral, parecia apenas que ele
acabara de acordar.
Corash espreguiçou-se, espantando o vagar dos músculos. Uma sensação
prazerosa percorreu seu corpo, o arrepiando. Em seguida, o jovem arqueiro
sentou-se na areia, sacudindo a cabeça para espanar do cabelo a sujeira.
“Bom, isso é estranho. Até agora há pouco eu estava em uma cela fedida
com a Mahslia, o Krummel e o Avalas. E agora, estou no deserto, sozinho. O
que houve?” perguntou-se, olhando fixamente para o oeste. Sabia que olhava
para o oeste porque o sol nascente queimava sua nuca violentamente.
57
Algumas teorias passaram por sua cabeça, mas nenhuma era plausível.
Não fora o rei que o enviara lá, uma vez que seu time era a mais nova sensação
da arena; tampouco fora Lian Fiar – sendo seu pai e desejando que os amigos
fugissem, teria no mínimo a decência de dar a eles suprimentos e de os deixar
juntos, e não espalhados por um deserto desconhecido.
Pensar em seu pai o lembrou de uma coisa de extrema importância: seu
arco. Levando a mão às costas, notou que estava desarmado.
“Excelente. Sozinho, desarmado e sem água ou comida no meio de um
deserto. Tem como ficar pior?”, perguntou-se ele, emburrado.
Naturalmente, tinha.
Os ouvidos de Corash captaram um som baixo e gutural, meio rasgado e
meio animalesco. Podia não ser nada.
“Nada é nada”, pensou o jovem arqueiro, repetindo a máxima que seu
mestre ensinara na vila de Sparon. Um pouco nervoso, Corash olhou para trás.
A areia se movia um pouco, como se borbulhasse. O som aumentava a
cada segundo, até que o chão pareceu explodir em som e vermelhidão
pulverizada. Um corpo cilíndrico, segmentado e comprido saíra do chão,
rugindo e mostrando a boca redonda, cheia de dentes e sem mandíbula. Dois
pequenos olhos malvados focavam no magro elfo, cheios de fome.
“Uma minhoca do deserto? Não é possível.”, pensou Corash, desesperado
com sua própria sorte; ou melhor, com sua falta de sorte. Entre todos os
predadores, a minhoca do deserto era conhecida como a mais cruel e voraz. Seu
cérebro minúsculo fora programado de modo binário, ou seja, ela alternava sua
vida entre a caça e o sono. Eram as duas únicas coisas que conseguia
compreender. Todo o resto estava fora de sua alçada cognitiva. Dor, tristeza,
felicidade, isso nunca afetara as minhocas do deserto.
A minhoca olhou Corash maldosamente e farejou o ar. Além do cheiro de
sua nova presa, só conseguia sentir o cheiro de outras de sua espécie, mas ela
estava cansada de caçar outras minhocas. Elas eram duras demais, molengas
demais, pouco nutritivas demais. Não, ela queria algo novo. Algo com um
cheiro mais doce, mais vivo, mais desesperado.
Exatamente como esse elfo que se apresentava a ela.
Seu cérebro binário ordenou que caçasse logo. A minhoca obedeceu. Ela
não tinha muita opção, é claro, mas se tivesse, teria feito o mesmo.
58
Com sede de sangue, a minhoca mergulhou no chão, engolindo diversos
quilos de areia por segundo e se dirigindo rapidamente a Corash. Logo mais,
ela teria um banquete.
Corash viu a minhoca mergulhar e a areia começar a se mover
ligeiramente em sua direção.
“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. O que faço?”
Corash deu um pulo para frente e saiu correndo desabalado.
Quinze minutos depois, Corash não aguentava mais correr. Seu lado dava
pontadas dolorosas, seu corpo gritava por água e seu pulmão pedia por ar
fresco.
Apoiando-se nos joelhos, Corash tentou recuperar o fôlego. Durara quinze
minutos; era um feito notável. No entanto, não sabia quanto mais poderia
durar, já que estava desarmado e extremamente cansado. Seus lábios estavam
grudentos, e seu corpo estava coberto por suor seco – quando notaram que a
água não viria, suas glândulas sudoríparas pararam de trabalhar.
O rugido voltou a se aproximar, dessa vez mais violento. A minhoca
parecia brava porque sua presa durara tanto.
Corash riu, aquele riso louco que precede a morte. Parecia engraçado que
correra tanto para nada; que lutara tanto na arena para nada; que finalmente
conhecera seu pai para nada.
Ele se virou para a minhoca. Se fosse para morrer, morreria encarando-a
de frente.
O chão novamente explodiu, e a minhoca se ergueu contra o céu, cinco
metros mais alta do que Corash, e apontou para ele sua boca.
Era agora. Corash olhou para o céu, desejando ter conhecido também sua
mãe. Era um sonho impossível, a essa altura do campeonato.
A minhoca avançou.
E sua cabeça segmentada explodiu, espirrando sangue verde e carne de
minhoca para todos os lados.
Limpando o rosto, Corash olhou para os lados, procurando a pessoa
responsável por esse ato.
Ao olhar para trás, foi quando viu. Uma mulher magra e razoavelmente
alta, com bonitas curvas e um lindo rosto, estava com a mão enluvada apontada
para onde estivera a minhoca. Ela vestia roupas extremamente elegantes, que
estavam absolutamente deslocadas do lugar em que estavam. Seus cabelos
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castanhos eram bem cuidados, com duas pequenas tranças saindo de suas
têmporas para a parte de trás da cabeça. O resto do cabelo caía às suas costas,
numa cascata de lindos cachos. Sua cabeça era circundada por um delicado
diadema dourado, que era ornado por um brilhante rubi bem no centro de sua
testa. Sua pele morena era lisa e bem cuidada.
- Olá, meu filho. – cumprimentou Amaky, sorrindo para Corash
calorosamente.
Capitulo Quinze
- Corash... Corash... Acorde, elfo! – dizia a mulher, com uma voz muito
grossa. Muito mais grossa do que deveria, considerando seu tamanho. Aquela
voz era metálica, quase uma voz de orc.
Orc. Corash subitamente lembrou-se de Krummel.
Sobressaltado, o jovem arqueiro abriu os olhos, com o corpo se sacudindo
um pouco. Krummel encontrava-se acocorado à sua frente, com um pouco de
preocupação no rosto.
- Você está bem, Corash? – perguntou ele, levantando-se e estendendo a
mão para ajudar o amigo. Mahslia não mais estava dormindo em seu ombro.
- Sim, estou. Apenas tive um sonho estranho, mas não foi nada demais. Já
é hora? – perguntou ele, olhando pela cela.
Mahslia estava de pé, se alongando. Seu cabelo ruivo fora preso num rabo
de cavalo, e seus olhos pareciam pegar fogo. Ela olhou para Corash e sorriu
calorosamente para ele, acenando positivamente com a cabeça em resposta.
Essa, sim, era a Mahslia que ele conhecia.
Avalas, por sua vez, estava recostado na parede, com uma perna cruzada à
frente da outra. Sua espada descansava ao seu lado, e não às suas costas, como
de praxe. Apesar de toda a pose, ainda parecia um pouco pálido.
- Você está bem, Avalas? – perguntou Corash, olhando para o
companheiro.
- Sim. Obrigado por cuidarem de mim, a propósito. Se não fossem vocês,
provavelmente eu estaria num caminho sem volta para a morte. – disse ele,
tentando esboçar um sorriso.
Corash sorriu. Apesar de ser um humor um tanto quanto negro, já era um
começo, ele tinha que admitir.
60
- Bom, não temos muito tempo para conversar. Assim que sairmos daqui,
prometo que botaremos os assuntos em dia. Por ora, temos que nos focar.
Venham, vamos repassar o plano. – chamou Krummel, eficiente, tirando de um
bolso interno do seu colete de couro um pedaço de papel dobrado.
Ajoelhando-se no chão, o meio-orc desdobrou o papel, revelando uma
planta da masmorra na qual se encontravam.
- Vejam, estamos aqui – disse ele, colocando o dedo sobre uma cela. –
Temos dois caminhos que podemos seguir. Se virarmos à esquerda, chegaremos
à arena.
- Que suponho que seja o lugar que queremos evitar, certo? – perguntou
Corash.
- Eu quero. Se quiser ir para lá, porém, fique à vontade.
Corash corou, murmurando algo ininteligível. Krummel prosseguiu.
- Teremos, então que virar à direita. Viraremos à segunda esquerda e
vamos até a terceira porta, também à esquerda. Lá estarão nossas coisas – e,
segundo me falou Lian Fiar, o primeiro de nossos amigos. Ele tomará as vezes
do almoxarife do depósito de armas.
“Após isso, viraremos à direita, e continuaremos seguindo. Após
andarmos cerca de cinquenta metros, encontraremos uma trifurcação – e aqui
nos separaremos.”
Mahslia olhou para o meio-orc com cara de confusa.
- É simples, Mahslia. A prisão foi projetada para que nenhum prisioneiro
pudesse escapar sozinho. O caminho do meio leva ao portão para as Dunas
Congelada. No entanto, para se abrir os portões, é necessário que se ativem
duas alavancas. Uma se encontra pelo caminho da direita, e a outra pelo
caminho da esquerda. Para que alguém fuja, é necessário que se ative ambas as
alavancas. A ideia principal é a de que, como a pessoa deverá andar quatro
vezes por longos corredores, duas idas e duas voltas, a guarda terá tempo de se
mobilizar e prender o fugitivo novamente. – explicou Krummel, indicando no
mapa o que falava.
“Quando ativarmos as alavancas, voltaremos e seguiremos pelo caminho
do meio e, enfim, estaremos na Dunas Congeladas. Antes de sairmos, porém,
encontraremos mais um aliado, dessa vez com alguns suprimentos para nós.
Teremos, porém, que fazer uma pequena alteração no plano original.
“Antes, iríamos nos separar da seguinte forma: Corash e Avalas iriam pelo
caminho da esquerda, e Mahslia e eu iríamos pelo caminho da direita. Porém,
não contávamos com o ferimento de Avalas. Então nos dividiremos por
61
tamanho: Avalas e eu iremos pela esquerda, e Mahslia e Corash irão pela
direita.”
- Péssima ideia, Krummel. – disse Avalas, fitando o meio-orc.
Krummel olhou desconfiado para o espadachim.
- E por que seria?
- Porque precisamos de alguém com força bruta em ambos os grupos.
Suponhamos que os guardas já estejam avisados. Nós dois conseguiríamos
facilmente lidar com eles, mas Mahslia e Corash não. Decerto que têm poder,
mas usar magias cansa, e flechas são limitadas. De nada adiantará escapar se
não escaparmos juntos.
Krummel assentiu. O argumento de Avalas era ótimo.
- Então o que sugerem? – perguntou o meio-orc, olhando para os três.
- Mantenha as mesmas equipes. Eu não sou completamente leigo em
magias, de modo que os talentos de Mahslia provavelmente serão melhor
aproveitados se combinados com os seus. Além disso, Corash é fisicamente
mais forte que Mahslia. Se alguém precisar me carregar, vai precisar de força. A
única saída que temos é manter. – sugeriu Avalas, olhando para os
companheiros com intensidade.
Krummel assentiu devagar, olhando para o espadachim. Mahslia
murmurou uma concordância, e Corash perguntou:
- Estamos todos de acordo, então. Há mais alguma dúvida quanto ao
plano?
Os companheiros negaram com a cabeça. O plano era claríssimo.
- Então, vamos. – chamou o arqueiro.
Os amigos se deram quinze minutos, no qual se alongaram e aqueceram,
se preparando para o que viria. Em seguida, Krummel colocou-se ao lado da
porta, e Mahslia chamou o guarda de sua cela.
- Senhor guarda, por favor! Eu estou me sentindo um pouco mal... – disse
ela, com a voz um tanto quanto chorona.
- E o que você quer de mim, inferno? – respondeu a voz do guarda,
bastante rude.
- Será que o senhor não pode me trazer um pano? Acho que estou com
febre, e gostaria de resfriar minha testa com um pano úmido...
- Pois tire de sua roupa!
Mahslia revirou os olhos.
62
- Mas, seu guarda, eu sou uma elfa! Fêmea! Decerto que não quer que eu
exponha meu corpo em uma cela com tantos homens, não é?
O som do pensamento do guarda podia ser ouvido por detrás das paredes.
Finalmente, ele anuiu.
- Pois muito bem, prisioneira! Me dê um minuto! – disse ele. Sons de
passos afastaram-se da porta.
Vinte minutos depois, os passos se aproximaram novamente.
- Garota, levante-se! Eu trouxe seu maldito pano! – chamou o guarda,
abrindo a porta e entrando despreocupadamente na cela.
Krummel imediatamente derrubou o guarda no chão, fazendo com que
sua manzorra tapasse a mão do elfo. Em seguida, tirou o elmo do adversário,
agarrou-o pelos cabelos e bateu sua cabeça no chão de pedra até que este
estivesse desmaiado.
Avalas olhou surpreso para o meio-orc.
- Krummel, nunca pensei que você fosse tão delicado assim. – disse ele,
sorrindo com uma ponta de ironia.
Krummel sorriu de volta, jogando o elmo para o enorme elfo.
- Você ainda não me viu tentando passar linha numa agulha. A delicadeza
transborda dos meus dedos. Aqui, use este elmo. Pode te dar uma proteção
extra.
Avalas agarrou o elmo e jogou-o para Corash.
- Esqueça. A cabeça do guarda é pequena demais para que esse elmo caiba
em mim. Corash talvez faça um melhor uso disso.
O arqueiro pegou o elmo e olhou descrente para Avalas.
- Claro. Aí restrinjo meu campo de visão, o que é uma excelente ideia para
um arqueiro. A não ser que a Mahslia queira, vamos deixar isso aqui.
- Pode esquecer. O que vale para arqueiros, vale para magos. Além disso,
elmos interferem na conjuração de magias. – disse a maga, olhando para o
amigo.
Corash fez menção de colocar o elmo no chão, mas Avalas pediu-o
novamente. Corash jogou o objeto para o enorme espadachim, que o pegou com
a mão esquerda.
- Então vamos logo. Quanto antes pegarmos nossas coisas, antes sairemos
daqui. – disse ele, saindo da cela e virando à direita.
Krummel olhou para Mahslia e Corash, riu e seguiu Avalas. Dando de
ombros, os dois amigos seguiram os companheiros.
63
O medo é impressionante, pensou Corash. Sua razão afirmava que a
distância que teriam que percorrer era pequena, e que logo encontrariam
alguma paz e um amigo, subordinado de seu pai.
Mas o medo muitas vezes é mais forte que a razão. O corredor que
percorriam era pequeno – oras, ele conseguia ver onde deveriam virar! -, mas
parecia imenso, negro e opressivo com suas paredes de pedra estreitas e frias. O
instinto martelava na base de seu crânio, afirmando que logo mais iria pulular
um exército de sanguinários elfos subordinados ao rei, que os colocaria de volta
à cela, e dessa vez os jogaria na Arena sem suas armas.
Sentindo-se só, Corash olhou para Mahslia, e leu o medo em seu rosto. A
amiga olhou para ele e sorriu. Um sorriso manchado de medo, decerto, mas,
como todo sorriso manchado de medo, também era um sorriso resplandecente
de companheirismo e lealdade. O coração de Corash abrandou um pouco.
Ao virarem à direita, seguindo seu caminho, o arqueiro olhou para
Krummel. Seu rosto de meio-orc denotava tranquilidade, bem como seus olhos,
mas sua mão batia nervosamente contra a perna, tentando dissipar a ansiedade.
Krummel estava temeroso também. Quando o meio-orc olhou para Corash,
acenou com a cabeça, de modo bondoso. O aceno dizia para Corash que o que
ele sentia era perfeitamente normal, perfeitamente plausível, e nem um pouco
condenável. O coração de Corash esquentou um pouco.
Quando estavam chegando perto da cela onde ficavam seus pertences,
após uma longa caminhada por longos, negros e frios corredores de pedra,
opressores por sua estreiteza, Corash olhou para Avalas.
A linguagem corporal do enorme elfo não denotava nada, tampouco sua
expressão. A diferença estava nos olhos. Aqueles olhos frios do Avalas que os
acompanhara na saída de Sparon, um tanto quanto invasor, um tanto quanto
chantagista, um tanto quanto estranho, não existiam mais. No lugar deles, havia
olhos com incertezas, com sentimentos, com alma. Era possível ver quão grande
era o coração de Avalas, naqueles olhos temerosos, mas determinados.
Quando captou o olhar de Corash, Avalas deu uma rápida piscadela para
o arqueiro. Não era um gesto puro como o de Mahslia ou bondoso como o de
Krummel, mas era um gesto de cumplicidade extrema. Um gesto que, apesar de
pequeno, indicava amizade – o que, vindo daquele enorme elfo frio, era algo
muito grande. O coração de Corash pareceu crescer um pouco em seu peito.
E, subitamente, Corash Lam notou que não se importaria tremendamente
se não conseguissem fugir daquela prisão. Ao menos teriam tentado e, se
morressem, morreriam lutando por algo que acreditavam, e morreriam lutando
64
juntos. Talvez não fosse a morte nobre que todo ser deseja, mas, afinal, é mais
nobre morrer lutando por algo que se acredita ou viver sabendo que podia-se
ter feito mais?
Corash continuava com medo. Seu coração não estava leve como sempre,
não estava quente como sempre, não estava livre como sempre. O medo ainda
pesava, esfriava e oprimia seu peito. Mas Corash se sentia corajoso, pois a
leveza que Mahslia lhe trouxera, o calor que Krummel lhe dera e a pequena
liberdade com a qual Avalas lhe presenteara existiam dentro de si.
E isso bastava.
65
Capitulo Dezesseis
Ao chegarem à cela onde seus pertences os esperavam, os amigos se
depararam com enormes dunas de equipamento. Espadas brilhantes
amontoavam-se ao lado de grevas enferrujadas. Pilhas de capas equilibravam-
se precariamente sobre alguns peitorais jogados, e por todo o lado via-se elmos
de diferentes formas, cores e tamanhos.
À frente disso tudo, um elfo pequeno brincava com o fio de um machado
feio e bruto, passando pela lâmina uma pedra com o esmero que uma mãe
coruja usa para passar a esponja sobre seu filho recém-nascido. Seus olhos
denotavam esperteza, e as rugas às suas voltas indicavam sua idade.
Os amigos se entreolharam, curiosos, e Krummel se adiantou.
- É... com licença, senhor? – chamou ele, com sua voz grave ecoando de
modo estranho pela sala.
- Shh. Não fale, criança. – sussurrou o velho elfo, em resposta. Sua mão
continuou amolando o machado.
O meio-orc olhou para os amigos confuso. Ele claramente estava perdido.
Obedecendo ao elfo, os quatro companheiros ficaram alguns minutos em
silêncio, ouvindo metal raspar em pedra. O som era estranhamente
reconfortante, mas o tempo corria.
- Chega! – explodiu Avalas, subitamente. – Estamos com o tempo
apertado! Dê-nos nossas armas, já!
O velho elfo lançou a Avalas um olhar assustadoramente gélido, parando
de passar a pedra no fio do machado. O espadachim não recuou, mas tampouco
insistiu.
- Crianças, já mandei fazerem silêncio.
Sua mão voltou a passar a pedra no machado.
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- Vamos embora. Sinceramente, não temos muito mais tempo a perder. –
disse Mahslia aos amigos, num sussurro quase inaudível.
- Fiquem. – ordenou o velho elfo, sem tirar os olhos do machado.
Os amigos se entreolharam. O velho parecia querê-los ali, ainda que
estivesse tomando o curto e, portanto, precioso tempo que lhes restava.
Com um aceno de cabeça, Krummel sentou-se no chão em posição de lótus
e fechou os olhos, meditando.
Claramente contrariado, Avalas apoiou-se na parede, olhando feio para o
velho.
Mahslia e Corash se entreolharam e, dando de ombros, sentaram e
recostaram-se na parede, descansando a cabeça na fria pedra da masmorra.
O ritual do velho durou mais dez longos minutos. Dez minutos em que o
elfo passava a pedra de amolar pelo machado lentamente, olhando o fio da
arma por diversos ângulos.
Mahslia ressonava levemente, tendo cochilado. Avalas se cansara da
parede, e agora andava pela sala com uma expressão irritada na face. Corash já
se levantara, e procurava por coisas interessantes na sala do tesouro. Krummel
não se movera.
- Pronto. – declarou o velho elfo, pousando a pedra de amolar ao seu lado
e estalando os dedos. O machado luziu brevemente, e depois voltou ao normal.
O ancião pousou o machado ao lado de um outro machado, idêntico ao
primeiro.
“Sirvam-se de suas armas.”
Avalas olhou desconfiado para o velho.
- Agora podemos falar?
O ancião olhou para ele de forma penetrante.
