aquilo que acabou não foi império português. foi império ... · que me lembrei também do...

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ADRIANO MOREIRA PROFESSOR UNIVERSITÁRIO 'Aquilo que acabou não foi o império português. Foi o império euromundista' António Rodrigues [email protected] Reapareceu no último congresso do CDS e ago- ra uma entrevista onde faz um balanço da vida. Onde o pai está sempre presente. Aos 95 anos, continua a trabalhar todos os dias no seu gabinete da Academia das Ciências, onde de- correu esta entrevista, numa mesa cheia de papéis e livros. A ja- nela para o liceu Passos Ma- nuel, onde fez o ensino secundá- rio. A família, garante, adora que continue a trabalhar. «É claro que a resistência física não é a mesma. Tive uma gravíssima infeção, apanhada numa aca- demia qualquer com o ar condicionado, que é um perigo de vida, que me deixou de cama um mês e meio. O médico dis- se-me que tive muita sorte». Os pulmões não foram afetados, mas a recuperação da agilidade física tem sido lenta. «Graças a Deus, com a idade que tenho, não digo assim muitos disparates». Homem de família, casou tarde, quase aos 46 anos, sobretudo por causa da forte ligação aos pais. «Eu separar-me da minha mãe e do meu pai fazia-me muita impressão. Achava que tinha de tratar de melhorar o seu conforto. Tinham feito tanto sacrifício. Eles foram sempre muito devotados. Olhe, tenho sempre o retrato do meu pai co- migo [mostra a foto do pai na carteira]». Tentou manter o mes- mo tipo de relação que tinha com o pai com os seus seis filhos. Sinal disso foi a mensagem pública de uma das filhas, a deputada Isabel Moreira, afirmando recentemen- te que o pai «era o homem da sua vida». Adriano Moreira emo- ciona-se com a expressão: «Eu sei isso, ela fala muito francamen- te comigo, com diferença de opiniões, como é natural, mas o vínculo familiar é intocável». Nascido em Grijó, no concelho de Macedo de Cavaleiros, continua a sentir-se transmontano apesar de ter passado a maior parte da sua vida em Lisboa. «A minha bi- blioteca vai toda para Bragan- ça, está metade», garante. E conta aquilo que lhe dizia o avô materno, o único que conheceu: «Vocês têm de emigrar destas terras, quando estiveram no meio de muita gente, nunca di- gam que são transmontanos. Porque os outros podem não ser e ficam envergonhados». No último congresso do CDS foi ho- menageado. O que sentiu? Naturalmente, qualquer pessoa com alguma sensibilidade e até hu- mildade não pode deixar de se sen- tir tocado por, passadas dezenas de anos fora da atividade política, ser lembrado. E a intervenção natu- ralmente até me comoveu. Em todo o caso permitiu-me chamar a atenção para o seguinte: lembrar a tradição da democracia cristã no pensamento da unidade europeia, que no seu início teve a democra- cia cristã como dominante. Aqui- lo que me pareceu que podia ser de alguma contribuição foi lem- brar o trajeto da democracia cris- na Europa e as raízes que teve em Portugal. E aquilo que quis corresponder na convocação que me fizeram foi lembrar que a ma- triz se mantém. É como o eixo da roda, as rodas andam, o eixo não anda e acompanha as rodas. É pre- ciso atender à realidade e alterar as intervenções de acordo com as

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ADRIANO MOREIRAPROFESSOR UNIVERSITÁRIO

'Aquilo que acabounão foi o impérioportuguês.Foi o impérioeuromundista'

António [email protected]

Reapareceu no último congresso do CDS e ago-ra dá uma entrevista onde faz um balanço davida. Onde o pai está sempre presente.Aos 95 anos, continua a trabalhartodos os dias no seu gabinete daAcademia das Ciências, onde de-

correu esta entrevista, numamesa cheia de papéis e livros. A ja-nela dá para o liceu Passos Ma-nuel, onde fez o ensino secundá-rio. A família, garante, adora quecontinue a trabalhar. «É claroque a resistência física não é amesma. Tive uma gravíssimainfeção, apanhada numa aca-demia aí qualquer com o arcondicionado, que é um perigode vida, que me deixou de camaum mês e meio. O médico dis-se-me que tive muita sorte». Os

pulmões não foram afetados, masa recuperação da agilidade físicatem sido lenta. «Graças a Deus,com a idade que tenho, não digoassim muitos disparates».

Homem de família, casou tarde,quase aos 46 anos, sobretudo porcausa da forte ligação aos pais.«Eu separar-me da minha mãee do meu pai fazia-me muitaimpressão. Achava que tinha

de tratar de melhorar o seuconforto. Tinham feito tantosacrifício. Eles foram sempremuito devotados. Olhe, tenhosempre o retrato do meu pai co-

migo [mostra a foto do pai nacarteira]». Tentou manter o mes-mo tipo de relação que tinha com

o pai com os seus seis filhos. Sinaldisso foi a mensagem pública de

uma das filhas, a deputada IsabelMoreira, afirmando recentemen-te que o pai «era o homem dasua vida». Adriano Moreira emo-ciona-se com a expressão: «Eu seiisso, ela fala muito francamen-te comigo, com diferença deopiniões, como é natural, maso vínculo familiar é intocável».

Nascido em Grijó, no concelhode Macedo de Cavaleiros, continuaa sentir-se transmontano apesarde ter passado a maior parte da

sua vida em Lisboa. «A minha bi-blioteca vai toda para Bragan-ça, já lá está metade», garante. Econta aquilo que lhe dizia o avô

materno, o único que conheceu:«Vocês têm de emigrar destasterras, quando estiveram nomeio de muita gente, nunca di-gam que são transmontanos.Porque os outros podem não sere ficam envergonhados».No último congresso do CDS foi ho-

menageado. O que sentiu?

