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Aquisições Transnacionais – Entendendo Os Impactos da Cultura Local Autoria: Betania Tanure, Vera L. Cançado RESUMO: As duas últimas décadas do século XX foram marcadas pelo aumento de operações de aquisições transnacionais, envolvendo empresas de diferentes portes e países. O argumento desse artigo é que essas operações se constituem como um processo que, em si, é potencialmente importante para o seu resultado. Além disso, outros fatores também influenciam esses resultados, ressaltando-se a cultura e nacionalidade das empresas envolvidas. Este artigo tem como objetivo discutir as operações de aquisição, consideradas como um processo, buscando analisar o impacto das práticas e cultura do país hospedeiro, no caso, o Brasil. Para tal, são apresentadas evidências empíricas, a partir de dois estudos de casos: a aquisição do Banco Real pelo ABN Amro; e da Sûr Elevadores pela Thyssen. Pôde- se concluir que o modelo de análise se mostra adequado, revelando o impacto da cultura local na gestão dos processos de aquisição. A partir dos resultados, pôde-se traçar um continum que vai de um maior grau de profissionalização (das empresas adquirentes) a uma gestão dita personalizada (empresas adquiridas), indicando o surgimento de um modelo híbrido de gestão que traz a eficiência e eficácia dos processos racionalizados, permeados por traços típicos da cultura brasileira, como a informalidade e a pessoalidade nas relações. 1 INTRODUÇÃO As duas últimas décadas do século XX foram marcadas por um crescente aumento de associação entre empresas de diferentes portes e países. Apesar de crescente, as operações de aquisições transnacionais não têm apresentado os resultados esperados. Em âmbito mundial, estudos da consultoria Roland Berger indicam que 60 a 80% dessas operações falham, devido, principalmente, a efeitos superestimados da sinergia entre empresas, ao preço elevado e a dificuldades na integração (Barros, 2001). Child, Faulkner e Pitkethly (2001) estimam um pouco menos, que o insucesso pode chegar a aproximadamente 50% das operações. Os autores ressaltam que fatores relativos ao período de pré-aquisição, ao gerenciamento da aquisição e da pós-aquisição são importantes nesse processo. No Brasil, pesquisa conduzida por Barros e Rodrigues (2001), com executivos de grandes empresas, corrobora os estudos internacionais, revelando problemas de avaliação incorreta do negócio (34,3%), expectativa de mercado não atendida (32,8%); e questões culturais (19,4%). Muitas das causas dos insucessos das aquisições podem estar relacionadas, portanto, ao não entendimento da operação como um processo, que ocorre em fases interdependentes e que têm de ser planejadas e implementadas adequadamente. Haspeslagh e Jemilson (1991) apontam que a corrente teórica que considera essas operações como um processo tem levantado uma série de fatores que influenciam os resultados das aquisições, devendo-se reconhecer que o processo em si é, potencialmente, um determinante importante para esses resultados. Alem do processo, Child et al (2001) ressaltam outros fatores (gerenciais e não gerenciais) que podem influenciar os resultados dessas operações. Os fatores gerenciais referem à fase de integração na pós-aquisição e às mudanças nas práticas de gestão; os fatores não gerenciais incluem o tamanho das empresas adquiridas e adquirentes, a data da aquisição, o setor e a nacionalidade. Em relação à nacionalidade, é necessário atentar para a questão das diferenças culturais entre adquirentes e adquiridas e para as implicações das diferentes nacionalidades dessas empresas. Algumas questões importantes são então levantadas: em que

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Aquisições Transnacionais – Entendendo Os Impactos da Cultura Local

Autoria: Betania Tanure, Vera L. Cançado

RESUMO: As duas últimas décadas do século XX foram marcadas pelo aumento de operações de aquisições transnacionais, envolvendo empresas de diferentes portes e países. O argumento desse artigo é que essas operações se constituem como um processo que, em si, é potencialmente importante para o seu resultado. Além disso, outros fatores também influenciam esses resultados, ressaltando-se a cultura e nacionalidade das empresas envolvidas. Este artigo tem como objetivo discutir as operações de aquisição, consideradas como um processo, buscando analisar o impacto das práticas e cultura do país hospedeiro, no caso, o Brasil. Para tal, são apresentadas evidências empíricas, a partir de dois estudos de casos: a aquisição do Banco Real pelo ABN Amro; e da Sûr Elevadores pela Thyssen. Pôde-se concluir que o modelo de análise se mostra adequado, revelando o impacto da cultura local na gestão dos processos de aquisição. A partir dos resultados, pôde-se traçar um continum que vai de um maior grau de profissionalização (das empresas adquirentes) a uma gestão dita personalizada (empresas adquiridas), indicando o surgimento de um modelo híbrido de gestão que traz a eficiência e eficácia dos processos racionalizados, permeados por traços típicos da cultura brasileira, como a informalidade e a pessoalidade nas relações.

1 INTRODUÇÃO

As duas últimas décadas do século XX foram marcadas por um crescente aumento de associação entre empresas de diferentes portes e países. Apesar de crescente, as operações de aquisições transnacionais não têm apresentado os resultados esperados. Em âmbito mundial, estudos da consultoria Roland Berger indicam que 60 a 80% dessas operações falham, devido, principalmente, a efeitos superestimados da sinergia entre empresas, ao preço elevado e a dificuldades na integração (Barros, 2001). Child, Faulkner e Pitkethly (2001) estimam um pouco menos, que o insucesso pode chegar a aproximadamente 50% das operações. Os autores ressaltam que fatores relativos ao período de pré-aquisição, ao gerenciamento da aquisição e da pós-aquisição são importantes nesse processo. No Brasil, pesquisa conduzida por Barros e Rodrigues (2001), com executivos de grandes empresas, corrobora os estudos internacionais, revelando problemas de avaliação incorreta do negócio (34,3%), expectativa de mercado não atendida (32,8%); e questões culturais (19,4%).

Muitas das causas dos insucessos das aquisições podem estar relacionadas, portanto, ao não entendimento da operação como um processo, que ocorre em fases interdependentes e que têm de ser planejadas e implementadas adequadamente. Haspeslagh e Jemilson (1991) apontam que a corrente teórica que considera essas operações como um processo tem levantado uma série de fatores que influenciam os resultados das aquisições, devendo-se reconhecer que o processo em si é, potencialmente, um determinante importante para esses resultados.

Alem do processo, Child et al (2001) ressaltam outros fatores (gerenciais e não gerenciais) que podem influenciar os resultados dessas operações. Os fatores gerenciais referem à fase de integração na pós-aquisição e às mudanças nas práticas de gestão; os fatores não gerenciais incluem o tamanho das empresas adquiridas e adquirentes, a data da aquisição, o setor e a nacionalidade. Em relação à nacionalidade, é necessário atentar para a questão das diferenças culturais entre adquirentes e adquiridas e para as implicações das diferentes nacionalidades dessas empresas. Algumas questões importantes são então levantadas: em que

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medida as empresas envolvidas em aquisições transnacionais implantam e transferem ou adaptam suas práticas às da nação hospedeira? Qual a importância de se entender os impactos das culturas de adquirentes e adquiridas?