- Eu falei para se servirem de suas armas, não para abrirem a boca.
Isso fora o cúmulo. Urrando, Avalas puxou sua espada, dirigindo-se para
o velho elfo. Este, por sua vez, levantou-se, irradiando poder, e pegou uma
espada da pilha de equipamentos descartáveis.
- Chega! – gritou Krummel, com sua voz retumbando pela sala. Ambos os
gladiadores pararam. O ancião jogou a espada de qualquer jeito no topo de uma
das pilhas e sentou-se novamente. Avalas, relutantemente, guardou a tosca
espada. Mahslia, que havia acordado assustada, olhava confusa para todos os
lados. Corash, que subira em uma das pilhas, virou-se subitamente para a
67
origem dos gritos, com a expressão chocada contrastando violentamente com o
felpudo cachecol que usava à volta do pescoço, e que achara em uma das pilhas.
O meio-orc levantou-se, esticando-se e espreguiçando-se, antes de se
dirigir ao velho elfo.
- Por que o senhor nos fez esperar tanto? – questionou ele, de forma
penetrante.
O velho sacudiu negativamente com a cabeça, olhando firmemente para os
amigos.
- Façam silêncio, tolos. Peguem suas armas e vão embora daqui. Já tomei
tempo demais de vocês. Um dia, se nos reencontrarmos, eu talvez lhes conte
minha história. Por enquanto, basta que saibam que os ajudo por uma dívida de
gratidão a Lian Fiar. Agora, apressem-se!
Os amigos se entreolharam. Claro, o que o velho dizia fazia todo o sentido.
Só tinha um problema...
- Onde estão nossas armas? – perguntou Mahslia, com a voz um tanto
quanto embargada de sono, ainda.
- Aqui, crianças. – apontou o ancião, para uma pilha aparentemente
desorganizada de equipamentos. A pilha onde colocara o machado que estivera
amolando com tanto esmero.
Então, os amigos viram. A pilha estava organizadamente desorganizada,
de forma que, se um guarda resolvesse checar o trabalho do ancião, não
desconfiaria de nada. Porém, estava disposta de forma a acelerar ao máximo a
troca de equipamentos dos amigos.
Dois minutos depois, todos estavam reequipados da melhor forma que
podiam, com suas antigas armas e armaduras. Os amigos agradeceram ao
velho, que rispidamente acenou com a cabeça e estendeu a Mahslia uma bolsa
de couro.
- Aqui, mocinha, leve isso. Aqui tem itens essenciais para vocês: comida,
cantis com água, e alguns presentes. No entanto, sugiro que não abram essa
bolsa até saírem daqui. Agora, vão. Cuide desses cabeças-de-vento, mocinha.
Sabem os deuses que eles precisam.
Mahslia sorriu, olhando para os amigos. Avalas amarrou ainda mais a
cara.
- Vamos. Já perdemos muito tempo aqui. Obrigado por sua ajuda, senhor.
– disse Krummel, inclinando a cabeça em agradecimento e saindo do depósito
de armas.
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Avalas cumprimentou o velho de modo seco com a cabeça e saiu. Mahslia
abraçou o elfo, murmurou um agradecimento e saiu correndo. Corash apertou a
mão do aliado, mas, antes que pudesse sair, o velho segurou sua mão.
- Corash, um aviso.
- Pois não?
- Sonhos são mensagens, mas muitas vezes exigem mais do que a
superfície indica.
Corash arregalou os olhos.
- Como o senhor... – começou.
- Faça-me o favor. Você é filho de Amaky. Eu carreguei essa menina nos
braços, e te garanto, ela tinha potencial de ser o maior oráculo que Lynzea já
viu. A marca do sangue dela está nos seus olhos, Corash. Agora, chega de papo
furado. Adeus! – explicou o velho, rapidamente, largando a mão de Corash e
virando as costas para ele.
Sorrindo, o jovem arqueiro saiu da sala, juntando-se aos amigos.
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Capitulo Dezessete
A moral do pequeno grupo de amigos aumentara consideravelmente.
Agora eles estavam com seus pertences, com as armas que estavam
verdadeiramente acostumados, as armaduras e roupas que costumeiramente os
vestiam. O peso delas trazia boas memórias... ou quase.
- Isso é estranho. – comentou Avalas, enquanto avançavam e faziam uma
curva à direita.
- O que houve? – perguntou Mahslia, olhando para o enorme espadachim.
- Até onde me lembro, minha placa de peito não era tão leve. Nem minhas
manoplas ou minhas grevas. Elas ainda têm algum peso, naturalmente, mas me
sinto dez quilos mais leve do que me lembrava de sentir quando vestia
armadura. – disse ele, mirando seus equipamentos.
Krummel concordou com a cabeça, correndo à frente do grupo.
- Eu também senti isso com relação aos meus machados. Será que o velho
encantou nossas armas?
- É possível! Por isso, talvez, ele tenha demorado tanto em amolar o seu
machado! – exclamou Mahslia, animada.
Os companheiros se entreolharam sorrindo. Lian Fiar realmente queria
que eles fugissem.
Subitamente, uma voz atrás deles quebrou a sorte.
- Ei, vocês aí, identifiquem-se! – disse a voz, rude.
Ainda correndo, Corash virou-se e, rapidamente, atirou uma flecha na
direção da voz, em meio à escuridão que eles iam deixando para trás. Um som
engasgado e úmido indicava que a flecha atingira a garganta do guarda.
70
- Belo tiro – comentou Krummel. – Eu não queria ser seu inimigo, mesmo
escondido pelas sombras. Por onde cada time vai? – questionou ele, ao
chegarem na trifurcação.
Avalas puxou a espada, apontando a ponta para o caminho da direita.
- Krummel, você e Mahslia vão por aqui. Corash e eu vamos pelo caminho
da esquerda. Nos encontramos no fim do caminho do meio em dez minutos.
- E se não nos encontrarmos? – perguntou Mahslia, olhando assustada
para o grande elfo.
- Não existe essa opção. Dez minutos, Mahslia, senão teremos que começar
a improvisar. – respondeu ele, com uma determinação assustadora no olhar.
A maga concordou fracamente com a cabeça. Krummel sacou os
machados, e, subitamente, ficou três vezes mais ameaçador. Corash colocou
uma flecha em seu arco.
- Esperem! – exclamou Mahslia, tendo uma ideia. – Algum de vocês pode
checar se não há ninguém vindo pelo corredor?
- Tenho uma ideia melhor. – disse Krummel, avançando dois passos na
direção do corredor.
O meio-orc inspirou fundo, enchendo sua enorme caixa torácica de ar e
concentrando toda sua energia na garganta. Depois, inclinando-se para frente,
Krummel soltou um enorme rugido.
Era digno de ser visto, ou melhor, ouvido. A voz de Krummel, em geral
confortadora, calma e aveludada, estava assustadoramente bélica, rouca e
metálica. Parecia um dragão rugindo. O grito soprou um forte vento pelo
corredor.
Assim que o ruído se dissipou, Mahslia começou a trabalhar, conjurando
as mais diversas magias. Quando terminou, falou aos amigos:
- Agora temos algumas linhas de defesa mágicas e um alarme para quem
cruzar aqui. Estaremos avisados se alguém vier.
- Excelente. Agora, vamos! – disse Avalas, correndo pelo corredor da
esquerda com Corash.
Após um segundo para rirem, Krummel e Mahslia seguiram pelo caminho
da direita.
A maga e o bárbaro faziam uma figura díspar. A diferença entre o
tamanho dos dois era cômica, nos estreitos corredores da masmorra.
- Krummel, o que foi aquilo que você fez agora há pouco? – perguntou
Mahslia, curiosa com a técnica do companheiro.
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Krummel sorriu, com os olhos gentis brilhando.
- Ah, algo que meu pai me ensinou um dia: o Urro do Bárbaro. Nós,
bárbaros, concentramos nossa energia vital na garganta e impedimos que o ar
saia, aumentando sua pressão. Então carregamos nosso ar com a energia que
acumulamos, e o soltamos em forma de urro. É absurdamente útil para
amedrontar inimigos e afastá-los de nós.
Mahslia riu, virando à esquerda.
- Percebi! Mesmo eu fiquei com medo, e você está do nosso lado! Se eu
fosse um guarda, teria medo de encontrar um dragão.
Krummel sorriu, um pouco encabulado.
- Bom, na verdade, não foi só uma técnica do meu pai. Minha mãe, que era
a orc, era versada em magia. Ela me ensinou algumas artes mágicas, inclusive a
da ilusão. Utilizei um pouco de magia junto do Urro do Bárbaro para parecer
um dragão, mesmo.
Mahslia olhou para Krummel, espantada.
- Quer dizer que você também entende de magia?
- Alguma coisa, Mahslia, alguma coisa. Não sou, nem nunca serei, um
mago com a sua habilidade. Mas posso fortalecer um pouco minhas habilidades
com o que minha mãe me ensinou. – respondeu ele, humilde.
Mahslia balançou a cabeça, incrédula. Havia algo que Krummel não sabia?
Os amigos seguiram cinquenta metros em silêncio, chegando, no fim do
caminho, a uma alavanca de madeira levantada.
Krummel assentiu para Mahslia, que retribuiu o gesto. Então, o meio-orc
abaixou a alavanca.
Barulhos de engrenagens e mecanismos se fizeram ouvir através da parede
de pedra.
Krummel sorriu.
- Nossa parte foi feita. Vamos voltar para o ponto de encontro.
Mahslia sorriu de volta, aliviada.
- Isso está sendo mais fácil do que eu imaginei que seria. – comentou ela.
Obviamente, foi nesse momento que tudo começou a dar errado.
Corash e Avalas seguiram rapidamente pelo corredor, sem falarem um
com o outro. Não havia muito o que falar nesse curto tempo, afinal, e entre eles
havia ainda um certo constrangimento, aquele que vem de um silêncio de uma
amizade que ainda se consolida.
E, obviamente, esse silêncio incomodava absurdamente.
72
- Então, Avalas... como você entrou na academia militar? – perguntou
Corash, esperançoso.
Avalas negou com a cabeça.
- A história é muito longa, Corash. Precisamos de foco.
Corash fechou a boca, envergonhado, e olhou para o companheiro. Avalas
estava corado, e respirava um pouco pesado, o que era bem estranho – o
enorme elfo estava em ótima forma física.
Então, Corash se lembrou. Avalas estava ferido, ainda. Naturalmente, ele
não reclamava, mas seu desempenho não seria o que seria esperado dele
normalmente.
Os companheiros fizeram uma curva à direita e, um minuto depois,
estavam ao lado de uma alavanca levantada.
- Finalmente. – resmungou Avalas, um pouco ofegante. – Vamos logo com
isso, Corash. Já devemos estar um pouco atrasados.
Corash assentiu, abaixando a alavanca. Um zumbido elétrico fez-se ouvir.
- É isso? – perguntou o arqueiro, confuso. Ele esperava mais barulho.
Avalas assentiu.
- Eu imagino que sim. Essa alavanca deve controlar o fornecimento de
energia ao mecanismo da porta, enquanto a alavanca de Mahslia e Krummel
controla o mecanismo em si.
Respirando um pouco aliviado, Corash sorriu.
- Foi fácil, não é?
Obviamente, foi nesse momento que tudo começou a dar errado.
Dos dois lados da prisão, um alarme começou a soar, alto, como um grito
lamurioso e choroso de uma banshee. Junto ao som do alarme, som de chamas
crepitando, palavrões sendo gritados por vozes rudes e corpos caindo no chão.
- Merda. – disseram quatro companheiros, de forma estranhamente
uníssona.
Krummel olhou a alavanca que havia abaixado e lançou contra ela seus
machados uma, duas, três vezes, até a alavanca quebrar, em posição de ativada.
Mahslia olhou para ele com curiosidade.
- Se formos pegos, eles não conseguirão fechar o portão de forma tão
rápida quanto gostariam. Assim, talvez Avalas e Corash possam escapar.
Mahslia assentiu, assombrada pelo raciocínio rápido do meio-orc, e sacou
seu cajado.
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- Vamos ter que lutar, certo?
Krummel fez que sim com a cabeça.
- Então eu vou na frente. – disse Mahslia, com os olhos reluzindo de poder.
Avalas olhou para o corredor, para Corash e para a alavanca. Em seguida,
puxou sua espada enorme e, com um único ataque, destroçou o mecanismo.
- Por que você quebrou a alavanca? – questionou Corash, estranhando o
comportamento de Avalas.
- Pense, Corash! Para o portão abrir, é necessário que ambas as alavancas
estejam ativas. Se uma desativar, o portão fechará. Dessa forma, tornamos mais
difícil que fechem o portão. Se formos capturados, Mahslia e Krummel podem
conseguir escapar.
- Ah. – disse Corash, bravo por não ter pensado nisso antes. Ele estava
desconcentrado.
“Foco, Corash Lam! Não vá morrer agora!” ecoou sua consciência.
Sacudindo a cabeça, Corash preparou uma flecha em seu arco, retesando
muito levemente a corda.
- Avalas, espero que você consiga me dar uma cobertura digna. –
provocou ele, indo à frente do espadachim.
O enorme elfo balançou a cabeçorra. O que fazer com Corash Lam?
Mahslia e Krummel viraram à direita, na direção da trifurcação, quando
viram os soldados do rei vindo em sua direção, com espadas nas mãos e ódio
nos olhos.
Não havia muito tempo para ser sutil.
Estendendo o cajado para os soldados, Mahslia conjurou uma magia
pessoal da qual sentia muito orgulho. Uma rajada de labaredas envolta por
raios que só se desvinculavam das chamas para atingir quem tentasse fugir de
qualquer forma do ataque.
O fogo rugiu pelo estreito corredor, lambendo as paredes de pedra com
vigor e consumindo o ar da masmorra, queimando violentamente em direção
dos inimigos.
Mahslia sustentou a magia por cinco segundos, depois abaixou o cajado.
Quando os resquícios da técnica se dissiparam, os inimigos estavam caídos no
chão, desmaiados de dor ou mortos.
Krummel assobiou.
74
- Bela magia, ruiva. Agora, se me permite, eu fico com o resto. – disse o
meio-orc, com o olhar ficando subitamente sério e sanguinário.
Fazendo os machados soarem um contra o outro uma vez, o enorme
bárbaro saiu de trás da pequena maga, atacando brutalmente a nova leva de
soldados que aparecera no corredor.
Mahslia deteve-se um minuto para observar o companheiro lutando. Ele
era genial. Seus machados tornaram-se meros resquícios de luz, cortando todos
à sua volta, enquanto seu corpo girava, torcia, abaixava e pulava de uma
maneira leve que seu tamanho e constituição jamais deixariam transparecer.
Subitamente, Mahslia se deu conta de que ninguém estava conseguindo
passar por Krummel. Ele era como uma parede inquebrável, não deixando
nenhum de seus inimigos passar.
Quando a segunda leva de inimigos terminou de cair, Krummel olhou
para Mahslia de modo cansado, mas satisfeito, e olhou para o corredor por
onde Avalas e Corash tinham se entranhado.
- Oi! – cumprimentou o meio-orc, levantando um machado em saudação.
A onda de inimigos surgiu no corredor de Avalas e Corash muito antes do
esperado. Para azar dos soldados, porém, Corash estava de tocaia com o arco
preparado.
Atirando flechas rapidamente, Corash conseguiu manter os inimigos a
uma saudável distância de quinze metros. Só havia um problema.
- Corash, pare de atirar, ou vamos ter dificuldade para sair daqui! – disse
Avalas, olhando para a pilha de corpos que se formava na curva do corredor.
Corash obedeceu, considerando o que o companheiro falara. De fato, a
pilha de corpos estava ficando um pouco alta demais para o seu gosto, e eles
não iriam querer virar um corredor sem conseguir ver o que os esperava.
- O que você sugere?
Avalas sorriu malignamente.
- Me dê cobertura.
O enorme elfo tomou a frente, correndo contra os inimigos e castigando-os
com sua enorme espada. Mirando com muita cautela, Corash atirava algumas
de suas flechas para atacar inimigos que Avalas não alcançaria com tanta
facilidade.
O problema todo era a envergadura e o estilo de batalha do espadachim.
Com uma espada de dois metros, além do tamanho de seu braço, Avalas mal
75
tinha espaço no estreito corredor para batalhar como gostava: rodopiando e
brandindo a espada em enorme velocidade. Corash, assim, cobria suas falhas.
- Vamos virar, Corash! – gritou Avalas, apressando o companheiro.
O arqueiro correu o corredor, virando à esquerda. Uma segunda leva de
inimigos estava chegando, rápida e brutal.
Avalas xingou, colocando a espada à frente do corpo e usando ambas as
mãos para segurá-la. O suor escorria pela testa do elfo, e uma de suas pernas
parecia estar suportando muito mais peso que a outra.
“A perna”, notou o arqueiro. “Sua perna deve estar atrapalhando”.
- Avalas, você tem alguma técnica que consiga eliminá-los todos de uma
vez? – perguntou Corash, atirando uma flecha num inimigo. O soldado morreu,
caindo no chão da masmorra e atrapalhando o fluxo de soldados.
Avalas assentiu, falando rápido.
- Tenho, mas não vou conseguir usar. Não com minha perna do jeito que
está. Tenho focado minha energia para prosseguir o combate, então não
conseguirei canalizá-la na espada e no movimento.
Corash assentiu, atirando uma segunda flecha de advertência. Eles
precisavam correr, pois suas flechas já estavam no fim.
- Consegue fazer um dos dois? O movimento ou a canalização na arma?
Avalas considerou a pergunta de Corash com seriedade.
- Sim. O que tem em mente?
Corash disparou suas últimas flechas com um pouco de poder, de modo
que elas explodiram em vento e empurraram os inimigos assustados para trás.
- Concentre-se no movimento. Deixe que eu energizo a espada.
Avalas olhou incrédulo para Corash.
- Você consegue fazer isso?
O arqueiro deu de ombros
- Tenho alguma opção?
Avalas sorriu, posicionando-se de um modo mais pesado. Segurou a
espada com a mão direita, a ponta da arma apoiada no chão, e colocou-se de
lado para os adversários, levantando o braço esquerdo como uma guarda, com
a mão aberta.
- No três. – disse ele, pressionando os pés no chão e abaixando um pouco o
centro de gravidade. Corash colocou a mão na espada, fazendo com que sua
energia se impregnasse no metal.
Os soldados aproximaram-se, com raiva.
- Um.
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Eles estavam mais perto. Era possível sentir o cheio de suor que eles
exalavam, e já dava para ver a raiva e o medo em seu olhar.
- Dois.
A espada começou a luzir levemente em tons azuis, de modo
desordenado. Sentindo uma pressão estranha, Corash parou um pouco de
enviar energia. Subitamente, a energia na espada ficou absurdamente cortante,
como água em alta pressão.
“Avalas está me mostrando como moldar a energia” entendeu Corash,
absorvendo os detalhes da técnica e reproduzindo-a. A pressão sumiu.
- Três! – gritaram Avalas e Corash, em uníssono.
O arqueiro tirou as mãos da espada no momento certo em que o
espadachim pulou em altíssima velocidade contra os inimigos, brandindo a
espada violentamente.
Por um instante o tempo pareceu congelar. Depois, os soldados caíram,
todos mortos. Avalas se encontrava no fim do corredor, apoiado pesadamente
na espada, com o peito arfante e a testa pingando.
Corash correu para o companheiro.
- Você está bem?
Avalas, orgulhoso, desvencilhou-se de Corash, endireitando as costas.
- Nunca estive melhor.
Os dois olharam para o outro lado do corredor, por onde os companheiros
haviam se embrenhado. Krummel estava parado, olhando para trás. Depois,
virou a cabeça e levantou um machado em saudação.
- Oi!
Corash sorriu para o meio-orc, enquanto Avalas levantou a espada,
saudando o companheiro de volta.
Os quatro se reuniram novamente no centro.
- O portão está aberto? – perguntou Mahslia para Corash.
O arqueiro confirmou.
- Tudo indica que sim. Isso é, se a alavanca de vocês continua abaixada.
Krummel riu.
- Eu quebrei a alavanca. Não queria que ela fosse levantada tão cedo.
- Viu só, pateta? Eu não sou o único nesse grupo com bom-senso. – riu
Avalas para Corash, tossindo fortemente.
Mahslia olhou preocupada para o enorme espadachim, colocando a mão
em sua testa e tirando-a rapidamente.
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- Meus deuses, Avalas, você está ardendo em febre! Você está bem?
O grande elfo tossiu.
- Eu aceitaria um pouco de água.
Mahslia assentiu, abrindo a bolsa que o elfo das armas havia dado a eles e
revirando-a rapidamente com a mão, até achar um cantil. Quando tirou o item
da bolsa, porém, o grande elfo perdeu a consciência, caindo desmaiado no chão.
