aprendendo a ser professor na pratica - cópia

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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO CEMPEM/PRAPEM DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRENDENDO A SER PROFESSOR(A) NA PRÁTICA: ESTUDO DE UMA EXPERIÊNCIA EM PRÁTICA DE ENSINO DE MATEMÁTICA E ESTÁGIO SUPERVISIONADO FRANCIANA CARNEIRO DE CASTRO CAMPINAS - 2002

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  • i

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO CEMPEM/PRAPEM

    DISSERTAO DE MESTRADO

    APRENDENDO A SER PROFESSOR(A) NA PRTICA: ESTUDO DE UMA EXPERINCIA EM PRTICA DE ENSINO DE

    MATEMTICA E ESTGIO SUPERVISIONADO

    FRANCIANA CARNEIRO DE CASTRO

    CAMPINAS - 2002

  • by Franciana Carneiro de Castro, 2002.

    Catalogao na Publicao elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP Bibliotecria: Rosemary Passos - CRB-8/5751

    Castro, Franciana Carneiro de. C279a Aprendendo a ser professor (a) na prtica : estudo de uma experincia em Prtica de Ensino de Matemtica e Estgio Supervisionado. Campinas, SP: [s.n.], 2002. Orientador : Dario Fiorentini. Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao.

    1. Professores Formao. 2. Estgios Supervisionados. 3.Professores de matemtica. 4. Prtica de ensino. I. Fiorentini, Dario. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

    02-029-BFE

  • iii

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    APRENDENDO A SER PROFESSOR(A) NA PRTICA: ESTUDO DE UMA EXPERINCIA EM PRTICA DE ENSINO DE

    MATEMTICA E ESTGIO SUPERVISIONADO

    FRANCIANA CARNEIRO DE CASTRO ORIENTADOR: PROF. DR. DARIO FIORENTINI

    Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida por FRANCIANA CARNEIRO DE CASTRO e aprovada pela comisso julgadora em 26/02/2002.

    Assinatura ___________________________ (Orientador)

    Comisso julgadora:

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    2002

  • v

    AGRADECIMENTOS

    A Deus, meu Pai, minha fortaleza, meu libertador e meu amor, por ter-me concedido

    esta experincia, na qual aprendi o caminho do meu corao: viver no bem e fazer o

    bem. Que Deus abenoe a todos que contriburam de alguma forma para a concretizao

    deste trabalho.

    Ao meu filho Allan de Castro, minha beno. Por compreender minhas ausncias e me

    ajudar nos momentos difceis. Pela alegria e companheirismo, pois sua presena sempre

    significa esperana e vida.

    Aos meus amados pais Raimundo e Vilany, que me deram o direito vida, ensinaram-

    me a viver com decncia, responsabilidade e amor. A meus amados irmos e irms, pelo

    amor, carinho e respeito que juntos construmos ao longo desta vida.

    Ao Dario, meu orientador, pela amizade, pacincia, estmulo e competncia com que

    me acompanhou durante toda a realizao do trabalho.

    Aos meus amigos e amigas, os quais formaram minha famlia em Campinas, pelo

    carinho e companheirismo. Obrigada por terem cuidado do meu filho em todos os

    momentos de que precisei, por terem colos macios e prudentes. Seus nomes estaro

    sempre escritos em nossos coraes.

  • vi

    Rivanda, minha amiga, pelo apoio e incentivo neste perodo de nossa vida.

    Aos meus colegas e professores dos Grupos de Pesquisa GEPEC e PRAPEM da

    FE/Unicamp, pelo apoio e amizade que recebi, pelas discusses e reflexes

    compartilhadas na construo deste trabalho.

    Aos participantes deste trabalho, Allan e Ana, pela confiana e carinho, por abrirem seus

    coraes e compartilharem a experincia na sala de aula, contribuindo na construo

    deste trabalho.

    Aos funcionrios da ps-graduao da FE/Unicamp, pela ateno e cordialidade com

    que sempre me atenderam.

    UFAC, e em especial aos meus colegas do Departamento de Educao, pela confiana

    depositada neste trabalho.

    UFAC e a CAPES, pelo apoio financeiro para que pudesse realizar este estudo.

    A todos os professores e professoras que lutam por uma escola pblica de qualidade.

    Esta luta nos convida a percorrer um rio... S como a gua que contorna os obstculos...

    Estes no a paralisam; podem at diminuir seu ritmo, mas no conseguem interromper o

    caminho possvel a ser realizado.

  • vii

    RESUMO

    O objetivo deste estudo compreender como o futuro professor se constitui

    na prtica, tendo como experincia formadora a disciplina de Prtica de Ensino de

    Matemtica e Estgio Supervisionado (PEMES). O foco do estudo incide sobre os

    saberes e prticas escolares, concebidos sob o paradigma da complexidade, os quais

    adquirem significados num contexto de prtica complexa e imprevisvel. O estudo

    envolveu dois alunos da Licenciatura em Matemtica, na FE/Unicamp, durante o

    desenvolvimento das disciplinas PEMES I e II, no ano de 1999, os quais foram

    entrevistados e observados etnograficamente em atividades na universidade e na escola.