Corroborando essa perspectiva, a partir de um estudo cross-cultural sobre o impacto da cultura nacional sobre a gestão, com entrevistas com 1732 executivos, Tanure (2005) afirma que em processos de internacionalização não basta o apelo para a racionalidade compartilhada, porque esta é restringida pela nacionalidade da empresa.

Frente essas considerações, este artigo se propõe a discutir operações de aquisições consideradas como um processo, buscando analisar o impacto das práticas gerenciais e cultura do país hospedeiro, ou seja, da empresa adquirida. Para tal, são apresentadas evidências empíricas, a partir de dois estudos de casos: a aquisição do Banco Real pelo ABN AMRO; e da Sûr Elevadores pela Thyssen. Levanta-se a hipótese de que traços da cultura e do modo de gestão brasileiro permeiam as operações de aquisições, fazendo com que a empresa adquirida imprima aspectos importantes, impactando os processos de gestão da empresa adquirente. Essa perspectiva de análise enriquece os debates acadêmicos sobre o tema, focando aspectos ainda não pesquisados, uma vez que os estudos de Child et al (2001) centram-se mais em aspectos do impacto da cultura da adquirente sobre a adquirida.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Os novos formatos organizacionais implicam diferentes tipos de estruturas e de relacionamentos entre empresas, que se deslocam do chamado “posicionamento competitivo” para a “cooperação competitiva”. Nessa nova lógica produtiva global, diversas formas de relacionamento, que vão desde um relacionamento transacional até a unificação entre empresas, via fusões e aquisições, assumem crescente proporção tanto em nível internacional como local (Silva e Ribeiro, 2001).

Embora, teoricamente as operações de fusão e aquisição apresentem características diferenciadas, na prática o número de fusões “reais” é tão baixo que se pode englobar os dois tipos de operação basicamente em aquisições. A fusão envolveria uma completa combinação de duas ou mais empresas que deixariam de existir legalmente para formarem uma terceira, com nova identidade, teoricamente sem predominância de nenhuma das empresas anteriores. Apesar da suposta igualdade entre parceiros, na realidade, acaba por ocorrer o controle por parte de uma das empresas, assemelhando-se assim às operações de aquisição. A aquisição é uma operação com maior grau de complexidade, envolvendo alto grau de investimentos e de controle, maior impacto sobre a gestão, um processo de integração mais complexo e menor possibilidade de reversibilidade. As aquisições referem-se à compra de mais de 10% do controle acionário de uma empresa por outra e podem ser caracterizadas como: minoritária (10 a 49% do controle acionário da empresa); majoritária (50 a 99%); e total (100%), segundo UNCTAD (2000). Funcionalmente, as aquisições podem ser classificadas como: horizontal (entre empresas que competem em um mesmo segmento); vertical (entre empresas na cadeia de valor – fornecedoras ou clientes); e conglomerada (entre empresas de atividades não relacionadas).

As aquisições devem ser entendidas como um processo que ocorre em etapas consecutivas e interdependentes, que vão desde a escolha da empresa, envolvendo a intenção da operação; a due diligence; a negociação propriamente dita; e a integração. Apesar das fases de decisão sobre a compra e da integração se apresentarem como únicas e separadas, na realidade, elas são interativas e devem ser consideradas em conjunto, sendo uma inclusive determinante da outra. Estudos realizados por Haspeslagh e Jemison (1991) indicam que a abordagem tradicional, que leva em consideração os fatores financeiros e estratégicos que motivam a operação, não é suficiente para explicar sua complexidade. Essas operações devem

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ser consideradas como um processo, cujas fases de decisão e de integração têm um impacto significativo nas idéias, na justificação, nas abordagens de integração e nos resultados.

Diversos são os motivos que levam a aquisição (Lindgren e Spangberg, 1981; Shelton, 1988; Rourke, 1992; Cartwright e Cooper, 1999; Duarte, 2001; Evans, Pucik e Barsoux, 2002). As diversas razões, segundo Sterger (1999), podem ser reunidas em dois grupos: (a) tradicional – objetivos relacionados à consolidação e expansão de mercado; e transformacional – objetivos relacionados ao desenvolvimento de novo portfólio, novo modelo de negócios ou mudança radical de patamar. Essas razões são determinantes para a escolha da estratégia de integração, segundo Barros et al (2003) e Cançado, Duarte e Costa (2002). As aquisições consideradas transformacionais são mais complexas do que as tradicionais e requerem muito mais atenção no que diz respeito ao processo de integração pós-aquisição e à gestão das pessoas.

Uma vez definida a intenção da compra, inicia-se o processo de aquisição propriamente dito, quando são feitos levantamentos e análises sistematizadas sobre a empresa a ser adquirida – a etapa da due diligence. Normalmente, essa etapa centra-se nas análises financeiras, aspectos de mercado e legais que influenciam na estrutura da transação em si, com o objetivo de auxiliar na definição do preço a ser pago. (Marks e Mirvis, 1998). Apesar de se reconhecer a importância da gestão de recursos humanos como fator-chave para o sucesso dessas operações, os profissionais da área não têm participado efetivamente em processos de aquisição (Evans et al, 2002). Na etapa de negociação, normalmente é designada uma força tarefa para elaboração de um plano de pré-fechamento da operação, no qual devem constar a estrutura organizacional e hierarquia, a composição do time de integração e o cronograma de ações (Evans et al, 2002; Haspeslagh e Jemison, 1991).

Vários estudiosos concordam que a etapa de integração é fundamental para garantir o sucesso da operação, devendo ser cuidadosamente planejada. Senn (1992) aponta três formas de integração: autônoma ou semi-autônoma; absorção e assimilação; e co-criação de uma nova família. Haspeslagh e Jemison (1991) propõem uma tipologia, na qual duas dimensões explicam a lógica do processo de integração: a necessidade de interdependência estratégica, de forma a se criar um valor que não existiria se as empresas operassem separadamente; a necessidade de autonomia organizacional, no sentido da manutenção das capacidades estratégicas da adquirida intactas. Três tipos possíveis de arranjos são, então, sugeridos pelos autores: absorção, que envolve grande necessidade de interdependência estratégica e baixa necessidade de autonomia organizacional por parte da adquirida para se atingir o valor esperado; preservação, quando há baixa necessidade de interdependência entre as empresas, mas alta necessidade de autonomia organizacional, de forma a se manter as fontes dos benefícios da adquirida intactas; e simbiose que pressupõe uma alta necessidade de interdependência estratégica e de autonomia organizacional para se atingir o valor esperado.

Segundo Barros (2003) propõe uma tipologia, baseada nesses autores e em pesquisas realizadas no Brasil, caracterizando três níveis de aculturação. Na assimilação cultural, existe uma cultura dominante, observando-se alto grau de mudança para a empresa adquirida e baixo grau de mudança para a empresa adquirente. A empresa compradora absorve a outra, fazendo com que a empresa comprada adote os seus procedimentos e sistemas. A reação contrária à mudança e o sentimento de perda são vistas como manifestações naturais das pessoas da empresa “absorvida”.

A mescla cultural ocorre quando existe convivência de culturas, sem a dominância de uma delas, com moderado grau de mudança tanto para a empresa adquirida como para a empresa adquirente. Essa estratégia é mais comum em processos de fusão, principalmente quando as empresas têm pesos, tamanhos e força similares. Os parceiros procuram fundir as empresas, absorvendo características de ambas e preservando preferencialmente o que cada uma tem de melhor. Alcançar o equilíbrio na convivência de duas culturas é possível em

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termos teóricos, mas na prática tende a existir uma cultura que dominará, de forma mais ostensiva ou sutil. A ocorrência do domínio não significa que a cultura predominante não seja alterada pela convivência e pelo questionamento. Deste processo resulta uma terceira cultura.

