aprender a ler entre cartilhas : civilidade, civilização e ... · identificar aqueles textos...

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493 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 493-511, set./dez. 2004 Resumo Este ensaio tem por objetivo identificar o lugar social ocupado pela cartilha de primeira leitura nos usos e costumes da história da moderna escolarização primária. O propósito do estudo é o de averiguar o entrecruzamento entre o livro didático e as práticas da escola primária, mediante a clivagem analítica do campo da História da Educação. Prescrição, constrição, controle e confron- to, o manual didático de ensino das primeiras letras propõe-se a destacar o contexto do letramento como alternativa para a oralidade do mundo infantil. Com tal pressuposto, o trabalho aqui desenvolvido debruça-se sobre a produção didática de um intelectual português de meados do século XIX, Francisco Júlio Caldas Aulete, abordando especificamente a Cartilha nacional de sua autoria. Esse livro de ensinar a ler e a escrever propunha um ensino, a um só tempo, simultâneo, calcado no aprendizado pa- ralelo da leitura e da escrita; e explicitamente contrário à prática da soletração – o que aproximava o modo de ensino prescrito por Caldas Aulete da marcha do que posteriormente se caracte- rizaria como método analítico de alfabetização. Finalmente, pode-se compreender que o estudo da Cartilha nacional – a des- peito de seu caráter tópico – remete a aspectos sócio-históricos de singular relevância, posto que havia ali um rascunho nítido de um projeto de país: civilidade, civismo e civilização eram os dísticos que norteavam a proposta do ensino no rito inicial da escola primária. Palavras-chave Cartilha – Livro didático – História da educação – Alfabetização. Correspondência: Carlota Boto Alameda Franca, 260 apto 102 01422-000 – São Paulo – SP e-mail: [email protected] Aprender a ler entre cartilhas: civilidade, civilização e civismo pelas lentes do livro didático.* Carlota Boto Universidade de São Paulo * O presente trabalho integra o Proje- to Temático Educação e Memória: organização de acervos de livros di- dáticos, o qual – sob a coordenação da Profª. Drª. Circe Bittencourt – con- ta com o auxílio financeiro da Fapesp.

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493Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 493-511, set./dez. 2004

Resumo

Este ensaio tem por objetivo identificar o lugar social ocupadopela cartilha de primeira leitura nos usos e costumes da históriada moderna escolarização primária. O propósito do estudo é o deaveriguar o entrecruzamento entre o livro didático e as práticasda escola primária, mediante a clivagem analítica do campo daHistória da Educação. Prescrição, constrição, controle e confron-to, o manual didático de ensino das primeiras letras propõe-se adestacar o contexto do letramento como alternativa para aoralidade do mundo infantil. Com tal pressuposto, o trabalhoaqui desenvolvido debruça-se sobre a produção didática de umintelectual português de meados do século XIX, Francisco JúlioCaldas Aulete, abordando especificamente a Cartilha nacional desua autoria. Esse livro de ensinar a ler e a escrever propunha umensino, a um só tempo, simultâneo, calcado no aprendizado pa-ralelo da leitura e da escrita; e explicitamente contrário à práticada soletração – o que aproximava o modo de ensino prescritopor Caldas Aulete da marcha do que posteriormente se caracte-rizaria como método analítico de alfabetização. Finalmente,pode-se compreender que o estudo da Cartilha nacional – a des-peito de seu caráter tópico – remete a aspectos sócio-históricosde singular relevância, posto que havia ali um rascunho nítido deum projeto de país: civilidade, civismo e civilização eram osdísticos que norteavam a proposta do ensino no rito inicial daescola primária.

Palavras-chave

Cartilha – Livro didático – História da educação – Alfabetização.Correspondência:Carlota BotoAlameda Franca, 260 apto 10201422-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

Aprender a ler entre cartilhas: civilidade, civilização ecivismo pelas lentes do livro didático.*

Carlota BotoUniversidade de São Paulo

* O presente trabalho integra o Proje-to Temático Educação e Memória:organização de acervos de livros di-dáticos, o qual – sob a coordenaçãoda Profª. Drª. Circe Bittencourt – con-ta com o auxílio financeiro da Fapesp.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 493-511, set./dez. 2004494

Abstract

The present essay seeks to identify the social locus occupied bythe literacy primer in the customs and practices of the history ofmodern primary schooling. The purpose of the study is to examinethe intermingling between the schoolbook and primary schoolpractices through the analytical cleavage of the field of History ofEducation. Direction, constriction, control and confrontation, theschool manual for teaching literacy proposes to highlight thecontext of literacy as an alternative to the orality of the world ofthe child. Under such premise, this work investigates the didacticproduction of a mid-19th century Portuguese intellectual namedFrancisco Júlio Caldas Aulete, more specifically his Cartilha Naci-onal. That literacy primer proposed a teaching that was, at oneand the same time, simultaneous (since all pupils should be taughttogether and indistinctly, as if they were one), founded on theparallel learning of reading and writing, and explicitly against thepractice of spelling – a feature that brought his proposal close tothe path later characterized as the analytical method of teachingliteracy. Finally, one can understand that the study by the CartilhaNacional – despite its topical character – points to socio-historicalaspects of great relevance, given that one can find in thatschoolbook a clear blueprint for a country: civility, civism andcivilization were the motto that directed the proposal for teachingin the initial rite of primary school.

Keywords

Primer – Schoolbook – History of education – Literacy.Contact:Carlota BotoAlameda Franca, 260 apto 10201422-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

Learning to read between primers: civility, civilizationand civism through the lenses of schoolbooks

Carlota BotoUniversidade de São Paulo

* The present work is part of theThematic Project entitled “Education andMemory: organization of schoolbookcollections”, which is coordinated byProfessor Circe Bittencourt and issponsored by Fapesp.

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É muito louvável o arranjo e a ordem queAugusto guarda em todas as suas coisas.Quando necessita de algum livro ou outroobjeto, vai buscá-lo, e, depois de se servirdele, torna a pô-lo no seu lugar. É muitoasseado no corpo e no vestido. Logo que selevanta, lava-se e penteia-se. É ele que esco-va o fato e o guarda. Quando escreve a li-ção, nunca suja os dedos com a tinta, nemdeita borrões no papel. Amélia é o contráriode seu irmão. Nunca sabe onde tem os livrosnem a escrita. É necessário que sua mãe lheesteja sempre a repetir: Amélia, vai lavar acara; vai pentear-te. Uma hora depois de avestirem de lavado, já tem o fato tão amar-rotado e sujo que é mesmo uma vergonha, eàs vezes até com o seu rasgão. Anda semprecom os dedos cheios de tinta. Não faz escri-ta em que não deite pelo menos dois bor-rões. Que diferença de irmãos! Ele, na esco-la, premiado pelo professor com mui lindasestampas, e em casa pelos pais com muitosbonitos. Ela, pelo contrário, na escola repre-endida pela mestra, e em casa pela mãe, eameaçada já de a prenderem durante as ho-ras de recreio num quarto escuro. (FranciscoJúlio Caldas Aulete)

Introdução

O professor primário não pode hojefalar em voz alta (está em desuso a idéia); mascertamente ele pergunta a si mesmo: devo ounão usar “a cartilha”; e por que devo ou nãofazê-lo? Historiadores da educação interrogamo tempo que tomaram por seu desafio: comose poderá reconstituir o percurso das produ-ções editoriais dirigidas à escolarização e daspráticas da primeira leitura escolar? Por outraspalavras, como proceder à reconstituição dealguma prática leitora e escrita mediante oestudo das cartilhas escolares? Finalmente, oindivíduo curioso poderia questionar: de ondevem a palavra cartilha? Muito provavelmente —principiando por essa última questão — poder-

se-ia dizer que o termo cartilha constitui umdesdobramento da palavra “cartinha” que, porsua vez, era usada — em língua portuguesa —desde o princípio da Idade Moderna, paraidentificar aqueles textos impressos cujo propó-sito explícito seria o de ensinar a ler, escrevere contar. Apresentavam usualmente o abece-dário, a construção das palavras e suas subdi-visões, alguns excertos simples com conteúdosmoralizadores, quase sempre precedidos deexcertos de orações ou de salmos, posto que areligiosidade era a marca daquele ensino primá-rio que, pouco a pouco, se constituía. A pala-vra cartilha, que vem de cartinha, remonta, porseu turno, às situações mais corriqueiras e fre-qüentes: até o século XIX, boa parte (muitasvezes a maioria) dos textos escritos que ascrianças traziam de casa para utilizá-los naescola como materiais de ensino da leituraeram manuscritos: dentre esses, as cartas eramuma fonte privilegiada... Muitos eram os meni-nos e meninas que, em Portugal, aprenderam aler inicialmente mediante a leitura de cartinhas...À semelhança e por analogia, elabora-se — paraos primeiros textos impressos com a finalidadealfabetizadora — a expressão “cartinha de lei-tura”. Daí vem à cartilha.