Naturalmente, qualquer pessoacom alguma sensibilidade e até hu-mildade não pode deixar de se sen-tir tocado por, passadas dezenas de

anos fora da atividade política, serlembrado. E a intervenção natu-ralmente até me comoveu. Emtodo o caso permitiu-me chamar aatenção para o seguinte: lembrar atradição da democracia cristã nopensamento da unidade europeia,que no seu início teve a democra-cia cristã como dominante. Aqui-lo que me pareceu que podia serde alguma contribuição foi lem-brar o trajeto da democracia cris-tã na Europa e as raízes que teveem Portugal. E aquilo que quiscorresponder na convocação queme fizeram foi lembrar que a ma-triz se mantém. É como o eixo da

roda, as rodas andam, o eixo nãoanda e acompanha as rodas. É pre-ciso atender à realidade e alteraras intervenções de acordo com as

uÉ preciso não

esquecer que apolítica está

subordinada àética e a ética

europeia, jáCamões deu por

isso, é umatrave da identi-dade da Europa99circunstâncias, mas manter a ma-triz. Isto foi o que eu disse. Claroque me lembrei também do passa-do dos que em Portugal acompa-nharam estes movimentos na al-tura da formação da União Euro-peia, mas terminei com umexemplo de uma história que o

Papa Francisco conta. Era ele arce-

bispo de Buenos Aires e apareceu--lhe num sábado uma senhora comum menino pequenino ao colo, di-zendo: 'Senhor bispo, este meu fi-lho está a morrer de fome, ajude--me'. E ele respondeu-lhe: 'Olha,minha filha hoje é sábado, vem cána segunda-feira que eu tenho-teisso resolvido'. E ela respondeu:'Mas o meu filho não tem fome de

segunda-feira, tem fome de sába-do'. É preciso tomar este exemploem relação aos desafios. Não ape-nas para a Europa para o mundo,a orientação ser a de sábado, não ade segunda-feira. E acabou aí o

meu discurso.

Ou seja, os problemas de hoje ó pre-cisos resolvê-los hoje...E não esperar por segunda-feira.Mas a matriz não há que alterá-la,é o exemplo que o Papa está a dar.

Eu não levava texto nenhum escri-

to, fui-me lembrando. E este exem-plo que o Papa conta é notável.Acha que o partido foi mantendoessa matriz ou houve alturas em queisso não aconteceu?

Sobre isso aí , já não dou opiniões.Estou convencido de que na situa-ção atual, até pela lembrança deme convidarem para aquela ceri-mónia, a matriz está garantida.Agora, a adaptação da interven-ção para as circunstâncias atuaisexige muito estudo, muita pru-dência, muita determinação emuita capacidade de ter revezes.Mas no seu discurso falou no renas-cimento do partido e da direção. 0que queria dizer com isso?É esta história que acabo de con-tar. No começo a Europa nasceuda democracia cristã. Foi isso quequis pôr em evidência, esse espí-rito faz parte da matriz, as cir-cunstâncias hoje são muito dife-rentes, é preciso adaptar. Não fizprogramas, não dei instruções,por isso, também não vou aqui irmais longe do que fui lá.Acha que a democracia cristã ain-da tem um papel a desempenhar emPortugal? Este sábado?

Tem, neste sentido, e é a última coi-sa que digo neste ponto, já notouque há altos responsáveis portu-gueses que chamam a atenção queé preciso não esquecer que a polí-tica está subordinada à ética e a éti-ca europeia, já Camões deu porisso, é uma trave da identidade da

Europa É, por isso, que Camões di-zia que Portugal seria a cabeça daEuropa toda. Nunca conseguiu.

Queria só falar da sua experiênciacomo Ifder do CDS. Foi líder em si-tuações muito mais difíceis para o

partido.Naquele tempo, os recursos do

partido eram poucos, mas achoque fazem parte da história do

partido e eu não sou historiador.Façam a entrevista no partidopara eles falarem sobre isso.

E a sua experiência?A minha experiência na alturaera a Europa, as matrizes, naque-le momento, eram mais agitadas.Portanto, não era o eixo da rodaque estava em questão, a estradaé que estava com mais obstáculos.Falando um pouco do seu passadotendo o congresso do CDS comoponte, aí falou que morre com cul-pa porque a sua geração deixou

uma pesada herança às geraçõesseguintes. Acha que pessoalmentefez tudo o que poderia fazer paraque esse legado fosse mais leve?Isso está num discurso que fiz naAssembleia da República, não éuma coisa de agora. Julgo que aexpressão a culpa morreu soltei-ra em Portugal fui eu que a inven-tei. E nesse discurso, o que eu dis-se - provavelmente até em partepelos regimes que a Europa so-freu durante todos aqueles anos -foi que a minha geração tem queassumir que tem pelo menos cul-pas de omissões porque a proba-bilidade é que, talvez, tivesse podi-do andar mais depressa na orga-nização daquilo que são doispressupostos da carta das NaçõesUnidas: o mundo único, significaem paz, a terra, casa comum doshomens. Ambos os princípios sãoviolados. Há guerra, como dizemos analistas militares, em toda aparte. Há dúvidas sobre se a Guer-ra Fria acabou e a autoridade des-