A pluralidade cultural ocorre quando não existe influência significativa da cultura da empresa adquirente na adquirida, com baixo grau de mudança para a empresa adquirida e baixo grau de mudança para a empresa adquirente. É caracterizada pela convivência de diferentes culturas, sendo vista como uma fase transitória, mesmo que não seja rápida. Ao longo do tempo, as características da empresa compradora tendem a interferir nos processos da empresa adquirida. Esse movimento é impulsionado, na maioria das vezes, pela introdução de novos sistemas de acompanhamento e controles adotados pelas adquirentes.

Em estudos mais recentes a mesma autora em parceira com Ghoshal identifica um quarto tipo de aculturação, denominado movimento reverso (Ghoshal e Tanure, 2004). Ele surge quando a empresa adquirida influencia decisivamente a compradora. Entretanto, essa estratégia ocorre raramente.

Barros et al (2003) estabelecem uma relação entre a motivação da compra e as diferentes estratégias de integração a ser adotada pela adquirente, via assimilação, mescla e pluralidade ou ainda via movimento reverso (Ghoshal e Tanure, 2004). Além da motivação para a compra, outros fatores podem ser determinantes para configurar a estratégia de integração, como por exemplo, a situação financeira da adquirida; a capacidade da adquirente para assumir a gestão, tendo em vista o porte relativo das empresas envolvidas, dentre outros. Quando a motivação da compra é classificada como tradicional, ligada à expansão geográfica, o processo de integração tende a se dar via assimilação com a rápida incorporação da adquirida. Quando a motivação é transformacional, ligada à aquisição de novas tecnologias, por exemplo, deve-se preservar as características e gestão da adquirida, com um processo de integração via pluralidade cultural, mesmo que transitoriamente.

Resultados de pesquisas de Child et al (2001) confirmam esses achados de Barros bem como os de Ghoshal e Tanure que indicam algumas outras implicações para a gestão de aquisições. Além de detectar essa relação entre o motivo da compra e a estratégia de integração, observou-se que alguns fatores como nacionalidade, a prévia experiência da adquirente em operações de aquisição, as condições financeiras, de gestão e a imagem de mercado da adquirida têm importante implicações nas aquisições internacionais. Em relação à condição da adquirida na época da operação, há uma tendência a maior intervenção, com processos tendendo à absorção, quando a adquirida se encontra em crise. A experiência anterior em processos de aquisição implica em processos de integração mais diretivos, menos experimentais e melhor conduzidos.

Esses estudos de Child et al (2001) também demonstram uma relação entre as estratégias de integração e os estilos de gestão associados à nacionalidade. Os japoneses têm uma clara preferência pela pluralidade, podendo tender à mescla. Os alemães transitaram nos diferentes tipos, evitando a assimilação. Já as empresas norte-americanas têm uma tendência à assimilação. As francesas construíram um estilo diferente, denominado de “colonial”, com características de centralização. Tanure (2005) concorda com Child et al (2001), ressaltando ainda que tanto é importante conhecer aspectos da cultura do país da adquirida como da adquirente, pois seus impactos na fase de integração serão muito importantes. E concluiu que em processos de internacionalização, apesar do foco na racionalidade compartilhada, é necessário considerar que aspectos da cultura local e da nacionalidade que restringem essa racionalidade, impactando questões fundamentais nos processos de aquisição.

Nos estudos organizacionais já se fala, há décadas, das influências culturais sobre a forma como as organizações são dirigidas, podendo-se detectar duas correntes antagônicas: a convergente e a divergente (Tanure, 2005). Nos anos 60, com base nesta percepção de que o

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modelo gerencial poderia ser universal, sugeria-se a existência “um modelo melhor” para administrar. Essa corrente, denominada de convergente tem diversos adeptos, dentre eles Hall (1976), Hickson e Hinings (1974), Pugh e Hickson (1976), Parker e Sarvary (1994, 1997). Na década de 70, ganhou relevância a perspectiva da divergência, que acentua as diferenças de modelos de gestão entre países e regiões, e analisa o impacto dessas diferenças sobre estilos de liderança, processos de negociação, gestão de pessoas, motivação e administração de conflitos, entre outros. A Teoria Divergente tem mais adeptos do que a Teoria Convergente. Ela demonstra como diferenças culturais afetam o estilo de administrar, e foi examinada por diferentes estudiosos, como Laurent (1983), Trompenaars e Hampden-Turner (1993) e Hofstede (1991, 2001, 2002).

Uma terceira corrente admite a existência das duas dimensões, convergente e divergente. Ela argumenta que as diferenças entre países e regiões são mais evidentes em relação a valores, enquanto outras dimensões organizacionais, como a estrutura, não sofreriam impactos significativos do ambiente cultural onde a empresa está localizada, uma abordagem defendida inicialmente por Child (1999) e denominada de terceira via por Tanure (2005).

A partir dessas referências, conclui-se que a empresa é um espaço sócio-cultural, sendo, portanto, a cultura nacional um dos pilares da cultura organizacional, apesar de não ser o único. Além dos impactos da cultura nacional na gestão, é importante considerar o papel fundamental da liderança, o sonho e as marcas imprimidas pelos fundadores. A estes dois pilares fundamentais somam-se outras características, como as setoriais, o tipo de origem de capital e a lógica de formação predominante.

Portanto, é importante compreender alguns traços da cultura e da gestão dos países envolvidos em processos de aquisições. Para melhor entendermos a cultura brasileira, buscou-se em Tanure (2005), em Srour (2000) e em DaMatta (1990, 1994) algumas explicações sobre o jeito de se fazer negócios e de ser das empresas no país. Nas empresas brasileiras, apesar da modernização gerencial, a racionalidade administrativa é permeada por traços característicos da cultura local, como: informalidade, cordialidade e afetividade; relações de protecionismo e personalismo; a instituição do jeitinho para se resolver problemas; tendência a se evitar conflito e a não assertividade permeiam as relações profissionais. As relações pessoais são utilizadas como forma de intermediação dos conflitos, tratado de forma indireta, lançando-se mão muitas vezes da fofoca e evitando o confronto direto com quem detém mais poder. Essas características têm origem em nosso próprio processo de colonização, resultando um comportamento ambíguo típico do brasileiro, da dupla moral e da criação de espaços contraditórios, retratado por DaMatta (1994). O autor diferencia o conceito de “indivíduo” (ou o espaço da “rua”) e “pessoa” (ou o espaço da “casa“) na sociedade brasileira. O “indivíduo” é encarado como um ser anônimo; não é identificado como alguém que faz parte de determinado círculo de relações, portanto digno de atenção ou confiança, sendo tratado absolutamente “dentro da expectativa da lei”. Ao passo que a “pessoa” é identificada por suas ligações. Ela merece confiança e tem uma ampla margem de ação e liberdade. Pelo fato de gozar do status de pertencer a determinado grupo, este lhe confere proteção, possibilitando que ele usufrua “das facilidades da lei”.