    Compusemos, a partir disso, narrativas do processo de formao dos licenciandos. A

    anlise do processo de passagem de aluno a professor, experienciada durante o estgio,

    restringiu-se a um deles, e mostrou, entre outros aspectos, que essa passagem tensa,

    mobilizando e problematizando imagens, saberes e modelos de ao docente

    internalizados ao longo da vida. Portanto, a Prtica de Ensino e Estgio constitui-se um

    momento importante do processo de formao, o qual no pode prescindir de reflexo

    partilhada, de aportes tericos e da interlocuo com os diferentes sujeitos da prtica

    educativa.

  • ix

    ABSTRACT

    The purpose of this study is to help understand what the role of a teacher is,

    based on practices and experiences obtained from the subject of Practices and the

    Teaching of Math and Supervised Training Process (PEMES). The focus of this study is

    on the knowledge and practices adopted in schools based on the paradigm of

    complexity, which may acquire meanings in a complex and unpredictable practice. The

    study was carried out with two students taking Math Licentiate at FE/Unicamp, through

    the development of the PEMES I and II subjects in the year 1999. The mentioned

    students were interviewed and observed ethographically in activities at the university as

    well as in schools. Based on these procedures we were able to make up narrations of the

    formation process of the licentiates.

    The analysis of the process they go through from student to become a

    teacher, which was experienced through the training period, was focused on one of

    them, and among other aspects, led us to the conclusion that this process is quite

    stressful taking into consideration problematic images, knowledge and models of actions

    adopted in teaching, which are acquired through life. Based on all this, we can come to

    the conclusion that the Teaching Practices as well as the Training Processes are a very

    important step in the process of formation, which requires a lot of shared ideas, theory

    and the exchange of information among the people involved with the educational field.

  • xi

    SUMRIO APRESENTAO ...................................................................................................... 01 CAPTULO I AS ORIGENS E A PROBLEMTICA DESTE ESTUDO........... 03 1.1 A trajetria de formao pessoal e profissional.................................................... 04

    1.1.1 Eu sou assim, porque me descobri professora..................................... 04 1.1.2 A primeira aproximao com a Educao Matemtica........................ 11 1.1.3 A primeira experincia como professora universitria......................... 13

    1.1.4 Aprofundando a reflexo sobre meu trabalho de Didtica e Prtica de

    Ensino de Matemtica.......................................................................................... 15 1.1.5 Buscando novos desafios para o meu desenvolvimento profissional....16

    1.2 Configurando uma questo de estudo.................................................................... 18 1.3 Breve discusso conceitual e reviso bibliogrfica............................................... 26 CAPTULO II SOBRE O PROCESSO METODOLGICO DA

    INVESTIGAO......................................................................................................... 35

    2.1 Descrio e desenvolvimento do trabalho de campo 1 fase............................. 39 2.2 Descrio e desenvolvimento do trabalho de campo 2 fase............................. 44

    CAPTULO III DE ALUNO A PROFESSOR: A FORMAO SOB A

    PESPECTIVA DOS FORMANDOS.......................................................................... 47

    3.1 Professora Ana....................................................................................................... 48 3.2 Professor Allan...................................................................................................... 65

  • xii

    CAPTULO IV DE ALUNO A PROFESSOR: PRODUZINDO SIGNIFICADOS

    SOBRE UM RITUAL DE PASSAGEM..................................................................... 81

    4.1 Os antecedentes da passagem................................................................................. 82 4.2 A aventura da passagem: um salto de bungee jump.............................................. 90

    4.2.1 Os preparativos para o ritual de passagem.......................................... 91 4.2.2 A aventura da primeira aula cenas do episdio I............................... 94 4.2.3 Produzindo novos significados sobre a primeira aula episdio II.....102

    4.3 Arriscando algumas acrobacias........................................................................... 109 CONSIDERAES FINAIS..................................................................................... 117 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 123 ANEXOS..................................................................................................................... 127

  • APRESENTAO

    Esta pesquisa tem por objetivo investigar como acontece o processo de

    formao do professor de Matemtica em saberes, aes e significados quando ele entra

    em contato com a atividade docente na escola durante a realizao das disciplinas de

    Prtica de Ensino e Estgio Supervisionado.

    Foram selecionados para este estudo um aluno e uma aluna da Licenciatura

    em Matemtica, na FE/Unicamp, os quais freqentaram, durante o ano de 1999, as

    disciplinas de Prtica de Ensino de Matemtica e Estgio Supervisionado I e II (PEMES

    I e II). A escolha destas disciplinas deveu-se, principalmente, ao fato de que elas

    desenvolvem um trabalho diferenciado e significativo de insero do futuro professor na

    prtica escolar, o qual conta com a mediao de leituras, investigaes, reflexo

    partilhada e interlocuo com os diferentes sujeitos da prtica educativa.

    O estudo, portanto, busca compreender como o futuro professor, neste

    contexto, apropria-se da experincia docente e enfrenta a prtica pedaggica, a qual

    concebida, no sentido de Morin (1996) e Prigogine (1996), como complexa, incerta e

    imprevisvel.

    Os pressupostos tericos nos quais se ancora este estudo dizem respeito

    formao profissional, aos saberes docentes, experincia e reflexo na e sobre a

    prtica, tendo como principais interlocutores Barth (1993), Freire (1998), Fiorentini,

    Nacarato & Pinto (1999), Gauthier (1998), Marcelo Garca (1999), Gmez (1992),

    Larrosa (1996/1999), Morin (1996), Schn (1992), Tardif, Lessard & Lahaye (1991) e

    Tardif & Raymond (2000).

    O texto dissertativo, relativo a este estudo, est organizado em quatro

    captulos, contendo, alm disso, algumas consideraes finais e anexos.