sas instituições que foram orga-nizadas com tanta esperança estáafetada. Poderíamos ou não terposto alicerces mais fortes nessasorganizações? Poderíamos ou nãoter definido melhor o eixo daroda? Provavelmente sim, temosque assumir se os princípios fo-ram notáveis a execução foi fra-ca. E quem era responsável? A ge-ração a que eu pertenci e, por isso,temos que assumir que a culpanão morre solteira.E isso também tem a ver com a his-tória portuguesa?Tem a ver com a história europeiaem geral. Há aqui um problemacurioso da evolução geral, é que ostextos fundamentais onde isto foiestabelecido - o fim da guerra, ademocracia cristã, paz sem vence-dores, as Nações Unidas, Declara-ção Universal dos Direitos do Ho-mem - foram todos escritos pormãos ocidentais. Recordo-me, eufui delegado às Nações Unidas,que a primeira vez que vi um sikhlevantar-se para usar da palavra,ele tinha uma concepção do mun-do e da vida, mas o que estava a do-

miná-lo era um texto escrito porocidentais. Aí começou a ser evi-

dente para mim, e tenho escritovárias coisas sobre isso, que haviaproblemas novos porque as áreasculturais que até aí estavam impe-didas de falar ao mundo, estavamem liberdade para falar ao mundo.Havia um plano para que isso pu-desse ser harmonizado. Foi insu-ficiente, como se viu daí por dian-te. É isso que quero dizer quandodigo: se criámos as instituições, setínhamos princípios e o resultadofoi este, alguma coisa falhou. É pre-ciso assumir a responsabilidadepela falha. Por isso assumo que aminha geração provavelmente po-dia ter feito mais do que fez.

Apesar da sua ação govemativa tersido curta acha que fez alguma coi-sa para melhorar o estado...Eu julgo que foi importante, difícile num ambiente que não foi mui-to simpático sempre. Por exemplo,andam aí muito agitados com o

passado da escravatura e trans-porte de escravos, digo o seguin-te: eu não amo o meu país a bene-fício de inventário, portanto, as-sumo as coisas do passado de que :«

Julgo que aexpressão a

culpa morreusolteira em

Portugal fui euque a inventei

99> nao gosto. Nao gosto que tenham

expulsado os judeus, não gosto dos

excessos da Inquisição, não gostoda escravatura, mas há uma coi-

sa que eu gosto que é de ser portu-guês. Nós tivemos escravatura, to-dos tiveram. Quem acabou com aescravatura aqui foi o Marquês dePombal. Quem acabou com a es-

cravatura nas colónias foi o Sá da

Bandeira, mas ficou alguma coi-

sa, o indigenato. No indigenatonão eram cidadãos, não estavam

protegidos pela lei, até se podia du-

vidar se se deviam considerar por-tugueses. Revoguei o estatuto dos

indígenas, com isso revoguei o tra-balho forçado, publiquei um Có-

digo do Trabalho que o Bureau In-ternational dv Travail [órgão per-manente da OIT] concluiu que erao código mais avançado de África.Criei vários liceus, instituí o en-sino superior em Angola e Mo-çambique. Isto foi em dois anos e

pouco [1961-63]. Nessa altura, o

presidente do Conselho disse-me,numa conversa no forte que ago-ra está naquele estado [o forte deSanto António da Barra], 'eu te-nho cumprido a promessa de queo senhor faria as reformas todas,mas a reação está a ser de tal or-dem que eu próprio não tenho acerteza de poder continuar a serpresidente do Governo, temos demudar de política' e eu respondi--lhe 'acaba de mudar de ministro'.

Acha que se não tivesse rebentado

a guerra em Angola as coisas teriamsido diferentes?Ainda no outro dia estive num co-

lóquio com estudantes - quandosão estudantes, vou sempre à von-tade, com os jornalistas já tenhomais cuidado [risos] - sabe a quepropósito é que me puseram essa

questão? Lembra-se do Presiden-te da Colômbia? [Juan ManuelSantos] Ganhou o prémio Nobel.Acabou com a guerra. Ele teve umprincípio simples: era necessárioacabar com a guerra armada e o

terrorismo. Para isso, fez justiçasocial. E conseguiu. Eu também

pensava isso. A revolta já tinhaaparecido em muitos países, emmuitas colónias. O único remédioera fazer justiça social. Talvez játenha lido ou reparado que as for-

ças armadas declararam isso

quando foram para o Ultramar:'Estas guerras não se ganham, ga-nha-se tempo para a reforma'.Quem disse isto, por exemplo, foio general Câmara Pina, chefe doEstado-Maior. Eu fiz o que me dei-

xaram. E devo dizer-lhe que acho

que ia por um bom caminho.

Acha que podia ter mudado o cursoda história?

Depois da independência de Cabo

Verde, fui lá para falar sobre o diade Camões. E quando fundaram aUniversidade de São Vicente, eufui o primeiro doutor honoris cau-sa. Já fui convidado para ir a An-gola, a várias coisas. Agora já nãovou porque o médico não me dei-xa andar de avião [risos]. Recebihá pouco tempo um convite doPresidente de Timor para ir lá. De-

vem ser 20 horas de avião e o meumédico não deixa. Veio cá a Por-

tugal o segundo Presidente de Ti-mor, que foi o Ramos-Horta, parame trazer uma declaração de Ti-mor. Quero dizer, aquela foi umaépoca difícil. Andei pelos sítios to-dos. Não havia segurança naque-le tempo. As coisas que eu fiz, acho