Outra pergunta acima formulada éaquela que se põe o historiador da educação:como efetuar a relação entre o conhecimentohistórico das práticas de ensino e o livro didá-tico (Bittencourt, 1993), explicitamente no casodas cartilhas? Porque a cartilha é, talvez, ocompêndio escolar que permanece conosco pormais tempo. Remetendo-nos ao nosso própriotrajeto de vida, lembramo-nos do folhear desuas páginas, por vezes das cores das letras decada lição, do formato das ilustrações, da tex-tura das páginas, do suporte impresso quesustenta o texto. Passamos simbolicamente,simplesmente por percorrer aquele primeiro li-vro, da condição de analfabetos à de leitores.Nas cidades, lembramo-nos dos primeiros car-tazes que fomos capazes de ler sozinhos (e emvoz baixa) na rua. Tais recordações nos assal-tam exatamente porque, desde então, jamais

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nos pudemos furtar à leitura; mesmo que de-sejemos fugir, somos por ela assaltados. Crian-ças, imaginávamos que era a cartilha quem nosensinava, paulatinamente, a ler. Daí sua prima-zia entre lugares de memória.

O professor primário, por seu turno,pergunta a si próprio: estarei obtendo umaprática de magistério mais crítica, mais progres-sista e mais eficaz simplesmente porque nãouso a cartilha para alfabetizar meu aluno? Exis-te uma relação de causa e efeito entre o uso dacartilha e a fatal e inarredável situação de umaprática de ensino obsoleta, tradicional, ultra-passada? Os alunos construtivistas, dos tempossem cartilhas, aprendem mais, melhor e em umtempo mais curto?

Evidentemente, embora herdeiro daque-le tríplice questionamento, supramencionado, opresente estudo tem por objetivo refletir, doponto de vista da História da Educação, acercados sentidos inscritos no texto de cartilhas. Ahipótese desenvolvida é a de que o livro didá-tico, por sua produção e pela amplitude de seuuso, deixa rastros emblemáticos para se pensaro tema da inscrição dos saberes da escola pri-mária em sua constituição histórica, no âmbitoda atmosfera mental das sociedades letradas.Com tal propósito, tomamos por recorte a situa-ção portuguesa, e especificamente a produçãodidática de um renomado intelectual de meadosdo século XIX – Francisco Júlio — que a dadaaltura torna-se bastante conhecido no Brasilcomo título de seu próprio dicionário: CaldasAulete, o qual, por longa duração, constituiu umadas mais renomadas dentre as obras de referên-cia no gênero. O dicionário Caldas Aulete eviden-cia — por seu uso, por sua circulação e pela pre-sença constante nos acervos das bibliotecas doshomens letrados deste país — o dinâmico proces-so de entrecruzamento entre culturas que, certa-mente, entre Portugal e Brasil — em algum mo-mento — atingiu o campo editorial. Todavia, paraalém de seu dicionário, pouco se conhece doautor.

Francisco Júlio Caldas Aulete (1823-1878) foi professor da Escola Normal de Marvila,

da Escola Acadêmica e do Liceu Central de Lis-boa (Nóvoa, 2003, p.118). Pela proeminência detais instituições, pode-se inferir que se tratava deum professor muito provavelmente destacadopor sua formação. Como sujeito envolvido coma formação de educadores, Caldas Aulete dedi-cou parte de sua energia didático-pedagógicapara a elaboração de material escolar, cujo usopoderia se constituir como um fator que, a umsó tempo, viesse a tornar-se referência de apon-tamento para aprimorar a aula ministrada peloprofessor e oferecer melhores condições deaprendizado aos alunos em distintos e sempredinâmicos grupos-classe. A preocupação com oêxito no processo de ensino-aprendizado é bas-tante acentuada nos manuais escolares de usodidático produzidos pelo educador.

Nos anos 60 do século XIX, Caldas Auletepublica sua Grammatica nacional (Nóvoa, 2003,p.119); editando, posteriormente, em 1875, suafamosa Selecta nacional — curso prático de lite-ratura portuguesa (Aulete, 1882). Explicitamente,sua produção denotava sua ocupação comohomem de letras perante a formação de umacultura erudita, no cômputo da norma culta nalíngua portuguesa. Era necessário formar o indi-víduo para a construção do discurso e para o usoelaborado das combinações lingüísticas autoriza-das pela gramática nacional. Além disso, seriaoportuno que o cidadão estivesse hábil para iden-tificar — mediante excertos da produção literáriaportuguesa previamente recortados, selecionadose compendiados — autores e construções lingüís-ticas que o aproximassem do que melhor houves-se sido produzido pelo campo da literatura, to-mando por empréstimo palavras extraídas deobras consideradas de excelência, de obras dosgrandes autores.

Ensino inicial da leitura e daescrita em Portugal do séculoXIX: o estado da arte

No ano de 1854, em artigo intitulado“Estudos sobre os diferentes métodos de ensinodo ler e escrever” — publicado no periódico

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intitulado O Panorama —, J. M. Latino Coelho(1825-1891) destacava a precariedade na qualpermaneciam as escolas do ler, escrever e con-tar, obstaculizando o próprio progresso da ins-trução no país. Latino Coelho era escritor, polí-tico, jornalista e um propagandista da causa dainstrução popular. Dotado de uma singular cul-tura enciclopédica (Nóvoa, 2003, p. 371), publi-ca alguns livros didáticos, que expressavam suainquietação quanto ao que acreditava ser a ca-rência de métodos e técnicas adequados aoensino no país. Naqueles meados do século XIXportuguês — ao que tudo indica — persistia apredominância do uso de abecedários e manus-critos para o ensino da leitura e da escrita, talcomo ditava a tradição herdada do século XVIII,naquilo que Rogério Fernandes (1994) identifi-ca como “os caminhos do ABC”. Com o fito deproceder à propalada regeneração do país tidojá por decadente diante da situação européia,tratava-se — de acordo com os teóricos da edu-cação — de valorizar a cultura letrada, impressa,tipográfica, como parâmetro essencial do pro-cesso de esclarecimento, mediante o ensinoadequado dos procedimentos norteadores doaprendizado da leitura, da escrita e do cálculo.