  • 2

    O captulo I apresenta, inicialmente, a trajetria pessoal e profissional da

    autora, com o intuito de mostrar ao leitor as razes que a levaram a desenvolver a

    presente pesquisa. A seguir, descreve e apresenta a problemtica do estudo, a questo de

    investigao e os principais aportes que o sustentam.

    O captulo II trata do processo metodolgico da pesquisa, descrevendo

    sobretudo o contexto em que aconteceu o estudo, a seleo dos participantes, as aes e

    o processo de coleta de dados (observaes e registros etnogrficos na universidade e na

    escola; dirios de campo dos estagirios e da pesquisadora; entrevistas semi-estruturadas

    individuais e coletivas).

    No captulo III so apresentadas, em forma de narrativa, as histrias de

    formao dos futuros professores. Estas narrativas foram textualizadas na primeira

    pessoa do singular, a partir de depoimentos e informaes coletadas pela pesquisadora,

    com o intuito de representar, sob a perspectiva do prprio licenciando e sem recortes, a

    totalidade do movimento de vir a ser professor.

    No captulo IV tenta-se analisar e interpretar de modo mais sistemtico, sob

    a perspectiva da pesquisadora, o processo de constituir-se professor na prtica de um dos

    participantes do estudo. Para investigar o processo de passagem de aluno a professor

    experienciado pelo licenciando durante o estgio, foram analisadas e interpretadas, entre

    outras situaes de prtica, dois episdios: a aventura da primeira aula como professor

    representada por um salto de bungee jump e o estranhamento proporcionado pelas

    reflexes na e sobre essa aventura, junto ao grupo de PEMES na Unicamp.

    Nas consideraes finais, retomada a questo central do estudo,

    apresentando uma sntese dos principais resultados. As concluses obtidas, embora

    provisrias e circunstanciais, contribuem para mostrar o quanto difcil, incompleto e

    sempre inconcluso o processo de formao do professor.

    No final desta dissertao, encontram-se anexados os planos de curso

    desenvolvidos nas disciplinas PEMES I e II, no ano de 1999, e o roteiro da entrevista

    semi-estruturada.

  • CAPTULO I

    AS ORIGENS E A PROBLEMTICA DESTE ESTUDO

    A opo por este estudo decorrente da minha trajetria pessoal e

    profissional. Para rever e descrever essa trajetria e, ento, compreender as tramas que

    tecem minha vida, tentarei puxar os fios de minha memria individual e coletiva.

    Acredito que os fios da memria auxiliam-nos no bordado de uma histria

    que construda por cada sujeito atravs de suas redes de relaes. Assim, a partir das

    experincias vividas, procuro refletir sobre questes que permeiam minha vida como

    sujeito de um processo de formao histrica, social, poltica e cultural. Essa reflexo se

    estende, sobretudo, pelo meu trabalho como professora formadora e em formao, a fim

    de compreender as multifaces que envolvem o processo de formao profissional.

    Nesse contexto, assumo o significado de experincia proposto por Larrosa

    (1999) de que a interpretao do passado s experincia quando tomamos o passado

    como algo ao qual devemos atribuir um sentido em relao a ns mesmos (p.135). A

    ao humana de atribuir sentido ao vivido se d por meio de um processo narrativo,

    atravs do qual nos constitumos como sujeitos de possibilidades e de conhecimentos.

    Ao retornar a esse passado vivido, ao reviv-lo com o olhar de hoje, espero encontrar,

    por exemplo, indicativos para meu caminho de formao.

  • 4

    1.1 A trajetria de formao pessoal e profissional 1.1.1 Eu sou assim, porque me descobri professora...

    A escola, no meu imaginrio adolescente, representava uma possibilidade de

    ascenso social. Entretanto, incomodavam-me a forma como os professores ensinavam

    e, sobretudo, as normas e regras existentes na escola. O ensino Fundamental que cursei

    foi marcado por uma didtica prescritiva que reproduzia um conhecimento muito

    distanciado do meu mundo de significados. Muitas vezes, pensei que tudo estava errado,

    mas, na verdade, no conseguia perceber os determinantes do problema.

    No final da 8 srie, no ano de 1979, fui convidada pelo professor de Histria

    da escola a participar de um grupo de estudos formado por professores, estudantes e

    religiosos. Estudvamos Filosofia, Sociologia, Histria e Religio de maneira diferente

    da estudada na escola. As reunies do grupo representaram os meus primeiros momentos

    de leituras e discusses, alm de serem essenciais para o incio de meu processo de

    formao reflexiva, pois me ensinaram a desenvolver um modo pessoal e crtico de

    entender o mundo.

    Apesar de ser uma menina tmida e dependente, sentia a necessidade de

    compreender melhor a realidade em que vivia. Comecei, assim, a descobrir um mundo

    permeado de contradies e conflitos. medida que avanava nesse processo,

    transformava-me, ou melhor, formava-me. Isso acontecia porque estava aberta e

    receptiva para um tipo de formao em que

    ... a questo no aprender algo. (...) Porque, se algum l ou escuta ou olha com o corao aberto, aquilo que l, escuta ou olha ressoa nele; ressoa no silncio que ele, e assim o silncio penetrado pela forma se faz fecundo. E, assim, algum vai sendo levado sua prpria forma (Larrosa, 1999: 52).

