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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 45 – Aprendizagem neuronal para as práticas sociais de leitura e escrita.
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APRENDIZAGEM NEURONAL PARA AS PRÁTICAS SOCIAIS DE LEITURA E ESCRITA
Leonor SCLIAR-CABRAL1
RESUMO: Nesse artigo, examinarei como as neurociências estão contribuindo para que se entendam os processos envolvidos na leitura e como se dá a reciclagem dos neurônios na região occípito-temporal ventral esquerda para o reconhecimento dos traços invariantes que diferenciam as letras entre si, sua articulação em uma ou duas letras (os grafemas), associados aos fonemas, com a função de distinguir significados.
Nessa região há projeções para todas as áreas que processam a linguagem verbal e o significado: tais processamentos se dão em paralelo, com entradas e saídas simultâneas da informação.
PALVRAS-CHAVE: neurociências; leitura; reciclagem dos neurônios; grafemas; fonemas.
Introdução
O alarmante número de analfabetos funcionais no Brasil e o fato de
os alunos brasileiros terem obtido péssimos escores na avaliação mais
importante do mundo sobre competências em linguagem, matemática e
ciências motiva a reflexão para o seguinte questionamento: Por que
não aplicamos à alfabetização e ao ensino-aprendizagem da leitura e
escrita as conclusões a que chegaram as pesquisas de ponta no assunto,
realizadas pelas neurociências?
______ 1 Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão
Departamento de Língua e Literatura Vernácula Rua São Miguel 1106 – Bairro João Paulo
88030-320 Florianópolis, SC Brasil [email protected]
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 45 – Aprendizagem neuronal para as práticas sociais de leitura e escrita.
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Graças à imagem por ressonância magnética (IRM), à
eletroencefalografia (EEG) e à magneto-encefalografia (MEG), pode-
se rastrear como nosso cérebro trabalha durante a leitura.
As principais conclusões de tais pesquisas são de grande valia para
repensarmos os métodos de alfabetização e o ensino-aprendizagem da
leitura e escrita, além de nos esclarecerem sobre as dificuldades que
nossos alunos apresentam, decorrentes de distúrbios de atenção ou da
dislexia.
A capacidade para aprender a ler e a escrever é exclusiva da
espécie humana. Ela se deve, fundamentalmente, aos seguintes fatores
de como está estruturado e funciona o sistema nervoso central:
1. plasticidade dos neurônios para se reciclarem para novas
aprendizagens;
2. dominância e especialização das várias áreas secundárias e
terciárias do hemisfério esquerdo para a linguagem verbal;
3. interconexão entre as várias áreas mesmo distantes, inclusive as
que processam a significação, com as que processam em paralelo a
linguagem verbal;
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4. processamento das variantes recebidas nas áreas primárias,
através do emparelhamento com formas invariantes mais abstratas que
os neurônios reconhecem;
5. arquitetura neuronal capaz de processar formas sucessivamente
mais abstratas e complexas: a função semiótica.
O que acontece quando nos deparamos com um texto escrito?
Nossos olhos não abarcam uma linha inteira, em virtude das
limitações de a única parte da retina, realmente útil para a leitura,
chamada fóvea, rica em células foto-receptoras, os cones, ocupar
apenas 15º do campo visual. Por isso, nossos olhos correm pela linha,
em movimentos de sacada (quatro ou cinco por segundo), quando não
vemos nada, e param num ponto, a fixação: nos sistemas com direção
da esquerda para a direita, a fóvea consegue abarcar 3 ou 4 letras à
esquerda do centro do olhar, e 7 ou 8 à direita (os movimentos
oculares são controlados pelos dois colícolos superiores, situados
abaixo do tálamo e rodeados pela glândula pineal do mesencéfalo).