Assim, apesar das muitas leis, regulamentos e normas existentes no país, os brasileiros convivem, na prática, com uma discrepância entre a conduta concreta e as normas prescritas. Esse formalismo, de acordo com Ramos (1983), é resultado do caráter dual de sua formação histórica e de modo particular como se articula com o resto do mundo. Existem processos ou canais extralegais, ou mesmo legais, aceitos como normais e regulares pela consciência coletiva. Por outro lado, isso reforça o personalismo. Quanto mais ambíguo o ambiente, melhor para se exercer o poder de forma mais forte e personalista.

Essas características criam o amálgama da gestão à brasileira, que, segundo resultados de pesquisa desenvolvida por Tanure (2005), revela traços contraditórios: a absorção de

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modernas técnicas de gestão, mas com certa submissão aos processos “importados”; flexibilidade para adaptar-se a novas situações, capacidade de lidar com a incerteza, permeadas por traços fortes de hierarquia. Os brasileiros funcionam orientados pela autoridade externa. Apesar do discurso participativo, o estilo de gestão ainda se mostra bastante centralizado. Esse é um comportamento presente até mesmo nas elites, que importam modelos sem adaptá-los às nossas condições culturais (Caldas e Wood Jr, 1999). A flexibilidade está permeada por um dos traços marcantes da cultura brasileira: a afetividade. Os brasileiros revelam pensamentos e sentimentos - verbalmente e não verbalmente. Eles são acalorados, não se retraem ao toque físico, têm gestos e fortes expressões, as falas são fluentes e dramáticas. Esse conjunto de características é refletido no chamado jeitinho brasileiro – reconhecido pelos estrangeiros que trabalham no Brasil.

Nessa pesquisa, Tanure (2005) buscou também caracterizar o conceito de sucesso para diferentes sociedades. Os resultados indicam que o Brasil, juntamente com França, Austrália e Hungria, forma o grupo denominado de “O Empreendedor Familiar”, que valoriza, como principais indicadores de sucesso, ter os interesses familiares satisfeitos, ter competência de disputar com espírito esportivo e a riqueza pessoal. Brasil e França, como países de origem latina, tendem a valorizar a importância das relações pessoais e a hierarquia. Países como a Hungria entendem que o limite entre a organização e a vida pessoal é fluido, contribuindo para aumentar as interfaces empresa-família. O grupo formado pela Alemanha e Holanda é denominado de “O Fundador”, e valoriza a responsabilidade com os empregados e com a sociedade em geral, assim como a capacidade de criação/inovação, como os mais importantes indicadores de sucesso. O significado da responsabilidade do dirigente empresarial no desenvolvimento do meio em que ele está é um dos traços importantes destes países, dirigindo, portanto, várias das atividades de integração empresa-sociedade.

Concluindo, tendo-se como referência essas questões discutidas, procurou-se analisá-las, a partir dos dados empíricos de dois estudos de casos de operações de aquisições ocorridos no Brasil. 3 A PESQUISA EMPÍRICA – ESTUDO DE CASO EM EMPRESAS BRASILEIRAS

Para a discussão de dados empíricos que auxiliem a responder à questão proposta por

este artigo – Quais são os impactos das práticas e cultura do país hospedeiro sobre a gestão da etapa de integração, em processos de fusões e aquisições? – optou-se pela análise de dois estudos de casos realizados em uma pesquisa mais extensa desenvolvida por Barros (2003). Esta pesquisa, de cunho quantitativo e qualitativo, realizada no ano de 2001, serviu de base para a publicação do livro “Fusões e aquisições no Brasil – entendendo as razões dos sucessos e fracassos”, de autoria de Barros (2003); e para a publicação de diferentes artigos científicos (Barros et al, 2003; Barros e Cançado, 2003; Tanure e Cançado, 2005).

Os dois casos aqui discutidos estão descritos de forma completa no livro, no capítulo 2 – ABN AMRO/Banco Real – uma aquisição estratégica; e capítulo 9 – Thyssen e Sûr – uma união para manter o crescimento. Para levantamento dos dados dos casos, foram utilizadas fontes secundárias como sites das empresas e documentação formal; e fontes primárias, por meio de entrevistas semi-estruturadas, registradas sistematicamente, com pessoas de todos os níveis hierárquicos, da presidência ao nível operacional. As entrevistas foram baseadas em um roteiro semi-estruturado, com foco nas etapas do processo de aquisição, e diferenciado em função da experiência do entrevistado e/ou sua atuação neste processo. No caso ABN AMRO/Real foram realizadas 62 entrevistas, em dois momentos diferentes, com intervalo de dois anos, visando acompanhar a evolução do processo. No caso Thyssen/Sûr foram realizadas 24 entrevistas. Ambos os casos, o número de entrevistas foi considerado adequado para o porte das empresas envolvidas.

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Os dados levantados foram confrontados cruzando-se as diversas fontes de evidência e analisados por meio da comparação com referencial teórico, focando-se as variáveis discriminadas no modelo de pesquisa, conforme apresentado na Fig. 1.

FIGURA 1 – Modelo de análise: O impacto da cultura em processos de aquisições Fonte – elaborado pelas autoras.

3.1 Caso 1 – ABN AMRO/Banco Real O Banco ABN AMRO é resultado da fusão, em 1991, do Banco ABN com o Banco

AMRO, um banco holandês há muito estabelecido. Em 1998, seus ativos totais eram de cerca de US$410 bilhões, ocupava a 14ª posição na classificação dos bancos mais importantes do mundo e tinha aproximadamente 75.000 empregados. O ABN já estava presente nas Américas do Sul e Central e no Brasil, era um dos maiores e mais rentáveis bancos estrangeiros. Com US$4 bilhões de ativos totais, estava classificado em vigésimo primeiro lugar entre os bancos brasileiros. Tinha 2.500 funcionários e operava 48 agências. A partir da definição pela intensificação das operações na América do Sul, Fábio Barbosa, diretor responsável pelas operações no Brasil, começou a estudar aquisições potenciais, concluindo por dois candidatos viáveis: O Unibanco e o Banco Real, que se tornou a perspectiva mais interessante.

O Banco Real foi fundado em Belo Horizonte, em 1925, pelo Dr. Clemente de Faria, pai do atual presidente e executivo chefe (1998). O grupo, com sede em São Paulo, operava a essa época, o banco comercial, mas atuava, também, com companhias de seguro e crédito imobiliário, subsidiárias da área de tecnologia de informações e uma pequena agência de viagens. Dentre os bancos privados, o Banco Real ocupava o quarto lugar em depósitos, rede e ativos. Com 14.700 empregados, o banco comercial operava uma grande rede doméstica (concentrada principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) que compreendia 550 agências completas de serviço e 2.000 postos de serviço, além de 2800 máquinas de atendimento automático. O banco operava também uma rede de 47 agências e subsidiárias na América Latina, principalmente na Colômbia e no Paraguai. Tinha um patrimônio líquido de US$788 milhões e um lucro líquido de US$98 milhões. Comparado com o ABN AMRO Brasil, o Banco Real tinha 3,4 vezes o total de ativos (US$13,5 bilhões contra US$ 4 bilhões), 1,9 vezes de valor patrimonial e um lucro líquido ligeiramente menor.