    Ao concluir o ensino Fundamental, fui influenciada por meus pais a

    ingressar num curso de Magistrio. O sistema vigente no final da dcada de 70 induzia

    as pessoas a pensarem que um curso profissionalizante daria a garantia de emprego.

    Cursei o Magistrio, mas no me encontrava convencida de atuar nessa rea, pois no

  • 5

    concordava com o mtodo de ensino, o qual era caracterizado pela repetio, por

    prescries e pelo professor assumindo o papel de detentor do saber, cabendo aos

    alunos reproduzirem o conhecimento aprendido.

    Nesse curso, as disciplinas da rea de Didtica limitavam-se a ensinar como

    o professor deveria comportar-se em sala de aula e nas demais dependncias da escola,

    como se vestir e usar o material didtico (a lousa, por exemplo).

    As disciplinas Filosofia, Sociologia e Psicologia enfatizavam o estudo do

    comportamento do homem em uma sociedade harmnica. Lembro-me de que havia uma

    disciplina intitulada Prtica do Lar, a qual visava a ensinar habilidades e atividades

    domsticas. Tudo isso era muito confuso para mim, pois, se de um lado eu participava

    de um grupo de estudos que refletia buscando entender a nossa sociedade e como

    enfrentar desafios, de outro recebia uma formao autoritria, visando a adaptar e ajustar

    o homem sociedade vigente.

    Conclu o ensino Mdio em 1982 e nos dois anos seguintes fiquei sem

    estudar no ensino formal, mas continuei atuando em movimentos sociais, em

    comunidades de base da Igreja Catlica. Isso foi fundamental para minha formao

    poltica. Creio que essas experincias levaram-me a refletir sobre a possibilidade de ser

    uma professora crtica e participativa em uma sociedade dominada pelo silncio,

    injustia, desigualdade e preconceito.

    Nesse perodo, percebi a fora e a imposio das idias da classe dominante

    e como a escola procurava perpetuar a reproduo destes valores na sociedade. Em

    contrapartida, exigia-se do professorado uma postura crtica aos modelos vigentes, tendo

    em vista a transformao da escola. Segundo Freire (1984), nesta concepo o professor

    poderia assumir o papel de trabalhador social que opta pela mudana, que, num

    momento histrico como este, no propriamente o de criar mitos contrrios, mas

    problematizar a realidade aos homens, proporcionar a desmitificao da realidade

    mitificada (p. 54).

    Foram leituras como essa que motivaram meu retorno aos estudos formais na

    escola. Fiz isto movida pelo inconformismo, disposta a compreender melhor esse mundo

  • 6

    e a pensar em como poderia reconstruir minhas utopias, que, at ento, pareciam

    distantes e incompatveis com a realidade na qual vivia.

    Considerei importante, naquele momento, ingressar no ensino Superior.

    Entendia que essa era a forma de aprender mais e buscar uma definio profissional

    relacionada docncia.

    Nesse perodo estava em gozo de frias no interior cearense e soube que a

    Universidade Estadual do Cear implantara um campus no municpio de Itapipoca.

    Pedagogia seria o primeiro curso a ser efetivado. Fiz o vestibular no segundo semestre

    de 1985 e fui aprovada. Cursei o primeiro ano naquele municpio; no ano seguinte,

    retornei a Fortaleza, onde conclu o curso em 1989.

    Meu processo de formao, o qual problematizava minha experincia

    educacional, foi justificando-se no decorrer do curso, influenciado principalmente pelas

    disciplinas de Filosofia, Psicologia e Sociologia. O mesmo no ocorreu com as

    disciplinas da rea de Didtica, as quais eram essencialmente prescritivas: um

    receiturio de regras e procedimentos para o professor seguir e estabelecer boas

    estratgias de aula.

    Uma situao vivenciada com uma professora dessa rea marcou-me muito,

    pois ela acreditava que, com uma boa proposta metodolgica, o professor desenvolveria

    satisfatoriamente seu trabalho. Apesar de no ter como objetivo polemizar a questo,

    tivemos discusses que envolviam problemas metodolgicos e especficos da rea de

    conhecimento. Para aprofundar essas questes, a professora definiu que eu teria de

    apresentar, em uma aula, formas que pudessem instrumentalizar o professor.

    Concordei, embora tenha argumentado que acreditava que o trabalho pedaggico no

    tinha frmulas mgicas para responder, de imediato, a todos os problemas do

    cotidiano escolar. Preparei e apresentei, ento, uma aula com fundamento mais

    sociolgico do que tcnico-pedaggico, baseada na Psicologia Comportamentalista.

    O entusiasmo de um discurso sociopoltico, muito presente na minha forma

    de ver o mundo e a Educao, pode ter contribudo para esse estranhamento pedaggico.

    E, nesse processo de estranhamento, no consegui perceber como se dava a construo

  • 7

    do saber na prtica pedaggica. Porm, a experincia no decorrer do meu trabalho em

    sala de aula foi formando um outro cenrio, de modo a reunir e a complementar essa

    interpretao acadmica.

    Ademais, algumas questes perseguiram-me durante o curso, tais como: o

    que afinal seria um professor? Qual sua verdadeira importncia social? Que formao

    profissional estava sendo refletida ou reproduzida na Universidade? Estava preparada

    para enfrentar a realidade escolar? O que seria formar o ser humano?