É preciso explicar que as regiões do cérebro que recebem a
informação se dividem em dois grandes blocos, as áreas primárias,
formadas por censores sensoriais e somestésicos e as áreas secundárias
ou terciárias, especializadas para processamentos refinados que
dependem da experiência. Com a visão não é diferente: a área
primária, para processar os sinais luminosos, fica na parte posterior e
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central da região occipital de ambos os hemisférios: os censores
decompõem os sinais luminosos em miríades de pontos que,
metaforicamente, chamo de píxeis e, só depois da recomposição em
formas invariantes que possam emparelhar com as dos respectivos
neurônios, são enviadas para as áreas especializadas: esse primeiro
processamento dura aproximadamente 50 milissegundos.
Figura 1. Visão moderna das redes corticais da leitura (adaptação a partir de DEHAENE, 2007, p.97).
A distribuição compulsória para a região especializada em
reconhecer os traços das letras, isto é, a região occípito-temporal-
ventral esquerda, já comprovada pelas pesquisas em neurociências,
coloca uma pá de cal nos métodos globais ou similares de
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alfabetização. Com efeito, o reconhecimento global ou por
configuração é efetuado pela região homo-lateral direita.
Reconhecimento dos traços invariantes
Os neurônios da região occípito-temporal-ventral esquerda
reconhecem os traços invariantes que compõem as letras, cujos valores
são os mesmos, independentemente de seu tamanho, da caixa
(MAIÚSCULA ou minúscula), da fonte (imprensa, manuscrita,
itálico, negrito ou sublinhado, etc.), ou da posição que ocupam na
palavra.
O reconhecimento das invariâncias é possível e necessário por
duas razões, fundamentalmente:
1ª: porque, como mecanismo adaptativo, o sistema visual dos
primatas deve reconhecer as formas básicas do que se encontra na
natureza, independentemente das variantes que o olhar capta,
conforme a distância, o ângulo de visão, a incidência da luz e sombra e
a parte em relação ao todo, etc.;
2ª: porque, e essa é especificamente humana, só essa explica a
capacidade dos neurônios da região occípito-temporal-ventral
esquerda em reconhecer os traços invariantes que compõem as letras:
na espécie humana, os respectivos axônios (prolongamentos dos
neurônios para levarem a informação a outros neurônios através do
mecanismo denominado de sinapse) estão ligados a todas as regiões
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que processam a linguagem verbal e simultaneamente à região que
processa o significado.
Desde o início do século XX que a linguística propôs o conceito de
fonema, a unidade que cobria todas as realizações possíveis tanto em
nível da recepção quanto da produção, com a função de distinguir
significados, como no par mínimo /´karu/ oposto a /´kaRu/,
independentemente do fato de /R/ poder se realizar como fricativa
velar surda, vibrante ápico-alveolar múltipla, uvular ou glotal aspirada.
A noção de fonema foi ampliada como sendo um feixe de traços
distintivos (esses últimos também invariantes).
Somente agora, através das técnicas de neuro-imagem funcional
(IRM), de eletroencefalografia (EEG) e de magneto-encefalografia
(MEG), foi possível verificar que há neurônios especializados na
região occípito-temporal-ventral esquerda para reconhecer os traços
invariantes das letras e isso é possível porque uma ou duas letras (os
grafemas) estão associadas a um fonema, ambos com a função de
distinguir significados: a mesma diferença que reconhecemos entre as
realizações de /r/ e /R/, reconhecemos entre r e rr, R e RR, e R e RR
e isso porque caro e carro têm significados diferentes.
A verificação de que os neurônios na região occípito-temporal-
ventral esquerda reconhecem as invariâncias dos traços que
compõem as letras e de que eles aprendem a reconhecê-las porque uma
ou duas letras estão associadas aos fonemas, e os axônios de tais
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neurônios se projetam para a região que processa os significados, tem
profundas implicações sobre a metodologia da alfabetização,
particularmente em sistemas alfabéticos como o do português do
Brasil em que, para a leitura, o sistema apresenta muita transparência.
