aprender até morrer, lá diz o ditado

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Quarta-feira, 16 de setembro de 2015 | Correio do Vouga | 21 OPINIÃO Aprender até morrer, lá diz o ditado Primeira lição Na escola primária Ivo viu a uva e aprendeu a ler. Ao ficar rapaz Ivo viu a Eva e aprendeu a amar. E sendo homem feito Ivo viu o mundo, seus comes e bebes. Um dia num muro Ivo soletrou a lição da plebe. E aprendeu a ver. Ivo viu a ave? Ivo viu o ovo? Na nova cartilha Ivo viu a greve Ivo viu o povo. Lêdo Ivo, in Estação Central JOANA PORTELA Mãe e Revisora de Texto “Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Paulo Freire, Educação na Cidade. Não se chamam Ivo nem Eva – e nunca foram à escola primária – o homem feito e a senhora ci- gana que, com timidez envergo- nhada, me abordam no corredor do supermercado, pedindo que lhes leia e compare o preço dos comes e bebes: “Quanto custa a uva? Quanto custa o ovo? Quan- to custa a ave?” (Quanto custa o analfabetismo do povo?) Este episódio, que acontece com alguma frequência no meu quotidiano de século XXI, serve- -me de ponto de partida para re- flectir sobre os impactos sociais do analfabetismo e da iliteracia na vida de muitos portugueses. É um assunto que começou a suscitar a minha atenção qua- se por acaso, quando me cru- zei na net com a intervenção de Sandra Fisher-Martins in- titulada “O direito a compre- ender” (www.youtube.com/ watch?v=d4Vl6dPmv0w). Fiquei então a saber aquilo que ignorava: temos, em Portugal, uma taxa de analfabetismo que ainda ronda os 10% e – mais sur- preendente ainda – uma ilitera- cia/analfabetismo funcional (in- capacidade de compreender tex- tos escritos) que afecta 50% dos portugueses. Ou seja, metade da população que aprendeu a ler e escrever não consegue, de facto, entender a informação que lê em documentos necessários para o dia-a-dia – por exemplo, um ma- nual de instruções ou a posologia do paracetamol! Ora, estes nú- meros surpreendentes escondem consequências pessoais e sociais tão dramáticas como deitar para o lixo um cheque-cirurgia (para aquela operação há tanto espe- rada) por não se compreender aquilo que se lê. Depois de ouvir o caso pessoal do Sr. Domingos, referido por Sandra Martins, não podemos deixar de nos interro- gar, cívica e seriamente, sobre o que terá levado a que 80% dos doentes não tivessem utilizado os cheques-cirurgia que recebe- ram por carta. Quando as pesso- as não compreendem aquilo que lêem, ficam excluídas e prejudi- cadas. E até mais doentes. Afinal – pensei – também se aplica em Portugal o que aprendi ao trabalhar em Moçambique: há uma evidente correlação directa entre os níveis de alfabetização e os respectivos níveis de saúde dos indivíduos e suas famílias. É válido no meu país o que é válido para África: aumentando os ní- veis de literacia das pessoas, pro- movem-se melhores índices de saúde. Um estudo recente, divul- gado no Jornal i, confirma, pela negativa, este impacto directo na nossa sociedade: “Falta de conhe- cimento afecta a saúde de meta- de dos portugueses” (http://ion- line.pt/387945?source=social). Quanto (nos) dói a iliteracia, seja a do povo ou a da burguesia? Os factos, os números e as consequências pessoais da baixa literacia referidos na interven- ção “O direito a compreender” foram, para mim, tão perturban- tes quanto reveladores. Parece- -me, contudo, que este problema tem permanecido incógnito na sociedade, escondido e escureci- do por uma certa invisibilidade social e mediática, a que se alia a “ignorância” envergonhada – e sem voz – das pessoas menos letradas. Esta obscuridade si- lenciosa em torno do problema da iliteracia traz-me à memória uma magnífica canção de Rui Ve- loso/Carlos Tê: “A gente não lê”. Vale a pena escutá-la, pungente, na pronúncia nortenha de Isabel Silvestre (www.youtube.com/ watch?v=4BHdvDYyCVA) e re- cordar aqui alguns versos: Ai, Senhor das Furnas, Que escuro vai dentro de nós […] E do resto entender mal Soletrar assinar em cruz Não ver os vultos furtivos Que nos tramam por trás da luz […] De que nos vale esta pureza Sem ler fica-se pederneira Agita-se a solidão cá no fundo Fica-se sentado à soleira A ouvir os ruídos do mundo E a entendê-los à nossa maneira. A canção é de 1982, mas con- tinua dolorosamente actual para muitos portugueses. Só que ago- ra já não é tempo, não, de ficar sentado à soleira… “e do resto entender mal”. É tempo de voltar à escola, de fazer da educação de adultos um desígnio nacional e, em muitos casos, uma priorida- de pessoal. Que promissor seria se, no início do ano lectivo, em vez de lermos nos jornais “Mi- nistério da Educação fecha 311 escolas primárias”, pudéssemos ler um alento novo, como: “Es- colas primárias desactivadas re- abrem portas para a educação de adultos” ou “Escolas primárias fechadas renascem como pólos de educação popular”. Olhemos à nossa volta: temos milhares de escolas fechadas, temos milhares de professores no desemprego, temos milhares de portugueses com baixa literacia. Mas, se não lermos pela mesma cartilha e se aprendermos a ver: temos espa- ços, temos gente, temos uma ne- cessidade incógnita e ingente. Há aqui uma equação lógica que está por fazer, Sr. Ministro… Num exercício de pura ima- ginação (talvez até de wishfull thinking), idealizo para Setem- bro de 2016 um regresso às aulas bem diferente: D. Luísa, a mi- nha sogra, a voltar, receosa mas radiante, à escola da aldeia (há anos fechada) para completar a 4.º classe que há mais de meio século ficou por fazer. “Primeira lição”: na nova cartilha, Luísa leu, leda e leve, o verso vero do Ivo. Segunda lição: “A gente não lê”… mas sabe muito da vida: conhece as marés, os frutos e as sementeiras; os ofícios, o suão e os animais; o dialecto da terra. E também sabe “de boca em boca passar o saber / com os provér- bios que ficam na gíria”. Ora, todo este saber, ou o de manejar agulhas, máquinas e bandejas; vides, tijolos ou ovelhas, é mate- rial escolar necessário e suficien- te para, a partir desses contextos pessoais, co-construir novas car- tilhas, soletrar outras lições e ge- rar aprendizagens diferentes na educação de adultos. Terceira lição: viagem voca- bular e pessoal pela “Calçada de Carriche”, de António Gedeão: “Luísa, sobe / sobe que sobe / sobe a calçada.” D. Luísa não é desgraçada – pode subir outra calçada: a da educação ao longo da vida. Penúltima lição: Aprender até morrer!