Em artigo escrito para a Revista UniversalLisbonense, “Estado da instrucção primária noconcelho de Alpedrinha no ano lectivo de 1848-1849”, F. A. Rodrigues de Gusmão (1849, p. 491)assinalava a carência de manuais específicos parauso do professor no preparo de suas aulas, na or-ganização de sua rotina diária. Ao referir-se aoestado da instrução em conselhos atrasados dopaís, o autor expressa seu parecer crítico:

Consideramos a Instrução Primária por umadas suas faces: freqüência das escolas, ouextensão ou da instrução; é mister olhá-lapor outra — aproveitamento dos alunos, ouintenção da instrução. É doloroso ter de ex-por, sobre este objeto, amargas verdades;obedecemos, todavia, aos ditames da nossaconsciência, revelando-as. Os professorescumprem frouxamente seus deveres; com airregularidade da paga das remunerações

desculpam a sua negligência. Em verdade oEstado não tem direito a exigir dos professo-res bom serviço, se lhes não dá em tempoconveniente o ordenado, que lhes prometeu;é um contrato bilateral, que obriga reciproca-mente. (...) Além disso, os professores diri-gem-se no ensino por mero arbítrio; não têminstruções, que regulem a polícia e a discipli-na das escolas, nem há quem as fiscalizeconvenientemente. Em todas as nações daEuropa há manuais para mestres de meninos;em Portugal, infelizmente, ainda não se pu-blicou este livro indispensável, no qual de-vem expor-se, além de outras noções que nãomencionamos por brevidade, as matérias deensino e maneira de ensiná-las; a classificaçãodos alunos; a distribuição das lições, e exercí-cios de Aritmética, de Gramática e Geografia,de História Sagrada e História Natural, pormeio de estampas e objetos materiais, etc.;finalmente os princípios gerais de educaçãofísica, da educação moral e da educação in-telectual, que se consideram mais úteis a to-dos os pais de famílias e mestres, aplicandoestes princípios à educação dos meninos. Senão se pagar pronta e regularmente aos pro-fessores; se não se lhes der instruções clarase positivas sobre a maneira de cumprir seusdeveres; se não se definirem bem estes deve-res, consignando-os em um diretório parti-cular; se não houver, finalmente, quemsuperintenda os professores, visitando as es-colas em épocas indeterminadas (...); debal-de se fatigarão os nossos estadistas em orga-nizar, e promover a instrução há de sempremancar infelizmente. (Rodrigues de Gusmão,1849, p. 491)

Nota-se aqui a preocupação do articu-

lista com a inexistência de orientação para osprofessores a fim de traçar diretrizes em relaçãoàquilo que se poderia entender como o conjun-to dos “saberes elementares escolarizados”(Hébrard,1990, passim). Deseja-se prescrevertambém sugestões que impulsionassem a uni-dade da escola, tendo em vista dois objetivos

498 Carlota BOTO. Aprender a ler entre cartilhas: ...

matriciais: a eficácia do intuito de ensino dasprimeiras letras — o ler, o escrever e o contar —além da observação de valores morais. Tratava-se de um período marcado por intenso fervilharde debate e circulação de idéias acerca dotemário da leitura, da utilização pela escola dotexto impresso; até para espraiar códigos deconduta profissional passíveis de conferir uni-formidade à atuação do professor em sala deaula. Naquela altura, atribuía-se substantivavisibilidade aos jornais e periódicos, tidos porveículos estratégicos de divulgação da palavraescrita, e com ela da cultura letrada, “civiliza-da”. Substituir a oralidade nas práticas culturaisexigiria, aos olhos do tempo, o uso intensivo daimprensa, que aparecia aos contemporâneoscomo concorrente do livro.

Vista muitas vezes com entusiasmo, aimprensa, com todo seu apelo à leitura, poderiatornar-se, entretanto, veículo perigoso de ir-radiação e circulação de idéias más. É assim queautores da época, ciosos por acoplar instruçãoe virtude, nos próprios jornais onde escrevem,costumavam precaver seus leitores contra a lei-tura desavisada, espontânea, convidativa porqueatraente... Submergir no mundo desconhecidodo escrito poderia representar um ato de subver-são da ordem e de questionamento das práticascorriqueiras e das instituições tidas por naturais.Por ser assim, convida-se o leitor-interlocutor aproceder à gesta da leitura reflexiva que, sob talestatuto, exigia como imperativo o recorrenteafastamento da atração exercida por leituras frí-volas, em prol do que se supunha ser o estudosério para formação de hábitos. Tal concepçãodo lugar social da leitura possibilitaria o pensarpor si próprio, atividade derivada, no caso, daprópria atitude de desconfiança perante as ten-tações exercidas pelo texto impresso, como veí-culo material do espraiar da ciência (Catani,1990, passim). O progresso da civilização sópoderia ser acatado se viesse acompanhado doesforço de moralização. Aqui estaria a obraprecípua da escola e do ritual da alfabetização.Sob a mesma orientação, havia intenso entusi-asmo com um jornalismo de cunho pedagógico,

que pretendia a divulgação dos conhecimentosúteis,1 o que, por sua vez, coincidirá com a in-tensificação do processo de editoração de com-pêndios escolares.

O livro escolar principia seu reinadonas escolas portuguesas. Verifica-se nesse pe-ríodo uma profusão de iniciativas que, ancora-das por suportes de textos didáticos, preten-diam trazer sistematização, eficácia, e mesmocientificidade àquela escola até então camba-leante. Objetivava-se com isso altear a instru-ção como um dispositivo regenerador do atra-so, capaz de atuar em direção da superação dadecadência daquele reino, outrora glorioso.Acerca da produção editorial de textos elabo-rados para o uso da escola, já anotava o Rela-tório Anual de Inspeção às Escolas, elaboradopelo Conselho Superior de Instrução Pública,no ano letivo de 1856-1857:

É notável a variedade de livros elementaresque se usam nas escolas, e não menos aimpropriedade e pouca correção com quemuitos deles são escritos; e muito conviriaque o governo de V. M. tomasse providên-cias para a melhor escolha e uniformidadede catecismos e compêndios, facilitando-osa todos por um preço módico e mandan-do-os fornecer gratuitamente aos meninospobres. (Gomes, 1985, p. 246)

É notória a alusão às obras escolares

também na imprensa da época, que ora divulga-va, ora comentava o conjunto de manuais,cartilhas e abecedários amplamente analisados.

1. Nessa trilha, destacar-se-ia o pioneirismo de Alexandre Herculano, oidealizador do periódico O Panorama. Herculano pretendia que a mesmarevista assumisse o lugar explícito de divulgadora de conhecimentos úteis,julgando que sua primordial tarefa seria a de derramar o conhecimentosobre camadas pouco letradas da população. Nessa medida, o tom enci-clopédico da iniciativa deixava entrever sua herança da atmosfera dasLuzes, onde o lugar da imprensa passa a ser pensado especificamentecomo a estratégia privilegiada de formação da opinião pública esclarecida;ou de um espírito público. O editorial do dia 6/1/1837 declara explicita-mente o objetivo daquele periódico: “derramar a instrução, fazendo descera literatura e a ciência ao nível das inteligências comuns: para isto erapreciso conhecer primeiro o que o espírito do povo comportava de alimentointelectual: era preciso saber qual o estado e a tendência da civilizaçãoentre nós” (O Panorama, , , , , 6/1/1837).

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Como exemplo, cita-se artigo de José de Torres(1853) — intitulado “instrução elementar” e pu-blicado no volume X do periódico O Panorama,no ano de 1853. O autor, à época, era colabo-rador d’ O Panorama e nesse jornal costumavaescrever sobre temas atinentes à educação, des-tacando a necessidade de se melhorar a quali-ficação do professorado, como dispositivo es-sencial para fazer florescer a escola primária.José de Torres (1853) sublinha também o lugardidático e a relevância pedagógica do compên-dio escolar, como instrumento privilegiado parauso do professor; especialmente voltado para obom preparo e ordenação de suas aulas. Daí anecessidade de se proceder com atenção e su-ficiente cuidado para a escolha daquilo queTorres (1853) nomeia livro da infância.