que foram importantes. Da últimavez que fui a Angola, fizeram-meum jantar e apareceu lá um gene-ral angolano e disse-me: 'O senhorontem não foi', porque tinha havi-do uma visita. Disse-lhe: 'Não fuiporque ia um avião pequeno'.'Mas é que eu não soube', respon-deu o general. 'Então porquê?',perguntei eu. 'É que eu formei-meno Liceu Adriano Moreira e que-ria que o senhor visse o liceu em

que eu me formei', respondeu o ge-neral. Eu pus em liberdade o Agos-tinho Neto. A ele nunca o vi, masconhecia a rapariga com quem ca-

sou. Ela estava grávida e, enfim,resolvi-lhe o problema. Fui gran-de amigo do Eduardo Mondlane.Ele chegou a aceitar vir para pro-fessor aqui do Instituto de Medi-cina Tropical. Era casado comuma americana e vieram os dois.Ele teve de ir à Suíça e ela pediu--me para ir conhecer a famíliadele. E quando voltou disse-me: Agente acredita em si, mas o senhornão vai conseguir. E o Eduardonão vem para cá que eu não dei-xo', disse ela. Ele era um humanis-

ta, doutor em Antropologia. Foichefe do partido, mas não creio

que se sentisse muito à vontadecom a violência. Mataram-no!Ao mesmo tempo que fez essas re-formas, e verdade que tambémcriou o Campo de Chão Bom (noTarrafal) e o Campo de Missombo(em Angola)?Não criei coisa nenhuma. Eu

acho piada a essa coisa e acho quevocês jornalistas têm culpa - tam-bém não morre solteira. Eu tenho

aqui um papel. [Mostra uma foto-

cópia de um artigo de jornal assi-nado por Edmundo Pedro em queeste afirma que Adriano Moreiranão tem nada a ver com a reaber-tura do Tarraf ai].«

Eu fiz o que medeixaram [como

ministro doUltramar]. E

devo dizer-lheque acho que ia

por um bomcaminho

A revolta játinha aparecidoem muitas coló-

nias. O únicoremédio era ajustiça social

ff

«Quando o senhor

tem um regimequalquer e é

partidário dereformas, passa

logo a ser de

esquerda. Euacho que Jesus

Cristo era deesquerda

Um sujeito que éantimarxista,

quando ensinamarxismo, deve

ensinar

com total exati-dão. Para que,

depois, osestudanteslivremente

escolham

99

Edmundo Pedro, sim. E o de Mis-sombo? Também não?

Não, isso foi uma coisa militar.Havia duas autoridades, o gover-nador e o comandante militar, quecoincidiam na mesma pessoa. Erauma antiga tradição que o gover-nador fosse o comandante militar.Até acontecia que o ministro do

Ultramar, que já não mandava emtropa nenhuma, tinha um oficialàs ordens. [Risos] Essa históriaestá muito mal contada, -porque o

que aconteceu foi que o Sarmen-to Rodrigues, ministro do Ultra-mar - eu era professor -, um diachamou-me e disse-me: 'Eu queroformar o sistema penal do Ultra-mar. O senhor quer fazer o proje-to?'. Foi a primeira vez que fui aoUltramar. Estive uns meses emÁfrica e fui às províncias todas efiz um livro sobre O ProblemaPrisional do Ultramar. Ganhouo prémio desta academia [Acade-mia das Ciências, onde decorreua entrevista], que naquele temponão era pequeno. Prémio esse queeu dei à minha mãe, para cons-truir a capela da aldeia que erauma coisa que ela queria fazer.Oitenta contos?Oitenta. E com esse dinheiro elareconstruiu a capela. Ainda háuns meses me pediram para lá ir,

porque fazia anos. Eu fui e estavalá a aldeia toda. Naquele tempo,não era brincadeira ganhar o pré-mio da Academia das Ciências eeu era muito novo ainda. O Sar-mento disse-me 'transforma-meisso numa lei'. E a síntese desse li-vro era, entre outras coisas, quenão se deve mandar europeuscumprir penas no Ultramar. Pri-meiro porque vão para um am-biente que não é o deles. O siste-

ma prisional deve procurar recu-

perar a sociabilidade. Deve-sefazer ao contrário. Os europeusque violem a cultura local é cá quevêm cumprir a pena. Para eles, aúnica coisa aconselhável eram as

prisões que eram agrícolas, comohá em Sintra. Isto é o que serve

para gente com esta cultura e é até

possível que algumas vezes sejamacompanhados pela família. Elefez tudo no decreto que se chama

'Reforma Penal Sarmento Rodri-gues'. Passado pouco tempo desair de ministro - ficou a reforma- sucedeu-lhe o dr. Raul Ventura,que extinguiu o Tarrafal.0 Tarrafal sim, mas o Chão Bomcontinuou...Mas isso é com a tropa. A tropa ti-nha um problema, o sistema pri-sional lá era diminuto. Agora é es-

pantoso que haja um senhor [ojornalista António Valdemar],com graves responsabilidades po-líticas, que tenha levado o desca-ramento ao ponto de dizer que eutinha aberto o Tarrafal. E sabeuma coisa curiosa? Eu não tinhanenhuma intimidade com ele [Ed-mundo Pedro]. Mas veja como ele

reagiu [aponta o artigo]. Tem dú-vidas? Não tem, pois não? Sabe

quantos anos ele tinha quando es-

creveu este artigo?Não sei. De que ano é o artigo, 2016?Tinha 90 e muitos, mas indignou--se e porquê? Porque ele sabia quetinha sido a minha reforma - mi-nha não, do Sarmento Rodrigues- posta em execução por RaulVentura, que foi quem lhe suce-

