apresentacao dossie sobre idade média

4
9 Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 2009 Este dossiê tem como objetivo mostrar que os estudos de idade média estão relacionados aos diversos campos do saber histórico. Infelizmente, ainda não se consegue vislumbrar com muita clareza, pelo menos no Brasil, como os estudos sobre idade média são importantes para uma discussão mais ampla, relacionada ao desenvolvimento de novas metodologias. No Brasil, embora temáticas ligadas ao imaginário medieval, sobretudo no cinema, sejam bem recebidas pelo público mais vasto, os alunos dos cursos de graduação têm muitas dificuldades para compreender a relevância desse período. Por esses motivos, este dossiê procura sistematizar, com base na proposta da Nova História, como existem várias possibilidades de se estudar a idade média no Brasil e como a nossa pequena produção tem uma aceitação em países onde se encontra uma tradição nos estudos de idade média. Inicialmente, pode-se pensar, ao ler os resumos dos artigos, que não existem relações entre eles além da afinidade cronológica. Na verdade, há dois pontos de interseção. O primeiro diz respeito à vinculação teórica e metodológica à Nova História, o segundo está relacionado ao fato de que a maior parte dos autores é composta por brasileiros que conseguiram produzir estudos originais sobre a idade média. Isso tem a ver com o propósito de refutar a premissa, muito presente nos meios acadêmicos brasileiros, de que não se pode estudar idade média em regiões fora da Europa. Aliás, recente, Jérôme Baschet 1 , propôs o inverso, ou seja, partir da América, através da longa idade média defendida por Le Goff 2 , para se chegar ao imaginário medieval. Em O feminino e o riso no Decamerão, Ana Carolina Lima Almeida apresenta o Decamerão, escrito por Giovanni Boccaccio entre 1349 e 1351, ressaltando a estrutura, as personagens e os conteúdos da obra. Após descrever e analisar algumas novelas que geram o riso nas personagens femininas da brigata, Almeida sublinha que tais personagens, marcadas por um comportamento honesto, condenam, em um primeiro momento, as novelas de conteúdo erótico. Contudo, elas, ao longo das jornadas, passaram a sorrir e até mesmo rir de novelas de tais temáticas. Finalmente, a autora, baseada no estudo de Mikhail Bakhtin sobre a idade média e o renascimento e no de Henri Bergson sobre o riso, indica que o riso revela posicionamentos a respeito das diversas temáticas presentes nas novelas, que eram temas constituintes da sociedade em que Boccaccio estava inserido. O riso que critica, que escarnece dos problemas e “erros” presentes na sociedade é o mesmo que possibilita a reparação desses problemas e “erros”, tendo, assim, uma função regeneradora. 1 Cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006. 2 Cf. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 Apresentação Revista_fim_novo.indd 9 06/12/11 14:41

Upload: wellington-gomes

Post on 28-Apr-2015

12 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Dossiê tem como objetivo mostrar que os estudos de idade média estão relacionados aos diversos campos do saber histórico.

TRANSCRIPT

Page 1: Apresentacao Dossie sobre Idade Média

9Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 2009

Este dossiê tem como objetivo mostrar que os estudos de idade média estão relacionados aos diversos campos do saber histórico. Infelizmente, ainda não se consegue vislumbrar com muita clareza, pelo menos no Brasil, como os estudos sobre idade média são importantes para uma discussão mais ampla, relacionada ao desenvolvimento de novas metodologias.

No Brasil, embora temáticas ligadas ao imaginário medieval, sobretudo no cinema, sejam bem recebidas pelo público mais vasto, os alunos dos cursos de graduação têm muitas dificuldades para compreender a relevância desse período. Por esses motivos, este dossiê procura sistematizar, com base na proposta da Nova História, como existem várias possibilidades de se estudar a idade média no Brasil e como a nossa pequena produção tem uma aceitação em países onde se encontra uma tradição nos estudos de idade média.