De tantas cartas, de tantos expositores, detantos métodos facílimos, que por aí andamcom pregão mercenário desafiando a boa fédo público descuidado, qual deles, qual de-las, pode dizer-se que não haja suplício dainfância, banco de areia em que este pobrebaixel se enterra, se estorce, se desconcerta,e que só com a força de embates e choquesviolentos se transpõe? E nem o perigo destequase naufrágio é tudo! Feridas insanáveisficam depois de tanto bater e combater emvão: fica a impaciência, a desafeição ao es-tudo, impressões que, em ânimos tenros, sefixam e consubstanciam facilmente, e quedecidem da sorte de toda uma vida, de todauma geração talvez! (Torres, 1853, p. 286)

À partida, José de Torres refere-se aomalogro dos métodos e materiais utilizados àépoca para a alfabetização por aquelas queeram tidas como as melhores e mais utilizadasdas cartilhas editadas em Portugal. Alude-seexplicitamente — ainda que para exarar parecercrítico — à Grammatica elaborada no século XVIpor João de Barros (1996), ao livro de ensinoda leitura intitulado O expositor portuguez, deautoria de Luiz Francisco Midosi (1846) e aoMethodo facillimo para aprender a ler tanto a

letra redonda como a manuscrita no mais cur-to espaço de tempo de autoria de EmílioAcchiles Monteverde (1859). Objetivando deli-mitar os fundamentos precisos de uma culturaespecificamente escolar, o autor dialoga nãoapenas com a produção editorial de seu tem-po, mas também, ao que parece, com a políti-ca que regia o universo do livro escolar. Suge-re, pois, na seqüência, que o primeiro livro deleitura fosse um tratado de deveres, assumindocom isso o ofício de moralização da escolacomo atitude voltada para a facilitação doaprendizado. O caráter enciclopédico do textoseria também recomendado, sob a condição devir acompanhado de uma linguagem acessívelao universo simbólico da infância. Mais umavez, indiretamente, Torres alude à obra deMonteverde, desta vez não à cartilha, mas aoManual encyclopedico para uso das escolasd’instrução primária (1843). Este era, prescritopor Monteverde, como o livro didático subse-qüente à sua cartilha. Em ambos os casos, eramduas das mais lidas obras escolares em Portu-gal do século XIX. As palavras assinaladas commaior acento no discurso de José de Torres —indiretamente tomando como interlocutora explí-cita a produção didática de Monteverde — reve-lam o debate e a disputa de territórios no tocan-te aos protocolos editoriais voltados para a pro-dução editorial didática daquele tempo:

Não conviria que o primeiro livro com quea puerícia fizesse conhecimento fosse umtratado de deveres, que pela clareza dasubstância e do formulário facilmente selhe imprimisse n’alma? Até aqui, até estelivro leitura simples. Em seguida outra tran-sição; já estudo em enciclopédia manual,que tanto obrigasse a gramática, aritméticageografia, cronologia e história, como aosdemais elementos de ciências naturais,morais e filosóficas; e então a instruçãoprimária teria, em tempo mais curto e comtrabalho mais leve, alguma coisa de real esignificativa na civilização e adiantamentosocial. Para fazer este livro de deveres, e a

500 Carlota BOTO. Aprender a ler entre cartilhas: ...

enciclopédia que ainda não temos (pois osque se apontam tais são de erudição dema-siadamente pretensiosa, e até muitos mes-tres haverá que os não entendam) não fal-tam homens competentes: falta o favorcom que mais se acende o engenho. Prê-mio de duzentos mil réis estabeleceu aoscompêndios o decreto de instrução públicade 20 de setembro de 1844; mas nem ain-da apareceu programa, nem se abriu con-curso para essa tísica remuneração! Não háde ser assim que iremos sentar-nos nopantheon do mundo! Como? Se nem dili-gência dos altos, nem favor aos que debai-xo trabalham! Quereis saber o que a acade-mia francesa faz para aproveitar e exercitaros bons espíritos? Até a umas leiturinhas,historietas, conferiu o prêmio de seis milfrancos...! Aprendei dos outros e cá tereis oque eles têm. (Torres, 1853, p. 286)

A língua materna como fatorimprescindível de identidadenacional

Júlio Caldas Aulete (1823-1878), natu-

ral de Lisboa, colega e amigo de José Maria La-tino Coelho (1825-1891), escreve com ele suaEnciclopédia das escolas, fora professor da es-cola normal primária de Marvilla, da EscolaAcadêmica e do Liceu de Lisboa, obtendo —como se vê — intensa experiência prática noexercício do magistério. Seus estudos predile-tos versavam também sobre instrução primáriapopular. Foi deputado às Cortes durante váriaslegislaturas e em sua carreira obteve aprovaçãodo Conselho Superior de Instrução Pública paramuitas de suas obras; dentre as quais destaca-ram-se a Selecta Nacional: curso pratico delitteratura portugueza e a Cartilha Nacional:methodo legographico para aprender simulta-neamente a ler, escrever, ortographar e dese-nhar. Além disso, Caldas Aulete organizou umnovo e rigoroso dicionário de língua portugue-sa; o qual teria sido muito usado também noBrasil até meados do século XX. Sua atuação

como educador era reconhecida e provavel-mente valorizada pelos poderes constituídos àépoca, posto que já o Relatório de Inspeçãodirigido às escolas públicas durante o ano le-tivo de 1866-1867 (MR 1056) indagava expli-citamente dos professores quanto ao métodode ensino adotado se estes se valiam ou nãodo método legográfico, o qual, por sua vez,estaria em Portugal — como se — disse, repre-sentado pela Cartilha nacional.

O Relatório de Inspeção dirigido às es-colas do Estado, que havia sido elaborado em1866, impresso pela Imprensa Nacional, continhaum item nomeado “regimen, disciplina e políciada escola” (MR 1056). Ali havia espaço para oprofessor pronunciar-se quanto aos métodos eaos modos de ensino. No quesito relativo ao“método de ensinar a primeira leitura”, consta-vam as seguintes alternativas, que vinham jáexplicitadas: “soletração antiga; soletração mo-derna; silabação fônica; método português;método legográfico”. A Cartilha de Caldas Auleteera, em Portugal, muito provavelmente a únicaque, na ocasião, aludia ao dito “métodolegográfico”. Além dessa referência, portanto,explícita, havia outras, particularmente na folhareservada para “livros usados pelos alunos coma declaração do número de alunos que usamdeles”. Dentre os onze livros ali previstos, exis-tia, ainda, a Encyclopedia das escolas de ins-trucção primária que Caldas Aulete elaborara emco-autoria com Latino Coelho. Isso de algumaforma representava a boa inserção política e fáciltrânsito do autor, como homem público, noConselho Superior de Instrução Pública.

A Selecta nacional: curso pratico delitteratura portuguesa (Aulete, 1882) era umacoletânea, dirigida ao curso secundário, destina-da essencialmente a exercícios de leitura, deanálise e de composição, como o próprio autordeclara na Introdução. Procura expor para oaluno trechos verdadeiramente selecionados dosgrandes escritores, que teriam brindado com suasobras a própria língua portuguesa, no parecerde seu tempo. Ao lê-los, o estudante poderia, aum só tempo, tomar conhecimento do assunto

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e fruir o estilo, o que o ajudaria a se expressarmelhor, fosse verbalmente, fosse por escrito.Ninguém melhor do que o próprio autor paradefinir sua obra e, na seqüência, traçar diretrizesacerca do método que se deveria empregar aoadotá-la. Caldas Aulete sugere, em todos os ní-veis, o que chama redação oral:

Estamos convencidos de que o ensino dalíngua materna se deve começar nas esco-las elementares com o ensino do ler, gra-duando-se pela seguinte ordem: ao estudodo ler e do escrever, se há de associar o deortografar; ao da leitura corrente as noçõesde gramática, os exercícios de redação orale as breves composições por escrito, emestilo singelo, tão recomendadas nas ins-truções do governo aos professores. Paraeste fim, coordenamos três livros que for-mam o sistema completo deste nosso pen-samento: 1) Um livro que intitulamos Mé-todo legográfico ou Cartilha nacional, emque se ensina simultaneamente a ler, a es-crever, a contar e a ortografar, por um pro-cesso tão natural e fácil, que em muitopouco tempo as crianças com grande apra-zimento adquirem a prática destas discipli-nas. 2) Uma Gramática, que também deno-minamos Nacional, dividida em duas partes,sendo a primeira destinada para as escolasprimárias e a segunda para uso dos liceus.Neste compêndio se encontram também osprocessos que o professor há de empregarno estudo das palavras e das frases, e nosexercícios de análise e composição. 3) UmaSeleta dividida em três volumes, contendoo primeiro volume, grande porção de tre-chos apropriados, pela simplicidade do es-tilo e aprazível do assunto, para os exercí-cios de leitura, de redação oral, de compo-sição por escrito e de análise nas escolaselementares; ficando os trechos de estiloornado contidos no presente volume, e osexcertos do segundo e os do terceiro, parao estudo da língua materna nos liceus. Omodo por que se hão de fazer os exercícios