    Entendia que a formao universitria no podia limitar-se somente

    instrumentalizao do futuro profissional. Essa formao deveria reconhec-lo como

    algum inserido na sociedade e no mundo do trabalho, como sendo capaz de decidir e

    transformar o real, algum capaz de construir participativamente a histria e sua prpria

    cidadania.

    Paralelamente ao curso, dediquei-me tambm ao movimento estudantil na

    Universidade, participando de fruns em que se discutia a relao Educao-Sociedade

    com o objetivo de se compreender melhor as relaes sociais, polticas, econmicas e

    culturais. Essas experincias contriburam de modo decisivo para o desenvolvimento de

    minha postura poltica e tica.

    Minha primeira experincia no Magistrio aconteceu quando cursava o

    terceiro semestre do curso de Pedagogia. Trabalhando em uma escola pblica de

    Fortaleza, assumi as disciplinas de Histria e Geografia no ensino Fundamental. Durante

    o ano em que vivi essa experincia, a maior dificuldade que enfrentei foi a do domnio

    do contedo, pois no lecionava na minha rea de formao.

    Essa experincia foi fundamental para eu superar a lacuna relativa ao

    domnio conceitual das disciplinas, compreendendo a forma como essas eram

    ministradas na escola.

    Ao tentar problematizar os temas, refletir sobre qual metodologia utilizaria

    nas aulas, optei por planejar e desenvolver atividades participativas. Dentre elas, destaco

    uma aplicada na 5 srie, sobre o tema Formao do povo brasileiro, a qual foi

    desenvolvida em trs aulas, como relato a seguir:

  • 8

    Na primeira aula, pedi que os alunos falassem do assunto. Aps suas falas, dividi a turma em trs grupos (ndios, brancos e negros) e solicitei que escrevessem o que sabiam sobre esses grupos. Em atividade extra, pesquisaram sobre cada um deles. Iniciamos a segunda aula com uma discusso sobre suas pesquisas e o que haviam produzido. Depois foi realizada uma concluso por grupo e cada aluno elaborou um texto para ser apresentado turma. Decidimos que seria uma apresentao teatral. No final da aula elaboramos um s texto e definimos o papel de cada aluno na apresentao. Por fim, na terceira aula, realizamos a apresentao com a participao de todos da turma e de alguns membros da escola que foram convidados pelos alunos. Para minha surpresa, quando conclumos a atividade, a Diretora da escola fez uma crtica: como podia sua filha, que era loira, ter participado da apresentao como ndia? Eu no esperava tal questionamento. Tentei responder que os alunos escolheram o grupo que desejavam participar e que, alm disso, um dos nossos objetivos era tentar romper com os preconceitos construdos e sustentados por nossa sociedade. Creio que o meu discurso no agradou a alguns presentes, pois a Diretora falou: no precisamos de filsofos ou coisa parecida, necessitamos de professores (notas de caderno, 1987).

    Compreendi que, segundo a concepo vigente na escola, eu no poderia ser

    classificada como uma boa professora. E, como no concordei com tal concepo,

    acabei sendo afastada da escola.

    Nos trs anos seguintes, trabalhei em uma escola particular, ministrando a

    disciplina de Psicologia no curso de Magistrio noturno. Esse momento para mim foi

    decisivo, pois estava trabalhando na minha rea de atuao e para isso tinha uma

    formao acadmica que sustentaria meu trabalho. Porm, uma das dificuldades que

    encontrei no dizia respeito ao contedo, e, sim, relao professor-aluno: a turma no

    me aceitava, provavelmente por eu ser ainda estudante e jovem.

    O desafio estava posto. No queria reproduzir as situaes didticas que

    permearam o percurso que fiz como estudante no Magistrio. Procurei utilizar uma

    metodologia de trabalho da qual todos pudessem participar, por julgar importante a

    experincia de cada um no desenvolvimento de sua prpria formao e,

    conseqentemente, na formao de uma professora participativa e democrata.

    Apesar do meu esforo, observava que nas aulas reproduzia situaes

    didticas das quais discordava. Creio que estas eram impulsionadas pelo prprio

    processo de ensino e aprendizagem, pois acreditava que poderia prever todas as

    situaes com um planejamento que procurasse atender s necessidades dos discentes,

  • 9

    como tambm dar uma formao crtica a eles. No notei que os futuros professores

    tambm tinham essas crenas. Comecei a perceber que contedo e forma no podiam ser

    pensados separadamente, ao contrrio do que havia aprendido no curso de Didtica.

    Respirava ainda em meio a tantas contradies! De um lado, uma formao

    castradora, autoritria e dependente herdada da educao familiar e escolar, e, de outro,

    a busca por reflexes que possibilitassem quebrar essas amarras.

    O trabalho com os futuros professores foi um momento marcado por muitas

    incertezas e pela busca de respostas. A inquietao tomou conta do meu ser. Estava no

    final do curso e percebia que, a cada passo, crescia a vontade de conhecer o mundo da

    docncia e, nessa caminhada, esperava encontrar parceiros que acreditassem em uma

    vida melhor.

    Durante esse caminho, um saber profissional estruturava-se em mim,

    baseado em concepes e crenas que concebiam um profissional competente e

    comprometido. Negava, desde ento, o discurso pedaggico que pregava que o

    professor, quando em exerccio, teria de invalidar o seu prprio ser, ou seja, teria de

    representar sempre. Por discordar disto e por entender que somos produtores e

    construtores do nosso mundo em um tempo e espao, os quais nem sempre so

    determinados, resolvi migrar.