- Idiota orgulhoso. – xingou Krummel, pondo a espada de Avalas na
bainha e pegando o enorme elfo no colo, não sem algum esforço.
Os três companheiros seguiram com Avalas a tiracolo pelo caminho do
meio na trifurcação, em direção ao portão, esperando encontrar o segundo
aliado que Lian Fiar os prometera. Porém, estavam sozinhos.
- Nosso segundo aliado não vai aparecer, não é? – perguntou Corash,
desesperançoso.
- Acredito que não. – respondeu Mahslia, proporcionalmente pessimista.
- Então vamos sair logo daqui. Avalas está começando a pesar. Lá fora
poderemos tratar dele com calma – resmungou Krummel, olhando para as
areias convidativas das Dunas Congeladas.
Os dois elfos assentiram, e os três companheiros, com Avalas a tiracolo,
saíram para a liberdade.
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Capitulo Dezoito
A masmorra da Arena de Lynzea tinha um problema muito sério. Um
segredo, na verdade: a saída para as Dunas Congeladas era enfeitiçada.
Esse segredo era muito bem guardado pelos monarcas do reino élfico, uma
vez que não seria interessante que soubessem que o lugar era mais amaldiçoado
do que parecia. A Arena era um ótimo entretenimento para o público, um lugar
onde os plebeus podiam apreciar batalhas, derramamento de sangue, o alto
escalão político de Lynzea e ainda fazer uma respeitada e admirada atividade
social.
As Dunas Congeladas possuíam um segredo que não mais era tão secreto,
ainda que diversas pessoas não o conhecessem: apenas o portador de uma
bússola feita com cristais extraídos do leito do Rio Moravher poderiam achar
seu caminho no deserto sem se perder.
Quando o construtor da Arena de Lynzea projetara o portal, tivera uma
ideia simples, porém assustadoramente engenhosa: a posse dos cristais de
Moravher seria a chave que decidiria o destino da pessoa que estivesse saindo.
Se a pessoa possuísse os cristais, sairia para as Dunas Congeladas de forma
normal. No entanto, se não possuísse, cairia em um labirinto adimensional, cuja
única saída, curiosamente para as Dunas Congeladas, era guardada por um
dragão.
Desta forma, os comerciantes de escravos que entravam na Arena pelas
Dunas Congeladas poderiam sair sem serem prejudicados, e não notariam o
encantamento. No entanto, os mesmos escravos, se tentassem fugir e,
porventura, fossem bem-sucedidos, acabariam caindo em uma outra prisão,
muitas vezes mais terrível. Seria uma última punição: afinal, quem não morre
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na Arena lutando, morre no Labirinto do Dragão lutando, pensara o arquiteto
da Arena de Lynzea.
Naturalmente, os companheiros não tinham cristais extraídos do leito do
Rio Moravher.
Eles ultrapassaram o portão da masmorra da Arena de Lynzea respirando
felizes, quando notaram que o ar estava ainda viciado. Não tanto quanto na cela
ou na masmorra, mas ainda viciado.
Os companheiros olharam para o lado, desesperados. Não havia portão às
suas costas. Eles estavam em um aposento amplo e sem teto, com paredes de
pedras.
- O que aconteceu? Por que não estamos nas Dunas Congeladas? –
perguntou Corash, irritado.
Krummel pousou Avalas num canto ao lado da parede, sentando aos pés
do amigo logo em seguida para descansar os braços.
- Não faço a menor ideia. Imagino que tenhamos feito algo de errado, mas
o quê? Será que havia uma ordem para ativarmos as alavancas?
Mahslia negou com a cabeça.
- Isso não faria sentido, Krummel. Deve ter sido alguma outra coisa. Mas o
mais importante agora é: como sairemos daqui?
Os companheiros se entreolharam.
- Bom, suponho que deveríamos tratar de Avalas antes, não é? – comentou
Corash, olhando para o enorme elfo.
Os companheiros assentiram. Mahslia abriu a bolsa e tirou seus conteúdos
meticulosamente. Logo o chão estava coberto por cantis, sacos de comida,
pergaminhos, bandagens e poções. Corash rapidamente se apropriou de uma
aljava reserva que vinha na bolsa.
- Incrível como em uma bolsa pequena cabem tantas coisas, não é? –
perguntou o arqueiro, afivelando a aljava na cintura.
- Essa bolsa é encantada, Corash. Provavelmente, um encantamento de
leveza aliado a um encantamento de tamanho, de forma a tornar o espaço
interno algumas vezes maior do que seria naturalmente. – explicou Krummel,
analisando uma das poções.
Mahslia sentou-se no chão, chateada.
- Eu nunca vi algumas dessas poções. Como curaremos Avalas dessa
forma?
Krummel pousou a poção que analisava com pessimismo.
- Se ao menos um de nós tivesse treino como curandeiro... – disse ele.
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- Se me permitem, acredito que poderei ajuda-los nisso. – disse uma voz
suave do corredor.
A reação dos companheiros foi rápida. Corash levantou-se com o arco
armado, a flecha já pronta para atirar; Mahslia tinha o cajado apontando para os
recém-chegados, enquanto Krummel levantara-se de um salto, com os
machados prontos para atacar e o corpo pronto para lançar-se contra
adversários.
No corredor situava-se um elfo magro e baixo, apoiado num cajado de sua
altura. Seus cabelos castanhos estavam cortados curtos, e suas roupas pesadas
indicavam uma boa hierarquia em algum tipo de ordem. Ele vestia um grosso
manto branco com ornamentos roxos e dourados no peito.
Ao seu lado, postava-se um atarracado, baixo e rotundo anão, com uma
barba emaranhada preta e olhos de besouro. Carregava um martelo de seu
tamanho, com a aparência de pesado, e vestia um meio-elmo e cota de malha.
- Quem são vocês? – inqueriu Corash, apontando a flecha para o recém-
chegado elfo.
O estranho levantou as mãos, em gesto de paz. O anão continuou firme em
sua posição.
- Viemos em paz, senhores. Meu nome é Skrumppel, e este meu feroz
amigo chama-se Tuhrster. Sentimos sua chegada, e viemos dar a vocês nossas
boas-vindas. – disse o elfo, sorrindo.
Krummel olhou desconfiado.
- Tem algo de errado. Skrumppel é um nome tipicamente halfling.
Skrumppel sorriu, voltando-se levemente para Krummel.
- De fato, senhor. Por um acaso, sou um meio-halfling e meio-elfo.
Acredito que isso explique um pouco de minha estatura.
Fazia sentido.
Corash abaixou o arco sem relaxar a corda. Ele ainda não confiava
plenamente nos recém-chegados.
- Você disse que pode curar nosso amigo.
Skrumppel assentiu serenamente.
- Sou treinado nas artes de cura. Nunca tive muita chance com as artes da
guerra, por razões óbvias.
- E como saberemos que podemos confiar em você? – perguntou Mahslia.
- Eu me ofereço como garantia. – falou Tuhrster, pela primeira vez. Sua
voz era grave, áspera e ressonante.
Os amigos se entreolharam. Parecia bom.
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- E como saberemos que Skrumppel não nos atacará? – perguntou Corash,
olhando para os recém-chegados.
- Não sei como atacar alguém. Mesmo porque, se vocês matarem Tuhrster,
terão amputado meus braços e pernas. – respondeu o baixo elfo.
- E por que isso? – questionou Krummel, curioso.
Tuhrster olhou para Krummel e sorriu de um jeito torto.
- Porque além de fisicamente fraco, Skrumppel é cego. – disse o anão,
começando a despir a armadura.
Skrumppel ajoelhou-se ao lado de Avalas, virando o rosto como quem
olhasse para a perna do enorme elfo. Tuhrster estava sob o fio do machado
- Ele foi cortado aqui, não é? – perguntou ele, apontando para a
panturrilha do espadachim.
- Sim. – confirmou Mahslia, surpresa. – Como você sabe?
Skrumppel sorriu.
- A energia que a perna dele está diferente da energia que o resto do corpo
exala. Não consigo ver o mundo real, mas vejo muito mais do mundo
energético.
Mahslia assentiu. Fazia algum sentido, ainda que de forma difícil.
Skrumppel passou o cajado levemente por cima da perna de Avalas. A
madeira brilhava branca, e a boca do curandeiro murmurava diversos feitiços.
Lentamente, Avalas começou a recuperar um pouco de cor.
Com delicadeza, Skrumppel flexionou e estirou a perna de Avalas diversas
vezes, sentindo como estava.
- A perna dele vai ficar boa. Aparentemente ele foi tratado por um médico,
de forma que o pior foi evitado em tempo. O problema com ele foi que ele
forçou demais essa perna antes de fortalece-la e se recuperar completamente.
Krummel levantou o machado e afastou-se de Tuhrster.
- Aparentemente você manteve sua promessa. Seu amigo está vivo.
Estamos quites.
Tuhrster negou com a cabeça enquanto vestia sua cota de malha.
- Não estamos acabados. Se quiserem sair desse labirinto, terão que nos
acompanhar.
Krummel, Corash e Mahslia se entreolharam.
- Como assim? – perguntou Corash, olhando torto para o anão.
- Estamos em um labirinto, elfo. Skrumppel e eu vivemos nesse labirinto
há algum tempo, então já o conhecemos. Sem nós vocês se perderão.
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- Então vocês conhecem alguma saída? – perguntou Mahslia, olhando para
o anão e para o meio-halfling, esperançosa.
Skrumppel sorriu bondosamente.
- Minha querida, se tivéssemos achado algum tipo de saída, acredita de
verdade que estaríamos aqui conversando com vocês? Nós dois, Tuhrster e eu,
estamos presos nesse labirinto. Não podemos explicar a vocês agora. Sigam-
nos, e o dragão os explicará tudo.
Os companheiros se entreolharam.
- Não vamos a lugar algum sem Avalas. – disse Corash, olhando
firmemente para Skrumppel e Tuhrster. Krummel e Mahslia concordaram com
a cabeça.
O anão assentiu.
- Podemos espera-lo.
Avalas acordou com o corpo letárgico e as costas doloridas. Abriu os olhos
e esfregou-os, para limpá-los. A primeira coisa que notou foi o azul do céu.
Depois, a dureza de onde estava deitado. Provavelmente pedra.
Espreguiçando-se, o enorme elfo se sentou, olhando ao redor. Sua espada
estava cuidadosamente disposta ao seu lado. Krummel, Mahslia e Corash
estavam deitados com as costas e as cabeças apoiadas nas pedras, ressonando
levemente. Dois desconhecidos estavam na mesma posição, na parede oposta à
dos companheiros.
Avalas estendeu as pernas, alongando-as um pouco e estendendo as
costas. Ele estava surpreendentemente bem: nem mesmo sua perna ferida o
incomodava.
O único porém era a coceira em suas costas. Isso não era um bom sinal.
O grande elfo se levantou, pegando sua espada do chão e vibrando-a no ar
um pouco. Ela estava mais leve do que de costume. Decerto o velho armeiro da
masmorra conhecia seu ofício, e muito bem. Apesar de sua petulância.
Só então Avalas notou: ele estava em um lugar fechado, não em um lugar
aberto como se esperaria de um deserto.
O que raios estava acontecendo?
Guardando sua espada, Avalas ajoelhou-se ao lado de Corash e sacudiu-o
de leve.
- Vamos, Corash, acorde.
O arqueiro murmurou algumas coisas ininteligíveis. Avalas sacudiu-o com
mais firmeza.
83
- Acorde, Corash!
Corash Lam abriu os olhos sonolentos, limpando-os com as costas da mão
e focalizando o rosto do companheiro.
- Avalas! Você acordou! Como se sente?
Avalas sorriu brevemente.
- Já me senti muito pior algumas vezes na vida. Obrigado por cuidarem de
mim. Agora, o que interessa: onde estamos?
Corash desviou o olhar, um pouco envergonhado.
- Não sei. Aqueles dois – disse ele, apontando para Skrumppel e Tuhrster –
te curaram. Aparentemente eles já vivem aqui há algum tempo. Sabemos
apenas que estamos num labirinto, e que tem um dragão em algum lugar por
aqui.
Um dragão. Isso era perturbador.
- Certo. E quem são eles? Como eles vieram parar aqui?
Corash balançou a cabeça.
- Desculpe, Avalas. Isso é muito mais do que sei responder. Mas acredito
que possamos resolver isso logo. Me ajude a acordar eles – disse o arqueiro,
virando-se para Mahslia e sacudindo-a gentilmente.
Avalas dirigiu-se para Krummel e lhe deu alguns tapas no ombro. O meio-
orc acordou com um olhar bravo, que logo serenou, enquanto Mahslia acordou
lânguida e quieta.
Após os abraços, agradecimentos e cumprimentos entre os companheiros,
os quatro acordaram Skrumppel e Tuhrster.
- Então você é o tão falado Avalas. De fato, você é impressionante. Mais do
que seus colegas deixaram transparecer. – comentou Skrumppel, após espantar
o sono.
- Vou considerar isso um elogio. Obrigado. – agradeceu Avalas, lacônico.
Skrumppel sorriu, e começou a guiar os companheiros pelo labirinto.
Porém, nem mesmo o quieto Tuhrster não pode evitar uma piada.
- Você tem muito jeito com desconhecidos, não Avalas? Já pensou em
seguir carreira diplomática? – perguntou ele, enquanto se embrenhavam no
corredor.
Cinco bocas explodiram em risadas. Avalas olhou feio para o anão, mas,
depois, acabou sorrindo. Era realmente engraçado porque, quando na
Academia Militar de Lynzea, Avalas havia considerado seguir a carreira
diplomática.
84
Sua pretensão terminara quando o professor lhe dissera que Avalas era
flexível como uma montanha.
Os quatro companheiros e seus dois novos guias embrenharam-se pelos
corredores do labirinto. Enquanto Skrumppel e Tuhrster estavam
extremamente à vontade, Krummel, Mahslia, Avalas e Corash estavam arredios
e ariscos.
Isso não passou despercebido a Skrumppel.
- Não precisam ficar tão nervosos. Não há monstros nesses corredores.
Tampouco armadilhas.
Os companheiros não relaxaram.
Andando em ritmo rápido, os seis viraram pelos corredores sem um
padrão lógico. Quatro vezes à direita, uma à esquerda, em frente três vezes e à
direita novamente. Os companheiros não mais conseguiam acompanhar a
quantidade de viradas que faziam.
Depois de uma hora andando, Avalas se irritou.
- Onde estamos indo, afinal?! Será que vocês realmente sabem o caminho?
Porque me parece que estamos andando em círculos.
Skrumppel sorriu.
- Apenas parece. Acabamos de chegar. Deem olá ao senhor do labirinto. –
disse ele, entrando num amplo salão.
O labirinto era estoico, feito de pedra e sem ornamentos. O salão, porém,
era brilhante e belo. Um tapete escarlate resplandecia no chão, iluminado por
um lustre dourado cheio de cristais. Das paredes pendiam espadas e machados
brilhantes. Armaduras completas, pesadas e prateadas, guardavam as paredes
rigidamente.
Na outra ponta do salão, um majestoso dragão dormia. Suas escamas cor
de creme eram brilhantes e de aparência dura, cobrindo todo seu corpo. Suas
asas coriáceas repousavam sobre o corpo largo e poderoso, que terminava
numa cauda forte e larga.
A sala, além de melhor iluminada, também estava mais aquecida, por uma
estranha razão: a respiração do dragão. Vapor saía de suas narinas largas,
aquecendo o ambiente de forma agradável.
- Então esse é o famoso dragão? – perguntou Krummel, cruzando os
braços.
Skrumppel assentiu, solene.
85
Por cinco minutos, os seis ficaram em silêncio. Então, uma voz cavernosa e
áspera surgiu.
- Vocês demoraram. Estava esperando-os.
Skrumppel abaixou a cabeça, em reverência.
- Perdoe-nos, senhor. Tivemos que cuidar do espadachim.
O dragão abriu os olhos. Eles eram dourados, com fendas como pupilas, e
profundamente sábios e sofridos.
- Avalas. Você veio, como prometido.
86
Capitulo Dezenove
Todas as cabeças voltaram-se para Avalas, que estava absurdamente
atônito – pela primeira vez seu rosto deixava transparecer tanta emoção.
- Como você sabe quem eu sou?
O dragão rosnou com prazer, seu modo de rir.
- Se você procurar bem dentro de você, também saberá quem sou.
Avalas fechou os olhos, concentrando-se.
- Drudhgar. Seu nome é Drudhgar, o dragão amaldiçoado pelos deuses
por rebelar-se contra eles. Fadado a guardar o Labirinto do Dragão, ou o
Labirinto Negro, como chamam os deuses, até que aparecesse a sua contraparte
élfica na rebelião. Aquele que, ao seu lado, se rebelou contra os deuses.
O dragão bufou, satisfeito.
- Você poderia ter escrito minha biografia. Meus parabéns, Vhrastnar. Ou,
como devo te chamar agora, Avalas.
O enorme elfo sacudiu a cabeça, incrédulo.
- Não pode ser possível.
- Mas é.
Avalas olhou para o dragão, perdido. Tudo estava terrivelmente errado.
Krummel pigarreou.
- Desculpem-me interromper o belo reencontro, mas há assuntos dos quais
eu gostaria de tratar. Senhor Drudhgar, meus companheiros e eu gostaríamos
de sair deste labirinto. Como podemos fazer isso?
O dragão olhou para Krummel.
- Veja, meu caro orc...
- Meio-orc.
- Meio-orc. O trabalho de guardar um lugar por tempo indeterminado
pode se tornar bastante tedioso. Ainda mais nesse labirinto. Assim, estipulei um
pedágio. Se vocês pagarem meu pedágio, estarão livres para ir.
Krummel assentiu.
- Senhor Drudhgar, não temos posses, tampouco dinheiro.
87
O dragão riu.
- Que uso poderia eu fazer de dinheiro, meu amigo? Estou preso aqui por
tempo indefinido. Não há mercadores por aqui. Não há mercadorias. Dinheiro,
aqui, torna-se peso morto. Não se preocupem, vocês têm exatamente o que eu
preciso.
Mahslia olhou desconfiada para o dragão.
- E que preço é esse?
O dragão sorriu, mostrando os enormes dentes pontiagudos.
- Tudo que exijo é um companheiro.
O silêncio pairou entre os presentes. Krummel, Mahslia, Corash e Avalas
se entreolharam. Corash balançou a cabeça negativa e veementemente.
- Não vamos deixar ninguém para trás.
Drudhgar sorriu.
- Por mim, tanto melhor. Terei mais companheiros para conversar.
Skrumppel interveio.
- Corash, não há saídas deste labirinto. A única existente é guardada pelo
senhor Drudhgar.
O arqueiro mordeu o lábio inferior, nervoso. Eles tinham um tempo curto.
Drudhgar olhou para Corash, rosnando.
- Veja, vocês são um grupo pequeno, mas serei justo. A cada dez pessoas
que passam, uma deve ficar. Foi assim que consegui o Skrumppel aqui.
O meio-halfling assentiu. O dragão continuou.
- Quero que saibam que vocês têm toda uma eternidade para decidir. Aqui
no Labirinto sentimos o tempo passar, mas, efetivamente, o tempo não passa.
Tuhrster, por exemplo, foi meu primeiro companheiro: está aqui comigo há
cerca de seiscentos anos. Skrumppel mesmo está comigo há trezentos anos.
Corash olhou para seus companheiros.
- Podemos conversar a sós, senhor Drudhgar?
O dragão assentiu, sorrindo.
- Fiquem à vontade.
Os companheiros afastaram-se para um canto, olhando desconfiados para
o dragão.
- Algum de nós vai ter que ficar, não é? – perguntou Corash, desanimado.
Mahslia assentiu.
- Aparentemente sim. Mas quem?
Os companheiros se entreolharam.
88
- Eu fico. – sugeriu Krummel. – A missão precisa ser cumprida, e eu entrei
de gaiato nessa história. Vocês, porém, estão nisso desde o começo. Devem
cumpri-la.
Corash balançou a cabeça.
- Não, eu ficarei. De nós quatro, claramente sou o mais fraco. Se alguém
tem que ficar, sou eu.
Mahslia negou.
- Perdão? Você é essencial! É o herdeiro legítimo do reino, foi quem nos
colocou nessa missão, e acabou de reencontrar seu verdadeiro pai. Seria injusto
com você e com ele. Eu fico!
- Você está louca? Você é nossa única maga! Não podemos...
- Quietos! – explodiu Avalas, olhando bravo para os companheiros. –
Quem vai ficar sou eu.
Os três companheiros começaram a protestar simultaneamente. Avalas,
porém, levantou a mão para silenciar os amigos.
- Não tenho nenhum diferencial. Corash tem os sonhos e a herança do
reino, Mahslia tem as magias, Krummel tem a força e o conhecimento. Além do
que, vocês já notaram que tenho um passado que desconheço com Drudhgar.