de redação oral nas escolas elementares éo seguinte: escolhido pelo professor para alição de leitura de um trecho, que deverá serdos mais fáceis e dos que as crianças pos-sam ter maior desejo de ler, o professor farárepetir a leitura dele tantas vezes quantassejam necessárias para o pronunciarem comclareza e inteligência. Depois convidá-las-á aque refiram oralmente o assunto do trecho.O professor há de animá-las e auxiliá-lasmuito neste exercício. Quanto maior o nú-mero de palavras e frases empregarem dotexto escolhido, mais profícuas serão estasnarrações. O professor nunca se deve mos-trar enfadado de ouvir seus juvenis exposi-tores, para assim conseguir que percamcerta timidez que, em geral, as crianças ma-nifestam quando têm de se referir a algumfato perante pessoas que julgam superio-res. Devem-se se escolher sempre trechos,que, pelo assunto e pela elegância do esti-lo, as exaltem e entusiasmem, e lhes desen-volvam veementes desejos de serem gran-des pela virtude e pelo trabalho. Tirai dasmãos inocentes das crianças essas enciclo-pédias pedantes que elas não entendem, eque não servem mais que para lhes criar otédio e o aborrecimento à escola e ao estu-do. (Aulete, 1882, p. IX-XI)

Dirigida aos professores e aos estudan-

tes do curso secundário, a mesma referida Se-leta nacional (Aulete, 1882) apresentava-se emsua folha de rosto como obra direcionada eaprovada pelo governo para uso das escolasprimárias e dos liceus. Na introdução do traba-lho, contudo, Caldas Aulete pontua que o pú-blico ao qual mais explicitamente se dirigiaaquele compêndio era contemplado pelas ca-deiras de língua e de literatura portuguesa dosinstitutos de ensino secundário, posto que otexto teria sido inclusive elaborado em confor-midade com os programas dirigidos a esse ní-vel da escolarização. Ressaltando sempre anecessidade de conferir um caráter gradual doensino, Caldas Aulete conclui a introdução do

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seu livro com a divisa que, segundo ele, deve-ria ser o ponto de honra de qualquer professorde língua materna: “gramática pouca, exercíciosmuitos” (Aulete, 1882, p. XII).

A Selecta nacional constituía um agre-gado eclético de parábolas do evangelho, con-tos, narrações morais, descrições extraídas de ro-mances clássicos, definições de sentimentosdadas pelos grandes escritores da língua, lendas,alegorias, biografias de vultos e tipos nacionais,provérbios, pensamentos e sentenças, além deinúmeros outros ditos de religião, de filosofia, demoral e de ciência. Além disso, havia tambémtemas como os dos tipos nacionais — sendo aquidescrito, com autoria de Latino Coelho, o jano-ta de Lisboa como um dos tipos nacionais. Fi-nalmente, existiam duas seções cujo objetivo erao de veicular textos biográficos tidos comoexemplares de conduta para as novas gerações:Marquês de Pombal, Padre Antônio Vieira, Júliode Castilho, José Bonifácio de Andrada e Silva eoutros vultos cuja história de vida deveria serapreendida como modelo e referência para asgerações vindouras. O livro didático era entãocriteriosamente dividido, de maneira que as uni-dades constituíssem verdadeiramente eixostemáticos, que facilitassem ao professor o usodidático do compêndio.

Após a morte de Caldas Aulete, a reim-pressão da obra passou a contar com um pró-logo de Thomas de Carvalho, intitulado “Juízocrítico da Selecta nacional de literatura”. O co-mentarista destaca, naquela oportunidade, apropriedade dos trechos selecionados por Cal-das Aulete e recorda que era intenção do tra-balho e do governo, quando o aprovou, a exis-tência de um cunho moral extremamente pre-sente nos trabalhos escolares. Recordando queo livro seria apropriado independentemente daidade do seu leitor e do grau de instrução comque este efetivamente contasse, Carvalho co-menta que a instrução graduada era aquilo deque mais necessitava a escola portuguesa.

Assim, pois, o crítico ao compor uma Seletanão há de simplesmente ser um jardineiro,

mas um botânico. Cumpre-lhe não confun-dir as espécies, para tecer o seu florilégio.Além disto, se o livro tem de servir nas es-colas, outra preocupação maior estará pre-sente ao espírito do coletor, para não incutirno ânimo dos alunos inexperientes nem er-ros de ciência difíceis de extirpar e esquecerposteriormente, nem erros de moral que lhespervertam e corrompam o coração. O gover-no, facultando ao povo os meios de se ins-truir, não pretende somente abrir-lhe e or-nar-lhe a inteligência, mas ensiná-lo a res-peitar e venerar as leis divinas e humanas(Carvalho apud Aulete, 1882, p. V)2

O primeiro excerto de autoria de Antô-nio Feliciano de Castilho era assim intitulado:“preceitos para escrever em bom portuguez”(Castilho apud Aulete, 1882, p. 1). Ali, logo aprincípio, dizia-se que a língua que falamos eque devemos escrever é composta por umatríplice interação entre o vocabulário, a gramá-tica e os princípios da retórica:

(...) as palavras, o seu mútuo e legítimo acor-do e o privativo modo da sua colocação; vo-cabulário, gramática e retórica inicial. Minis-tra a primeira os materiais com que se há deedificar o discurso; a segunda é a mão deobra que os liga e trava; a terceira a arquite-tura e ornamentação, que, pela maneira decolocar os materiais, realça em cada um, pe-las suas relações com os outros, ora a força,ora a graça, ora a graça e a força juntamente.Destas três partes constitutivas da linguagem,a mais incontrastavelmente progressiva é ovocabulário. Crescem as ciências, cresce comas ciências; crescem as artes, cresce com asartes; crescem o luxo, o comércio, a sociabi-

2. Outro livro que compunha esse mesmo modelo de coletânea de tre-chos selecionados dos clássicos era o Logares selectos dos classicosportugueses nos principais generos de discurso em prosa, organizado porA. Cardoso Borges de Figueiredo (1879). Esse livro, que havia alcançado,em 1883, sua 18ª edição era, entretanto, mais elaborado que seu homô-nimo de Caldas Aulete, por pretender discorrer sobre os variados gênerosde discurso: familiar, epistolar, histórico, didático, descritivo, oratório; emsuas distintas características e propriedades.

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lidade, os vícios, as virtudes; com tudo isso ede tudo isso cresce. O vocabulário é a foto-grafia completa do saber de um povo; é opsicógrafo que indica e deixa registrados ossucessivos graus por onde o espírito foi as-cendendo. (Castilho apud Aulete, 1882, p. 1)

No campo já dos usos do vocabulário eda gramática para efeito retórico destacam-se ostrechos explicitamente moralizadores, muitosdeles redigidos pelos expoentes da escrita nalíngua portuguesa. De autoria, portanto, doPadre Antônio Vieira, podemos encontrar – so-bre a mentira – o seguinte:

A mentira é filha primogênita do ócio. Vedecomo se forma dentro em vós mesmo estemonstruoso parto. Quem está ocioso, nãotem mais o que fazer que por-se a imaginar:da ociosidade nasce a imaginação, da imagi-nação a suspeita, e da suspeita a mentira.Quem trabalha, trata da sua vida, quem estáocioso trata das alheias. Quem trabalha,como cuida no que faz, fala verdade; porquediz as coisas como são. O ocioso, como nãotem o que fazer, mente; porque diz o queimagina. É a imaginação no ocioso como aserpente de Eva. Estava ociosa Eva no para-íso, entrou a serpente coleando-se mansa-mente sem pés, mas com cabeça; começoupela especulação e acabou pela mentira...Quantas vezes se diz do honrado e da honra-da, do inocente e da inocente, o que nuncalhe passou pela imaginação? Mas basta queo maldizente o imagine, ou o queira imagi-nar, para o por na conversação e na praça, eo afirmar com tanta certeza, como se o leraem um Evangelho. Deus vos livre de tais lín-guas e muito mais de tais imaginações.(Vieira apud Aulete, 1882, p. 320-321)