deu, que fechou o Tarrafal. Devodizer que vi o Tarrafal já depoisda independência de Cabo Verde.Fui lá uma vez, porque qualquerpessoa que lá vai terá interesseem ver isso. Terríve]! Devia sermuito doloroso. Eu t inha muitorespeito por este homem [Edmun-do Pedro]. Porquê? Este homemfoi para lá com o pai, quando ti-nha cerca de 12 anos. Tinha umaformação superior, porque os pri-sioneiros todos tinham uma for-

mação superior e ensinaram-lhe.É uma coisa fantástica! E ele nãotinha raiva a ninguém. Era de

uma humanidade... E foi numafúria dele que escreveu isto. Masnão me disse nada. Eu vi isto nojornal. Aquilo que eu fiz de refor-mas em Angola, acho que poucagente seria capaz de fazer. E eu só

podia fazer porque não estava de-

pendente de nada.Fê-lo por espírito de missão? Ten-do em atenção que não era poKtico.Eu nunca tinha feito política emparte nenhuma. Gosto do meupaís, não é benefício de inventá-

rio. As coisas más eu digo 'pa-ciência', porque eu gosto do meu

país. A pessoa, quando se trata dointeresse do país, está acima das

divergências. Apesar de tudo, háuma coisa que não devemos pôrem evidência. Aquilo que acabounão foi o império português. Foio império euromundista. Porqueera Holanda, era a Bélgica, era aFrança, era a Inglaterra, éramosnós. Não há nenhum que não te-nha tido guerras terríveis. AFrança teve piores que nós. A In-glaterra, na índia, sabe o desas-tre que foi? Se lembrarmos umpouco a História de Portugal, re-paramos que foi sempre um sítiode grande emigração, porque aterra era pouca, com poucos re-cursos e as pessoas emigravammuito. Não era só o sofrimentodos nativos, eram também as con-

sequências que estavam a acon-tecer com os retornados. Depoishouve grandes efeitos de desen-volvimento do país.Franco Nogueira escreveu, para ex-plicar porque Salazar o tinha esco-lhido para ministro do Ultramar, que

o professor era 'um homem novo,ideologicamente oriundo da esquer-da moderada, de alta inteligência,de cultura política acima do comum

e que granjeara uma fama como es-tudioso das questões ultramarinas'.Revê-se nesta definição?Acho sempre generoso. O FrancoNogueira foi uma pessoa domi-nante no Governo durante anos eanos e tinha uma alta considera-ção profissional como deputado.A primeira vez que o encontrei foinas Nações Unidas. O chefe daprimeira delegação às NaçõesUnidas foi o professor Paulo Cu-nha e os professores fazem sem-

pre esta manobra, vão saber dosmelhores estudantes. Como o

grande problema era a descoloni-

zação e eu escrevia livros sobre o

assunto, veio ter comigo. E comoassessor diplomático, dele e do

embaixador, foi ter com o FrancoNogueira. A gente conheceu-se lá.Há um relatório para o Ministé-rio em que ele escreve coisas enor-mes sobre mim e eu nunca publi-quei isso. O Franco Nogueira tam-

bém tinha essa fama de esquerdamoderada.Era da esquerda moderada?

Quando o senhor tem um regimequalquer e é partidário de refor-

mas, passa logo a ser de esquer-da. Eu acho que o nosso senhorJesus Cristo era de esquerda. Te-nho um amigo estudante que medisse, 'andam sempre a dizer queo CDS é de direita e eu gosto é doCDS' e eu respondi-lhe, por graça,'diz-lhes que és da extrema-es-querda do Papa Francisco'.Era um reformista, portanto?Ensinava isso nas aulas. Tivesempre o método na escola de queo professor deve expor a doutrinacomo se acreditasse nela. Mesmo,por exemplo, um sujeito que é an-timarxista, quando ensina mar-xismo, deve ensinar com totalexatidão. Para que, depois, os es-tudantes livremente escolham.Sempre tive essa atitude, depois,no fim, dizia as minhas preferên-cias, como é evidente.Almeida Santos escreveu que era'inovador o bastante para pouco de-pois ser corrido'. Tinha noção queestava a prazo quando assumiu o

cargo?Tinha a noção de que reações ti-nha das aguentar até onde pudes-se. Não fui inconsciente. Era difí-cil um professor que estudava es-

sas matérias ser surpreendidocom as reações. Há uma históriacom graça do Almeida Santos, ele

morreu sem saber isto que lhevou dizer. Ele deixou um livropronto [Gritante Justiça] e dei-xou um recado para que me pedis-sem para escrever um prefácio.Nesse prefácio pensei que primei-ro tinha de contar uma história.Eu era ministro e fui a Moçambi-que, o governador era um grandeamigo meu, o Sarmento Rodri-gues, que me disse: 'Estou aquicom um aborrecimento porque o

meu comandante militar fez umprocesso contra o advogado Al-meida Santos, dizendo que ele

esta comprometido com o movi-mento de entregar o sul do Save àÁfrica do Sul'. Eu não conhecia oAlmeida Santos, mas lia o que ele

escrevia, e perguntei: 'Mas issotem algum fundamento?' 'Ne-nhum', respondeu. 'Então vocênão ande com isso.' 'Mas como é

que você pensa que eu posso fazerperder a face ao comandante mi-litar?' 'Senhor almirante, é capazde me trazer o processo?' Trouxe--me o processo, eu nem o abri, es-

crevi assim: 'Arquive-se'. E 'digaao general que recorra para o Va-ticano'. Achei bem dizer isto noprefácio porque era a seriedade