Quero falar com ele.
- Mas...
- Corash, por favor.
O arqueiro assentiu, contrafeito. Avalas era teimoso como uma mula.
Drudhgar olhou para os companheiros, sorrindo.
- Decidiram-se?
Avalas assentiu.
- Sim, Drudhgar. Mas antes, quero que você permita que Skrumppel e
Tuhrster saiam junto dos que saírem.
Drudhgar inclinou a cabeça para a esquerda, com os olhos brilhando.
- Por que eu deveria permitir isso?
Avalas olhou firmemente para Drudhgar.
- Porque eles já estão com você há muito tempo. Não é justo que prenda-os
mais. Todos seus conhecidos, amigos e parentes já devem estar mortos há anos.
Eles gastaram a vida deles toda aqui. Deixe-os viver novamente.
- E eu, Avalas?
- Terá a mim. E, de qualquer forma, sabe que resolveremos isso logo mais.
Só precisamos que eles saiam.
Drudhgar assentiu, com os olhos brilhando.
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- Você não mudou nada. Muito bem. Tuhrster, Skrumppel, vocês estão
livres para ir com os outros. Se quiserem.
Tuhrster olhou emocionado para Avalas.
- Obrigado, senhor Avalas. Serei eternamente grato ao senhor.
- Seremos. – corrigiu Skrumppel, sorrindo bondosamente para Avalas.
Desajeitado, o enorme elfo cumprimentou-os com a cabeça. Krummel
abraçou Avalas pelo ombro.
- Te esperaremos na Montanha Selque, Avalas.
- Resolvam tudo. Se as coisas forem como esperadas, ouvirei falar de
vocês. Nos encontraremos, eu prometo.
Corash pôs a mão no ombro de Avalas, e Mahslia deu um abraço e um
rápido beijo na bochecha do espadachim.
Drudhgar afastou-se ligeiramente da saída, e os cinco companheiros
saíram do labirinto sem olhar para trás. O dragão postou-se novamente na
saída.
Avalas encarou o dragão.
- Agora podemos começar.
O enorme espadachim sacou sua arma, correndo contra Drudhgar e
girando o corpo. A espada fez um arco prateado na direção do dragão, que
utilizou uma de suas garras para aparar o golpe. Com a outra pata, atacou
Avalas, que voou longe, bateu na parede e caiu no chão.
- Você era mais habilidoso. – resmungou o dragão, olhando bravo para
Avalas. – Os deuses devem estar de piada comigo.
Avalas levantou-se, rosnando.
- Não me subestime.
O enorme elfo levantou a espada, cortando na direção do dragão. Um arco
de energia foi lançado na direção de Drudhgar, que pulou para a esquerda de
forma muito mais leve que seu robusto corpo sugeriria.
Em resposta, o dragão soltou uma bola de fogo de sua boca, que Avalas
cortou ao meio com a espada.
Os oponentes se fitaram, bravos.
Um segundo se passou. Dois.
Avalas pulou contra Drudhgar, mirando a ponta da espada contra a testa
do dragão para perfura-la. A lâmina atingiu o couro com um som seco, e a força
do golpe reverberou no cotovelo de Avalas.
O formidável golpe, porém, sequer arranhou o couro de Drudhgar.
90
Com displicência, o dragão atacou Avalas. Dessa vez, porém, utilizando a
afiada garra, que cortou a armadura de Avalas como papel e atingiu seu tronco
logo abaixo das costelas. O enorme elfo voou longe novamente, com o profundo
corte vazando sangue, e bateu no chão com um som seco.
Avalas levantou a cabeça com dificuldade, olhando para Drudhgar. Sua
visão estava embaçada, e o corte vazava sangue profusamente. Todo seu corpo
parecia em chamas.
Subitamente, a dor passou. A imagem de Drudhgar foi se diluindo em
uma luz forte. Curiosamente, a luz não feria as retinas do enorme elfo.
Foi então que ele começou a ver.
91
Capitulo Vinte
Tudo começara há séculos atrás. Avalas, naquele tempo, era chamado de
Vhrastnar. Um grande herói do povo élfico, cujos feitos lendários haviam
resultado em riquezas, fama e poder.
Segundo os boatos que se ouviam nas ruas de Orxh, àquela época uma
pequena vila de elfos, Vhrastnar era descendente dos deuses – e sua
ascendência lhe garantira o poder e a habilidade de proteger o povo élfico dos
outros povos que estavam em guerra contra eles.
Por seus feitos, sua sabedoria e sua bondade, Vhrastnar fora declarado o
primeiro rei de Lynzea. No entanto, Lynzea era um reino entre muitos – e,
sendo um reino jovem, era também um reino cuja força militar era carente.
Utilizando-se de diplomacia e inteligência, Vhrastnar enviara mensageiros
a todas as vilas élficas existentes, com acordos de paz e votos de prosperidade.
Os mensageiros foram recebidos com muita alegria e, de forma inteligente,
fizeram com que as vilas élficas notassem um denominador comum entre si,
uma semelhança cultural que ia muito além das picuinhas entre vilarejos.
Nesse momento, Vhrastnar apresentou às vilas suas propostas de
unificação, que foram aclamadas por unanimidade. O povo élfico comemorou
e, nesse dia, os vilarejos orcs temeram.
Por muitos anos, Vhrastnar governou. No entanto, sabia que não poderia
governar sozinho. Assim, dividiu o poder com seu melhor amigo, Rial Ruil
Lam. Vhrastnar faria as leis, ouviria o povo e administraria o reino, enquanto
Rial Ruil faria garantir o cumprimento das leis, comandaria o exército e
investiria na ciência. E Lynzea prosperou.
A época do governo de Vhrastnar não foi muito turbulenta. Houvera um
enorme salto cultural, social e científico, mas fora uma época de paz. Logo nos
primeiros anos, os orcs tentaram destruir Lynzea, atacando os mais diversos
vilarejos élficos sem piedade. Vhrastnar, porém, era um elfo de ação. Pegando
92
em armas, protegeu seu reino na linha de frente e conquistou os territórios
antes pertencentes aos orcs.
O segredo de Vhrastnar para lutar era seu companheiro. O dragão
Drudhgar dava suporte a Vhrastnar das mais variadas formas. Fosse atacando
na linha de frente, fosse assustando os adversários, fosse carregando seu
companheiro, Drudhgar era uma presença constante e fiel na vida de Vhrastnar.
O dragão e o elfo haviam se conhecido quando Vhrastnar era pouco mais
do que um bebê, e Drudhgar acabara de atingir a maioridade dracônica, ou seja,
tinha por volta de duzentos anos de idade. Drudhgar fora atacar uma casa de
campo, e, rapidamente, puxou a casa pelo teto. A casa descolou do chão. Dentro
da casa havia três seres: um elfo de meia idade, forte e bronzeado pelo trabalho
na lavoura; uma elfa jovem e bela, de olhos límpidos e mãos tremelicantes; e
um bebê elfo num berço, embalado em seus cueiros com os braços livres.
O elfo de meia idade rapidamente pegou uma lança e atirou em Drudhgar,
que a desviou para o lado com displicência. Eles não sabiam que não
funcionaria nada do tipo?
O dragão considerou a situação. O bebê certamente era o mais macio e
saboroso dos três. O elfo de meia idade parecia ter a carne dura, e as lágrimas
da jovem elfa davam a impressão de que sua carne estaria encharcada.
Drudhgar optou por comer o bebê primeiro. Com curiosidade, aproximou
o focinho do berço, olhando fixamente para a criança. A criança olhou de volta
para o dragão.
E estapeou o focinho de Drudhgar.
O dragão não sentira dor, é claro. Tampouco ficara com medo de um bebê
de colo. Não, ele estava surpreso com a ousadia do bebê. Aquela criança era
extraordinária. Não seria certo matá-la.
Drudhgar gargalhou com seu rosnado típico, e olhou para o elfo de meia
idade e a jovem elfa.
- Cuidem muito bem dessa criança. Amanhã voltarei para visita-la. Espero
que não se incomodem. Não farei mal a ela, eu prometo.
E, com essas palavras, Drudhgar voou para o céu azul, buscando uma
presa não tão inteligente quanto um elfo.
Os anos passaram, e Vhrastnar cresceu, alto e poderoso. Suas habilidades
com a espada foram refinadas com a ajuda de Drudhgar, e ele logo aprendeu
algumas magias. Quando fez vinte e cinco anos, maioridade élfica, porém,
Vhrastnar saiu de casa. Desde esse dia, Drudhgar não mais foi visto no pasto
onde conhecera o companheiro.
93
Dez anos depois, Vhrastnar voltou sozinho. Seu pai, agora um elfo quase
idoso, saudou-o com lágrimas nos olhos. Sua mãe, uma elfa ainda jovem, mas
que perdera um pouco de sua beleza, jogou-se nos braços do filho amado. No
entanto, Vhrastnar não era mais o mesmo que saíra de casa, jovial e sorridente.
Agora ele tinha olhos maduros, de quem vira muito e de pouco gostara, e sua
expressão séria denotava que sempre estava perdido em pensamentos,
considerações silenciosas cujo teor era desconhecido.
Alguns anos depois os pais de Vhrastnar morreram num assalto. Uma
horda de orcs que por ali passava precisava de alimentos, e decidiram que
pilhar a fazenda era uma boa ideia. Enquanto os orcs atacavam a fazenda tão
caprichosamente cuidada, Vhrastnar encontrava-se distante, caçando o jantar.
O jovem guerreiro voltou algumas horas depois. Os orcs ainda estavam na
fazenda, comendo, bebendo e gritando. O pai de Vhrastnar fora cruelmente
empalado e colocado como espantalho, e a mãe do jovem elfo estava sob céu
aberto com um orc por cima dela, grunhindo.
Quando avistaram Vhrastnar, os orcs soaram um corno de guerra. O orc
que estava sobre a mãe do elfo deu nela uma precisa facada, cortando seu
pescoço de lado a lado. A horda orc enfileirou-se com seus escudos levantados e
lanças em riste.
A fúria do jovem elfo era surda. Muda. No entanto, irradiava por seus
poros, penetrando cada célula de seu corpo de forma maligna. Seus sentidos
estavam embotados. O vento soprava, mas ele não sentia ou ouvia. Sua visão
não via a paisagem, apenas os orcs. Os malditos orcs.
Sua mão puxou a espada. Seu braço tremia.
- Drudhgar. – chamou ele, não mais que um sussurro. Suas costas
começaram a coçar, arder, queimar. Atrás dele, um dragão começou a surgir,
com suas asas poderosas furando o ar e levantando seu robusto corpo do chão.
Quando o dragão materializou-se, suas costas pararam de coçar.
Vhrastnar atacou os adversários impiedosamente.
Em um minuto, toda uma horda de orcs jazia morta no chão, e Vhrastnar
chorava sobre o cadáver de sua mãe.
Nesse dia, o jovem elfo abandonou a fazenda. Ele fora incapaz de proteger
seus pais. Agora eles estavam mortos, e era culpa dele.
Infelizmente, seu dever com seus pais terminara. Vhrastnar enterrou-os
com lágrimas nos olhos, tocou o braço de Drudhgar e absorveu o amigo
novamente, fundindo-se com o dragão. Suas costas voltaram a queimar, até que
a tatuagem de dragão que representava o amigo estivesse completa.
94
Vhrastnar recolheu algumas roupas, amarrou a espada à cintura. Colocou
uma das pequenas argolas que a mãe usava como brincos em sua orelha
esquerda e calçou uma luva de couro que seu pai usara quando era um jovem
espadachim na mão direita.
E foi-se da fazenda para conquistar sua vida.
Vários anos depois, Vhrastnar era um rei, sábio e poderoso. Ele unificara o
povo élfico, conquistara territórios, casara com uma bela elfa que lhe dera
diversos filhos e filhas. Tudo parecia ir bem, e o rei estava satisfeito.
Mas a vida de heróis nunca se assenta facilmente assim.
A classe dos clérigos prosperava grandemente. Os fiéis pagavam taxas
não-oficiais altíssimas a eles, em troca das bênçãos dos deuses. O povo estava
empobrecendo por causa das absurdas taxas impostas pelos clérigos. E
Vhrastnar não gostava disso. Ele unificara os elfos para que, juntos, eles
pudessem crescer com fartura e irmandade. No entanto, parecia que seu reino
estava entrando em decadência. Ele não podia permitir isso de forma alguma.
Reunindo os melhores soldados do reino, Vhrastnar criou a Ordem do
Dragão, cujo objetivo era impedir que os clérigos extorquissem o povo de
Lynzea. Membros da Ordem do Dragão foram enviados aos mais ermos rincões
de Lynzea, e, por meio da força, prenderam clérigos e destruíram templos. Em
todos os lugares em que pessoas foram extorquidas, passou a espada e o fogo
da Ordem do Dragão.
Isso, porém, ia contra o desígnio dos deuses, que queriam suntuosos
templos para si. Por meio de um oráculo, eles ordenaram a extinção da Ordem
do Dragão. Vhrastnar não a extinguiu. Novamente eles ordenaram. Novamente
Vhrastnar recusou.
Da terceira vez, eles ordenaram a formação de um santo exército, que
atacou a Ordem do Dragão. Os dois grupos se digladiaram infinitamente, sem
qualquer resultado definido.
Vhrastnar, por fim, irritou-se. Malditos deuses! Por que se achavam no
direito de extorquir seu povo? Por que eles queriam que os elfos vivessem na
pobreza, enquanto os clérigos viviam suntuosamente, cultivando gordas
barrigas e bolsas de dinheiro? Isso não era justo!
Irascível, Vhrastnar nomeou Rial Ruil Lam como regente interino,
enquanto seus filhos não eram maduros o suficiente para assumir o reino, sacou
novamente sua espada e convocou novamente Drudhgar. Montado no dragão,
Vhrastnar dirigiu-se à morada dos deuses, o Vale de Trivash, e lá os desafiou.
95
Uma verdadeira guerra tomou início: os deuses contra Vhrastnar e
Drudhgar. A batalha era dos deuses antes mesmo de ter começado. O fogo de
Drudhgar e a espada de Vhrastnar feriram os deuses, mas estes utilizaram-se de
magia proibida, antiga, e derrotaram os rebeldes que os feriram. Então, as
divindades tiveram uma ideia.
Usando de mais magia proibida, os deuses criaram um labirinto mágico,
com um caminho tortuoso e racionalmente ilógico, e colocaram Drudhgar como
guardião eterno do labirinto. Haveria apenas uma saída e diversas entradas, e o
dragão nunca poderia deixar ninguém passar. Mais tarde, Drudhgar os
desobedeceria com uma alegria selvagem.
Quanto a Vhrastnar, condenaram sua alma a vagar perdida por Lynzea em
diversas encarnações. Sempre sofrendo, sempre perdendo quem amava, sempre
sendo injustiçado.
Generosamente, porém, os deuses resolveram dar uma chance de quebrar
os encantamentos. Em uma piada de péssimo gosto, decretaram que suas
maldições seriam levantadas mutuamente, desde que, quando Drudhgar e uma
das encarnações de Vhrastnar se encontrassem, apenas um dos dois ficasse
vivo.
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Capitulo Vinte e Um
Avalas saiu de sua regressão subitamente, acordado pela dor em seu
tronco onde Drudhgar o cortara. Ele olhou para o dragão. Sua visão estava clara
novamente.
Drudhgar tinha lágrimas nos olhos.
- Você entende, não entende, Vhrastnar?
Avalas levantou-se com muita dificuldade, apoiando-se em sua enorme
espada.
- Não. – sussurrou ele, com a cabeça abaixada e todo o peso apoiado em
sua arma
- Não?
- Meu nome não é Vhrastnar.
O dragão olhou para o elfo com intensidade curiosa.
- O quê?
Avalas levantou a cabeça, olhando ferozmente para Drudhgar.
- O meu nome não é Vhrastnar. Eu me chamo Avalas.
Drudhgar balançou a cabeça, incrédulo.
- Como pode dizer isso, depois de ver o que viu? Sabe que foi amaldiçoado
como Vhrastnar, que morreu como Vhrastnar, que me conheceu como
Vhrastnar! Carrega a maldição de Vhrastnar, e ainda diz que não é ele.
Avalas confirmou com a cabeça.
- Vhrastnar morreu. Carrego seu espírito, seus traços, e, agora, suas
memórias. Mas não sou Vhrastnar. Vhrastnar não tinha Corash, Krummel ou
Mahslia. Vhrastnar não tinha Sparon. Vhrastnar só tinha você.
O dragão arregalou os olhos, com um princípio de susto na feição
reptiliana.
97
Avalas jogou seu peso na perna direita, levantando a espada mais uma
vez. Sua barriga sangrava menos, agora, mas doía horrivelmente. Esse era seu
golpe derradeiro.
- Por fim, Drudhgar, entenda uma coisa. Vhrastnar jamais faria o que eu
farei agora.
O dragão fitou Avalas incrédulo.
- Você não vai me matar.
O enorme elfo riu. Um riso louco.
- Você já está morto. Apenas não viu isso ainda.
Drudhgar arregalou ainda mais os olhos.
- Vhrastnar, não!
Avalas pulou. Drudhgar lançou uma poderosa rajada de chamas, que
rapidamente consumiram a armadura e as roupas do enorme elfo.
- O meu nome é Avalas! – exclamou Avalas, enquanto atirava a espada
contra o olho de Drudhgar.
A espada perfurou o olho do dragão e seu crânio, para finalmente atingir o
cérebro. A morte de Drudhgar foi quase imediata, e seu último pensamento foi:
“Livres”.
A espada de Avalas começou a sugar a alma do dragão para seu dono,
estabelecendo uma conexão entre ambos enquanto brilhava fortemente.
Avalas sentiu o calor da alma de Drudhgar penetrando suas mãos,
correndo por seu braço e alcançando suas costas, que começaram a queimar.
A tatuagem de Avalas, seu segredo mais bem guardado, começou a arder.
O dragão adormecido em suas costas, enrolado e diminuto, abriu os olhos e
ascendeu, enquanto as feridas de Avalas se fechavam e seu corpo produzia
mais sangue e ganhava uma força renovada.
Quando tudo acabou, a carcaça de Drudhgar havia sumido. A sala estava
vazia, à exceção de um Avalas nu – seu corpo fora protegido por uma camada
brutal de energia que, em sua quase morte, Avalas exalara. Suas costas largas e
fortes ostentavam um dragão subindo em direção ao céu, e sua espada tinha um
punho de dragão, como se a lâmina saísse da boca de Drudhgar.
Avalas suspirou. Ele, surpreendentemente, estava vivo e bem. Claro,
estava um pouco menos vestido do que gostaria de estar, em especial
considerando que sairia em um deserto, mas era o que tinha para o momento.
Nenhuma das armaduras que Drudhgar possuíra serviriam nele. Por que o
dragão tinha que ter sido tão despreparado?
98
Resignado, Avalas olhou uma última vez para o aposento, absorvendo os
detalhes do lugar. Depois, virou as costas para a masmorra e abriu a porta do
Labirinto Negro, abandonando o lugar para todo o sempre e saindo, finalmente,
para as Dunas Congeladas.
O sol atacou violentamente os olhos de Avalas, momentaneamente
machucando suas retinas. Numa reação rápida, o enorme elfo sombreou os
olhos com o antebraço e olhou em volta.
Ele estava no meio do deserto. Isso era bom.
Ele não sabia onde, exatamente, estava. Isso era ruim.
A areia queimava seus pés descalços. Isso também era ruim.
A porta da masmorra sumira no ar. Isso era bom.
A poucas centenas de metros havia uma cabana de madeira.
Surpreendente. Avalas jamais imaginaria que alguém se daria ao trabalho de
construir qualquer coisa num deserto se não houvesse ao menos um rio por
perto.
Mas era o que tinha para o momento. Dando de ombros, o enorme elfo
apressou o passo para chegar o mais rápido possível.
Andar pelo deserto era bastante desconfortável. O vento que soprava era
abusivamente quente, a areia era abusivamente monótona e o sol queimava
abusivamente partes do corpo de Avalas que o enorme elfo nunca fizera
questão de bronzear.
No entanto, apenas parte da mente de Avalas computava e considerava
esses fatos. A outra metade estava trabalhando numa única frequência,
repetindo incessantemente a pergunta que não queria calar: “Onde estão os
outros?”.
Após cinco minutos de uma rápida caminhada, Avalas chegou ao seu
destino. A cabana era bem cuidada, e não estava carcomida pelo ambiente.
Além disso, perto da inusitada moradia o clima estava surpreendentemente
agradável. O sol não mais o queimava tanto, a areia não mais o incomodava
tanto, o vento soprava em uma temperatura agradável e o próprio ar parecia
um pouco mais úmido. O mais importante, porém, era que Avalas ouvia uma
voz falando de um dos outros lados da cabana.