As principais conclusões são:
1. o reconhecimento dos traços que diferenciam as letras entre si
deve ser trabalhado sempre com os valores que uma ou duas letras
(grafemas) têm de representar os fonemas, ambos para distinguir
significados. Por exemplo, ao acrescentar um traço vertical à esquerda
e outro à direita da letra V, você distingue VALA de MALA. Ao
mesmo tempo, deve sempre pronunciar a palavra e, quando possível (o
que é o caso, no exemplo), produzir o som isolado de [v] e [m],
associado aos respectivos grafemas v e m, além de ativar outras
regiões de reconhecimento tátil, motor e cinestésico, acompanhando a
direção do movimento da letra, o que reforça a aprendizagem dos
neurônios. O corolário desse princípio é que as letras não devem ser
ensinadas isoladamente e, muito menos, por seu nome. O mesmo se
aplica a trabalhar com sons isoladamente, que não sejam a realização
de fonemas, portanto, fora da função de distinguir significados. Claro
que essa atividade é muito necessária nas aulas de música, mas não
tem a ver com o processo de alfabetização;
2. quanto mais associações forem feitas com as diferentes regiões
cerebrais que processam a linguagem verbal (sempre no hemisfério
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esquerdo), tanto mais rápida e profunda a aprendizagem. Esse
princípio já havia sido compreendido por Montessori, daí porque os
métodos de alfabetização que utilizam atividades multissensoriais
favorecem a aprendizagem: observe-se, porém, que é para fixar as
invariâncias dos traços que distinguem as letras. Por isso, você deve
também associar ao reconhecimento visual da letra e ao seu valor
sonoro gestos que acompanhem o traçado da letra, por exemplo, na
letra V, recoberta por lixa, fazer com que a criança acompanhe com o
dedo o movimento de cima para baixo e, depois, de baixo para cima,
pois, não só são quatro sensações (a visual, a tátil, a cinestésica e
proprioceptiva) a reforçar a aprendizagem dos neurônios, como você
estará trabalhando com a direção espacial, outra propriedade essencial
à leitura. A emissão simultânea do som (realização do respectivo
fonema) acresce às quatro sensações a auditiva e a proprioceptiva dos
movimentos do aparelho fonador.
Uma coisa é acompanhar com o dedo o relevo da letra V de cima
para baixo e, depois, de baixo para cima, produzindo o som
correspondente ao fonema que ela representa. Enfiar contas numa
linha, para desenvolver a psicomotricidade, não tem nada a ver com
ensinar os neurônios a reconhecer tal letra e depois poder escrevê-la!
3. a cada uma das projeções sinápticas, cada vez mais distantes da
região occipital primária, as unidades processadas vão se tornando
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mais complexas: sílabas, morfemas, palavras, frases, orações, períodos
e texto, graças ao que se denomina arquitetura neuronal.
A escrita espelhada
Faltou falar ainda sobre o que as neurociências nos dizem sobre
dois problemas que afligem os educadores: a leitura e escrita
espelhadas no início da alfabetização e a dislexia.
Para que se entendam a leitura e escrita espelhadas, no início da
alfabetização, que, às vezes, perduram por longo tempo, é necessário
partir dos seguintes pressupostos:
1. é bem conhecido que as projeções visuais são cruzadas: os sinais
luminosos que se apresentam à esquerda se projetam sobre a metade
direita da retina de cada olho, de onde a informação é enviada em
direção às áreas visuais primárias na região occipital do hemisfério
direito; e os sinais luminosos apresentados à direita se projetam sobre
a metade esquerda da retina de cada olho e são tratados na região
occipital do hemisfério esquerdo;
2. para que os neurônios reconheçam qualquer coisa como sendo a
mesma, é desprezada a diferença entre esquerda e direita, o que se
denomina de simetrização, quando a informação provinda de ambas as
retinas atravessa o corpo caloso: tanto faz a alça de uma xícara estar
para a direita ou para a esquerda, você reconhece a xícara como sendo
a mesma. Ora, essa percepção terá que ser refeita durante a
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alfabetização, pois colocar as três pequenas retas horizontais paralelas
só pode ser à direita da reta vertical para formar a letra E. Mais difícil,
ainda, é reconhecer a diferença entre d e b ou entre q e p, a qual
reside apenas no fato de as primeiras letras de cada par estarem com o
semicírculo à esquerda da haste e as segundas, inversamente, com o
semicírculo à direita da haste (espelhamento na horizontal). Uma outra
diferença que os neurônios desprezam é a inversão vertical: se a mesa
estiver com o tampo para baixo e as pernas para cima, ainda assim será
reconhecida como uma mesa; o mesmo se pode dizer de um guarda-
chuva ou de um tomate. Mas com as letras isso não ocorre: a única
diferença entre M e W é a direção vertical (espelhamento vertical), o
que ocorre também com o que diferencia b e p; d e q; e e a; e u e n.