    Fui morar no estado do Acre, em 1991. Fiz contato com a Secretaria

    Estadual de Educao e, em seguida, consegui um contrato provisrio para trabalhar no

    ensino Mdio, especificamente no Sistema de Ensino Modular Magistrio,

    desenvolvido nos municpios que no possuam o 2 Grau regular. Essa foi minha

    primeira experincia naquele estado. Tive de estudar Histria e Geografia do Acre para

    melhor conhecer o lugar e desenvolver minhas atividades docentes.

    Iniciei o trabalho no municpio de Plcido de Castro1, ministrando Psicologia

    e Prtica de Ensino. Trabalhei com uma turma de 55 alunos, composta, em sua maioria,

    1 Plcido de Castro localizado a 90km da capital do estado, Rio Branco, e possui acesso rodovirio.

  • 10

    por professores leigos2. As discusses realizadas partiam de suas experincias docentes

    desenvolvidas em escolas urbanas e rurais.

    Ao observar que tinham dificuldades de expressar o que pensavam, descobri

    que receavam ser julgados por mim. Penso que estas dificuldades originavam-se da

    concepo, que pairava entre os professores e especialistas que ministravam cursos de

    reciclagem, de que contar casos s atrapalhava a dinmica dos trabalhos, ou seja, o

    cotidiano escolar no era importante para a discusso e a formao continuada. Porm,

    essa atividade de compartilhar a prtica pedaggica auxiliou a todos e contribuiu para o

    melhor andamento das disciplinas. Percebi que, para ensinar e aprender, teramos

    mesmo de saber ler, escrever e ouvir o outro.

    O segundo municpio onde atuei foi o de Manuel Urbano3, uma cidade que

    ainda conserva as belezas da Mata Amaznica e que era isolada como a maioria dos

    municpios da Regio Norte. O que mais me chamou a ateno foi que, no meio de tanta

    carncia, a populao vivia dependente das idias difundidas pela TV e de vcios como

    cigarro, bebida, droga, alm de prostituio infantil.

    Os quinze alunos sob minha responsabilidade eram professores leigos do

    ensino Fundamental (5 8 srie) e estavam h seis anos fazendo o Magistrio. A

    Coordenadoria do Projeto, com sede na capital, pediu-me que ministrasse as doze

    disciplinas da rea pedaggica que ainda faltavam para a concluso do curso. Fiquei

    dividida entre lecionar sem competncia todas as disciplinas ou deixar esses alunos sem

    aulas, adiando ainda mais a concluso do curso. Resolvi assumir a primeira alternativa

    por entend-la mais conveniente comunidade e decidi desenvolver tambm, nos seis

    meses que l permaneci, um projeto cultural e esportivo, tendo como parceiros os alunos

    do curso e a comunidade. O projeto visava a oferecer lazer e atividades culturais s

    pessoas e apresentar, principalmente s crianas e aos adolescentes, uma perspectiva

    diferente daquela vivida por eles. O resultado foi positivo.

    2 Professores sem formao superior, os quais contam com a experincia de vida e com formao escolar em nvel Fundamental. 3 O municpio de Manuel Urbano localizado a 280km da capital e possui acesso areo e fluvial.

  • 11

    Esta experincia foi importante para minha trajetria profissional. De fato,

    at aquele momento, dedicava-me mais s disciplinas de Psicologia e Filosofia e, aps

    esse perodo, passei a dedicar-me mais Didtica Geral e Aplicada e sua relao com a

    prtica pedaggica. Alm disso, aprendi com essa experincia que somos todos, ao

    mesmo tempo, formadores e aprendizes.

    1.1.2 A primeira aproximao com a Educao Matemtica

    Em janeiro de 1992, fui aprovada em concurso pblico estadual do Acre para

    o cargo de professora do ensino Mdio. Mas, devido ao meu trabalho anterior, fui

    convidada para integrar a Equipe de Superviso no Departamento de Ensino Mdio.

    Paralelamente a esse cargo, ministrei, durante trs anos, aulas de Didtica do

    Ensino de Matemtica no Instituto de Educao4. Ao assumir esta disciplina, pensei que

    no teria dificuldades. Porm, quando conheci o programa do curso, percebi o quanto

    teria de estudar, pois necessitava de conhecimentos matemticos que no dominava.

    Meu trabalho inicial centrou-se mais nos aspectos didtico-metodolgicos, pois, por

    dominar pouco essa rea, no percebia a importncia da dimenso conceitual e

    epistemolgica do conhecimento matemtico.

    Mas, paulatinamente, no prprio processo de trabalho, passei a aprofundar

    meus estudos no campo da Educao Matemtica. Piaget seria a primeira referncia

    bsica a fundamentar psico e epistemologicamente minhas atividades pedaggicas. No

    entanto, logo a seguir descobri Ubiratan DAmbrosio, o qual concebe a Matemtica e a

    Educao Matemtica sob uma perspectiva sociocultural. Em sua concepo, a

    Matemtica ... uma atividade inerente ao ser humano, praticada com plena

    espontaneidade, resultante de seu ambiente sociocultural e conseqentemente

    determinada pela realidade material na qual o indivduo est inserido (DAmbrosio,

    1986: 36).

    Durante as atividades desenvolvidas em sala de aula, fomentei, por um lado,

    discusses que se pautavam nas seguintes questes: quais as dificuldades de ensinar e

    4 Instituto de Educao Loureno Filho Escola do Magistrio na cidade de Rio Branco/AC.

  • 12

    aprender Matemtica? Por que essa disciplina uma das que mais reprovam na escola?