- Não, não, isso é errado! O pergaminho claramente diz para você
fragmentar a energia, menina, não para lança-la toda de uma vez! – esbravejava
uma voz rouca e fina. Uma voz idosa.
99
Erguendo a espada, o enorme elfo andou para o outro lado da cabana,
pronto para terminar a curva em um ataque. Mas não havia inimigos.
Havia Mahslia.
- Avalas! – gritou ela, quando o viu. Largando um pergaminho e o cajado
na areia, a maga jogou-se no pescoço do enorme elfo, abraçando-o fortemente.
Avalas, desajeitado, deixou cair a espada e deu desajeitados tapinhas nas costas
da amiga. Cada tapinha parecia um golpe de raquete.
- Olá, Mahslia. Você está bem?
Mahslia soltou-o e afastou-se, olhando para os olhos do amigo com
felicidade.
- Estou ótima! Ficamos preocupados com você, seu maluco! Por onde
andou todo esse tempo?
Avalas fez cara de confuso.
- Todo esse tempo? Devemos ter ficado separados por cerca de cinco
horas, se muito!
Mahslia negou com a cabeça, incrédula.
- Não, Avalas. Você esteve sumido por uma semana. Nós achamos até que
você estava morto.
- E, obviamente, estávamos enganados. – disse uma voz suave vinda do
outro lado da cabana. Skrumppel surgiu, acompanhado por Tuhrster. – Senhor
Avalas, mais uma vez me sinto na obrigação de agradecê-lo por sua gentileza.
Foi um ato muito nobre de sua parte. No entanto, o senhor me parece estar...
diferente.
- E bem mais ousado. – resmungou Tuhrster, olhando para Avalas
despudorado.
Avalas ficou subitamente consciente de sua nudez. E Mahslia também.
Corando furiosamente, a maga virou-se e saiu correndo para dentro da cabana.
- E quanto a mim, seu moleque mal-educado? Não vai falar comigo? –
resmungou uma senhora idosa, encostada à cabana com o cajado e o
pergaminho de Mahslia nas mãos.
Avalas não tinha notado a velha senhora até então.
- Perdão, madame. Não tinha visto a senhora. Meu nome é Avalas. Peço
perdão pelo jeito com que me apresento.
A velha riu, cacarejante.
- Não é como se eu ligasse, menino. Já vi coisas muito feias na vida, mas
certamente você não é uma dessas coisas.
Avalas ficou rubro.
100
- Tuhrster, Skrumppel, onde está Krummel? – perguntou ele, agachando-
se com cuidado para pegar a espada e cobrindo-se com a mão.
- Pescando. – respondeu o anão, de braços cruzados.
- Quais as chances de ele ter ao menos uma calça para me emprestar?
- Baixas. – respondeu Skrumppel, sorrindo divertido.
Avalas resmungou algo ininteligível.
- Ei, moleque. Eu tenho roupas para você. – disse a idosa, analisando o
enorme elfo com calma.
Avalas olhou para a velha com desconfiança.
- Por que a senhora teria roupas do meu tamanho?
A velha riu novamente.
- Porque eu posso criar as roupas que eu quiser, moleque. Entre na cabana.
Já tem algo esperando por você lá.
- E cubra-se. – disse Tuhrster, sorrindo maliciosamente para Avalas e
jogando para o enorme elfo uma capa que havia escondido dentro de sua cota
de malha. – A pobre Mahslia não precisa ver essa coisa feia novamente.
Avalas amarrou a capa à cintura resmungando, enquanto entrava na
cabana sob o som de gargalhadas.
Algumas centenas de metros afastada da cabana repousava uma lagoa. Era
uma lagoa consideravelmente grande, abastecida por água subterrânea.
Diversos peixes viviam nessa lagoa límpida, nadando preguiçosamente.
Corash e Krummel encontravam-se na beirada da lagoa, com a bainha das
calças enrolada, e enfiados até os joelhos na fresca água. Cada um tinha nas
mãos uma tosca lança de madeira, que utilizavam para pescar.
Corash jogou os braços para cima, alongando-se, e secou o suor da testa.
- Diga, Krummel, você acha que Avalas voltará?
O meio-orc olhou para Corash, apoiando-se na lança.
- Para ser sincero, Corash, eu não faço ideia. Gostaria de poder te
responder, mas qualquer coisa que eu falar será mero chute. Eu realmente não
sei o que pensar.
- A velha disse que ele voltaria.
- A velha disse. – concordou Krummel, abaixando os olhos.
Os companheiros haviam chegado na casa da velha senhora uma semana
antes. Após terem saído do labirinto, eles vagaram sem rumo para frente por
algumas horas, até enxergarem, ao longe, a pequena construção. Eles pararam
por algumas horas, consumiram um pouco das provisões que Mahslia
101
carregava na bolsa e, com as energias renovadas, seguiram para a cabana da
velha elfa.
Quando chegaram à simples construção de madeira, a velha senhora os
esperava. Ela acenou com a cabeça algumas vezes, com os olhos detendo-se em
todos por um segundo, até fixarem-se em Mahslia.
- Ah, aqui temos uma menina talentosa. Imagino que você seja uma maga.
Mahslia enrubesceu.
- Sim, eu sou. Por quê?
A velha cacarejou uma gargalhada.
- Você fede a magia, menina. O garoto do arco também, mas menos, bem
menos. – a elfa idosa virou-se para Corash. – Você é um herdeiro Lam,
aparentemente.
Corash assentiu, sem fala.
- Imaginei. Você tem a mesma expressão crédula daquele idiota, aquele
Fiar Lam. Vocês são todos iguais.
- De onde a senhora conhece meu pai? – perguntou Corash, ávido.
A velha cacarejou novamente.
- De outras vidas, meu garoto. Foi esse desgraçado que você chama de pai
que me colocou nessa prisão de areia.
Corash negou com a cabeça. Não era possível! Seu pai era um bom
homem. Talvez um pouco endurecido, mas essencialmente bom! Não fazia
sentido que ele tivesse prendido alguém, principalmente em um lugar tão ermo
quanto as Dunas Congeladas.
- Eu não acredito na senhora.
A velha cacarejou pela terceira vez.
- Se quiser, criança, acredite até que as minhocas do deserto te farão
cafuné. Por mim não importa.
Fez-se um silêncio constrangido.
Tuhrster, então, falou.
- Perdão pela indelicadeza, senhora, mas podemos contar com um pouco
de sua hospitalidade? Estamos perdidos nesse deserto, e gostaríamos de poder
descansar um pouco nas sombras.
A velha sorriu para o anão.
- Ah, alguém sem vergonhas tolas. Entrem, meus jovens.
Krummel, porém, não se moveu.
- Senhora, não temos como pagar por sua hospitalidade. Não possuímos
dinheiro, e nossas coisas de valor são essenciais para nossa sobrevivência.
102
A velha olhou de uma forma marota para o meio-orc.
- Não se preocupem. Poderão ficar aqui até que aquele que vocês esperam
junte-se a nós, ou até mais. Tudo o que peço é o comprometimento da maga
aqui.
Mahslia olhou para a velha, desconfiada.
- Comprometimento com o quê?
A velha sorriu de uma forma um tanto quanto malvada.
- Não é algo que eu possa compartilhar facilmente. Conversaremos a sós, e
então você me dará sua resposta.
Ali, então, estavam eles, uma semana após chegarem à cabana da velha
elfa. Pescando no deserto.
Corash considerou sua situação por alguns segundos. Ele estava num
lugar aparentemente mágico. As roupas surgiam do nada, havia água parada
em um deserto, comida muito farta. Algo estava estranho.
Além disso, havia o fato de que Mahslia estava passando um tempo muito
grande com a anfitriã do grupo. Treinando, diziam Tuhrster e Skrumppel. Que
a velha elfa era uma maga, e uma maga poderosa, isso era claro. No entanto,
saberia ela também moldar a magia para as batalhas?
Por fim, o que mais incomodava Corash: será que seu pai realmente
condenara a velha a vagar pelas Dunas Congeladas? Pelo que ele conhecia de
Lian Fiar, isso era um tremendo absurdo.
“Mas quanto você conhece seu pai, Corash?”, perguntou uma voz
irritante. O arqueiro sacudiu a cabeça e deixou esses assuntos para outra hora.
Agora ele precisava pescar.
Corash enfiou a lança na água uma, duas, três vezes, conseguindo, assim,
dois peixes no processo. Era o suficiente. Krummel havia pescado mais um, e
eles já tinham três numa sacola.
Enquanto tiravam os peixes da lança, os dois companheiros ouviram
vozes. Uma enorme algazarra, mas isso era comum. Mahslia costumava fazer
um pouco de bagunça enquanto treinava, e a velha anfitriã achava isso deveras
irritante.
Dois minutos depois, a jovem maga apareceu na beirada do lago, ainda
muito vermelha.
- O que houve, Mahslia? Você está com febre? Deveria tomar cuidado para
não ter uma insolação, pode ser perigoso. – disse Krummel, preocupado com a
cor da amiga.
103
- Não, não é isso, Krummel. Avalas voltou.
Krummel e Corash se entreolharam. Seria possível?
- Você tem certeza disso? – perguntou o jovem arqueiro, olhando para a
amiga.
- Absoluta.
Krummel e Corash se entreolharam mais uma vez, e saíram correndo para
a cabana da velha senhora.
Capitulo Vinte e Dois
Quando Krummel e Corash entraram na surpreendentemente ampla
cabana, Avalas encontrava-se de calção, passando uma pomada no corpo que a
velha havia lhe dado.
- Então, seu elfo teimoso, você está vivo! – saudou Krummel, sorrindo para
o amigo.
Avalas sorriu para o meio-orc e Corash, enquanto esfregava um dos
braços.
- Por incrível que pareça, sim. Nem eu mesmo acreditei quando vi que
estava inteiro.
Corash assentiu, olhando feliz para o grande elfo.
- Seja bem-vindo de volta, Avalas.
- É bom estar de volta. Agora, onde está Mahslia? Precisamos decidir logo
nosso próximo passo.
Corash e Krummel se entreolharam por um segundo rápido, mas o gesto
não passou despercebido ao enorme elfo.
- O que foi? O que eu não estou sabendo? – questionou ele, parando de
passar a pomada.
Corash coçou a cabeça, um pouco encabulado.
- Mahslia fez um pacto com a nossa anfitriã. Ela não poderá sair das Dunas
Congeladas por cerca de dois anos.
- O quê?! – berrou Avalas, irritado. Uma veia pulsava em seu pescoço. –
Que história maluca é essa?!
- É verdade, moleque. Eu tomei Mahslia como minha aprendiz. – disse a
velha, adentrando sorrateiramente no quarto e fitando Avalas severamente. –
104
Esse é o preço da hospedagem de vocês, e Mahslia está pagando-o com
satisfação.
- Isso é um absurdo! Krummel, como é que você pode compactuar com
uma sandice dessas? E você, Corash! Mahslia não era sua melhor amiga? Como
pôde?! – perguntou Avalas, absurdamente alterado. Seu olhar denotava pura
loucura.
Mahslia entrou no quarto, olhando fixamente para Avalas.
- Eles não tiveram nada a ver com isso, Avalas. A decisão foi minha,
exclusivamente. Eles sequer tinham como impedir.
Avalas balançou a cabeça, irritado.
- Qual é o seu problema, Mahslia? Por que você fez essa idiotice?
Mahslia fulminou Avalas com o olhar.
- Porque essa é a única maneira de fazer vocês chegarem à Montanha
Selque sem morrerem no deserto.
As cabeças de Corash e Krummel, até então abaixadas, viraram-se
rapidamente para Mahslia. Isso era algo novo na história.
- Como assim, Mahslia? Você não nos contou isso. – acusou Corash,
pálido.
Mahslia abaixou a cabeça e respirou fundo uma, duas, três vezes.
- As Dunas Congeladas formam um deserto enfeitiçado por divindades. Só
há duas formas de passar por elas sem se perder: ou portando cristais do leito
do rio Moravher, que fica na terra dos anões... ou tendo a permissão do Zelador.
“Quando as Dunas foram criadas, os deuses decidiram que um deserto
vivo não poderia ser uma ideia tão boa. Seres vivos dão trabalho, ainda mais
um ser de tamanha extensão. Assim, eles nomearam um mago para cuidar do
deserto.
“Esse mago teria livre acesso a todas as áreas das Dunas Congeladas,
controlaria todos os seres vivos que aqui habitam, teria pleno conhecimento do
que acontece na área do deserto e poderia, à sua escolha, dar passagem para as
pessoas que escolhesse. Em troca disso, porém, teria que abrir mão de sua
liberdade de ir e vir.
“Junto com a abdicação da liberdade, vem também uma maldição: o
Zelador perderá toda sua juventude, e viverá até que encontre um mago
poderoso o suficiente para substituí-lo. Quando esse mago, designado como
próximo Zelador, completar determinado ritual, o Zelador anterior morrerá.
- É isso, então. – disse Krummel, olhando chocado para Mahslia. – Você é a
sucessora desta velha senhora.
105
Mahslia assentiu com a cabeça, olhando para os pés sem mais forças para
falar.
- Por que, Mahslia? Que inferno, por quê?! – questionou Avalas, socando a
parede da cabana.
- Porque não temos cristais do leito do Rio Moravher. – respondeu Corash,
fitando intensamente o rosto da amiga. – A nossa única possibilidade de chegar
à Montanha Selque é com a permissão da Zeladora, e esse foi o preço que essa
velha nos cobrou.
Mahslia assentiu.
Todos ficaram em silêncio por alguns segundos. Então, Avalas olhou a
velha anfitriã diretamente nos olhos.
- A senhora não pode nos separar de Mahslia.
A velha retribuiu com firmeza o olhar do enorme elfo.
- E por que não?
Avalas olhou para todos. Quando seu olhar pousou em Corash, este teve
uma súbita ideia.
- Porque Mahslia é nossa única maga. – respondeu o arqueiro, olhando
para Avalas e Krummel com intensidade.
“Me ajudem nessa”, pedia o olhar.
A velha cacarejou uma risada.
- E o que eu tenho a ver com isso, moleque?
- Tudo. Mahslia é uma menina muito talentosa, sim, mas também é
extremamente carinhosa. Ela se preocupa conosco.
- E daí? – pressionou a velha.
Krummel interveio.
- E daí que enquanto estivermos ausentes, ela não renderá tanto quanto
seu potencial sugere. Além disso, se eventualmente morrermos, ou falharmos
em nossa missão, ela vai ficar muito chateada. Não é, Mahslia? – perguntou o
meio-orc, voltando-se para a maga.
Mahslia assentiu, com o olhar brilhando com um início de compreensão.
- E, como a senhora certamente sabe, fortes emoções geram efeitos
imprevisíveis na magia de alguém. Se Mahslia ficar tão triste, quem sabe quais
efeitos isso pode gerar no potencial dela? – questionou Avalas, olhando para a
velha de forma incisiva.
- Ela pode ficar ainda mais forte... ou pode perder tudo. A senhora quer
arriscar o potencial da sua sucessora de uma forma tão estúpida? – finalizou
Corash, sorrindo para a velha.
106
A velha cacarejou novamente.
- Muito bonito, isso tudo. Mas vocês são fortes. Para que precisam de uma
maga?
Foi a vez de Mahslia falar.
- Porque a Montanha Selque é um lugar cuja própria essência remete à
magia. Krummel e Avalas podem ser instruídos em magia, mas nenhum deles
sabe exatamente como lidar com ela da forma correta. Sem mim, eles estarão
mortos. – disse ela, olhando firmemente para a velha.
- Eu não ligo para a vida deles.
- Mas eu ligo. E, no caso de a senhora não me permitir ir com eles, pode
considerar nosso trato desfeito. – respondeu Mahslia, com um pouco de raiva
no olhar.
- Você não faria isso. Morreria no deserto.
- Morreria. Mas não me arrependeria nem por um segundo.
A velha olhou para Mahslia por longos segundos, examinando a jovem
maga de cima a baixo várias vezes. Por fim, cacarejou uma terceira vez.
- Você é uma menina voluntariosa. Me lembra muito a mim mesma,
quando eu ainda possuía o viço da juventude. Você me promete que, assim que
terminarem seus afazeres na Montanha Selque, voltarão aqui? E você
continuará ao meu lado, como minha aprendiz e futura Zeladora das Dunas
Congeladas?
- Juro.
- Jura por sua magia?
- Juro.
- Então aperte minha mão. – disse a velha elfa, estendendo uma mão
enrugada para a jovem maga. Mahslia apertou-a com firmeza.
Por um segundo, as mãos de ambas as elfas foram envoltas por uma luz
branca. Depois, o brilho sumiu.
A velha sorriu maliciosamente.
- Foi bom fazer negócios com você, Mahslia.
E saiu.
107
Capitulo Vinte e Tres
Krummel, Avalas e Corash olharam atônitos para Mahslia. Aquela elfa
tinha muito mais fibra do que parecia.
Corash estava absurdado.
- Uau, Mahslia. Isso foi...
- Impressionante. – disse Avalas, olhando para Mahslia com novos olhos,
cheios de respeito.
- Altruísta. – disse Krummel, sorrindo bondosamente para a maga.
- Estúpido. Se você não tivesse feito esse trato, poderíamos ter burlado ela
de alguma forma. Agora, porém...
Mahslia balançou a cabeça, irritada.
- Isso não seria certo, Corash. Eu havia combinado com ela de que seria
sua sucessora. E não se esqueça, teríamos que voltar para Sparon. Para isso,
temos que passar pelas Dunas Congeladas de qualquer jeito. Ela saberia que
estaríamos por aqui. Ela é a Zeladora.
Avalas assentiu.
- O acordo foi uma mera formalidade para te permitir ir, certo?
Mahslia assentiu.
Corash sentou-se num canto da cabana.
- Por que você tinha que fazer isso, Mahslia? Que inferno!
A maga sentou-se ao lado do amigo, puxando a cabeça dele para seu
ombro e fazendo um cafuné.
- Não se preocupe, Corash. Tenho certeza de que daremos um jeito de
tudo sair da melhor forma possível. Tenha fé.
108
Avalas deu um risinho irônico.
- Se uma coisa a vida me ensinou é que os deuses não são misericordiosos.
Faça por onde, Corash. Procure as saídas. A única fé que te sustentará e te
manterá vivo é a fé em si próprio, apenas.
Krummel assentiu.
Corash olhou para os amigos e deu um sorriso triste.
- E então, Avalas, como você veio parar aqui?
Dois dias depois, os quatro companheiros acordaram junto do sol.
Prepararam provisões para vários dias, colocando-as na bolsa que o elfo mestre
de armas do castelo de Orxh dera a Mahslia.
Em seguida, todos colocaram suas armaduras. Encaixaram peitorais,
grevas e braçadeiras, prenderam capas e colocaram chapéus para protegerem-se
do sol.
Por fim, checaram rapidamente suas armas. O gume dos machados de
Krummel estava perfeito, do mesmo jeito que saíra do castelo: o mestre de
armas havia encantado as armas para que mantivessem o fio.
O cajado de Mahslia estava em perfeito estado, repleto de magia. Além
disso, agora que Mahslia estava mais poderosa, devido ao treinamento com a
velha maga que lhes hospedara, o cajado reagia, emitindo uma nesga de luz
leve.
O arco de Corash também estava bom. O jovem elfo notara que ele parecia
deixar fluir a energia com maior facilidade, o que o facilitaria na hora de atirar
flechas mágicas. Além disso, sua corda não parecia ressecada. Decerto, outro
presente do mestre de armas.
A espada de Avalas, porém, era o que mais surpreendia. Desde que o
enorme elfo enfrentara Drudhgar, sua espada sofrera uma enorme modificação
física. O punho da espada parecia escamado, e a guarda da arma tinha forma de
cabeça de dragão. Além disso, ela não mais brilhava ao sol – ao contrário,
parecia absorver a luz. Avalas, treinando no dia anterior, também descobrira
que agora podia lançar bolas de fogo de sua lâmina sem gastar quase nada de
sua energia – outro presente de Drudhgar, decerto.
No geral, os próprios companheiros estavam surpresos por estarem em tão
boas condições.
Os quatro saíram da cabana e viraram-se para o vulto agigantado da
Montanha Selque.
109
- Então é isso? Nós realmente vamos chegar lá? – perguntou Corash,
desacreditado.
- É o que parece. – assentiu Avalas.
Mahslia pôs as mãos nos ombros dos amigos.
- Animem-se, meninos. Logo mais isso tudo vai estar acabado, e
poderemos proteger Sparon.
Krummel sorriu.
- Parece errado terminar uma missão dessas, depois de tantas histórias,
não é?
Os outros três assentiram.
E partiram.
Quando deram cinco passos, porém, foram chamados.