O Banco Real tinha a imagem de um banco bem administrado, bastante conservador, dirigido em estilo autocrático e centralizador pelo Dr. Aloysio Faria. Era conhecido por sua atitude avessa ao risco e pelo alto nível de eficiência de sua área de tecnologia de informação. Além disto, o Banco Real era conhecido por ter implantado um sistema de informações gerenciais que incluía resultados por segmento de clientes, linha de negócios e filiais.

Em novembro de 1997, Floris Deckers, responsável regional pela América do Sul, abordou o Banco Real, mas obteve uma resposta negativa. Depois de um ano de debates junto ao seu Presidente Executivo, Paulo Guilherme, Dr. Aloysio concordou em avaliar a idéia da

PROCESSO DE F&A

Motivo da

compra

Due diligence Negociação

Compra

Integração

Relação entre o porte da adquirente/adquirida Situação financeira

Tradicional transformacional F(mercado) f(tecnologia)

Cultura do país hospedeiro Cultura organizacional da adquirente/adquirida

Assimilação Mescla Pluralidade Movimento reverso

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venda, principalmente por que já estava com 77 anos e não tinha um sucessor na família; a competição no segmento estava se acirrando com a entrada de bancos estrangeiros no país; e as condições legais para a venda naquele momento eram favoráveis. Assim, em janeiro de 1998, eles iniciaram as negociações que se desenvolveram com os dois executivos do ABN AMRO, no mais completo sigilo. Em 6 de março desse ano, foi assinada a carta de intenções.

A aquisição do Banco Real foi anunciada de forma cuidadosa. O impacto no corpo social do Banco Real foi enorme, especialmente considerando que a operação foi realmente cercada de muito sigilo. O sentimento de "abandono pelo grande pai” – Dr. Aloysio Faria – foi unânime. Com a cautela do respeito - um dos valores do ABN AMRO - estabeleceu-se um plano de integração das duas operações. A maior delas - o Banco Real de varejo - não tinha superposição significativa com o ABN AMRO. "O clima durante todo o processo da due diligence foi de muita cooperação, o que permaneceu, apesar das dificuldades naturais, quando a venda foi efetivada, por dois fatores principais: mínimo overlap entre os dois bancos e o sentimento de alívio por ter sido o ABN AMRO o comprador", diz um executivo do ABN AMRO. Porém, este sentimento de cooperação e alívio, em determinados momentos, era entremeado pelo sentimento de abandono.

Para a integração, formaram-se 18 grupos de trabalho, com objetivos definidos, além da contratação de oito consultorias diferentes, visando o diagnóstico da cultura e intenso processo de comunicação. Todo este trabalho foi consubstanciado com um novo pacote de benefícios e de capacitação das equipes, focando-se descentralizar, sem grandes rupturas. Segundo declarações de Floris Deckers, apesar da impressão de que os dois bancos fossem muito parecidos, principalmente no que diz respeito à concentração de poder e lealdade, quando chegaram de fato ao Real, viram as diferenças, conforme apresentado no Quadro 1:

QUADRO 1 – Cultura Banco Real x ABN AMRO

REAL ABN AMRO Paternalista Transparência Autoritário Consenso Sem risco Risco conservador Centralizado Descentralizado Obediência (evita-se o conflito) Debate Fidelidade (às pessoas) Lealdade (à organização) Orientado mais para pessoas Orientado mais para tarefas

Fonte: Dados de entrevistas

Os executivos de topo estavam atentos, em especial o Presidente Executivo, para não deixar que os antigos funcionários do Real tivessem o sentimento de perdedores e os do ABN AMRO de vencedores. Fábio Barbosa ressalta: "eu digo sempre e insistentemente: compramos o banco de vocês pelo sucesso que têm tido”.

Em novembro de 1999, o resultado de um trabalho de monitoramento do clima organizacional, mostrou que "a integração vai bem, mas ainda tem muito luto pela perda: as pessoas do Real por sentirem que perderam a segurança e que o nível de exigência agora é muito maior; o pessoal do ABN AMRO porque perdeu a proximidade com a diretoria". segundo declarações de Fernando Lanzer, então Diretor de RH. Existem ainda problemas como de linguagem, por exemplo. O ABN AMRO diz que é transparente, porém o grupo ex-Real queixa-se da falta de transparência, o que significa ausência de instruções claras, detalhadas e limites definidos. Ainda há uma "paranóia de demissão em massa ou PDV".

Além do investimento na mudança cultural, outro grande investimento necessário foi em sistemas de acompanhamento e controle da performance do negócio que até então estavam no domínio das pessoas escolhidas pelo Dr. Aloysio Faria. Alguns valores do Banco Real,

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como a parcimônia em custos, acabaram sendo adotados pelo ABN AMRO. Em relação aos sistemas de gestão, acompanhamento e controle, o pessoal do ABN AMRO não tinha capacidade para assumir o tamanho das operações do Real. Por outro lado, os sistemas existentes no Real eram muito limitados.

Mudanças significativas ocorreram no ABN-AMRO Bank, em nível corporativo, no ano de 2000. O conceito de “Banco Universal Global” desapareceu gradualmente, dando lugar a uma estratégia mais focada, já que os objetivos corporativos traçados (prestar atenção em todas as áreas em vários mercados) eram muito ambiciosos e demandavam capital. Essas mudanças influenciaram a estrutura no Brasil, sendo rapidamente absorvidas.

Em julho de 2001, o presidente do Banco, Fábio Barbosa disse: “na primeira fase, o foco principal era integração e não o crescimento. Apesar do resultado estar acima da expectativa as inúmeras discussões internas drenaram o tempo das pessoas. Por tudo isto, 2001 é o ano da aceleração”. Com investimento em treinamento e gestão do processo de integração, essa primeira fase teve como objetivo mudar o estilo do exercício do poder, buscando-se um modelo mais participativo. Desenvolver sistemas de acompanhamento e controle mais rigorosos e capacitar o grupo gerencial foram metas atingidas na primeira etapa.

Assim, do ponto de vista da integração cultural, Fábio Barbosa considera que estão no meio do processo, pois ainda faltam consolidar alguns valores básicos. “Ainda não está consolidado o conceito de que resultado é o que resulta de um cliente satisfeito”. As mudanças no comportamento das pessoas que estão na matriz e nos níveis hierárquicos mais altos são mais visíveis, mas a descentralização ainda não permeia a rede. A chegada de um vice-presidente holandês, Michel Kerbert, responsável por todas as áreas de back office, também contribuiu para uma nova modelagem de funções no corporativo. Analisando os desafios de 2001, ele revela que “apesar de 92% das pessoas terem orgulho de trabalhar no Real, elas ainda não incorporaram totalmente a estratégia, não buscam incessantemente resultados e falta abertura de discutir com os chefes. Isto precisa mudar rapidamente”.

O relato de vários funcionários de nível operacional das agências é consistente e também revela essa transição. Eles percebem melhoria nos sistemas de remuneração, em novas tecnologias (sistemas e máquinas) e começam a sentir mais pressão por resultado, mas ainda não se nota mudanças significativas em relação a estilo gerencial. “A fase agora é se sintonia fina e o desconforto com esta transição pode ser maior”, ressalta um executivo. “Novas práticas começam a vigorar na rede, até então protegidas. Gerentes e diretores passaram a ser contratados no mercado e a tolerância com o baixo desempenho está menor: isto é novo no Real”, relata uma executiva.