Inicialmente, pode-se pensar, ao ler os resumos dos artigos, que não existem relações entre eles além da afinidade cronológica. Na verdade, há dois pontos de interseção. O primeiro diz respeito à vinculação teórica e metodológica à Nova História, o segundo está relacionado ao fato de que a maior parte dos autores é composta por brasileiros que conseguiram produzir estudos originais sobre a idade média. Isso tem a ver com o propósito de refutar a premissa, muito presente nos meios acadêmicos brasileiros, de que não se pode estudar idade média em regiões fora da Europa. Aliás, recente, Jérôme Baschet1, propôs o inverso, ou seja, partir da América, através da longa idade média defendida por Le Goff2, para se chegar ao imaginário medieval.

Em O feminino e o riso no Decamerão, Ana Carolina Lima Almeida apresenta o Decamerão, escrito por Giovanni Boccaccio entre 1349 e 1351, ressaltando a estrutura, as personagens e os conteúdos da obra. Após descrever e analisar algumas novelas que geram o riso nas personagens femininas da brigata, Almeida sublinha que tais personagens, marcadas por um comportamento honesto, condenam, em um primeiro momento, as novelas de conteúdo erótico. Contudo, elas, ao longo das jornadas, passaram a sorrir e até mesmo rir de novelas de tais temáticas. Finalmente, a autora, baseada no estudo de Mikhail Bakhtin sobre a idade média e o renascimento e no de Henri Bergson sobre o riso, indica que o riso revela posicionamentos a respeito das diversas temáticas presentes nas novelas, que eram temas constituintes da sociedade em que Boccaccio estava inserido. O riso que critica, que escarnece dos problemas e “erros” presentes na sociedade é o mesmo que possibilita a reparação desses problemas e “erros”, tendo, assim, uma função regeneradora.

1 Cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006.2 Cf. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008

Apresentação

Revista_fim_novo.indd 9 06/12/11 14:41

Page 2: Apresentacao Dossie sobre Idade Média

10Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 2009

As relações que a ordem franciscana manteve com alguns membros da família real de Avis até d. Afonso V são tratadas por Marcelo Santiago Berriel no artigo Entre frades e reis: Relações entre franciscanos e poder régio à época da dinastia de Avis (1383-1450). Inicialmente, Berriel discorre sobre aumento de controle de membros da família de Avis acerca do clero, sobre o aumento da interferência do rei na jurisdição da Igreja e sobre a relação de d. João I, d. Duarte, d. Pedro e d. Henrique com o clero. Em seguida, mostra com base, sobretudo, na História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, uma das principais fontes narrativas da ordem franciscana sobre a província de Portugal, o crescimento da ordem franciscana, durante os séculos XIV e XV, e a estreita relação entre os membros da dinastia de Avis e os franciscanos.

Frades franciscanos eram geralmente escolhidos como confessores dos membros da família real, eram os pregadores preferidos para as grandes solenidades do reino e receberam diversos benefícios – inclusive licenças para adquirirem ou receberem bens de raiz como doações – de monarcas, rainhas e infantes. Contudo, Berriel afirma que as fontes produzidas pelos franciscanos não são desprovidas de ideologia e se interroga, esperando que novas pesquisas esclareçam sua questão, sobre o motivo do tratamento diferenciado, da preferência, relatadas nas crônicas dos franciscanos, de membros de Avis por essa ordem.