- Mahslia! Corash! Krummel! Avalas!
Era Skrumppel.
Eles voltaram-se para o meio-halfling, que corria na direção deles,
acompanhado de Tuhrster.
- Está tudo bem, Skrumppel? – perguntou Mahslia, olhando para o outro
com um pouco de preocupação.
- Sim, está. É só que... Bom, isso é um tanto quanto estranho de se pedir... –
começou ele, envergonhado.
- Skrumppel quer saber se nós podemos acompanha-los em sua missão. –
disse Tuhrster, diretamente, olhando para os quatro companheiros com
firmeza. Seus olhos negros não denotavam emoção.
Os companheiros se entreolharam.
- Bom, seria fantástico, mas a Montanha Selque é um lugar perigoso. Não
queremos arriscar a vida de vocês assim, dessa forma. Não tenho certeza se é
algo correto. – disse Corash, olhando para os companheiros em busca de
orientação.
- Vocês certamente têm muito conhecimento, isso é claro só de olhar para
vocês. Mas conhecimento não é o tipo de coisa que manterá vocês vivos.
Teremos que cuidar de nós mesmos, em uma batalha. Não queremos que
percam a vida. – disse Krummel, com sensatez.
- E se soubermos lutar? – perguntou Tuhrster, com um olhar maroto.
- Vocês sabem? – questionou Mahslia, sorrindo.
Skrumppel conjurou um cetro, e Tuhrster tirou das costas um enorme
martelo.
110
- Temos nossos truques. – respondeu Skrumppel, sorrindo. – Posso não ser
um luminar das batalhas ou das magias arcanas, mas tenho alguma conexão
com o divino. Posso utilizar magias sagradas para curar e conjurar aliados.
- E eu tenho um martelo. E entendo um pouco de mecanismos. – disse
Tuhrster, mostrando o martelo.
Os quatro companheiros se entreolharam.
- Por mim, parece bom. – disse Krummel, dando de ombros e sorrindo.
- Acho que por mim também. Pode ter sido a fusão com Drudhgar, mas
acho que eles são bons de papo. – respondeu Avalas.
- Eu acho uma excelente ideia. – disse Mahslia, radiante.
- Então está decidido. Vocês vêm conosco. – decidiu Corash, sorrindo para
os dois novos companheiros.
Uma voz cacarejou uma risada. A velha aparecera atrás de Skrumppel e
Tuhrster, com um brilho meio maquiavélico no olhar.
- Que beleza. A trupe está completa, então. Agora vocês só precisam
chegar na Montanha Selque, não é?
Corash assentiu.
- Você pode nos ajudar com isso? Digo, nos mostrar o melhor caminho,
evitar que monstros nos ataquem, coisas do tipo?
A velha cacarejou novamente.
- Farei melhor que isso. A Zeladora sempre pode transportar pessoas para
qualquer lugar das Dunas Congeladas.
Mahslia arregalou os olhos.
- A senhora vai nos deixar aos pés da Montanha Selque?
A velha assentiu com a cabeça e estendeu os braços para cima. Um círculo
mágico começou a brilhar na areia.
- Entrem no portal.
Os seis companheiros obedeceram, postando-se no centro do círculo
mágico.
Subitamente, uma dúvida perpassou a mente de Corash.
- Espere um segundo, senhora. Qual o seu nome?
A velha soltou uma gargalhada louca, que ecoou macabramente pelas
Dunas Congeladas.
- Se quer saber quem eu era antes de ser amaldiçoada, garoto, eu te direi.
Eu era chamada por meus iguais de Amaky Lam.
E riu de novo, uma gargalhada ensandecida.
Corash deu um pulo, estendendo a mão para a mulher, chocado.
111
E sumiu junto de seus companheiros.
- Mãe! – gritou Corash, com a mão estendida. No entanto, o jovem elfo
acabou caindo na grama nascente que dividia as Dunas Congeladas da
Montanha Selque.
- Corash! – chamou Mahslia, correndo para o amigo. Ela ajoelhou-se ao
lado dele, ajudando-o a levantar-se. No entanto a mão de Corash afastou-a
bruscamente. A mão de Krummel pousou no ombro da maga, afastando-a
gentilmente de Corash, que socava o chão com um ódio atípico para ele.
- Que inferno! – gritou ele. – Por que isso está acontecendo? Primeiro eu
descubro que fui criado por parentes distantes porque meu avô é um idiota
crédulo que queria me matar. Depois descubro que meu pai está vivo, mas não
posso viver perto dele. Agora descubro que minha mãe não morreu, como era
esperado, mas tornou-se uma velha louca que é a Zeladora das Dunas
Congeladas. Daí ela toma minha melhor amiga como aprendiz, e, quando
Mahslia não tiver mais nada para aprender, minha mãe vai de fato morrer! Por
quê? – perguntou ele, ainda socando o chão. Sua mão já estava sangrando na
areia.
Avalas agarrou as costas da roupa de Corash, levantando-o.
- Foco, Corash.
Corash virou-se para Avalas, ensandecido.
- Não me diga o que fazer, desgraçado!
Avalas deu com as costas da mão no rosto de Corash, que voou longe.
- Eu disse para ter foco, Corash! Você não é o único aqui que passou por
maus bocados, sabia? Skrumppel e Tuhrster perderam toda a vida deles em um
labirinto, conversando com um dragão. Todas as pessoas que eles conheciam e
amavam morreram, pessoas que eles jamais terão a possibilidade de ver
novamente ou conversar. Eu nunca conheci meus pais, e fui jogado em Sparon
por coisas que nunca fiz, assumindo uma culpa que não era minha porque
acreditei em uma amizade falsa. Krummel foi rejeitado tanto pelos orcs quanto
pelos elfos, e jamais seria aceito com facilidade em um reino humano. Ele não
pertence a lugar algum. Todos nós sofremos muitas dificuldades, mas o único
que está dando chilique aqui é você. Foco, Corash!
Corash levantou-se com a cabeça baixa.
- Você tem razão, Avalas. Me perdoe. É só que... É muita informação em
muito pouco tempo.
112
- Você terá tempo suficiente para processar todas essas informações
quando essa história acabar. Até lá, porte-se. – disse Avalas, olhando com
dureza para o arqueiro.
Corash assentiu com a cabeça.
Krummel olhou para a montanha, agigantada contra o céu.
- Teremos que ir até o cume?
Tuhrster negou com a cabeça.
- Dificilmente. Ninguém em sã consciência faria qualquer coisa no cume de
uma montanha. É um lugar de difícil acesso, aberto aos mandos e desmandos
da natureza e perigoso.
Skrumppel virou curioso a cabeça para Tuhrster.
- Me parecem excelentes razões para se fazer qualquer coisa secreta no
cume de uma montanha.
Os outros quatro concordaram com a cabeça.
Tuhrster negou novamente com a cabeça.
- Há um lugar de acesso ainda mais difícil, fechado e muitas vezes mais
perigoso que o cume de uma montanha.
Os outros se entreolharam. Skrumppel fez cara de confuso. Subitamente,
Mahslia arregalou os olhos, assustada.
- O coração da montanha!
Tuhrster assentiu.
- É verdade! O ritual não foi feito a céu aberto, foi feito em uma sala! –
lembrou-se Corash.
- Então acho que devemos procurar a entrada. – disse Avalas.
Mahslia sorriu marotamente.
- Acho que posso ajudar nisso. Amaky me ensinou uma magia muito útil
para situações como essa.
A maga postou-se na grama e levantou o cajado, colocando-o na frente do
corpo e segurando-o com ambas as mãos verticalmente. Em seguida, começou a
transferir sua energia para o cajado, que começou a emitir uma luz violeta.
Subitamente, essa luz dividiu-se em diversos raios, que dirigiram-se a várias
partes da montanha. Diversas portas apareceram.
- Achamos as portas. Mas são muitas. Quais delas levam ao coração da
montanha? – perguntou Corash, pensativo.
- Provavelmente todas. – respondeu Tuhrster, tomando a dianteira do
grupo. – Não é comum que se criem portas para despistar alguém. É muito
demorado se criar uma porta em uma montanha, mas, depois de criada, é fácil
113
terminar a construção até o destino final. De forma que acredito que o que difira
entre as portas seja principalmente os empecilhos no caminho.
Avalas sorriu.
- Então é só escolher uma porta qualquer e entrar por ela?
- Acredito que possamos pensar um pouco antes de entrar em qualquer
porta, senhor Avalas.
O enorme elfo olhou para Mahslia.
- Há alguma forma de descobrir qual das portas tem um caminho mais
fácil?
Mahslia negou com a cabeça.
- Então não acho que pensar nos ajude, nesse caso. – disse Avalas.
Krummel interveio.
- Avalas, podemos tentar algumas coisas antes. Não deveríamos contar
com nossa sorte. Sabem os deuses que ela não anda bem das pernas.
Avalas assentiu, emburrado.
- O que tem em mente, Krummel? – perguntou Mahslia.
- Corash, será que pode lançar uma flecha em cada porta?
Corash assentiu.
- Algumas portas estão muito altas para minhas flechas alcançarem, mas
farei o possível. – disse ele, sacando seu arco.
Mirando na primeira porta, logo à frente do grupo, Corash atirou uma
flecha. A seta entrou pela escuridão e não fez barulho. No entanto, fez-se ouvir
um rugido de dentro da porta.
- Um dragão. Não acho bom. – disse Krummel, negando com a cabeça.
Corash mudou um pouco de posição, mas abaixou o arco.
- Não tenho ângulo para o tiro.
- Deixa comigo. – disse Mahslia, apontando o cajado para um lugar três
metros à frente de Corash. Um vórtex violeta surgiu, flutuando no ar. Em
seguida, Mahslia apontou para a segunda porta, e um outro vortex, idêntico ao
primeiro, pairou à frente da entrada.
“Tente agora.”, disse ela.
Corash mirou no vórtex e atirou. A flecha foi engolida pela magia e
reapareceu saindo da segunda parte do portal criado, em ângulo perfeito para
entrar na porta.
A flecha fez um barulho úmido e, depois de cinco segundos, fez-se ouvir o
barulho de sucção.
114
- Areia movediça, eu diria. Ou alguma coisa tão ou mais perigosa. Não
gostaria de ter que encarar isso. – disse Skrumppel.
Mahslia reposicionou a saída do portal, e Corash atirou novamente. Dessa
vez, não se ouviu barulho algum por longos segundos.
- Sem barulho é bom, não é? – perguntou ele, esperançoso.
Tuhrster negou com a cabeça.
- Vai saber o que abafou o barulho da flecha. Eu não arriscaria.
Mahslia novamente reposicionou o segundo portal, e Corash atirou de
novo. A flecha entrou na porta e, dois segundos depois, fez um barulho meio
metálico e meio seco, como se estivesse encravada numa parede ou no chão.
Avalas acenou afirmativamente com a cabeça.
- Esse barulho é conhecido. Acho que podemos nos arriscar nessa.
Curiosamente, a porta em que eu estava planejando entrar.
- Claro que era, Avalas. – disse Krummel, abafando um risinho. – Mas eu
concordo. Não acho que fique muito melhor que isso. Vamos por aquela porta
mesmo.
Mahslia, Corash, Skrumppel e Tuhrster acenaram afirmativamente com a
cabeça.
Quando chegaram à entrada, tudo o que viam era escuridão.
- Imagino que isso seja assim, mesmo, não? – perguntou Corash, forçando
as vistas para tentar enxergar mais longe.
Tuhrster acenou afirmativamente com a cabeça.
- Cavernas costumeiramente são escuras, sim. Essa é exagerada, mas
acredito que seja pela própria natureza da Montanha Selque.
Skrumppel, que não podia ver, comentou:
- Pessoalmente, não sinto nenhum tipo de presença maligna vindo de
dentro dessa entrada. Acredito que seja realmente o melhor caminho.
Avalas cutucou a escuridão com a espada, mas não encontrou nada que
barrasse o caminho.
- Bom, se nada nos impede, não vamos nos atrasar, não é mesmo? –
perguntou o enorme elfo, entrando. Os outros o seguiram.
Tudo era breu. A própria frieza que a montanha proporcionava era escura.
- Estão todos aqui? – chamou Mahslia, acendendo uma chama com a mão.
Seu rosto iluminou-se fantasmagoricamente.
Todas as vozes responderam afirmativamente.
115
- Esperem um pouco aí, devíamos ter acendido algumas tochas antes de
termos entrado aqui. – resmungou Mahslia, mantendo o fogo com uma mão.
Com a outra, remexia em sua bolsa. De dentro tirou algumas tochas, que
acendeu com sua magia. Em seguida, distribuiu-as. Uma para Krummel, uma
para Tuhrster, e uma para si.
Agora o lugar onde estavam era ligeiramente mais visível. Pareciam estar
em uma sala ampla, com chão ladrilhado. Nada mais era visível.
Nada.
- Ei, onde está a saída? – perguntou Corash, olhando para todos os lados,
assustado.
Ninguém sabia.
Uma sensação de claustrofobia foi tomando conta do peito de Corash, que
forçou a se acalmar. Não era tão ruim assim. Eles podiam ver, ao menos. Só
estavam numa sala fechada, sem saídas de ar aparente, com tochas flamejantes
consumindo o oxigênio deles.
Certo, era bem pior do que parecia.
- Mahslia, temos que apagar essas tochas.
- Por quê?
- É fogo, Mahslia. Se alimenta do nosso ar. Não sabemos se existe troca de
ar nessa montanha. É perigoso ficarmos com fogo aceso.
Mahslia xingou. Fazia sentido, é claro.
- Mas como iremos ver?
Skrumppel bateu na testa, lembrando-se.
- Eu em teoria sei conjurar magias de luz.
Avalas olhou para o meio-halfling.
- Como assim, “em teoria”?
Skrumppel sorriu tristemente.
- Eu não tenho certeza se faço isso do modo correto, senhor Avalas. Meus
olhos infelizmente não captam a luz.
Avalas corou, de forma visível até na parca luz das tochas.
- Então tente conjurar luz em algo, Skrumppel. – sugeriu Tuhrster.
Mahslia tirou uma tocha apagada de sua bolsa e colocou-a na mão do
meio-halfling. Este murmurou algumas palavras com sonoridade estranha,
fazendo alguns gestos com a mão. Subitamente, a tocha acendeu, com uma luz
branca e poderosa.
- Funcionou! – gritou Mahslia, alegre. Ela apagou a própria tocha e
segurou a que Skrumppel encantara.
116
O meio-halfling sorriu radiante, e rapidamente encantou mais duas tochas.
Agora a sala estava bem melhor iluminada. A magia de Skrumppel era
bastante potente.
Um pouco mais calmos, os amigos iluminaram as paredes até encontrarem
um corredor estreito. Apenas poderia passar uma pessoa por vez.
Tuhrster, então, tomou a dianteira. Podendo utilizar sua enorme marreta
para cima e para baixo, e sendo menor que Krummel e Avalas, teria vantagem
nessa posição.
Logo atrás dele foi Corash, com o arco preparado. Por causa da baixa
estatura do anão, seria fácil lançar as flechas.
Atrás de Corash foi Skrumppel, posicionado para que pudesse curar no
caso de uma eventualidade.
Depois vinha Mahslia, com algumas magias preparadas para ataque e
defesa, de modo que pudessem ser conjuradas sem muita perda de tempo.
Após Mahslia vinha Avalas, sentindo-se apertado e inútil.
Na retaguarda vinha Krummel, sempre olhando para trás. Como precisava
de menos espaço para lutar que Avalas, sua posição ideal era essa.
E, sem certeza do que havia pela frente, os companheiros avançaram.
117
Capitulo Vinte e Quatro
Pelo que pareceram várias horas, os companheiros caminharam pelo
corredor. Nada à frente, nada atrás. Nada em lugar algum.
- Nós estamos saindo do lugar? – perguntou Corash, chateado. Ele gostava
das coisas rápido, e isso não era nada como esperado.
- Imagino que sim. Ao menos, minhas pernas me dizem que sim. –
respondeu Avalas, ainda mais irritado.
Tuhrster estacou, com Corash quase batendo nele.
- Tuhrster! Por que você parou do nada? – perguntou o arqueiro,
assustado.
- Acho que mais à frente tem uma sala.
Os companheiros se entreolharam, na medida do possível.
Corash entregou uma flecha para Skrumppel.
- Skrumppel, por favor, encante essa flecha com luz.
O meio-halfling fez o que lhe fora pedido e retornou a seta a Corash, que a
colocou no arco e atirou à frente.
De fato, após cinco metros, a flecha parou de iluminar o corredor,
espalhando sua luz para um lugar muito mais amplo.
- Sim, é uma sala! – exclamou Tuhrster, apressando o passo. Quando todos
chegaram à sala, porém, notaram uma coisa: o chão estava coberto de
esqueletos.
Os companheiros se entreolharam, aflitos. Isso não era um bom sinal.
- Devemos voltar? – sussurrou Avalas.
- Você está com medo de mortos, Avalas? – perguntou Corash, rindo para
o enorme elfo.
118
- Estou. Você já viu o que um zumbi é capaz de fazer com um ser vivo? –
retrucou o espadachim, irritado.
- Não.
- Agradeça aos seus deuses por isso. Vamos voltar. Deve haver outro
caminho.
Corash riu.
- Não se preocupe, Avalas. Olhe, eles estão mortos. – disse ele, chutando
um crânio que estava aos seus pés.
O crânio rolou pela sala e parou ao lado da flecha iluminada.
- Lembram que eu não sentia nenhuma presença maligna? – perguntou
Skrumppel.
- Sim.
- Estou sentindo agora.
Os ossos do chão da sala começaram a se mexer e se levantar sozinhos.
Mahslia começou a recuar, mas deu com as costas na parede. A saída
estava fechada.
Avalas fez questão de dar um tapa na nuca de Corash antes de sacar sua
espada.
- Veja só o que você fez, seu panaca. Espero que saiba resolver isso.
Krummel colocara a tocha na boca e já sacara seus machados. Seu olhar
denotava preocupação e ferocidade.
Mahslia sacou seu cajado e jogou a tocha para Avalas, que prendeu a fonte
de luz ao cinto. Tuhrster imitou-o, e puxou seu martelo.
Skrumppel fez uma prece rápida, criando uma pequena área de proteção
contra mortos-vivos.
- Aqui estamos seguros. – disse ele. – Mahslia e Corash, fiquem aqui
enquanto dão suporte aos outros. Eu vou tentar uma coisa nova.
- Nova? – perguntou Avalas, desconfiado.
- Sim. Infelizmente, nunca pude completar meu treinamento como
clérigo... mas farei o possível para executar essa magia.
Avalas deu de ombros, e saiu da área protegida junto com Tuhrster e
Krummel para destruir alguns esqueletos. Mahslia atirava magias, espalhando
ossos para todos os lados, e Corash encantava suas flechas para torna-las
explosivas.
E Skrumppel fazia suas rezas.
119
Avalas girava, com sua pesada espada cortando costelas, destruindo
crânios e esfarelando meniscos. Era incrível: depois de sua fusão com
Drudhgar, seu corpo parecia mais forte, leve e flexível.
Por um segundo, Avalas parou para analisar a situação. Os esqueletos
pareciam estar se recompondo, mesmo com os esforços dele, de Krummel, de
Tuhrster, de Mahslia e até daquele idiota do Corash.
Secando o suor de cima dos olhos, Avalas voltou a destruir alguns
esqueletos.
Tuhrster lutava muito bem. Ele não era um soldado treinado, era um
simples minerador. No entanto, as minas eram lugares perigosos. Muitos
monstros subterrâneos e mineradores traiçoeiros espreitavam seus tortuosos
corredores. Assim, todos os mineradores deveriam lutar bem para
sobreviverem.
O anão parecia um pequeno tornado, rodopiando e aproveitando o ímpeto
do martelo para causar o máximo de estrago possível.
Aproveitando a própria velocidade, Tuhrster pulou e começou a dar
cambalhotas no ar, com o martelo estendido por cima da cabeça. Quando uma
das cabeças do martelo atingiu o chão, uma enorme onda de energia se
espalhou, destruindo vários esqueletos, que pouco depois começavam a se
reconstruir.
“Eu acho que odeio o Corash.”, pensou Tuhrster, secando o suor da face e
voltando a rodopiar com seu martelo.
“Corash, por que raios você tinha que ser tão infantil?”, pensou Krummel,
com raiva, enquanto esmigalhava esqueletos.
“Corash, por que raios você tinha que ser tão infantil?”, pensou Corash
Lam, enquanto atirava suas flechas. Uma, duas, três... e sua mão não encontrou
mais flechas.
“Essa não...”.
Mahslia conjurou uma magia explosiva no meio de um conglomerado
particularmente denso de esqueletos. Ela estava exausta. Não era normal ela
usar tanta energia assim.