A Cartilha nacional de CaldasAulete: saberes e métodos

Foi em 12 de Junho de 1850 que Fran-

cisco Júlio Caldas Aulete dirigiu um ofício ao

secretário do Conselho Superior de InstruçãoPública — José António Amorim — explicitandoo que entendia ser a novidade da obra que pre-tendia fazer aprovar por aquele órgão. Tratava-se de um trabalho dirigido às escolas, original-mente sob o título Livro da infancia ou methodofacil e racional para ensinar a ler. Na verdade —segundo consta do manuscrito de apresentaçãoda obra — aquela cartilha de ensinar a ler real-mente fazia parte de um projeto mais amplo doautor; uma coleção que — nos termos do ofício— ele intitularia Biblioteca das escolas primárias,e que deveria, em seu conjunto, contemplarcompêndios voltados para os diferentes níveis deaprendizado na instrução primária. O livro queentão apresentava ao juízo crítico do ConselhoSuperior de Instrução Pública era na verdade oprimeiro da pretendida série. Aquele auto-intitulado Primeiro livro da infância ensinaria,portanto, os primeiros caminhos do ato de ler“por um método fácil e porventura racional,proscrevendo como pernicioso o sistema atéaqui seguido em todos os livros que para a pri-meira instrução da infância se tem adotado emPortugal” (Aulete, 1850).

Caldas Aulete reconhecia e enfatizavaque seu método de ensinar a ler e escreverpartia do desejo de suprimir a soletração doprocesso da alfabetização. Para isso, já bemantes de João de Deus, dava algumas modifica-ções sonoras às vogais por meio de acentuaçãovariada, embora não partisse — como mais tar-de faria o poeta — do sentido da reunião devogais entre si, mas da sonoridade que essaaliança traria, no sentido de haver a referidajunção daqueles sons simples.3 Para além disso,todavia, Caldas Aulete enfatizava a necessidadede se obter paralelamente a eficácia no proces-so de ensino-aprendizado da leitura e da escri-ta; a uma só vez:

O primeiro livro da infância dividi-o em duas

3. “iu; io; ái; áe; áu; áo; éo; êu; óe; ôi; êi; õu” - Era assim que vinhamapresentadas as vogais reunidas na cartilha que posteriormente CaldasAulete publicaria (Aulete 1873).

504 Carlota BOTO. Aprender a ler entre cartilhas: ...

partes. A primeira — o Silabário, é propriamen-te a cartilha aperfeiçoada, metódica e despidade todas as superfluidades e de todos os ab-surdos que publicam nos livros deste gênerona nossa pátria. Comecei dando às vogais asdiversas modificações de sons de que são sus-ceptíveis, procurando acostumar as crianças apronunciarem aquelas diversas modificaçõeslogo desde os primeiros rudimentos da leitura,ao contrário do que se pratica geralmente, fa-zendo ler sempre o “a” que tem duas modifi-cações distintas de som, de uma maneira uni-forme; o “e” que é susceptível de três modifi-cações sempre com um som invariável e omesmo a respeito do “o”. Julguei acertadosubstituir entre nós o uso da leitura sem sole-tração, ao método velho e vicioso que só po-deria invocar para a continuação da sua tiranianas escolas, a autoridade de uma rotinalongamente seguida. Expliquei depois o modode ler as consoantes duplicadas e as consoan-tes compostas; e finalmente o valor acidentalque podem ter certas consoantes quando seacham em certas combinações com outrasconsoantes ou com vogais. Na segunda parte,a que dei o título Leitura Corrente, acham-sealgumas sentenças morais extraídas da San-ta Escritura, nas quais os alunos poderãoachar escrita para ler — como se diz vulgar-mente — por cima, ou sem soletrar. Eis aquia razão por que chamei a esta segunda par-te do livro Leitura Corrente. O aluno não háde soletrar a palavra juntando as letras paraformar as sílabas, e estas para produzirempalavras. Há de ao contrário ler cada sílabade uma só vez deixando apenas um peque-no intervalo entre a pronunciação de uma eda seguinte. (Aulete, 1850)

Caldas Aulete mencionava também que a

introdução de seu livro era expressamente dirigidaaos professores, explicando aos mesmos comoproceder em sala de aula para adotar “cabalmenteo mecanismo do método sem soletração”. Demaneira protocolarmente elegante, dizia subme-ter sua proposta pedagógica ao douto parecer do

Conselho Superior de Instrução Pública. Dirigia,assim o ofício ao secretário do mesmo Conselho,procurando persuadi-lo da relevância e do acer-to de suas opções teóricas e metodológicas:

(...) Para tornar a leitura mais fácil, entendique as letras dobradas se deviam sempre con-siderar como reunidas numa só sílaba e nãodivididas uma da outra. Assim, a palavraattento ensinei a fazer a decomposição destemodo — a-tten-to — e não at-ten-to comopediam as razões etimológicas da língua. Ejulgo que é este método tanto mais de aceitarquanto é sabido que em todas as línguas vi-vas se decompõe as palavras por este modo.Assim o praticam os franceses, assim os in-gleses e os alemães como se convence doseu livro de leitura... Prestando a devida ho-menagem aos talentos a quem está encarre-gada a suprema inspeção do ensino nacional,espero que o Conselho Superior de InstruçãoPública se dignará de receber o trabalho queofereço à sua douta censura, do qual mandeifazer uma pequena edição, que quase sepode dizer que tem por fim servir de cópia alimpo; para que, comunicando-se-me todasas observações e emendas que houver a fazerse possa, inutilizando esta, fazer uma ediçãodigna da aprovação do Conselho Superior deInstrução Pública. (Aulete, 1850)

Para que a leitura pudesse identificar e ao

mesmo tempo ultrapassar os limites da sílaba, eleas dividia na própria palavra por um pequenointervalo, que auxiliava o aprendiz a reconhecero som e apreender simultaneamente o sentido dapalavra e da frase.4 Nota-se visivelmente a prio-

4. Posteriormente, a Cartilha nacional de Caldas Aulete apresentaria asfrases sem desmembrar as palavras ou as sílabas, divididas realmentepor aquele pequeno intervalo a que se referia o autor no ofício ao ConselhoSuperior da Instrução Pública. De qualquer maneira, o êxito da supressãoda soletração pareceria pela notoriedade ganha pela mesma cartilha jáinconteste. Note-se que a lição do “p” e do “t” vinham já seguidas pelatentativa de formação das frases, exatamente como o autor teria anterior-mente indicado. Então, escrevia-se o seguinte, da maneira expressa a seguir:“O pi pi pa pôu a pá pa na pá de pão ao pé do pa pá. // O pá té ta doTi to me ttêu o tó tó no lêi to da ti ti” (Aulete, 1873).

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ridade dada ao tema do método, pelos termos doofício com que Caldas Aulete apresenta ao Con-selho Superior de Instrução Pública o livro queacabara de escrever. Notoriamente, como se viu,as questões concernentes à didática e àsmetodologias do ensino passariam a ser o eixotemático do debate educativo em Portugal daque-les anos 50 do século XIX.

Caldas Aulete — não pretendendo exata-mente inovar quanto à exposição do conteúdo oudos saberes escolares veiculados por seu compên-dio didático — expressava absoluta convicção deque sua cartilha era pioneira quanto ao método:havia ali assinalada uma nova forma de se proce-der ao ensino das primeiras letras. Abolia-se asoletração; o aprendizado viria pela sentido ex-presso na relação entre significante, signo e sig-nificado. Aprendia-se a palavra, para em seguidadecompô-la em suas partes. O aprendizado dosom das letras vinha como efeito correlato aoaprendizado do sentido da palavra lida. Alémdisso, propunha-se — com ousadia para a época— o ensino paralelo da leitura e da escrita; pro-piciando, de tal maneira, procedimentos e técni-cas capazes de habilitar o professor para o ensi-no simultâneo — mediante o qual todos os alu-nos aprende-riam, em princípio, ao mesmo tem-po. Sendo assim, o professor, em sua exposição,apresentaria a matéria a todos como se falasse di-rigindo-se a um só. Caberia, pela cartilha, orien-tar o professor — passo a passo no que ele de-veria fazer. O uso do livro didático vinha, paraCaldas Aulete, agregado a todo um roteiroprescritivo de normas e de protocolos de leituraque deveriam ser apreendidos pelo professor; edos quais, em larga medida, dependeria o êxito doprocesso do ensino-aprendizado.