No ano de 2002, houve uma certa acomodação da estrutura, já com essas mudanças implantadas. Se por um lado, a aparente autonomia fascinou em um primeiro momento, por outro um certo sentimento de orfandade começava a incomodar. O reequilíbrio começou a se instaurar, parte induzido formalmente, parte acontecendo natural e informalmente, magnetizado pela reconhecida liderança do presidente no Brasil. Consciente do desafio que é mudar uma cultura, Fábio Barbosa tem a convicção que este é um dos seus papéis principais: “ninguém será mais competitivo porque tem um sistema mais rápido, mas se diferenciará de outra forma. Nós nos diferenciaremos pela qualidade do serviço e pelos nossos valores. E a grande questão, é que este processo só é consistente se for de dentro para fora”. Além da consolidação da nova cultura que está sendo construída, novos desafios se colocam com a aquisição do Banco Sudameris: qual o modelo de integração cultural desta nova aquisição e qual o tamanho adequado para esse momento competitivo? 3.2 Caso 2 – Thyssen e Sûr

O Grupo Thyssen Krupp (TK) é resultado da fusão de duas grandes empresas: a Krupp e a Thyssen, ambas com sede na Alemanha. Atualmente, possui seis Divisões de Negócios,

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sendo que a Divisão de Negócios Elevadores fatura 3,1 bilhões de Euros e está presente em todos os continentes. Em 1996, a revisão estratégica feita pelo grupo definiu o segmento de elevação como um dos seus core business e escolheu a América Latina como principal mercado a ser desenvolvido. Para atender tal meta, duas opções se desenharam: ou compravam uma fabrica ou instalavam uma planta na região, prioritariamente definida como Brasil, lembra um dos executivos da Thyssen espanhola.

A Elevadores Sûr, há 56 anos no mercado, com sede na cidade de Guaíba, Rio Grande do Sul, respondia, em 1999, pela fabricação, instalação e assistência técnica de mais de 33 mil elevadores vendidos no Brasil e no exterior. Detinha 26% do mercado nacional e o faturamento anual estava em torno de R$147 milhões. A empresa cresceu, enfrentou algumas crises e expandiu seus negócios, sempre apoiada em uma cultura artesanal, marcada pela informalidade nas relações, pelo espírito de inovação e pela audácia. Em 1976, o seu controle acionário foi assumido pelo Sr. Carlos Adroaldo Aumond, um de seus fornecedores, que foi o pulso forte da empresa durante as próximas décadas. Em 1992, com a contratação de dois executivos de mercado, há uma mudança de foco em sua gestão, buscando-se através do planejamento estratégico, conhecer, padronizar os métodos de produção e implantar controles, até então incipientes. Os resultados foram positivos e a empresa aumentou sua participação no mercado, passando de 12% para 28%. O ritmo acelerado de crescimento evidenciou, no entanto, vários problemas entre eles, dificuldades de acesso a financiamentos, capital de giro e escala, além da necessidade de buscar alianças estratégicas com players globais.

A partir da decisão de buscar parcerias, um pequeno grupo, formado pelo dono e diretores passou a trabalhar nesse sentido, recebendo diversas missões de empresas interessadas. Essa fase durou aproximadamente três anos, quando, finalmente, já considerando a possibilidade de venda, eles se vêem reduzidos a dois interessados – a Otis e a Thyssen. Diante desse quadro, o sócio-controlador convocou 30 integrantes do corpo gerencial para que decidissem para quem a Sûr deveria ser vendida. A opção foi pela empresa Thyssen, que, por não ter uma presença significativa no país, evitaria redução do quadro de empregados, além de possuir tecnologia avançada no segmento de elevadores e estilo de gestão orientado para pensar globalmente o negócio e agir respeitando a cultura local. Fator decisivo também foi a percepção de que os valores da Thyssen eram semelhantes aos da Sûr, e as duas empresas já se conheciam há algum tempo, desde o final da década de 80.

A negociação do processo de aquisição foi habilmente conduzida pelo time espanhol da Thyssen Krupp, responsável, em nível corporativo, pela área de recursos humanos e comunicação. Manoel Ventura, diretor de TK que conduziu o processo afirma que “a Sûr era mais parecida com a Thyssen; mais ágil, participativa e aberta.”As pessoas da Sûr que participaram da negociação ressaltam o caráter do Sr. Ventura “um profissional formidável, afetuoso, que respeita as pessoas. O relacionamento sempre foi baseado na transparência e na honestidade. Entre nós, sempre foi olho no olho.”Esse relacionamento não impediu, no entanto, momentos de tensão e ansiedade, especialmente para o sócio-controlador da Sûr, que afirma “Racionalmente eu estava convicto que a melhor solução era vender, mas meu coração não aceitava essa decisão. Tive que buscar apoio psicológico, pois me sentia como se estivesse vendendo parte da minha família". Por outro lado, o Businees Plan que justificava o investimento no Brasil, foi bastante questionado pela direção da empresa na Alemanha, exigindo um esforço extra de negociação entre o Presidente da Thyssen Espanhola, que defendeu fortemente o projeto, e o Presidente da holding ThyssenKrupp.

A operação foi concluída em agosto de 1999 e anunciada oficialmente para empregados e comunidade no dia 10 de setembro do mesmo ano, tendo sido cuidadosamente planejado e marcado por emoção e simbolismos. Adotou-se também a estratégia do anúncio da operação como uma aliança, a fim de não causar impactos considerados negativos na imagem no adquirido. Para deixar clara as suas intenções de preservar a cultura da adquirida,

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a Thyssen indicou apenas o diretor financeiro, mantendo em seus cargos os outros três diretores da Sûr. Apesar da direção ter procurado manter sigilo sobre a operação, os funcionários ficaram sabendo que a Thyssen havia comprado a Sûr através da imprensa. As pessoas afirmam que, apesar do temor natural em processos de aquisição, prevaleceu uma sensação de alívio para todos os colaboradores, após o anúncio. Todos eles sabiam que a operação ia acontecer, mas não sabiam ao certo com quem, nem quando. "A história de venda, parceria, aliança já se arrastava há muito tempo. A rádio peão sempre afirmava que a Sûr estava de namoro com algumas empresas. O anúncio oficial foi importante, mas ficamos sabendo mesmo da Thyssen pelos jornais".

Embora a idéia básica fosse não interferir na empresa de maneira acentuada, a Sûr precisava adotar as mesmas ferramentas gerenciais utilizadas pela ThyssenKrupp. A Sûr era administrada financeiramente com base em cash flow e passou a utilizar os indicadores do EVA (Valor Econômico Agregado) para medir os resultados. A implantação da nova metodologia de controle do desempenho econômico-financeiro repercutiu em todo o processo de gestão da empresa. Um programa de mudança que abrangia aspectos relacionados à imagem corporativa, ao sistema de reportes e à lucratividade foi implementado. As intervenções foram conduzidas, levando-se em consideração as pessoas, com transparência e tranqüilidade, mas o primeiro ano de convivência com o novo acionista foi muito difícil. A integração da Sûr aos sistemas de controle da Thyssen está se efetivando aos poucos. Em outubro de 2000, foi lançada uma campanha denominada “Superando Desafios”, a fim de tornar mais claro para os funcionários o que a empresa espera deles nos próximos anos. A campanha divulgou o planejamento estratégico 2001-2005 e definiu um conjunto de diretrizes sintonizadas com o mundo ThyssenKrupp. Para compartilhar o que foi estabelecido no planejamento, foram desenvolvidos módulos educativos para a fábrica, matriz e unidades de negócios, conduzidos pelos líderes de cada área.