que lhe reconhecia nos artigosque escrevia. Ele não concordavacom uma data de injustiças quehavia no sistema jurídico, masisso também eu não [risos].Entre aqueles que eram seus críti-cos dentro do regime, citava-se ofacto de ter estado preso?Não, isso não citavam. A Ordemdos Advogados foi notável nisso.Estava em exercício o vice porqueo presidente estava doente, no diaseguinte estavam a dar murros namesa: 'Que conversa é essa? Láporque o advogado que apresen-tou o habeas corpus é contra o mi-nistro vai para a cadeia! Quemmandou arquivar o processo foi odr. Salazar. Ele apreciou a atitudeda Ordem e achou que havia aliuma dignidade em questão.Isso seria em 1947?Por aí. Tinha 21 anos e acabado o

estágio. Meti-me nisso por ordem >do dono do escritório que era o

António Ribeiro. Ele achava queera ligeiro, complicou tudo por-que envolvia um ministro. Eu avi-sei o ministro, se este ato que vãopraticar implicar a morte do ge-neral Godinho, isso é um crime.Eles estavam todos presos porquetinham assinado um documentoem que apoiavam o Presidente daRepública para transformar o Go-

verno. Foi o primeiro habeas cor-

pus interposto em Portugal. E re-

conheceram que eu tinha razãoprofissional para fazer isso.

Quanto tempo é que ficou preso?Um mês e tal. Foi lá que conheci o

Mário Soares, fiquei amigo deleaté morrer.Foi no Aljube que o conheceu?

Foi, ele veio ter comigo e disse 'vocêtem uma literatura aí muito reacio-

nária', eu estava a ler A Filosofiada História, do Hegel. E eu respon-di-lhe: 'Estou a fazer recurso paramiguelista'. Ele riu-se muito e ficá-mos amigos até ele morrer. Eu fuimuito amigo da mulher, também.Instituí na Academia Internacio-nal da Cultura Portuguesa, vai seranunciado este mês, um prémiocom o nome de Maria Barroso, pe-los serviços que ela prestou. Eu eraum dos curadores da fundaçãodela, a Pro Dignitate.Esse prémio destina-se a quê?Para quem prestar serviços rele-vantes na área que foi a da Fun-dação Pro Dignitate.E quando vai ser entregue?Sai neste volume da Academia In-ternacional da Cultura Portugue-sa, de que ela era membro. É a ho-

menagem da academia. O prémiochama-se Pro Dignitate Maria deJesus Barroso.Não sendo um homem do regime, o

que achava de Salazar?Ninguém é independente da suacircunstância. E Salazar não co-

nhecia o mundo, não viajava. Eleconhecia o mundo por conversas.Uma das coisas que lhe explicavaera que o problema mais grave quevai aparecer é o racismo, vai-se

agravar. 'Sei que o senhor presiden-te nunca foi às colónias, mas háuma literatura de combate, muitobem escrita', e indiquei-lhe três li-

vros, 'se os ler fica a par disso'. Eele disse-me esta coisa: 'Há para aí20 anos que não tenho tempo de lerum romance'. Emprestei-lhe os li-

vros, não mos devolveu, espero queos tenha lido. Passado pouco tem-

po, concordou. Ele conhecia o mun-do sobretudo pelas pessoas que re-cebia, era o meio de informação de

que ele tinha confiança. Agora cha-mo-lhe outono ocidental, até escre-vi um livro que se chama assimMemórias do Outono OcidentalIsso para ele não lhe vinha imedia-tamente, para ele quem mandavaera a Europa, a Europa era a luz domundo. Tinha uma noção do paíscomo o país agrário que ele conhe-

ceu e, apesar de ser altamente inte-

ligente, os desafios tão rápidos domundo ultrapassaram-lhe as con-

ceções e a estabilidade. Devo salien-tar que foi um ato excecional, parauma pessoa que teve esta vida, acei-

tar que as reformas tinham de se

fazer. Mas, tal como ele previra, asreformas abalaram-lhe a estrutu-ra. Era um homem simples, de vidamodesta, tinha sempre a secretáriacheia de livros, lia o que podia.Quem conheceu o Portugal que euconheci na minha origem - eu soude uma aldeia paupérrima de Trás-

-os-Montes, o meu avô paterno, que

eu não conheci, era empregado de

moinho, como imagina, não erauma vida muito abundante. Tenhouma grande admiração pelo meupai, ando sempre com o retratodele. O meu pai e a minha mãe,como é que resolveram que os dois

filhos, eu e uma rapariga, tinhamde fazer um curso superior? Eu te-nho pelo meu pai uma ternura e

uma admiração enormes, e pelaminha mãe também.O seu percurso e o de Salazar aca-bam por ser diferentes. Os dois vemdo interior......mas eu cheguei cá muitos anosmais tarde.Mas abrlu-se ao mundo, enquantoele continuou fechado.É o homem e as suas circunstân-cias, ele continuou dominado pelasua circunstância. Quando eunasci, a autoridade na minha al-deia era a professora primária, o

padre e o senhor regedor. O meupai contava-me, quando foi fazer o

exame da instrução primária, ti-nha que ir à vila e emprestaram-

-lhe umas botas de um soldado,cheias de jornais, porque os pezi-nhos dele eram pequeninos. Avida da aldeia era essa. Ora, o dr.