    Que mitos sustentamos no ensino de Matemtica? Como poderamos melhorar esse

    ensino? O que falta para ns professores? Quais as outras formas de trabalhar com o

    ensino de Matemtica?

    Por outro lado, durante as aulas, percebia dificuldades de aprendizagem dos

    alunos e alunas em relao a alguns conceitos matemticos. Essas dificuldades, a

    princpio, pareciam-me adquiridas ao longo da vida escolar e, muitas delas, eram

    sustentadas por crenas sobre a disciplina, tais como Matemtica difcil, s poucos

    conseguem aprend-la e ela a matria que mais reprova na escola. Minha

    preocupao com essas crenas levou-me a anlises com o intuito de identificar as

    razes pelas quais o ensino de Matemtica gerava aqueles preconceitos.

    Naquele momento senti-me s e sem orientao da escola. Tentei buscar na

    literatura respostas aos meus questionamentos para modificar uma realidade que me

    incomodava. As obras pesquisadas, as que estavam ao meu alcance naquele momento,

    foram fundamentais para um melhor desempenho em minhas atividades. Recorri a

    Machado (1994), do qual destaco a seguinte passagem: em nossa sociedade, cada vez

    menos o homem comum pode passar ao largo dos conhecimentos matemticos, cada vez

    mais os tcnicos precisam imiscuir-se em contedos matemticos que s a especialistas

    interessavam, em passado recente (p. 63). Observo ainda hoje que a Matemtica

    continua sendo utilizada como um instrumento elitista na escola, pois ministrada de

    forma utilitarista, descontextualizada e mecnica, selecionando aqueles que continuaro

    os estudos e que podem assumir funes sociais superiores.

    Simultaneamente a essa atividade docente, integrava, como j dissemos

    anteriormente, a Equipe de Superviso do Departamento de Ensino Mdio da Secretaria

    de Educao e Cultura (SEC) do estado do Acre, no perodo de 1992 a 1995. O trabalho

    da equipe era voltado para os aspectos didtico-pedaggicos e representou uma

    experincia significativa, possibilitando a mim uma viso mais clara das dificuldades

    terico-prticas (conceituais e metodolgicas) enfrentadas pelos professores.

    As discusses daquele grupo pautavam-se por questes do tipo: necessidade

  • 13

    de planejar as aulas; o modo como os professores deveriam selecionar e trabalhar os

    conceitos; que mtodos seriam mais adequados ao ensino; que outros materiais, alm do

    livro didtico, poderiam ser utilizados; e como deveria ser a avaliao.

    1.1.3 A primeira experincia como professora universitria

    Quando ainda lecionava no Instituto de Educao, em 1994, fui selecionada

    no concurso para professor auxiliar da Universidade Federal do Acre, na rea de

    Metodologia do Ensino de Matemtica do Departamento de Educao, e passei a

    ministrar essa disciplina nos cursos de Pedagogia e de Matemtica, alm da disciplina

    Prtica de Ensino na Licenciatura de Matemtica. Considerei o meu ingresso no ensino

    Superior como uma continuidade profissional. A Didtica e a Prtica de Ensino de

    Matemtica seriam, de agora em diante, o meu objeto de estudo.

    Durante esse perodo algumas perguntas eram recorrentes em minhas

    reflexes: como deveria ser minha atuao profissional como formadora de professores

    de Matemtica? Quais suportes terico-metodolgicos iriam constituir minha prtica

    pedaggica?

    Diante desse desafio, busquei uma bibliografia que me ajudasse a

    desenvolver o trabalho que me cabia. Essa fase foi difcil, pois no dispunha, no Acre,

    de um bom acervo bibliogrfico voltado para esta rea emergente de conhecimento.

    Tentei busc-lo na prpria Histria da Matemtica, na Filosofia da Educao

    Matemtica e nas tendncias do ensino de Matemtica. Concebia esses conhecimentos

    como contedos necessrios formao dos alunos.

    Aps uma garimpagem em bibliotecas, em livrarias e junto a amigos,

    encontrei um material de apoio que me possibilitou estruturar os programa das

    disciplinas. Estes programas tinham como suporte os seguintes autores e textos: Libneo

    (1991), D'Ambrsio (1986), Machado (1994), Veiga (1992), Pimenta (1989), Candau

    (1988), Kamii (1984, 1988 e 1994), Fiorentini (1995), Carvalho (1991), Lopes (1994),

    Santos (1994), Duarte (1994) e Ceccon & Oliveira (1988).