A estratégia de pautar o aprendizado dasprimeiras letras prescindindo do clássico e tradi-cional processo da soletração era o que, ao fim eao cabo, daria razão ao reconhecimento da origi-nalidade e ao êxito da posterior Cartilha nacional:método legográfico para aprender simultaneamentea ler, escrever, ortographar e desenhar. Vê-se assimque, quer nos debates intelectuais, quer nas polê-micas encetadas pela imprensa, quer nos relatóri-

os de inspeção, a mesma tendência apontaria osanos 1850 como o tempo dos métodos e dastécnicas. Como nunca, a Pedagogia ia ganhandoares e pretensão de ciência.

Caldas Aulete — no Directorio que inte-grava a sua Cartilha nacional de ensino simul-tâneo da leitura e da escrita — dirigia-se aosprofessores e procurava fixar diretrizes quedessem a eles parâmetros de condução dasaulas e de orientação para o ensino do ler e doescrever. Assim, o autor pedagogicamente pres-crevia técnicas e métodos — rotinas e rituais doensino em salas de aulas... Procurava expor,antes de tudo, a necessidade de o educadorincentivar a fala da criança:

(...) conversai com as crianças para asexercitar a falar, já que as famílias descurameste importante ensino que é uma das cau-sas dos alunos fazerem tão pouco progres-so nas escolas públicas... A propósito detudo, explicai tudo. Fazei com que as cri-anças na escola respirem a moral e a ciên-cia, com a mesma facilidade com que res-piram e absorvem o ar e a luz. No desenvol-vimento intelectual das crianças, não deispreferência a nenhuma faculdade, todas vosdevem merecer igual cuidado... Empregaisempre para com as crianças uma lingua-gem fácil, clara e amena. As formas austeras,o estilo demasiado científico e dogmáticodevem ser absolutamente banidos das esco-las elementares, como contrário ao bom en-sino. Finalmente tornai quanto possa ser aescola um lugar atraente, alegre e de prazer.(Aulete, 1873)5

Indicam-se alguns exercícios para osmestres que adotassem o ensino pelo métodolegográfico, cuja inovação consistia — como jáse observou supra — em ensinar a um só tem-po o ler e o escrever. Na verdade, partia-se do

5. Não foi possível anotar diretamente as páginas do livro didático deprimeira leitura de Aulete, (1873 , 4ª edição), pois não há qualquer indica-ção de numeração de páginas. Por tal razão, nesta e nas demais notasreferidas ao dito compêndio, não haverá registro de paginação.

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pressuposto de que o ensino combinaria os ele-mentos da leitura oral e da transposição imedi-ata pela cópia e, logo depois, pelo ditado. En-tendia-se que a leitura representaria, por meiodos sons, a linguagem escrita. Havia, portanto,que treinar ao máximo essa identificação dossons pelo exercício de oralização da leitura com-preendida. Note-se como o Directorio indicavapara o professor o ensino das frases:

1º processo: O professor escreverá uma fraseno quadro preto ou numa ardósia, ou em pa-pel; em seguida le-la-á em tom natural, comose fosse falada. Cada aluno as repetirá no mes-mo tom, com o fim de não adquirir o vício decantarolar. Depois fará ler soletradamente cadauma das palavras de per si sílaba por sílaba. Ar-ticulando as consoantes isoladamente comofica ensinado na lição segunda, isto é, em vozbaixa, como se fossem seguidas de um “e”mudíssimo. 2º processo: O professor ensinará aescrever essa frase no quadro preto ou nasardósias. 3º processo: O professor ditará essafrase, e os alunos hão de escrevê-las de cor.Estes serão os processos a seguir para o ensi-no das demais frases. O professor ordenaráaos alunos que expliquem as frases que leremou os vocábulos que julgar mais própriospara os exercitar a falarem. (Aulete, 1873)

A sistematização do processo supunha,portanto, a escrita do professor no quadro ne-gro, de onde todos o veriam. Para atrelar oensino da leitura e da escrita, após ele ter es-crito a letra “i” e recordado às crianças que setratava do “i” de i-da ou do “i” de ilha, os alu-nos deveriam repetir o som e memorizar o tra-çado da letra. Em seguida o professor chama-rá uma criança à lousa para que ela escreves-se a letra aprendida. Chamaria um por um atéque todos vissem uns aos outros e o fizessempor si. Finalmente o professor ditaria a letra queos alunos deveriam reproduzir nas suas especí-ficas ardósias ou no papel – de cor. Logo, ha-via um percurso imediato em cada lição,estruturado mediante etapas que se traduziam

por três momentos, desdobrados um do outro,e diretamente relacionados à aula:

(...) no primeiro processo se ensina a ler;porque a leitura é a arte que trata de repre-sentar por meio de sons a linguagem escri-ta. No segundo processo aprende-se a es-crever; porque a escrita ensina a fazer asletras com que se representam as palavrasque constituem a linguagem escrita. No ter-ceiro processo aprende-se a ortografar;porque a ortografia é a arte que ensina arepresentar graficamente a linguagem fala-da. (Aulete, 1873)

Tratava-se indubitavelmente de comporuma rotina pedagógica que possibilitasse ainstalação do ensino simultâneo. Mesmo assim,procedimentos herdados do modo de ensinomútuo eram também aproveitados quando Cal-das Aulete indicava o aproveitamento de algunsexercícios que deveriam ser dirigidos em pe-quenos grupos por decuriões — ou monitores— treinados para multiplicar o conhecimentoentre os colegas de turma.

O decurião deveria agir como exemploe como auxiliar do ensino. Cabia a ele ensinara postura ao iniciante: como se sentar, comopegar na pena, como colocar a tinta, como de-bruçar-se sobre o papel, como exercitar a ca-ligrafia e a disciplina escolar... O decurião mos-trava enfim a normatividade da escola e deve-ria — também ele — ser copiado no que ali di-tava sobre os comportamentos. O traçado dasletras também era um aspecto acerca do qualexistiriam regras a serem criteriosamente obser-vadas. Para a prontidão do aluno para a escri-ta, a Cartilha nacional apresentava tambémexercícios de desenho, a estampa livre a propó-sito das diferentes lições do compêndio, figu-ras geométricas e serem copiadas e traçados delinhas retas e curvas para preparar exercícioscaligráficos. A Cartilha recorda aos alunos — eaos professores — de que o exercício da escri-ta que se segue à atividade da leitura e dela sedesdobra requer um vasto esforço de discipli-

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na, de autodomínio e de constrição corporal.Por tais razões, havia gestos a serem minucio-samente observados nesse propósito civili-zatório de uma escola intrinsecamente morali-zadora e reguladora da transformação dasconstrições externas em um cauteloso e incons-ciente processo de autodomínio (Elias, 1993,passim). Cabia ao corpo ser suficientementeadestrado enquanto veículo dirigido pela menteexercitada. Tal mecanismo requeria perseveran-ça e árduo treinamento:

1º processo: O decurião ensinará a cada umdos seus alunos a pegar na pena e a exercitaros dedos no movimento necessário para aformação das letras e a ter o corpo direitonuma posição natural. 2º processo: Odecurião ensinará a seguir com um ponteiroou pena seca as vogais “i”, “u”, “o”, “a”, “e”,que se acham no princípio desta lição. Istocom o duplo fim não só dos alunos adquiri-rem o hábito de pegar na pena e de moveremos dedos convenientemente, mas também defixarem mais na memória a forma das letras.3º processo: O decurião ensinará a escreverem papel ou nas ardósias com um lápis oupena molhada em tinta estas mesmas letras.E este processo se empregará para o estudodas outras letras e palavras. O decurião du-rante este exercício há de repetir aos alunosos seguintes preceitos:

• As letras devem guardar a mesma distância,a mesma inclinação e a mesma igualdade nosgrossos e nos finos.• As hastes no cursivo hão de ter duas altu-ras do corpo da letra, exceto o “t” que teráuma só altura.• As palavras hão de se separar umas das ou-tras com o intervalo de uma letra, no cursivoum “m” no bastardo um “o”.• A pena não deve ser muito apertada nosdedos.