Salazar é desse tempo. O meu tem-

po já não era esse. E a universida-de estava bastante mais livre, ha-via professores notáveis nessa al-tura. Mas a geração anterior erado país agrário, analfabeto, emi-grante. Hoje a juventude não per-cebe o que foi essa mudança por-que já encontrou as coisas euro-peizadas, mas a minha geraçãonão encontrou isso. E Salazar ti-nha uma circunstância aindamais antiga e tinha o respeito pelaestrutura tradicional do país.Salazar chegou a pensar em si paraoutros voos?Não. Mandou-me convidar maistarde para ministro da Educação eeu disse que não. Não podia estarnum Governo que fazia política ul-tramarina que eu achava errada.Em que ano foi isso?Deve ter sido aí por 1964, 65. 0 Su-

pico Pinto convidou-me para ser

embaixador em Roma e eu disse--lhe 'não sei latim suficiente' [ri-sos] . Eu só fui para aquela funçãoporque achei que os interesses do

país exigiam isso. Em todo o caso,há uma coisa que gosto de subli-nhar, de todos os países que per-tenciam ao euromundismo polí-tico colonial, o único que conse-guiu uma união do tipo CPLP foiPortugal. A França não conse-guiu e teve um projeto do DeGauUe, que era a Euráfrica. Esse

projeto falhou. De Gaulle teve umgrande desgosto, a Guiné votoucontra e o Diabo a quatro. O gene-ral também era teimoso.0 que pensa hoje do lusotropicalis-mo?Tem sido mal interpretado e va-leu muitos ataques injustos aoGilberto Freyre. Quando conhe-

ceu o problema português já tinhaescrito Casa Grande & Senzala,já era célebre. Teve dois grandescríticos toda a vida, que foi o Fer-nando Cardoso e Darcy Ribeiro(que era marxista) e o FernandoHenrique Cardoso, quando foiPresidente da República, declarouo ano 2000, ano Gilberto Freyre.Darcy Ribeiro deixou dois ensaiosonde diz o seguinte, 'assim comoa Itália seria outra sem Dante, aEspanha sem Cervantes e Portu-gal sem Camões, o Brasil seria ou-tro sem Gilberto. Há pouco tem-po surgiu um livro, que recomen-do, A Doutrina da Paz Ibérica,dos juristas portugueses de Coim-bra, Évora e Salamanca no sécu-lo XVI a criticarem a violação dosdireitos e dignidades e proprieda-des dos territórios dessas popula-ções. Mas esse lusotropicalismotem algum fundamento, está com-

provado porque mais nenhumpaís conseguiu uma coisa como aCPLP. Conservar isto é que é o

problema. O que temos? A língua.Mas não temos capacidade finan-ceira. Precisamos é de uma diplo-macia muito boa e temos muitobons diplomatas, agora é precisoque sejam ouvidos.Acha que a CPLP conseguiu a subs-tância que poderia ter?Por enquanto não, mas ainda podeter. Agora é preciso não estar des-

cuidado. Se tiver o Governo de Ti-mor e não for lá fazer nada paraque precisam de si? Há um gran-de problema com os ocidentais, te-mos sistemas de Governo que le-varam séculos, grandes sacrifí-cios, revoluções, etc. Chegámos àdemocracia, foi isso que a gentedeixou lá? Foi isso que os ingleseslá deixaram? Foi isso que os fran-ceses lá deixaram? Não. O gover-nador, alto-comissário, vice-rei,consoante os gostos, tinha o poderlegislativo, executivo e judicial.Portanto, quando eles se apodera-ram do poder foi daquele poderque se apoderaram, não do regi-me democrático que não tinham.Como vê a relação de Portugal comas suas ex-províncias ultramarinas?Tem alguns incidentes agora«

Instituí naAcademia

Internacional daCultura

Portuguesa, vaiser anunciadoeste mês, umprémio com o

nome de MariaBarroso, o pré-

mio ProDignitate Maria

de JesusBarroso

99com Angola, mas acho que sãoboas. Em relação à segurançado Atlântico Sul era preciso terbastante cuidado. A .deia maiscorrente nos estrate^as que co-

nheço assenta muito no triân-gulo Brasil, Portuga., (por cau-sa dos arquipélagos) e Angola e

nós temos segurança organiza-da no Atlântico Non:e, fragili-zada por este Presidente ameri-cano, que é sobretudo um con-tabilista.

Acha que o processo que está a de-correr na justiça em Portugal con-tra o ex-vice-president» angolano,Manuel Vicente, poderá prejudicaras relações com Angola?Depende do feitio deles. É umtema muito delicado Tem quever muito com os sistemas jurí-dicos. Digo-lhe, por exemplo,que tem feito mais pela unidadeeuropeia o Tribunal Europeu,que é discreto, está a estabele-cer uma espécie de estrutura ju-rídica global, que as declaraçõesinflamadas das eleições. E nóstemos um instrumer to funda-mental para a vida internacio-nal que é o Tribunal Penal Inter-nacional, que eu acho que estáa precisar de uma revisão, commais competência.As exigências da construção euro-peia levaram a que Portugal esque-cesse um pouco da sua herançaafricana?Não. Em Portugal acentuou-semuito, com a evolução do mun-do e as dificuldades que enfren-támos, a situação de país exóge-no, um país que sofre consequên-cias de decisões em que nãotoma parte. Isso exige hoje, umaatitude diferente da governação.É um país com dificuldades paraobter recursos para as obriga-ções do Estado. A União Euro-peia é importante, desde que fun-cione, mas não deve perder asoutras ligações. Nem a aliançainglesa, nem a CPLP, nem as Na-ções Unidas. Isso implica pres-tar uma atenção muito aturadaà diplomacia portuguesa, temosmuito bons diplomatas é precisoé dar-lhes meios.O Brexit trará problemas para Por-tugal conseguir gerir essa velhaaliança com a Inglaterra?Não, isso até talvez possa aprovei-tar. Mas há um problema para aEuropa, o Brexit implica que amaior esquadra europeia e o