Em Modelo Mariano e Discurso Político: o exemplo de Felipa de Lancaster (1360-1415), Miriam Cabral Coser descreve Felipa de Lancaster, mulher de d. João I de Avis, como uma personagem histórica, realizando uma pequena biografia com dados objetivos sobre a vida da rainha. Em seguida, aponta que Felipa de Lancaster aparece em duas crônicas portuguesas – a Crônica de D. João I (parte II), de Fernão Lopes, escrita durante a regência de d. Pedro (1440-1448), e a Crônica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, redigida durante o reinado de d. Afonso V (1438-1481) – e analisa as passagens em que ela é mencionada. Ao examinar a representação da rainha feita por Lopes, Coser sustenta que o autor ressalta a linhagem nobre de Filipa e o seu modo de ser. Lopes não trata do aspecto físico da rainha, mas aponta para seu comedimento na fala e nos divertimentos, sua sobriedade, sua grande devoção e constantes práticas religiosas, seu papel de perfeita esposa e mãe – que resultou em filhos virtuosos –, sua caridade para com os pobres, sua incapacidade de odiar e suas graciosas e doces palavras. Lopes relata ainda a cura do rei conseguida pelas orações da rainha que, recebeu uma graça da Virgem Maria. Dessa forma, em Lopes, a rainha, que é descrita de acordo com o modelo da Virgem, é um modelo de perfeição feminina que deve ser seguido por todas as mulheres de Portugal. Em Zurara, a rainha também é vista como um exemplo de virtudes, possuíndo as virtudes cardeais e as teologais. Na verdade, reitera as virtudes que Lopes tinha atribuído a Felipa e ressalta a ligação dela com a Virgem. Contudo, em Zurara, Filipa tem um papel político, que é relativizado por sua natureza feminina. Ao constatar essa diferença, Coser defende que tal modificação deveu-se aos diferentes contextos históricos nos quais os dois autores compuseram suas crônicas.

A análise da defesa do controle do tempo e da importância do seu uso por d. Duarte é o tema central de O ver o e passar o tempo na obra de D. Duarte, de Roberto Godofredo Fabri Ferreira. No artigo, Ferreira aponta que a preocupação com o controle do tempo, a busca de determinar e controlar as horas, é uma temática recorrente nos textos elaborados na corte de Avis. Na verdade, passaram a ser cada vez mais presentes, entre finais do século XIV e início do XV, menções a

Revista_fim_novo.indd 10 06/12/11 14:41

Page 3: Apresentacao Dossie sobre Idade Média

11Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 2009

medidas inferiores à hora: meia hora, quarto e terço de horas. A busca da medição e do controle temporal é apresentada de forma patente por d. Duarte, o que indica relevantes modificações na mentalidade dos portugueses no que diz respeito ao tempo e que estão em consonância com as inquietações intelectuais de sua época. No Livro dos conselhos de El Rei D. Duarte, também conhecido como Livro da Cartuxa, e no Leal Conselheiro, d. Duarte sustenta que o tempo é um elemento de grande importância para que as atividades administrativas tenham um bom funcionamento. Consequentemente, ao aumentar a eficiência da administração com um tempo bem empregado, ganhar-se-ia tempo para a fruição e para o descanso. Além da maior eficiência, a ordenação temporal das atividades torna possível a previsibilidade, a padronização e o controle.Ao mesmo tempo que controlava as atividades pelo tempo, d. Duarte procurava dominar o tempo natural, conformar o anoitecer, por exemplo, às medidas, às horas. Assim, o tempo natural passa a estar subordinado a um tempo cronológico, medido. D. Duarte procura mesmo submeter o tempo da Igreja ao tempo medido ao estabelecer a cada ofício religioso uma determinada duração em horas e em suas frações. Dessa forma, busca interferir e controlar a Igreja, subordiná-la ao seu poder. D. Duarte não só se preocupou com o controle do tempo, mas também elaborou modelos para possibilitar ver as horas durante a noite e ao longo do ano. Na verdade, d. Duarte chegou a produzir um modelo que indicava os meses do ano, os dias, as horas completas, as meias horas e os quartos de horas.

Vânia Leite Fróes em O cardeal de Portugal: celebração da vida e da memória da morte na Florença quatrocentista, trata da celebração da vida do cardeal d. Jaime de Portugal através da memória de sua morte. D. Jaime, retratado com uma imagem exemplar na Vite di uomini illustri del secolo XV, de Vespasiano da Bisticci (1421-1498), e na Chronica de el-rei D. Afonso V, de Rui de Pina (1440-1522), foi associado aos sofrimentos do trágico final de vida do seu pai, o infante d. Pedro. Contudo, ao contrário deste, foi sepultado, pouco tempo após sua morte, em uma capela suntuosa, a Capela do Cardeal de Portugal em San Miniato al Monte, em Florença, erigida para guardar o seu corpo.