O processo de adaptação às exigências do grupo controlador teve como facilitadores a permanência das mesmas pessoas nos cargos de diretor e gerente; a confiança que os funcionários depositam nesses dirigentes; e o perfil dos executivos espanhóis ligados à nova empresa. O sucesso da operação contou, sobretudo com a capacidade de adaptação às mudanças demonstrada pelos dirigentes e funcionários da Sûr e com o respeito da Thyssen pela cultura de seus parceiros. Aos poucos, a presença da Thyssen está se tornando mais marcante. A opção de gerenciamento está focada numa estratégia de mudança de baixo impacto, construída ao longo do tempo e sustentada numa política de motivação, baseada na união do esforço de cada um que integra a empresa. Tomando-se como referência os depoimentos dos entrevistados, diferenças podem ser analisadas a partir de algumas dimensões da cultura organizacional, apresentadas no Quadro 2.

QUADRO 2 – Cultura Sûr x Thyssen

SÛR THYSSEN Familiar Monárquica Autoritário, paternalista Hierárquica Centralizado Forma Obediência (evita-se o conflito) Busca de consenso Lealdade às pessoas e à marca Lealdade também à organização Orientado mais para pessoas Visão empresarial

Fonte: Dados de entrevistas Poder e paternalismo – as falas demonstram que a “A Sûr é uma empresa familiar,

paternalista, bastante centralizada, old fashion.” Mas, por outro lado, observava-se uma presença marcante de traços típicos de coletividade, com indivíduos integrados a grupos fortes e coesos. Já A Thyssen é formal, hierarquizada e alguns se referem a ela como uma empresa

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monárquica. “O presidente espanhol é tratado pelos funcionários com muito respeito.” A introdução de novos conceitos e instrumentos de gestão, especialmente da nova metodologia de medição de resultados, tem modificado o processo gerencial e influenciado o comportamento das pessoas. Apesar disso, o acesso aos níveis superiores ainda permanece como antes. Mesmo a presença do diretor financeiro que é espanhol, já está sendo assimilada – “No início, o diretor-financeiro era muito fechado, mas hoje já está mais parecido com a gente aqui da Sûr”, afirma um funcionário. O lugar do poder mudou, a decisão não está na mão das pessoas que trabalham no Brasil, mas sim na Espanha ou Alemanha. Não existe mais a proximidade protetora do dono da empresa, influenciando as relações de poder e confiança.

Lealdade – essa é uma marca da empresa Sûr que se mantém forte após a aquisição pela Thyssen. Pode-se afirmar que na ThyssenKrupp Elevadores, os funcionários são leais às pessoas, à organização e à marca. São leais à organização, por considerá-la uma empresa justa. A credibilidade do corpo gerencial é alta. Nesse aspecto, a postura de respeito e consideração com as pessoas adotada pela Thyssen tem também contribuído para aumentar o grau de lealdade. Esse sentimento é reforçado pelo orgulho que os funcionários têm em relação à própria história da empresa e à credibilidade que a marca Sûr desfruta no mercado.

Gerenciamento de Conflitos – como na maioria das empresas brasileiras, os conflitos na ThyssenKrupp Elevadores não são explicitados, principalmente quando se estabelecem com pessoas que detêm mais poder. Foi possível observar que nos níveis superiores – entre a direção brasileira e a direção espanhola – os embates são pequenos e não chegam a tomar a forma de conflito, buscando-se encontrar o ponto consensual. Entre a direção da empresa e os níveis gerenciais, o relacionamento é bom, as pessoas têm espaço para discutir e emitir suas opiniões sobre os diferentes assuntos. Nos níveis operacionais, no entanto, é possível perceber um nível maior de cobrança vindo das chefias imediatas. Existe um certo grau de insatisfação e insegurança, as cobranças são feitas em nome dos acionistas, sem muitas explicações: “os espanhóis não estão satisfeitos, precisamos superar os resultados...” Os funcionários não questionam esse posicionamento das chefias, prevalecendo a cultura da obediência.

Orientação para as pessoas x resultados - De modo geral, as pessoas percebem a ThyssenKrupp Elevadores mais voltada para resultados do que para pessoas, lembrando que na Sûr, prevalecia o contrário. Um dos diretores espanhóis reconhece que a Thyssen é mais fria, mais distante do que a Sûr no trato com as pessoas, prevalecendo sempre a visão mais empresarial. E a maioria dos brasileiros, por sua vez, reconhece que faltava à Sûr exatamente essa visão, mais focada para resultados e para o longo prazo.

Em termos gerais, para os entrevistados, os resultados da ThyssenKrupp Elevadores estão acima das expectativas. “A empresa está alinhada com seus novos donos. Já temos clareza do que a matriz quer e estamos dando muitas alegrias aos acionistas.” A produção de elevadores aumentou em 25% ao ano e a produtividade em 15% ao ano. A marca ThyssenKrupp Elevadores já está sendo assimilada pelo mercado. Os funcionários estão conscientes de que fazem parte de uma empresa mundial. Entretanto, essa integração ainda está em processo e pode-se questionar sustentabilidade da postura de não interferir fortemente na cultura Sûr. Será esse um comportamento duradouro ou com o tempo a cultura da Thyssen será predominante? Mas a expectativa em relação ao de futuro é otimista. Praticamente todos acreditam que a ThyssenKrupp Elevadores será, num curto espaço de tempo, a empresa que coordenará todas as atividades do grupo na América Latina. 4 ANÁLISE DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das considerações sobre a cultura brasileira, nessa discussão final busca-se

analisar as operações de aquisição como processo, considerando-se o impacto das características da gestão à brasileira, a partir da análise dos aspectos mais relevantes dos

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estudos de caso da aquisição do Banco Real pelo ABN AMRO e da Sûr Elevadores pela Thyssen. Foca-se na argumentação de que os processos de aquisições no Brasil, apesar de seguirem aspectos postulados pela teoria, acabam por ganhar contornos específicos, sendo impregnados de um estilo próprio, em função de características marcantes da cultural local. Pôde-se concluir que o modelo de análise proposto se mostra adequado, indicando o impacto da cultura local na gestão dos processos de aquisições. O Quadro 3 apresenta os principais aspectos do processo de aquisição nos dois estudos de caso.