Isso significa que, na alfabetização, os neurônios da região occípito-
temporal-ventral esquerda terão que se reciclar para reconhecer a
diferença entre direção à esquerda e direção à direita e entre
direção para cima e para baixo.
Trata-se de uma aprendizagem específica e, insisto, só ocorrerá se
for ensinada com a função de distinguir significados, como em
bote/dote; bote/pote; dado/dedo.
Essa reciclagem é muito difícil porque continua convivendo com o
fato de que, para os demais reconhecimentos, os neurônios que
processam a visão continuam a desprezar as diferenças entre esquerda
e direita e entre em cima e embaixo. Por isso, as crianças persistem na
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leitura e escrita espelhadas por algum tempo, em maior ou menor grau,
mas isso não significa que sejam disléxicas.
A dislexia é um distúrbio de ordem genética que se origina,
segundo muitos autores, quando se dá, no feto, a migração dos
neurônios desde a zona germinal ao redor dos ventrículos até a posição
final nas diferentes camadas do córtex. Alguns genes foram associados
ao erro de migração dos neurônios que caracterizam a dislexia, como o
gene DYX1C1 sobre o cromossoma 15 e os genes KIAA0319 e
DCDC2, sobre o cromossoma 6 e o ROBO1 sobre o cromossoma 3.
Esse erro de posicionamento dos neurônios determina que,
futuramente, tais indivíduos venham a ter dificuldades no
reconhecimento das letras, particularmente, quando está envolvido o
traço de espelhamento. Em consequência, tais sujeitos falham nos
testes de consciência fonológica. Está registrado que os disléxicos
apresentam uma diminuição de atividade na região temporal esquerda,
responsável pelo processamento dos fonemas.
Atualmente, alguns programas têm se mostrado eficientes na
recuperação dos disléxicos: trata-se da reeducação através de jogos no
computador, uma vez que eles fascinam o educando. Os programas se
baseiam na proposta de Vygotski sobre a área proximal de
aprendizagem, pela qual a aprendizagem é ótima quando os problemas
são suficientemente difíceis para suscitar o interesse do educando, mas
suficientemente fáceis para evitar a desmotivação.
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Conclusões
Procurei demonstrar como as recentes descobertas das
neurociências podem nos ajudar na escolha do melhor método para a
alfabetização e para o desenvolvimento das competências em leitura e
escrita. Verificou-se, fundamentalmente, que os neurônios humanos
são dotados de plasticidade para a aprendizagem de novos
reconhecimentos e que, no caso da leitura, esses neurônios se
encontram numa região denominada região occípito-temporal
ventral esquerda. Também constatou-se que esta reciclagem se torna
possível porque tais neurônios aprendem a reconhecer os traços
invariantes das letras, inclusive o direcionamento para a esquerda ou
direita e para cima ou para baixo, que integram as letras, uma ou duas
constituindo os grafemas, associados aos fonemas, ambos com a
função de distinguir significados. Ficou claro que dessa região há
projeções para todas as regiões que processam a linguagem verbal, em
níveis cada vez mais abstratos, até se chegar ao processamento do
texto e que esses processamentos ocorrem em paralelo, não
unidirecionalmente, mas com informações transportadas pelos axônios
e acolhidas pelos dendritos, num fluxo contínuo.
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Referência bibliográfica
DEHAENE, S. Les neurones de la lecture. Paris: Odile Jacob, 2007. Cap. 5. Apprendre à lire. Trad. de L. Scliar-Cabral, p. 282-302.