O decurião há de por todo o cuidado paraque os alunos conservem sempre as suas

escritas muito asseadas, repetindo-lhes queum papel, para ser bem escrito, deve atin-gir a dois fins: ser muito legível e agradávelà vista. (Aulete, 1873)

O traçado das letras dependia da pos-

tura do corpo; exigia a coordenação motorafina. Crianças mais familiarizadas com o papelo lápis no ambiente familiar, de pronto, teriam,muito provavelmente, maior familiaridade. Ascrianças canhotas sofreriam. Deveriam escrevercom a mão direita. Tratava-se da pena e dotinteiro. Caso o menino teimasse em seguir suaorientação natural de canhoto, o papel ficariatodo borrado; seus dedos sujos — sua honramanchada... Por essas e outras, paulatinamen-te, a escolarização transforma a criança emaluno (Patto, 1999, passim).

Depois da lição do professor, o exercícioda classe (Chartier, 1995, passim): o decuriãodeveria recordar a dinâmica da mesma aula,fazendo exercícios que pudessem fixar na me-mória dos alunos o que foi aprendido. Odecurião — por exemplo — ditaria palavras; osalunos deveriam repeti-las de cor; depois diriamas letras de que a palavra ditada era composta.O decurião ditava outra vez a palavra e só nes-sa ocasião é que os alunos iriam escrevê-las nasardósias ou em papel comum. Terminada a liçãode ditado, o decurião mandará os alunos troca-rem entre si os papéis onde anotaram o quehaviam escrito. Cada aluno poderia então corri-gir a lição do colega para conferir se havia alialgum tipo de erro ortográfico. Havendo algum,o decurião mandaria o aluno reescrever correta-mente a palavra, vinte vezes ou mais, para quepudesse de fato fixar na memória a emenda, enão o erro:

O decurião deve pôr todo o cuidado emque os alunos não escrevam nunca umapalavra incorretamente, embora depois aemendem. A palavra que uma vez se escre-veu errada fixa-se melhor na memória doque a palavra escrita corretamente. O dizer-se que o aluno, vendo a palavra escrita cor-

508 Carlota BOTO. Aprender a ler entre cartilhas: ...

retamente, a decora logo e se esquecerá daerrada, não é verdade; duas razões pode-rosas há para a memória reter com preferên-cia o erro: a primeira, ter-se demorado maistempo em escrever a palavra viciadamentedo que em ver a emenda; segunda, o ser-lhe intuitiva a forma errada; porque foi des-sa maneira que da primeira vez natural-mente a escreveu. (Aulete, 1873)

Considerações finais

Percebe-se, no decorrer da própria

cartilha, o intento civilizatório nitidamente in-dicado. À escolarização caberá conferir hábitos:para as crianças e também para seus pais. Osalunos deveriam multiplicar os ensinamentosescolares em seus lares, de tal modo que, indi-retamente, os pais pudessem também se bene-ficiar da escolarização e das visões e versões demundo por ela apresentada. Como último pa-rágrafo da Cartilha nacional, encontramos o se-guinte:

(...) advertência importante: os pais devemauxiliar os esforços do professor, fazendocom que seus filhos copiem em casa a liçãoque deram na escola, interrogando-os depoissobre a significação de algumas palavras oufrases dessa mesma lição ou sobre qualqueroutro assunto que lhes seja mui familiar paraos exercitar a falar. (Aulete, 1873)

Muitos eram os relatos que induziam o

aluno a comportamentos sociais que a escolavalorizava: o asseio, a obediência, a disciplina,a polidez, o esforço e a perseverança. Quandoa civilidade se apresenta como uma segundanatureza, de alguma maneira ela se amplia epassa a ser nomeada civilização dos costumes:

António é um menino atencioso e aplica-do. Tira o boné quando encontra algumapessoa conhecida, e fala-lhe com muitopropósito. Quando lhe fazem algum favor,por pequenino que seja, agradece-o cortes-

mente. Se pede alguma coisa, ainda queseja aos criados, junta sempre a seguintefrase: faz-me o favor. Quando é chegada ahora do estudo não necessita que ninguémlho lembre; se está brincando larga imedia-tamente o divertimento e vai estudar; nãose levanta senão depois de saber a lição ede ter feito com muito asseio a sua escrita.É por isso que todos o estimam e não ces-sam de repetir: António é um excelentemenino, muito cortês e um belo estudante.Ultimamente o pai comprou-lhe um lindotambor com que António se diverte nashoras de recreio. (Aulete, 1873)

De todo modo, é nítido o intento deregrar o cotidiano pedagógico, quando, naúltima página daquele diretório, o autor com-punha um modelo de horário — abaixo trans-posto — para distribuição das matérias de es-tudo no tempo exato da escolarização primá-ria. Era já a grade curricular que parecia seraqui arquitetada; a nova escola dos novos tem-pos que o século XIX visivelmente desejava ins-tituir: um tempo rápido, eficaz, preenchido demaneira eficiente; um tempo, enfim, da produ-tividade laborial: tempos de civilização escolarcomo projeto cívico de organização do traba-lho (Carvalho, 1986).

Para Caldas Aulete, o livro didáticoexpressava, antes de tudo, uma possibilidadede contribuir para formar e orientar cotidiana-mente o professor a preparar sua aula. Sendoassim, o tempo é dividido, a matéria é dirigida,os exercícios e o próprio roteiro da aula eramsugeridos. Tal procedimento deveria trazercomo efeito um aprimoramento nos níveis deêxito escolar em uma escola que era lenta nopercurso do ensino do ler-escrever-contar. Amesma escola, aliás, deveria também ensinar ase comportar. A escola requer a formação doleitor; mas de um leitor comedido, disciplina-do; não demasiadamente curioso pelo decifrarda cultura impressa. A mesma escola que ensi-na a ler ensina o quê deverá ser lido, como sedeve ler, quanto e quando se deverá ler.

509Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 493-511, set./dez. 2004

A Cartilha — como primeiro livro do alu-no — é o seu passaporte para a cultura das le-tras. Existe nisso um ritual de iniciação; um dadosuporte simbólico de imagens do país — imagensessas que deverão ser decalcadas pela escola.Dessa maneira, supunha-se que a lógica da ins-crição escolar conduziria, doravante, as vindou-ras gerações a retomarem o protagonismo por-tuguês – perdido algures — no equilíbrio políti-co e cultural europeu. O que submergira com aaventura das navegações — a suposta vocaçãodo povo lusitano — caberia recuperar pela ala-vanca do mundo das letras. A escola primáriaauxiliaria o país a se reerguer, pela trilha do co-

nhecimento. Era dever precípuo da civilizaçãoescolar auxiliar a construir esse país: um novoPortugal. Parecia imprescindível àquele séculoXIX português abandonar, definitivamente, osdevaneios e horizontes do Oceano para voltar-se à terra; ao território da Península Ibérica.Fazer isso requeria estudo. Além disso, havia dese projetar a identidade perdida; com o fito,inclusive, de tornar viável a elaboração de umrelato de país suficientemente convicto e con-vincente para ser narrado às crianças. Esse tal-vez fosse o maior propósito das cartilhas deinstrução primária: o de contar de um país àscrianças...

510 Carlota BOTO. Aprender a ler entre cartilhas: ...

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 Recebido em 21.10.04

Aprovado em 03.11.04

Carlota Boto é licenciada em Pedagogia e em História pela Universidade de São Paulo. É mestre em História e Filosofia daEducação pela Feusp e doutora em História Social pela FFLCH-USP. É professora da área de Filosofia da Educação daFaculdade de Educação da USP.