QUADRO 3 – Principais aspectos do processo de aquisição – Estudos de caso

ABN Amro / Banco Real Thyssen / Sûr Motivo ABN: Penetração no mercado brasileiro;

aquisição do know how de varejo Real: Questão sucessória; incerteza no mercado globalizado; ameaça de mudança na legislação

Thyssen: aumento da participação do grupo no Brasil e AL Sûr: Sobrevivência no mercado globalizado

Due diligence

Confidencial – segredo; pequena equipe; clima de confiança e cooperação

Clima de confiança, transparência e honestidade; elaboração de business plan

Negociação assinatura de carta de intenção; proposta formal em 03/1998. Anúncio para o mercado e funcionários – “parceria entre vencedores”

contrato em 09/1999. Estratégia de anuncio ao mercado e funcionários (sigilo x imprensa) emoção e simbolismo – Aliança

Integração Tipo

Pluralidade na Fase 1 Mescla na Fase 2 e no segmento corporativo

Pluralidade, tendendo à mescla

Prioridade Proposta de respeito, transição lenta, com a formação de equipes de trabalho

Implantação de estratégias e ferramentas gerenciais e de controle corporativos, principalmente financeiros

Participação do corpo gerencial

Reestruturação em nível mundial – matricial com divisões operacionais. Presidência com um executivo brasileiro (ABN AMRO)

Adquirentes e adquiridos participaram de todas as etapas do processo. Manutenção dos executivos brasileiros da Sûr

Processos de trabalho

Implantação dos sistemas de controle e gestão do ABN

Sistemas de acompanhamento financeiro – EVA, ferramentas gerenciais corporativas

Gestão da adquirente

Orientado para resultados, transparência, busca de consenso, descentralização e lealdade

Formal, hierarquizada, “monárquica”, orientada para resultados

Gestão da adquirida

Traços da cultura brasileira: centralização, paternalismo, lealdade as pessoas, evitação de conflitos

Cultura familiar, informalidade nas relações, espírito de inovação e audácia; ágil, centralizada

Modelo resultante

Modelo de gestão mais participativo, voltado para resultados

Alinhada aos novos donos, empresa globalizada, com mais foco em resultados

Fonte – Dados de entrevista

É importante ressaltar que nos dois casos, as empresas adquirentes já tinham conhecimento e experiência de operação na realidade brasileira, o que pode de certa forma explicar algumas especificidades observadas: o ABN estava presente na América Latina também desde o século passado, tendo contado com um executivo brasileiro na condução de todo o processo; e a Thyssen já operava no país anteriormente.

Pelos dados apresentados nos dois casos, pode-se concluir que, em termos teóricos, atribui-se importância à due diligence, à negociação e ao planejamento da integração; mas na realidade encontrada no país, essas fases não seguem uma lógica racional, estando permeadas por emoções características de empreendimentos familiares, e também por aspectos que podem estar ligados à cultura da informalidade, típica da cultura brasileira que reforçam a importância do perfil e da interação entre os principais atores envolvidos no processo enquanto adquirentes e adquiridos.

Pôde-se também averiguar por meio dos estudos de caso que, uma vez iniciada a due diligence e durante as negociações, é muito difícil manter sigilo sobre a operação, o que é coerente com a cultura da informalidade brasileira. Os empregados registram a presença de “pessoas estranhas” na empresa e começam a levantar hipóteses sobre os objetivos das

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“auditorias”; essas informações se alastram por meio da comunicação informal, da rádio-peão. Como a assertividade nas comunicações e na resolução de conflitos não é característica de nossa cultura, deixa-se essa situação em aberto, até o último momento da decisão final. O resultado é a intensificação de rumores que geram inquietação no corpo social, demonstrando-se a necessidade de desenhar, desde o primeiro momento, estratégia de comunicação que contemple especialmente o público interno das empresas envolvidas na operação. No caso da venda do Banco Real, a due diligence foi realizada sob o mais absoluto silêncio. Já no caso da Sûr, tentou-se o sigilo sobre a venda para que o impacto do anúncio sobre os funcionários fosse cuidadosamente planejado. Mas a informação vazou e os funcionários tomaram conhecimento sobre quem tinha adquirido a empresa por meio da imprensa.

Observou-se também que quando o proprietário está envolvido na etapa de negociação, ela tende a ser mais longa e difícil. As duas empresas adquiridas nos estudos de caso são de origem familiar, podendo-se ligar as dificuldades da tomada de decisão racional da venda com os laços afetivos existentes com o negócio e com os empregados. Essa questão pode ser exacerbada no Brasil, em função de suas características de relações de proteção e dependência, historicamente construídas. Cabe ao proprietário da empresa proteger seus “filhos”; normalmente a venda do negócio é vista como o abandono e a traição do “pai”, conforme as declarações tanto dos proprietários das empresas pesquisadas, como dos funcionários. Nesse cenário, muitas vezes, essas negociações se alongam, perdendo-se o timing, o momento ótimo da venda.

Assim, um dos desafios das operações de aquisições, principalmente no Brasil, é o desenvolvimento adequado dessas etapas, respeitando-se as características locais. Para tal, são fundamentais, a qualidade das informações obtidas na due diligence; a definição prévia de uma estratégia que considere o universo de atores envolvidos no processo; a indicação de negociadores com base na estratégia escolhida; e a identificação dos interlocutores e de seus respectivos perfis. Além desses aspectos racionais, é importante considerar aspectos ligados à cultura brasileira: o cultivo de relações pessoais, o entendimento da ambigüidade e da dualidade. O resultado desta etapa impacta diretamente a etapa de integração.

A análise dos estudos de caso permitiu também comprovar as conclusões de estudos anteriores realizados por Barros (2003) e por Child et al (2001), nos quais se detectou a importância da adequação da escolha da estratégia de integração em relação à motivação de compra e à situação da adquirida. Em ambas operações, as empresas adquiridas se encontravam em boa situação financeira, apresentavam desenvolvimento tecnológico compatível e diferenciado, e uma boa imagem no mercado. Buscou-se, portanto, preservar suas características, e a integração se deu via mescla e/ou pluralidade cultural. É importante ressaltar que o Banco Real tinha uma estrutura gerencial maior do que a empresa adquirente, que, conseqüentemente, não apresentava condições de rapidamente absorver ou desenvolver a estrutura necessária para a gestão da adquirida.

Os dados revelam que nas duas empresas adquiridas, que são familiares, prevalecem os traços da gestão à brasileira, discutidos anteriormente: processos de gestão apesar de sistematizados, não são centrados em resultados; centralização na figura do proprietário; gestão paternalista, baseada na informalidade, na simplicidade e em relacionamentos personalizados. Já as empresas adquirentes (alemã/espanhola e holandesa) revelam características mais profissionalizadas, sistemas formais e estruturados, orientadas para resultados. Tais aspectos permitem uma complementação do quadro 1, apresentado anteriormente, sobre as práticas de gestão associadas à nacionalidade da empresa, além de corroborar os resultados da pesquisa anterior de Tanure (2005).

Pode-se, assim, traçar um continum que vai de um maior grau de profissionalização (das empresas adquirentes) à uma gestão dita personalizada (empresas adquiridas). O interessante a se observar é que o modelo de gestão resultante traz marcas tanto da empresa

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adquirente como da adquirida, resultando na mistura das culturas das empresas. De um lado, a empresa adquirida implementa as práticas racionalizadas da compradora, aceitando-as e visualizando os melhores resultados operacionais da empresa. Por outro lado, o ambiente existente anteriormente na empresa, “da grande família” é reconhecido pela adquirente, que procura formas de incorpora-lo às suas práticas racionalizadas. Surge daí, um novo modelo de gestão que traz a eficiência e eficácia dos processos racionalizados, e a efetividade do espaço “pessoa”, tão caro à cultura brasileira.

Essa hipótese necessita de aprofundamento e de maiores esclarecimentos, mas já nos permite vislumbrar a necessidade de desenvolver uma aprendizagem diferenciada, que leve em consideração as características únicas e singulares da cultura local.

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