Curiosa, ela olhou para Corash, que olhava desesperado para a própria
aljava.
120
Não havia flechas.
“Essa não...”.
- Skrumppel, falta muito para essa magia nova sair? – perguntou ela,
ofegante.
O meio-halfling acenou levemente com a cabeça. Um sim.
- Porcaria. Me ajude com as magias, Corash.
Vinte minutos depois, todos estavam novamente reunidos na pequena
área sagrada que Skrumppel conjurara. Tuhrster, Avalas e Krummel estavam
claramente exaustos, suando em bicas. Avalas tinha um feio corte abaixo de um
dos olhos, Krummel fora mordido violentamente em um dos braços, e o elmo
de Tuhrster fora tão golpeado que estava deformado, e Krummel e Avalas
precisaram se unir para tirá-lo da cabeça do anão. Mahslia estava quase
desmaiando de cansaço, e Corash olhava desesperado para Skrumppel.
O meio-halfling balançou a cabeça negativamente.
- Não adianta. Não tenho energia suficiente para manter a barreira e
conjurar a magia simultaneamente.
- Então baixe a barreira! – disse Avalas, irritado.
- Não é tão simples. Se eu fizer isso, estaremos mortos.
- Então passe a barreira para mim. – disse Corash, ansioso. – Eu posso não
ser um grande mago, mas acho que posso segurar essa barreira por algum
tempo.
Skrumppel encarou Corash com seus olhos vazios por um segundo. Em
seguida, tocou o ombro do jovem elfo, que subitamente curvou as costas.
- Essa magia é pesada. – disse Corash por entre os dentes.
- Um pouco. Tente segurar por cinco minutos, Corash.
Corash grunhiu alguma coisa.
E Skrumppel começou a conjurar sua magia.
Dois minutos depois, Corash esmurrava o chão, concentrando-se e suando.
- Quanto tempo se passou?
- Dois minutos. – respondeu Tuhrster, olhando para Corash com
curiosidade. – Por que você está se estrebuchando tanto? Skrumppel conseguiu
segurar essa barreira tão tranquilamente...
Krummel negou com a cabeça.
- A fonte de energia de ambos é diferente. Skrumppel utiliza-se de magia
sagrada. Corash usa magia arcana. Assim, antes de conseguir enviar a energia
121
para a barreira, Corash tem que converter a própria energia, o que consome,
por si só, mais energia. Além disso, toda conversão implica uma perda. A
quantidade de energia que Corash está utilizando é absurda. Estou
sinceramente impressionado que ele tenha conseguido manter por tanto tempo.
Tuhrster assentiu com a cabeça. Krummel era muito sabido.
- Skrumppel, se apresse. – pediu Corash, com uma voz sofrida. Ele estava
sofrendo fisicamente, já.
O meio-halfling sequer respondeu. Já estava em transe.
Agora era aguentar.
O abdômen de Corash doía horrivelmente. Aquela barreira estava
sugando cada gota de energia do seu ser. Sua cabeça já estava latejando, seu
peito parecia apertado e sua garganta ardia.
E Corash socava o chão, com raiva. Ele precisava fazer aquilo. Ele
começara tudo aquilo, era dever dele garantir que todos saíssem ilesos.
Ou o mais ilesos que fosse possível.
Corash começou um mantra para se focar.
“Quando sair daqui, conversarei com minha mãe e morarei com meu pai.
Quando sair daqui, conversarei com minha mãe e morarei com meu pai.
Quando sair daqui, conversarei com minha... mãe... e morarei... com meu pai.”
Skrumppel abriu os olhos, luzidios de poder. Sua voz gentil tinha tons
metálicos, e seu corpo estava envolto numa poderosa aura branca.
- Mais um minuto e estaremos fora daqui.
“Quando sair daqui... conversarei... com minha mãe... e morarei... com
meu pai. Quando... sair... daqui... quando... sair... sair... sair...”
Um som agudo começou a apitar.
- A barreira está se desfazendo! Corash desmaiou! – exclamou Avalas,
sacando sua espada e saindo da área ainda segura para afastar a maioria dos
esqueletos.
Krummel seguiu o enorme elfo, falando enquanto lutava.
- Ele ainda não está completamente desmaiado, senão a barreira já teria
sido destruída.
122
- Vamos afastar esses monstros daqui para Skrumppel terminar sua magia.
– disse Tuhrster, pulando ao lado dos amigos e martelando alguns esqueletos
no processo.
O som agudo aumentou mais, enquanto os três guerreiros eram
empurrados contra a área segura e, infrutiferamente, tentavam lutar.
O som aumentou.
Aumentou.
Aumentou.
E sumiu.
Avalas largou a espada e puxou Krummel e Tuhrster com violência para
dentro da área segura novamente.
Quando olharam, Corash estava caído no chão, desmaiado. Mahslia estava
segurando seu ombro, com os olhos luzindo vermelhos.
Mahslia estava segurando a barreira.
Os companheiros respiraram um pouco aliviados, mas isso tampouco era
uma garantia. Mahslia estava claramente utilizando a reserva de suas reservas
de energia.
Então, os olhos de Skrumppel perderam o brilho branco. Ele estendeu as
mãos para frente e liberou toda a energia que acumulara.
Um brilho cegante tomou conta da sala. Avalas cobriu seus olhos e os
olhos de Mahslia, enquanto os outros protegiam seus próprios olhos.
Quando descobriram os olhos, os amigos viram que os esqueletos tinham
sumido.
Mahslia deixou-se desabar junto com a barreira.
Skrumppel sorriu, com seus olhos cegos brilhando de felicidade.
- Eu consegui.
E desmaiou também, sendo aparado por Tuhrster.
Avalas recolheu sua espada e pegou Mahslia no colo.
- Vamos. Devemos prosseguir.
Krummel assentiu, recolhendo Corash.
Tuhrster pegou Skrumppel nos braços.
E os três guerreiros carregaram seus companheiros para a próxima sala.
123
Capitulo Vinte e Cinco
Quando os três companheiros carregaram Corash, Mahslia e Skrumppel
para dentro da outra sala tiveram uma grata surpresa: a sala era bem
iluminada, e, em seu centro, um arco dourado repousava de pé. O teto possuía
arabescos dourados, e portentosas tapeçarias enfeitavam as paredes.
- Acho que chegamos. – disse Tuhrster, olhando maravilhado para a sala.
Anões eram verdadeiramente apaixonados por ouro.
Avalas pousou Mahslia com delicadeza no chão e dirigiu-se para o arco.
Quando estendeu a mão para a arma, porém, foi jogado longe.
- É uma arma bastante voluntariosa, não? – resmungou ele, levantando-se
do chão e espanando a poeira da roupa.
- Acho que precisaremos do Corash para isso. – disse Krummel, olhando
para Tuhrster e Avalas.
Os dois concordaram.
- Então vamos descansar. Se quiserem dormir, eu assumo o primeiro
turno.
Os outros dois, porém, mantiveram-se acordados. Pegaram a bolsa de
Mahslia, alimentaram-se um pouco, tomaram água.
E, sem avisar, o sono os dominou.
Corash estava numa sala escura. No centro da sala havia apenas um arco
dourado, de pé como que por magia. Nada mais existia, só ele.
124
E o arco.
Curioso, o arqueiro se aproximou da arma. Ela não parecia poderosa o
bastante para proteger Sparon. Decerto ela fora feita com um esmero absurdo,
mas quanto a poder, não parecia tudo isso.
- Curioso, meu jovem? - perguntou uma voz gélida atrás dele. Corash
pulou, sobressaltado, procurando seu arco. Não estava com ele.
O homem que falara era alto e magro, vestindo uma túnica negra com
capuz. Por baixo do capuz brilhavam frios olhos vermelhos. Suas mãos estavam
formalmente postas às costas.
- Lembra-se de mim? - perguntou o homem.
Corash negou com a cabeça, sem poder articular as palavras do modo
correto. Aquele homem exalava poder e perigo. O homem riu.
- É uma pena. No entanto, fico feliz que tenha conseguido chegar até aqui.
Tenho acompanhado sua trajetória, e admito, não foi tarefa fácil. Devo
congratulá-lo.
- Eu não fiz nada demais. - conseguiu balbuciar Corash. - Todos os outros
ajudaram muito mais que eu.
O homem assentiu.
- É verdade. Mas você teve um papel muito mais importante do que
imagina. Sem você, nenhum deles estaria aqui, não é verdade?
- Talvez eles estivessem melhores. - disse Corash.
Os olhos do homem flamejaram, rubros.
- Você estaria incrivelmente triste numa pequena vila de elfos, sendo
criado por primos distantes que jamais deram a menor importância a você.
Jamais teria conhecido seus pais, o que, independentemente das circunstâncias,
foi uma experiência incrivelmente positiva. Mahslia estaria se formando como
maga, mas não teria a maturidade e a força que tem hoje, tanto emocional
quanto marcial. Avalas estaria incrivelmente irascível, preso naquela vila que
ele tanto odeia, culpado por um crime que não cometeu. Como ainda estaria lá,
jamais teria a oportunidade de descobrir mais sobre si e seu passado, porque
não teria confrontado Drudhgar. Como conseqüência, Tuhrster e Skrumppel
ainda estariam presos ao Labirinto, sem poderem sair. E, como vocês jamais
teriam passado pela prisão, Krummel teria sido colocado no time daqueles três
orcs que vocês mataram. E aqueles orcs não seriam páreo para o segundo time
que vocês enfrentaram. Em suma, Krummel estaria morto.
Corash olhou assustado para o homem, sem palavras.
O homem deu um rosnado desdenhoso.
125
- Seja sincero comigo, Corash. Ainda acredita sinceramente que eles
estariam melhores se você não tivesse começado sua missão? Acredita
sinceramente que você estaria melhor?
O elfo abaixou e balançou a cabeça, negando.
O silêncio pairou entre ambos, constrangedor.
- Quem é o senhor? - perguntou Corash, levantando a cabeça para encarar
o homem na túnica.
- Você sabe quem eu sou.
- Se eu soubesse, não estaria te perguntando.
- Você sabe quem eu sou. Apenas não está juntando as coisas.
Corash coçou a cabeça.
- Pai? - arriscou ele.
O sorriso do homem brilhou mesmo por trás do gorro.
- Você sabe que não. Seu pai é mais alto que eu, e tem uma voz totalmente
diferente. Além de que, seu pai jamais usaria uma túnica dessas. Como
arqueiro, você deve saber o porquê.
Corash assentiu, franzindo a testa. De fato, em algum lugar ele já ouvira
aquela voz fria ecoando pelas paredes daquela sala, enquanto vermelhos e
gélidos olhos esquadrinhavam as pessoas com quem ele falava, como que
analisando-as.
E então, ele percebeu.
- Você é Cael Kash.
O homem assentiu.
- Eu sou Cael Kash. Muito bem, Corash. Você se lembrou.
- Tenho perguntas a te fazer. Muitas.
Cael Kash deu de ombros.
- Como quiser.
Corash sentou-se ereto contra a parede, deixando que a luz emanada pelo
arco iluminasse macabramente seu rosto.
- Por que eu?
Cael Kash deu de ombros.
- Porque você é filho de Amaky, e herdou alguns poderes dela. Você era o
único com o qual eu poderia me comunicar decentemente.
- Nada mais?
Cael Kash negou com a cabeça. Corash suspirou.
- Bom, não posso dizer que não imaginava sua resposta. Mas isso é um
tanto quanto decepcionante.
126
O homem em túnicas não falou nada.
- Como eu libero o arco? - perguntou o elfo, ainda um tanto quanto
desapontado.
Cael Kash deu de ombros.
- Não posso dizer. Perdoe-me.
- Existe algo que você possa me dizer?
O homem na túnica pensou sinceramente na pergunta.
- Na verdade, existe sim. Não se deixe levar, menino.
Corash olhou-o, confuso.
- Como assim?
Cael Kash suspirou.
- Olhe para você. Está decepcionado porque achou que tinha sido
escolhido por ser especial, quando o motivo foi bem outro. Percebe o quanto
isso é infantil?
Corash silenciou, e o homem tomou isso como um sinal para seguir.
- Entenda uma coisa, menino, ninguém é especial. Ninguém, em absoluto.
Somos nós que nos fazemos especiais.
- Mas Avalas é encarnação do primeiro rei de Lynzea.
- E isso não o torna especial. Se Avalas não tivesse sofrido o que sofreu,
lutado o quanto lutou, treinado quanto treinou, não estaria tão poderoso quanto
está. Percebe? O fato de ele ser a encarnação do rei de Lynzea não tem nada a
ver com as habilidades dele, ou qualquer coisa do tipo. É o mesmo com você.
Ser neto do rei e filho do Grande Juiz não te faz especial. Ser filho de Amaky e
por isso ter herdado alguns de seus poderes não te faz especial. Te faz
meramente diferente dos outros – e você terá que aprender a lidar com essas
diferenças.
Corash olhou para Cael Kash, envergonhado. Ele nunca, em momento
algum, pensara desse modo. Saíra na missão com a pretensão de ser o salvador
de Sparon e, talvez, até de Lynzea, como um escolhido dos deuses. Nunca
pensara que fora uma escolha que fizera, e que isso decidira seu destino.
- Eu entendo, Cael Kash. Eu realmente entendo. - murmurou o arqueiro,
envergonhado.
O homem assentiu, satisfeito.
- Ótimo. Agora, Corash Lam, mostre-me que você pode ser tão especial
quanto achou que era. - disse ele, levantando as mãos. O cenário começou a
sumir aos poucos, junto com o mago humano. As últimas coisas a sumir foram
suas pupilas vermelhas e flamejantes, penetrando na alma de Corash.
127
E tudo ficou escuro.
Corash acordou sobressaltado. Ele estava na mesma sala com a qual
sonhara e, surpreendentemente, no mesmo lugar onde se sentara para
conversar com Cael Kash. Agora, porém, a sala estava bem iluminada,
revelando as belas tapeçarias e os arabescos dourados que enfeitavam as
paredes. No centro do recinto repousava o arco que viera buscar, esplendoroso.
Como que hipnotizado, Corash levantou-se e andou cambaleante em
direção à arma. Ela brilhava, brilhava demais. Era bonita. Era grandiosa. Uma
arma digna de um deus, com certeza.
Quando chegou próximo o bastante para alcançar o arco, o jovem elfo
estendeu a mão lentamente para a arma, com um temor respeitoso. Sua mão se
aproximou.
Se aproximou.
E roçou a arma.
Como vindo do próprio arco, um rugido ensurdecedor fez-se ouvir,
enquanto um poderoso campo de força se expandia, jogando Corash longe. O
arqueiro bateu na parede doloridamente, caindo torto no chão.
Avalas levantou-se sobressaltado, com a mão já puxando a espada.
Krummel também assustou-se, fazendo seus machados saírem de sua cintura
como que por mágica para suas mãos. Mahslia e Skrumppel acordaram muito
sonolentos, ainda um pouco abalados pela última batalha. Tuhrster ajoelhara-se
com o martelo em riste, pronto para saltar e atacar.
- O que foi isso? - perguntou Krummel, irritado.
- Eu não sei. O arco simplesmente me rejeitou quando eu tentei alcançá-lo.
- respondeu Corash, levantando-se com dificuldade.
Avalas estapeou a testa, deixando a mão escorregar pelo rosto, descrente.
- Corash, você é surpreendentemente burro, às vezes. Você mexeu no arco
quando todos estavam dormindo?
Mahslia balançou a cabeça, incrédula.
- Você não sonhou que a arma tinha sido selada por magia, Corash? É
óbvio que ela não vai ser levada tão facilmente. Tem uma magia sobre ela!
Corash corou.
- Ah, é. Esqueci. - disse ele, com um risinho nervoso. Lá estava ele fazendo
bagunça de novo. Foco, Corash.
Krummel foi mais pragmático.
128
- Bom, já que estamos aqui, vamos botar a cabeça para funcionar. Afinal, o
que temos mais para fazer?
Skrumppel assentiu.
- Não muito mais, isso é certo. Corash, o que precisamos saber?
O arqueiro deu de ombros.
- Bom, a arma foi selada aqui por cinco pessoas. Lembro do nome de um,
era Cael Kash. Eles se dispuseram em um círculo ao redor do arco e esse Cael
Kash recitou uma fórmula mágica, ou algo que parecia muito com uma. E então
eles morreram.
Tuhrster olhou ao redor.
- Eles morreram aqui? - perguntou ele, nervoso.
Corash assentiu.
- Qual o problema?
Tuhrster mostrou a sala com seu martelo.
- Não acha que faltam alguns esqueletos vestidos por aqui?
Corash olhou. Realmente, a sala parecia intocada. Não parecia que alguém
morrera ali: o chão estava limpíssimo, até cheiroso, de certa forma, e o ambiente
da sala era leve. O que será que acontecera?
Avalas deu de ombros.
- Acho bem provável que tenhamos enfrentado esses cinco lá atrás. Afinal,
nada nos garante que essa sala também não tem uma maldição que faça os
esqueletos levantarem.
Skrumppel negou com a cabeça.
- Essa sala é segura. Não há nada de errado, em absoluto. Tem que haver
outra explicação.
Krummel deu de ombros.
- Não acho que isso faça muita diferença, a essa altura. Digo, essa sala é
segura. Nosso foco deve ser a arma. Mahslia, o que sugere?
A maga abaixou a cabeça, deixando os cabelos ruivos cobrirem seu rosto.
- Bom, a lógica da magia nos diz que todo feitiço tem seu contrafeitiço.
Mas a magia que foi usada é uma incógnita para mim. Pela reação do arco, é
uma magia poderosa, mas pode ser um engodo. Não temos como saber com
certeza sem antes vermos.
- Uma só pessoa pode desfazer um selo feito por cinco? - perguntou
Skrumppel, virando o rosto na direção da voz da maga.
- A princípio sim, Skrumppel. O que tem em mente?
129
O meio-halfling sorriu e, pela primeira vez, os amigos viram a sombra da
esperteza marota dos halflings em Skrumppel.
- Eu tento desfazer o selo, enquanto você fica observando a reação da
magia. Se der certo, tanto melhor. Se der errado, você saberá o que fazer.
Mahslia assentiu. Era um bom plano.
- Comece.
Skrumppel concentrou-se com ambas as mãos em seu cetro. Sua aura
começou a brilhar mais e mais forte, polarizada no cajado. Um círculo mágico
apareceu embaixo de seus pés, com inscrições no alfabeto halfling que ninguém
sabia ler fazendo um movimento giratório ao redor de uma estrela de oito
pontos.
Skrumppel murmurava alguns encantamentos e orações, de olhos
fechados. Sua magia nunca estivera tão bela, tão poderosa.
O arco parecera notar isso, também. A corda do arco começou a vibrar
sozinha, enquanto um círculo mágico apareceu sob o pedestal no qual estava a
arma. No entanto, as inscrições estavam escritas no alfabeto élfico antigo, e a
estrela no centro tinha cinco, e não oito pontas.
Um pequeno som ressonante começou a fazer-se ouvir. O cetro de
Skrumppel e a corda do arco vibravam junto, na mesma frequência e crescendo.
Quando a vibração tornou-se insuportável, Skrumppel liberou sua magia.
Um raio de energia de forma similar à de uma chave foi em direção do arco,
rugindo. No entanto, ao chegar perto da arma, ricocheteou contra o meio-
halfling. Por sorte, a magia atacou diretamente o cetro, que rachou ao meio. O
impacto do feitiço assustou Skrumppel, que ficou pálido.
- Vocês viram isso? - perguntou Mahslia, fascinada.
- Na verdade, não. - respondeu Skrumppel, sorrindo fracamente. Os
meninos riram francamente, enquanto Mahslia corou.
- Desculpe, eu não...
- Não se preocupe, Mahslia. O que você viu?
- Você usou uma chave halfling de oito pontos, certo? Mas parece que o
arco foi seguro com uma tranca élfica de cinco pontos.
- Entendi. Você consegue desfazer essa tranca?
Mahslia suspirou.
- Eu não sei. Tudo indica que sim, porque eu treinei um bocado desse
feitiço no ano passado, enquanto estudava para maga do exército. Mas uma
coisa me incomodou um pouco...
130
As orelhas de Skrumppel se remexeram levemente, nervosas.
- O que houve?
- Dois dos pontos da tranca brilharam muito fortemente quando sua chave
atingiu o arco. - respondeu Avalas, de braços cruzados. Para ele também era um
mistério, e Avalas detestava mistérios.
Corash olhou para os companheiros, confuso.
- O que isso significa?
Krummel sorriu.
- Sabe, Corash, mesmo a magia deve seguir algumas leis universais. Uma
dessas leis é a imprevisibilidade dos efeitos. Basicamente, se eu desconhecer o
objeto da minha ação, suas ações serão, ao meu ver, aleatórias, ainda que no
contexto global elas façam todo o sentido. Se a tranca reagiu de uma forma
inesperada, significa que não se trata de uma tranca simples, e sim de uma
tranca com algum tipo de requisito especial que nós não conhecemos.