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Artigo de opinião publicado no jornal "Correio do Vouga"

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Quarta-feira, 16 de setembro de 2015 | Correio do Vouga | 21

opinião

Aprender até morrer, lá diz o ditado

Primeira lição Na escola primáriaIvo viu a uvae aprendeu a ler.

Ao ficar rapazIvo viu a Evae aprendeu a amar.

E sendo homem feitoIvo viu o mundo,seus comes e bebes.

Um dia num muroIvo soletroua lição da plebe.

E aprendeu a ver.Ivo viu a ave?Ivo viu o ovo?

Na nova cartilhaIvo viu a greveIvo viu o povo.

Lêdo Ivo, in Estação Central

JOANA PORTELAMãe e Revisora de Texto

“Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Paulo Freire, Educação na Cidade.

Não se chamam Ivo nem Eva – e nunca foram à escola primária – o homem feito e a senhora ci-gana que, com timidez envergo-nhada, me abordam no corredor do supermercado, pedindo que lhes leia e compare o preço dos comes e bebes: “Quanto custa a uva? Quanto custa o ovo? Quan-to custa a ave?” (Quanto custa o analfabetismo do povo?)

Este episódio, que acontece com alguma frequência no meu quotidiano de século XXI, serve--me de ponto de partida para re-flectir sobre os impactos sociais do analfabetismo e da iliteracia na vida de muitos portugueses. É um assunto que começou a suscitar a minha atenção qua-

se por acaso, quando me cru-zei na net com a intervenção de Sandra Fisher-Martins in-titulada “O direito a compre-ender” (www.youtube.com/watch?v=d4Vl6dPmv0w).

Fiquei então a saber aquilo que ignorava: temos, em Portugal, uma taxa de analfabetismo que ainda ronda os 10% e – mais sur-preendente ainda – uma ilitera-cia/analfabetismo funcional (in-capacidade de compreender tex-tos escritos) que afecta 50% dos portugueses. Ou seja, metade da população que aprendeu a ler e escrever não consegue, de facto, entender a informação que lê em documentos necessários para o dia-a-dia – por exemplo, um ma-nual de instruções ou a posologia do paracetamol! Ora, estes nú-meros surpreendentes escondem consequências pessoais e sociais tão dramáticas como deitar para o lixo um cheque-cirurgia (para aquela operação há tanto espe-rada) por não se compreender aquilo que se lê. Depois de ouvir o caso pessoal do Sr. Domingos, referido por Sandra Martins, não podemos deixar de nos interro-gar, cívica e seriamente, sobre o que terá levado a que 80% dos doentes não tivessem utilizado os cheques-cirurgia que recebe-ram por carta. Quando as pesso-as não compreendem aquilo que lêem, ficam excluídas e prejudi-cadas. E até mais doentes.