maior exército europeu saia. Estáa segurança e a defesa autónomasda UE para serem reforçadas. Acomissária de Segurança e de De-fesa já declarou que precisa de umexército. A segurança europeiatem de existir, não há dúvida, tal

como não há dúvida que é precisover com muita atenção a políticadeste Presidente dos Estados Uni-dos. Ele não olha bem para o

atlantismo, olha é se a gente con-tribui com dinheiro suficiente.Não tenho muita confiança nele.Escreveu em outubro que a UE estánum estado de debilidade...Este é um ano muito importanteporque há eleições em muitos paí-

ses, alguns deles vieram da Cortinade Ferro. Conhece algum estudo so-

bre a entrada deles na Europa? Ti-vemos países com 50 anos de vida

democrática, cai o muro e entrampaíses com 50 anos de submissão.Isto não é como deitar água benta.E aí as eleições, até por causa desteturbilhão das migrações, põem pro-blemas muito sérios por causa do

populismo. A dificuldade com quese estão a cumprir os deveres hu-manitários, a receber refugiadosem conflito, com a conceção queeles têm de segurança, tudo isso vaiestar nessas eleições. E começou naAlemanha, com a senhora Merkera perder autoridade. O Presidentefrancês teve aquela vitória estron-dosa, passado pouco tempo a popu-laridade começou a descer.

Passou-se de uma euforia de fim dehistória, de consolidação da demo-cracia como regime, da euforia coma construção europeia nos anos2000 e hoje estamos perante o pes-simismo face aos problemas da de-mocracia e à crise europeia.Olhando para a Carta das NaçõesUnidas - e não podemos olhar só

parao que lá está escrito, temos deolhar para os pressupostos - há alidois problemas, a igualdade de di-

gnidade das nações não pode ser fe-

rida pela hierarquia das nações e acarta do Conselho de Segurança es-

queceu-se de pôr lá assente que essa

hierarquia nunca poderia ferir adignidade das nações. Esse é o

grande conflito que temos nestetempo e daí o problema dos emer-gentes, dos países que procuram so-

bretudo equilibrar as suas finan-

ças. Mudar a ordem do mundo leva

tempo. Quantos séculos é que levá-

mos para chegar à democracia? Vá-rios. Desde o fim da guerra até hojequantos anos passaram?Mas parece que estamos a assistira um regresso do autoritarismo.Há uma espécie de conflito entrea realidade jurídica que se esta-beleceu e a memória do passadoe muitos países estão só a pensarna memória do passado. O exem-plo mais clarinho é do senhor Pu-tin quando declara, num discur-so público, com a águia bicéfalana parede, os generais todos, 'aminha fronteira de interesses é

muito maior que a minha frontei-ra geográfica'.Diz que quem fundou a Europa fo-ram as democracias-cristãs, estacrise na Europa também tem a vercom o facto de as democracias cris-tãs terem perdido peso?Isso é uma coisa muito comprida,mas faço-lhe uma síntese muito rá-

pida: o credo dos valores foi ultra-passado pelo credo do mercado.

A ONU, onde esteve no final dosanos 1950 e onde diz que 'caiu nomundo' e que lhe deu até uma meda-lha nos 50 anos... É mesmo o único

português a tê-la recebido?Acho que não. Deram-me porqueme interessei por Timor. Fui de-

putado durante muito tempo e acerta altura fui eleito presidenteda comissão de Timor. Andáva-mos há uma data de anos a discu-tir com a Indonésia e eu descobri

que não estávamos a conduzirbem o processo: 'Os senhores daIndonésia invadiram um Estadoindependente' - nós tínhamos fei-to a Revolução e dado a indepen-dência - 'isto é com as Nações

Unidas, não é connosco'. O MárioSoares chamou-me pela primeiravez ao Conselho de Estado e disse

'explique-me lá essa coisa quevocê disse?' Expliquei-lhe: A In-donésia invadiu um país indepen-dente e está a cometer um genocí-dio'. 'Pois tem que ir dizer isso às

Nações Unidas' e eu fui. E foi rá-pido. E essa condecoração diz porbaixo: 'Pelos serviços prestados aTimor, aos direitos humanos e àhumanidade'.Ficou orgulhoso de receber isso?

Olhe, eu tenho um netmho de trêsanos que está gravemente doente.

Apanhou uma infeção dessas quese apanha nos hospitais e temos to-dos sofrido isso. Tem o meu nome,dei-lha. Ele é que ficou com ela.

A ONU está a passar uma das suas

piores fases?

Está, porque até os países que têmdireito de veto, que deviam assu-mir com maior responsabilidadea defesa da igualdade da dignida-de das nações, não o fazem. A úni-ca pessoa que está ali a chamar aatenção é o secretário-geral e o po-der do secretário-geral é o da voz.Ele está a portar-se muito bem.Deus queira que a sua voz vá ga-nhando autoridade.Na aula que deu na UniversidadeCatólica a propósito dos cinco anosde pontificado do Papa Franciscovoltou a usar uma frase que lhe pa-rece muito cara 'o poder da palavrapode vencer a palavra do poder'.Ainda continua a acreditar que a pa-lavra tem poder?O poder da palavra pode vencera palavra do poder. Tenho aí umgrupo de estudantes que querque eu fale com eles sobre o

Mandela, o Mandela só teve o

poder da palavra. Foi metido nacadeia jovem e foi com a voz queele conseguiu.