Corash assentiu, fitando Krummel com admiração. Fazia sentido, é claro.
Ainda assim, parecia que a resposta ao enigma da tranca estava em seus olhos,
mas ele não conseguia ver.
- Eu acho que eu vou tentar desfazer com um feitiço de chave simples. -
resolveu Mahslia. - Se não funcionar, ao menos confirmaremos as suspeitas de
Krummel.
Os companheiros assentiram. Mahslia posicionou-se de frente para o arco,
colocando seu cajado na frente do tronco e concentrando sua magia nele. Um
círculo com inscrições élficas rotativas e um pentagrama surgiu sob seus pés.
Como ocorrera com Skrumppel, um círculo com inscrições élficas rotativas
e um pentagrama surgiu sob o arco. A corda da arma começou a vibrar,
primeiro lenta, depois freneticamente.
Mahslia lançou sua magia sobre o arco. Uma chave, menor que a de
Skrumppel, atingiu o arco e por ele foi absorvida. O pentagrama sob a arma
desapareceu por um segundo.
Dois.
E surgiu novamente, brilhando ainda mais forte, lançando a chave contra
Mahslia novamente.
- Não! - urrou Avalas, colocando-se na frente da maga. O feitiço pegou em
cheio no seu peito, arrastando-o alguns centímetros para trás e deixando uma
feia queimadura em sua roupa.
131
Mahslia olhou para Avalas, chocada. Decerto, quando o enorme
espadachim entrara no precário time composto por ela e Corash, ele não teria
feito isso.
- Obrigada, Avalas. - murmurou ela, corando um pouco.
O enorme espadachim corou visivelmente. Seu corpo se movera antes de
seu cérebro poder pensar racionalmente.
- Não foi nada. Só não queria que você ficasse machucada. Se perdêssemos
nossa maga, estaríamos em grandes dificuldades. - respondeu ele, dando de
ombros.
Corash e Krummel se entreolharam, sorrindo um para o outro. Avalas
estava escondendo alguma coisa. Será que Mahslia quebrara o gelo do coração
do enorme elfo?
Tuhrster trouxe todos de volta à realidade, eficientemente.
- Vamos, vamos, não temos tempo para devaneios. O que achou desse
selo, Mahslia?
A elfa considerou a pergunta.
- Veja bem, Tuhrster, o feitiço que lancei com certeza estava certo. Tanto
estava que vocês viram que o selo do arco sumiu por alguns segundos. No
entanto, ele voltou. O que me faz pensar que não estamos cumprindo alguma
condição.
Krummel olhou para o teto, pensativo. Skrumppel começou a mexer os
dedos nervosamente, enquanto Avalas abaixou a cabeça, concentrado.
Corash olhou para os amigos, considerando. Eles nem pareciam um grupo,
na verdade. Pareciam um monte de gente que se juntou por acaso em uma
determinada aventura, um grupo tão eclético quanto o que selara a arma que
repousava no centro da sala.
Então, uma luz se acendeu na mente de Corash.
- Mahslia? - chamou o arqueiro, com os olhos vidrados.
A maga olhou para o amigo.
- É possível que quantidade e raça dos que venham a buscar a arma sejam
condições específicas?
Mahslia considerou a pergunta.
- Bom, acredito que sim. Seria uma magia com um nível de complexidade
absurdo, mas acho que não é algo tão impossível assim, uma vez que já
notamos que esse selamento não foi um selamento ordinário, não é?
Corash assentiu, olhando para os companheiros com novos olhos. Mahslia
olhou para o amigo com um pouco de suspeita no olhar.
132
- O que está tramando, Co? - perguntou ela, intrigada.
Corash sorriu.
- E se tentarmos desfazer o selo da mesma forma como ele foi feito: cinco
membros, cada um de uma raça, juntando seus poderes para isso?
Mahslia sorriu. Claro, era tão óbvio! Todos os princípios da dissolução de
magia apontavam para isso. A voz de velha de Amaky surgiu cacarejando em
sua cabeça: “Se você não consegue desfazer determinado feitiço, criança,
reproduza as condições sob as quais ele foi feito, e garanto que você achará a
resposta”. Como ela pudera se esquecer disso?
Krummel e Skrumppel também estavam animados. O meio-orc esfregava
as mãos, contente, enquanto o meio-halfling sorria para quem quisesse ver.
O único que parecia mais emburrado ainda era Avalas.
- Só temos um problema nisso tudo. - disse o enorme espadachim, do seu
canto da sala.
- E qual é, seu pessimista? - perguntou Tuhrster, um pouco chateado. A
negatividade de Avalas era contagiante, num sentido muito ruim.
O enorme elfo levantou a cabeça e olhou para os companheiros.
- Nós não temos membros das cinco raças que selaram essa arma.
Corash balançou a cabeça, discordando.
- Você, Mahslia e eu somos elfos. Skrumppel pode representar os halflings,
tendo sangue de um, enquanto Tuhrster é um puro anão. Krummel é meio-orc,
meio-humano, de forma que ele pode contar como dois.
O meio-orc balançou a cabeça, negando.
- Odeio dizer isso, mas Avalas está certo. É um princípio básico da magia
que cada participante atua como um elemento no feitiço. - disse Krummel, em
voz baixa.
Corash olhou confuso para Mahslia, que traduziu.
- Vamos supor que queiramos executar um feitiço que exija a presença de
cinco magos. Não importa que eu, sozinha, tenha energia suficiente para
substituir os cinco magos por mim mesma: ainda contarei apenas como uma
das magas entre os cinco necessários. Isso significa, então, que o Krummel não
poderá representar os orcs e os humanos simultaneamente. Ele terá que
escolher um. - explicou Mahslia, chateada.
Avalas bufou.
- É impressionante como todas as vezes que resolvemos um problema,
conseguimos criar outro. - disse o enorme elfo, jogando-se emburrado no chão
da sala.
133
Uma hora se passou. Todos os amigos estavam sentados, extremamente
irritados, tentando pensar numa solução. Corash olhava para a parede
desacorçoado. Por que eles não pensaram naquilo antes?
Um som leve chamou a atenção do arqueiro. Pareciam... passos? Seria
possível? Com cuidado, sem fazer barulho, o elfo postou-se de joelhos e armou
uma flecha na direção da porta, atraindo o olhar dos companheiros.
- Corash, que m... - começou Avalas, antes de ouvir um ríspido “Shhh!” de
Corash.
Os passos ficaram mais fortes, até pararem na porta. Quem, ou o que, quer
que estivesse do outro lado parecia estar mexendo na maçaneta.
A porta se abriu.
A flecha voou.
Um jovem de cabelos dourados, alto e forte, apareceu na porta. Quando
viu a flecha, agarrou-a pela haste antes que perfurasse sua barriga. Seus reflexos
eram extraordinários.
- Ei, cuidado com isso. Pode machucar alguém, sabia? - disse ele. Sua voz
era grave e tinha tonalidades escuras, e passava a sensação de calma e
confiança.
O jovem era bonito. Seus olhos eram sarcásticos, de um profundo azul, e
um sorriso irônico enfeitava seus lábios. Não tinha o porte de Avalas ou
Krummel, mas, de alguma forma, sua presença suplantava até mesmo a dos
dois enormes companheiros.
- Quem são vocês? - perguntou ele, sorrindo amigavelmente.
- Quem pergunta somos nós, não é mesmo? - questionou Avalas, puxando
sua espada. Apesar da bravata, ele estava receoso. Era óbvio que aquele jovem
era muito poderoso.
O jovem assentiu, concordando.
- Claro, vocês estão em maior número, e já estavam aqui antes de mim.
Acho justo que eu me apresente. O meu nome é Michelangelo Sechz, ao seu
dispor.
Michelangelo, afinal, fora uma resposta às preces dos companheiros. Ele
era um humano (apesar de insistir em ser chamado de zear), era poderoso e,
acima de tudo, tinha muito boa vontade.
Como fora parar ali, na verdade, era uma história bem simples. Da mesma
forma que Cael Kash enviara Corash por meio de sonhos, também contatara
134
Michelangelo. O jovem humano atravessou o portal que unia as dimensões dos
humanos e dos elfos e, com um objetivo claro ditado por seu sonho, começou
sua jornada. O único empecilho, segundo ele, fora nas Dunas Congeladas.
- Vejam bem, uma velha senhora que se chamava de Zeladora me levou
até ela. Aparentemente, ela controla aquele deserto. Eu falei que queria vir até
aqui, e ela disse que não ia me permitir chegar, porque eu ia atrapalhar os
planos de outros. Naturalmente eu não fazia ideia de quem eram os outros, mas
notei que ela estava um pouco confusa. A mim parecia uma maldição.
- E o que você fez? - perguntou Corash, ansioso. Ele acabara de reencontrar
a mãe, não aceitaria que um humano a tivesse matado.
Michelangelo olhou de um jeito estranho para Corash.
- Oras, fiz o que seria razoável: desfiz a maldição. Ela ficou bem sã depois
que fiz isso. Parecia que ela estava sob algum tipo de transe divino. Como se
linhas de marionete se ligassem à mente dela. Algumas vezes ela conseguia se
mover por iniciativa própria, mas muitas vezes algum tipo de divindade a
controlava, confundia. Eu basicamente cortei essas linhas.
Corash assentiu, emocionado.
Michelangelo contou o resto da história. Chegando à montanha, descobrira
uma entrada e aventurara-se por ela. Para chegar à sala, enfrentara uma
minhoca do deserto (“era um bicho esquisito, com uma boca sem mandíbulas,
sem olhos, atacando cegamente... um pouco espalhafatosa demais para uma
predadora decente”), um troll (“bom, ele era um pouco mais inteligente que a
minhoca. E tinha articulações. Que ele gostava muito de estalar.”) e um dragão
(“admito que não era muito poderoso, mas foi bem chato de botar para
dormir”).
- Você matou um dragão? - perguntou Avalas, cheio de dúvidas.
Michelangelo sorriu.
- Não. Gosto demais de dragões para sair matando-os a torto e a direito.
Não, eu realmente apenas o botei para dormir com um feitiço de sono.
E lá estava ele. Pronto para cumprir sua missão e voltar para sua terra. Os
amigos contaram ao jovem humano seu plano e ele assentiu, satisfeito.
- Me parece muito bom. Vamos fazer!
Dispuseram-se em círculo. Corash, Michelangelo, Tuhrster, Krummel e
Skrumppel deram-se as mãos, fechando Mahslia num círculo. A maga
recomeçou a conjurar seu feitiço de quebra de selo. As cinco pontas da estrela
sob seus pés alcançavam os cinco membros das cinco raças.
Vindo do nada, um vento forte começou a soprar.
135
Novamente, a corda do arco vibrava na mesma frequência do cajado de
Mahslia.
Era uma sensação estranha, pensou Corash. Ele não mais sabia exatamente
onde terminavam suas mãos e onde começavam Michelangelo e Skrumppel.
Tudo o que havia era a magia, sugando sua energia com voracidade.
“Acho que você nunca participou de uma quebra de selo, não é, Corash?”
perguntou a voz de Michelangelo Sechz em sua mente.
“Não...”
“Relaxe, você vai gostar. É um pouco... hã... chato, digamos assim, se você
quiser manter sua privacidade intacta. Mas, não sendo isso, é uma experiência
bastante divertida.”
Corash franziu o cenho. O que a privacidade tinha a ver com isso?
Então, ele entendeu.
A energia dos outros penetrou no corpo do arqueiro, trazendo milhares de
informações sobre todos, mais informações do que Corash podia processar de
uma só vez A imagem de Mahslia conjurando sua magia foi substituída por
uma enorme orc berrando (seria a mãe de Krummel?), uma igreja repleta de
halflings rezando (o monastério de Skrumppel!), uma fila de anões dirigindo-se
a um túnel numa montanha, carregando ferramentas de aspecto estranho (os
amigos de Tuhrster na mineração...) e, por fim, diversos humanos, de alturas e
larguras diversas, com cabelos e feições muito distintas, rindo e se divertindo
(as pessoas importantes para Michelangelo...). Memórias, cheiros, visões,
lembranças de ontens e amanhãs passando como um filme desconexo na mente
de Corash.
E, subitamente, as coisas passaram. Mahslia recolhera toda a energia.
- Abram o círculo. - ordenou ela, com a voz ressoando poder.
Os cinco abriram espaço, não querendo ser atingidos. Mahslia apontou o
cajado para o arco e lançou sua magia. Desta vez, uma chave multicolorida
atacou o selo, que sumiu debaixo do arco.
Por um segundo.
Dois.
E três.
Estava feito.
Corash pegou o arco e, para sua surpresa, este pesava muito mais do que
devia.
136
- Isso é abusivo. - disse ele, emburrado, usando ambas as mãos para
sustentar o arco decentemente.
Michelangelo aproximou-se por trás, olhando as lâminas do arco com
curiosidade.
- Isso é magia, Corash. Um selamento dentro da arma. Vê essas runas
entalhadas na lâmina? Pois então, num arco comum elas estariam douradas,
mas estão vermelhas. Se me permite...
O jovem Sechz afanou uma flecha da aljava de Corash e usou-a para cortar
a própria mão. Em seguida, passou um pouco do seu sangue nas runas e
estalou os dedos.
Cinco orbes de energia dourada saíram do arco, penetrando nas armas dos
companheiros de Corash. Imediatamente, todas adquiriram uma leve
tonalidade dourada e algumas runas inscritas. Mesmo o cetro de Skrumppel
fora devidamente consertado.
Agora o arco estava leve.
- Como você sabia? - perguntou Corash, não completamente desprovido
de ciúmes.
Michelangelo sorriu.
- Cael Kash era um zear, assim como eu. É meio que minha obrigação
reconhecer selamentos da minha raça.
Corash assentiu. Fazia todo o sentido.
Os amigos se entreolharam. Avalas estava com o rosto sereno. Mahslia
sorria, e Skrumppel parecia brilhar de felicidade. Tuhrster não falava nada, mas
era visível o prazer em seus olhos, e Krummel parecia satisfeito.
- Vamos voltar. - disse Corash.
Todos concordaram.
137
Epilogo
Os seis companheiros e Michelangelo Sechz saíram da sala onde as armas
estavam seladas e, para surpresa geral, já saíram ao pé da montanha.
- Inteligente... - comentou Krummel, curioso. - Depois de chegarmos ao
centro, não faz sentido nos fazer andar tanto. Então, para a saída, já nos botam
fora da montanha. Gosto disso.
Michelangelo sorriu.
- Se eu quisesse proteger algo, faria questão de dificultar até na saída a
vida dos outros. Mas acho que essas armas só poderiam ser libertadas por
pessoas determinadas, de bom coração. Se isso for verdade, de fato não faz
sentido dificultar a vida de ninguém.
Corash olhou para os companheiros com calor no coração. Era bom ter
terminado a missão.
Quando chegaram à orla do deserto, porém, Michelangelo deixou-se ficar
para trás.
- Devo voltar à minha dimensão, agora. Mas confesso que foi um enorme
prazer conhecê-los. Não esperava que seria recebido com tanto calor. -
comentou Michelangelo.
Corash sorriu, olhando para Avalas, Skrumppel, Tuhrster e Krummel.
- Digamos que o mais idiota dos membros, que poderia ter te tratado mal,
aprendeu muito nesta vida com alguns companheiros.
Michelangelo sorriu de volta.
- Obrigado, a todos vocês. Foi uma experiência inesquecível para mim,
acreditem.
O jovem estendeu a mão para o lado e criou um portal, mas, antes de
entrar, virou-se para os companheiros.
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- Um último aviso, se me permitem. Não se demorem muito tempo nesse
deserto. Ele suga a energia de quem se mantém nele. É possível que vocês não
tenham notado, porque são jovens e produzem muita energia. Mas pode ser
perigoso. - disse ele, remexendo num bolso – Se precisarem, usem isso. -
Michelangelo atirou um saquinho com sementes para eles. - É um saco de
sementes especiais da minha dimensão. Elas foram criadas com o fim específico
de restaurar a energia de alguém. Não usem isso em excesso, porque poderão
morrer de overdose de energia. Mas pode ajudar, numa emergência.
Mahslia sorriu, profundamente agradecida.
- Obrigada, Michelangelo. Fique bem.
- Vocês também. - sorriu o jovem Sechz de volta, com muito charme, e
entrou no portal.
Os companheiros olharam por alguns segundos para o lugar onde o
improvável ajudante deles havia sumido.
- Vamos indo. - chamou Avalas, com a voz um pouco mais gutural do que
de costume.
Só um pouco.
Quando pisaram na areia das Dunas Congeladas, um portal abriu-se e os
companheiros entraram nele. Quando se deram conta, viram Amaky
esperando-os, com lágrimas nos olhos.
- Meu filho. - disse ela.
Corash correu para abraçá-la, sem conseguir conter as lágrimas também.
Ele tentou dizer, naquele abraço, tudo o que as palavras não podiam expressar.
O quando sentira falta dela, mesmo sem conhecê-la; o quanto ele queria que
tudo tivesse sido diferente; o quanto ele estava feliz por tê-la conhecido; o
quanto ele queria continuar ao lado dela.
O quanto as coisas iriam mudar, a partir de então.
Mahslia enxugou uma lágrima.
- Você está chorando? - perguntou Avalas, curioso.
- É claro que estou, seu panaca. Corash merece essa felicidade. - disse
Mahslia, olhando brava para o companheiro.
“Como ele consegue ser tão insensível?!”, pensou ela. Então, notou o canto da
boca do amigo tremendo levemente.
E sorriu.
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- Eu estou feia, meu filho. Me desculpe. - soluçou Amaky, entristecida.
Corash balançou a cabeça.
- Não seja boba, mãe. A senhora está linda. Minha mãe jamais será feia aos
meus olhos, e não admitirei que seja aos olhos de ninguém, porque ninguém em
sã consciência pensaria algo do tipo.
A velha jovem mulher sorriu fracamente, abraçando o filho mais uma vez.
- Obrigada, meu filho.
Krummel aproximou-se lentamente.
- Desculpem-me... sei que não é o momento ideal, mas senhorita Amaky,
não pude deixar de ouvir o que a senhora disse.
A velha olhou para Krummel.
- Você pode me ajudar, Krummel?
O meio-orc sorriu, com o belo sorriso iluminando a bruta face.
- Acredito que sim. Veja a senhora, há uma teoria de que o envelhecimento
é causado pelo gasto de energia não recuperada. Se conseguirmos recuperar
toda a energia que gastamos, em teoria, conseguimos também recuperar a
juventude. Como sua juventude foi brutalmente sugada por meios não-
naturais, é razoável supor que, ao repor a energia rapidamente, a senhora
consiga recuperar a juventude externa, não?
Amaky assentiu, ainda agarrada ao filho.
- Você tem como fazer isso?
O meio-orc puxou um saquinho do cinto, com algumas sementes dentro.
- Talvez eu tenha. Aqui, coma duas. - disse ele, catando as sementes e
estendendo para a velha.
Amaky mastigou as sementes e as engoliu. Subitamente, arquejou de dor,
e todo seu corpo começou a brilhar. O vento soprou violentamente. Quando
tudo acabou, a mulher com quem Corash sonhara estava à sua frente. Cachos
castanhos muito bem cuidadas, rosto lindo, roupas garbosas... sua mãe, tal qual
seus sonhos lhe haviam mostrado.
Amaky sorriu. Ela se sentia ela novamente.
- Obrigada, Krummel. E olá, meu filho.
Ao fim de tudo, os companheiros decidiram voltar para Orxh. Eles
queriam falar com Lian Fiar sobre o sucesso de sua missão, e queriam a ajuda
dele para planejar o próximo passo.
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- Mas antes, vocês irão descansar. - disse Amaky, severamente. - Mahslia
precisa treinar, bem como todos vocês, e não conseguirão fazer nada sem
estarem bem alimentados.
Os companheiros concordaram. Afinal, a comida era dada gratuitamente
pelo deserto, bem como as roupas. E a cabana era confortável o suficiente para
todos. Descansar seria bom.
Corash olhou para o teto, deitado numa confortável cama. Ele mal
acreditava como, em pouco menos de um mês, sua vida havia mudado.
Conhecera seu pai, sua mãe, excelentes amigos. Ganhara poder, e amadurecera
tremendamente. Se sentia como uma pessoa totalmente diferente do garoto que,
cerca de um mês antes, saíra da pequena vila de Sparon com um sonho
delirante.
Corash sorriu, pensando em como fora inocente. E, confortável na casa de
sua mãe, dormiu, pela primeira vez em algum tempo com a certeza de que o
amanhã seria um dia infinitamente melhor do que o hoje fora.