Afinal – pensei – também se aplica em Portugal o que aprendi ao trabalhar em Moçambique: há uma evidente correlação directa entre os níveis de alfabetização e os respectivos níveis de saúde dos indivíduos e suas famílias. É válido no meu país o que é válido para África: aumentando os ní-veis de literacia das pessoas, pro-movem-se melhores índices de saúde. Um estudo recente, divul-gado no Jornal i, confirma, pela negativa, este impacto directo na nossa sociedade: “Falta de conhe-cimento afecta a saúde de meta-de dos portugueses” (http://ion-line.pt/387945?source=social). Quanto (nos) dói a iliteracia, seja a do povo ou a da burguesia?

Os factos, os números e as consequências pessoais da baixa literacia referidos na interven-ção “O direito a compreender” foram, para mim, tão perturban-tes quanto reveladores. Parece--me, contudo, que este problema tem permanecido incógnito na sociedade, escondido e escureci-do por uma certa invisibilidade social e mediática, a que se alia a “ignorância” envergonhada – e sem voz – das pessoas menos letradas. Esta obscuridade si-lenciosa em torno do problema da iliteracia traz-me à memória uma magnífica canção de Rui Ve-loso/Carlos Tê: “A gente não lê”. Vale a pena escutá-la, pungente, na pronúncia nortenha de Isabel Silvestre (www.youtube.com/watch?v=4BHdvDYyCVA) e re-cordar aqui alguns versos:

Ai, Senhor das Furnas,Que escuro vai dentro de nós

[…]E do resto entender malSoletrar assinar em cruzNão ver os vultos furtivosQue nos tramam por trás da luz[…]De que nos vale esta pureza Sem ler fica-se pederneira Agita-se a solidão cá no fundoFica-se sentado à soleira A ouvir os ruídos do mundo E a entendê-los à nossa maneira.

A canção é de 1982, mas con-tinua dolorosamente actual para muitos portugueses. Só que ago-ra já não é tempo, não, de ficar sentado à soleira… “e do resto entender mal”. É tempo de voltar à escola, de fazer da educação de adultos um desígnio nacional e, em muitos casos, uma priorida-de pessoal. Que promissor seria se, no início do ano lectivo, em vez de lermos nos jornais “Mi-

nistério da Educação fecha 311 escolas primárias”, pudéssemos ler um alento novo, como: “Es-colas primárias desactivadas re-abrem portas para a educação de adultos” ou “Escolas primárias fechadas renascem como pólos de educação popular”. Olhemos à nossa volta: temos milhares de escolas fechadas, temos milhares de professores no desemprego, temos milhares de portugueses com baixa literacia. Mas, se não lermos pela mesma cartilha e se aprendermos a ver: temos espa-ços, temos gente, temos uma ne-cessidade incógnita e ingente. Há aqui uma equação lógica que está por fazer, Sr. Ministro…

Num exercício de pura ima-ginação (talvez até de wishfull thinking), idealizo para Setem-bro de 2016 um regresso às aulas bem diferente: D. Luísa, a mi-nha sogra, a voltar, receosa mas radiante, à escola da aldeia (há anos fechada) para completar a 4.º classe que há mais de meio século ficou por fazer. “Primeira lição”: na nova cartilha, Luísa leu, leda e leve, o verso vero do Ivo.

Segunda lição: “A gente não lê”… mas sabe muito da vida: conhece as marés, os frutos e as sementeiras; os ofícios, o suão e os animais; o dialecto da terra. E também sabe “de boca em boca passar o saber / com os provér-bios que ficam na gíria”. Ora, todo este saber, ou o de manejar agulhas, máquinas e bandejas; vides, tijolos ou ovelhas, é mate-rial escolar necessário e suficien-te para, a partir desses contextos pessoais, co-construir novas car-tilhas, soletrar outras lições e ge-rar aprendizagens diferentes na educação de adultos.

Terceira lição: viagem voca-bular e pessoal pela “Calçada de Carriche”, de António Gedeão: “Luísa, sobe / sobe que sobe / sobe a calçada.” D. Luísa não é desgraçada – pode subir outra calçada: a da educação ao longo da vida.

Penúltima lição: Aprender até morrer!