Tal capela, que retrata aspectos ligados à figura do cardeal como, por exemplo, sua castidade, sua origem real e portuguesa, que também eram característicos do seu pai, celebrava, rememorava, torna pública, a sua vida. Mais do que isso. Por d. Jaime ser associado à imagem paterna, a capela era uma forma de reparar as ações e os resultados de Alfarrobeira.

Em As “missas do Infante” no Padrão dos Descobrimentos: colonizar com a Idade Média, colonizar a Idade Média, Maria de Lurdes Rosa trata do uso da idade média através de duas perspectivas teóricas, o de “Medievalism” e o de “descolonização” da idade média. Rosa analisa a apropriação do medievo português por António Brásio, sacerdote e historiador, membro da Academia Portuguesa da História e realizador de vários empreendimentos científicos na época do Estado Novo português. Após apresentar, de forma geral, na introdução, as ideias de Brásio, segundo as quais as missões na África colonial portuguesa, no século XX, eram uma cruzada medieval em que os missionários eram os cavaleiros e agiam para conversão e salvação dos povos africanos, Rosa traça uma pequena biografia de Brásio, tratando do seu pertencimento à Congregação dos Missionários do Espírito Santo e colocando que ele não tinha uma formação acadêmica como historiador. Na verdade, sublinha que Brásio, na maior parte das vezes, foi mais um polemista do

Revista_fim_novo.indd 11 06/12/11 14:41

Page 4: Apresentacao Dossie sobre Idade Média

12Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 2009

que um historiador. Ele mesclava pedagogia religioso-patriótica, história e ideologia. Publicava em periódicos confessionais e em revistas científicas. Seus textos eram difundidos de várias maneiras, dentre elas, em celebrações católicas e em eventos científicos.

Detendo-se em cinco grandes temas presentes na obra de Brásio, cujo ponto de intersecção é a presença de significantes medievais para fixar uma identidade contemporânea, Rosa analisa a visão de que Portugal tem como essência ser o “país de Reconquista”; a continuidade e relação direta entre a cruzada e a missão desenvolvida no século XX e a nova periodização histórica a partir da vitória de Ceuta e a defesa da não utilização da queda de Constantinopla, em 1453, como marco histórico. Os outros dois, que não estão relacionados a uma visão sobre a história, são definidos pela autora como uma continuação histórica inconsciente do pensamento pré-liberal e pré-laicista. São eles: a ideia de uma multissecular proteção da Virgem Maria a Portugal e, em especial, à empresa africana e a defesa ativa do poder coesionador, do fornecimento de sentidos, dos atos espirituais. Inserida neste tema está a defesa do regresso a uma ordem social anterior, na qual a religião católica estabelecia as condutas. Rosa contextualiza esses temas no momento histórico em que foram elaboradas, ressaltando a grande incoerência entre as ideias e a época na qual elas surgiram e foram preconizadas, e se pergunta o motivo de Brásio ter se apropriado da idade média e ter defendido uma “volta” a esse período histórico. A autora conclui afirmando que a obra de Brásio teve uma forte e duradoura influência. Por isso, ao longo do artigo, reflete sobre o metier do historiador e a sua relação com seu objeto de estudo.

Além de agradecer o empenho de todos os autores, ressalta-se a contribuição dada por Bruno Silva, secretário do Instituto de Estudos Medievais (IEM) da Universidade Nova de Lisboa e, em especial, as professoras Maria de Lurdes Rosa, dessa mesma universidade, e Vânia Leite Fróes, coordenadora do Scriptorium – Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos da UFF, pelas contribuições dadas para a elaboração deste dossiê temático. Finalmente, deve-se agradecer a ajuda de Nina Amaral, sempre presente.

Clinio Amaral

Revista_fim_novo.indd 12 06/12/11 14:41