  • 14

    Meu primeiro contato com discentes da Licenciatura de Matemtica foi com

    a classe do 8 perodo, quando ministrei a disciplina Prtica de Ensino e Estgio

    Supervisionado. Relatarei nosso encontro inicial: No incio da disciplina Prtica de Ensino, no 8 perodo da Licenciatura de Matemtica, utilizei o texto Alguns modos de ver e conceber o ensino de Matemtica no Brasil, de Fiorentini (1995: 01-37), programado para ser estudado em duas aulas (conjugadas). Entendia que, para iniciar o curso, seria necessrio que os alunos compreendessem melhor as tendncias do ensino de Matemtica. Na primeira aula, fizemos uma discusso inicial sobre o que pensavam sobre o ensino de Matemtica. Os alunos falavam e eu anotava o que diziam no quadro, depois fizemos algumas conexes e partimos para discutir o texto. A maioria no o tinha lido, e por isso tive que mudar a metodologia de trabalho. Dividi a turma em sete grupos e cada um ficou responsvel por um tpico do texto; acompanhei a discusso dos pequenos grupos, e as apresentaes e o debate ficaram para depois. A aula seguinte foi iniciada com a apresentao de todos os grupos e, em seguida, fizemos a discusso. Percebi que os alunos no estavam querendo discutir, pois na apresentao expuseram o pensamento do autor sem produzir significados prprios. Essa situao foi incomodando-me no decorrer da aula. Resolvi perguntar o que estava acontecendo e, quase por unanimidade, responderam que no estavam querendo discutir o texto, pois estavam cheios de teorias e ainda no sabiam como dar uma aula. Aps ouvir o argumento dos alunos, decidi suspender a discusso do texto. Retomei a aula com uma outra discusso: sobre quais eram suas expectativas em relao Prtica de Ensino. Pedi que todos se posicionassem frente questo. Dois alunos, que j eram professores, disseram: no existe mistrio, ns j estamos dando aula e o necessrio saber o contedo. Uma aluna interveio: eu nunca dei aula, como vou fazer? Como deverei entrar na sala e escrever no quadro? Os alunos prestam muita ateno no professor, at na roupa que ele veste. Digo isso porque os observo, no deixamos passar nada. Um outro aluno se manifestou: professora, alm do que Ana falou, eu me preocupo com a postura do professor em sala de aula e os demais sintetizaram que a Prtica de Ensino deve ver como o aluno est, e o professor deve propor melhorias; preparar os alunos para dar aulas, para a transmisso e a aplicao dos contedos adquiridos durante o curso; fazer auto-avaliao; formar o professor, porque a prtica d os ltimos retoques; relacionar a teoria com a prtica; analisar como pode se comportar na sala de aula. Durante a discusso um aluno chamou a minha ateno, ao dizer: professora, parece que voc no est gostando das nossas respostas. Respondi que ele estava certo, mas que eu deveria respeitar como pensavam. Disse ainda que estava surpresa com o pensamento deles, porque, quando conclu os cursos de Magistrio, em 1982, e Pedagogia, em 1989, discordava das concepes hegemnicas a respeito da Didtica e da Prtica de Ensino e observava a presena dessas mesmas concepes em seu discurso. Isso me preocupava, pois no tinha interesse em trabalhar nesse sentido, bem como contribuir para uma formao profissional tcnica, fictcia e acrtica (notas de caderno, 1996).

    As discusses com os alunos da Licenciatura em Matemtica permitiram-me

  • 15

    refletir sobre problemas semelhantes aos detectados na prtica dos professores, com os

    quais trabalhvamos na superviso pedaggica da Secretaria Estadual de Educao e

    Cultura.

    Para melhor entender a fala dos discentes, senti a necessidade de estudar e

    compreender as concepes que permeavam e sustentavam essas vozes, que pareciam

    no encontrar eco no trabalho que desenvolvamos. De um lado, tnhamos a expectativa

    dos alunos frente disciplina Prtica de Ensino. Do outro, tnhamos a natureza dessa

    disciplina que era complementar e suplementar a formao dos futuros professores, a

    qual era decorrente de um processo de estruturao da prtica profissional e no

    vinculada a tempo e espao definidos, mas, sim, a um percurso de idas e vindas,

    envolvendo experincias pessoais e profissionais. Por isso a importncia e necessidade

    de se estar investigando e refletindo sobre a nossa prtica.

    1.1.4 Aprofundando a reflexo sobre meu trabalho em Didtica e Prtica de Ensino de Matemtica

    Nessa experincia como professora de Didtica e Prtica de Ensino de

    Matemtica na Universidade Federal do Acre UFAC, enfrentei em meu trabalho uma

    dificuldade: o fato de no ter uma formao especfica na rea de Matemtica. Na

    condio de pedagoga, procurei superar esta lacuna entrando em contato com a literatura

    em Educao Matemtica. Entretanto, esse estudo no foi suficiente, pois, na prtica em

    sala de aula, surgiram novos desafios, tais como: saber que contedo matemtico

    privilegiar; quais as formas e ferramentas mais adequadas para desenvolver os contedos

    da disciplina; e como relacionar o conhecimento matemtico com o pedaggico.

    Em decorrncia de minha formao em Pedagogia, privilegiava em meus

    cursos os aspectos pedaggicos da formao do professor. As questes dos alunos, no

    entanto, colocavam em xeque a minha prtica pedaggica e meus conhecimentos de

    formadora de professores. Outras interrogaes ento surgiam: que profissional estava

    formando? Qual seria minha verdadeira funo como professora formadora? Quais

    saberes profissionais estavam constituindo a formao dos futuros professores e

  • 16

    professoras de Matemtica?

    Naquele perodo, no tinha clareza sobre a constituio desses saberes que

    integram a formao inicial. Acreditava, porm, que o saber acadmico, oriundo das

    cincias da Educao e de outras cincias, seria aquele que deveria ser privilegiado na

    formao inicial do professor. Estava certa de que, somente depois de uma slida

    formao terico-cientfica na rea da Educao e na de Matemtica, o futuro professor

    estaria preparado para atuar na prtica. Contudo, a prtica de estgio de meus alunos

    parecia no sustentar esse meu pressuposto.

    Percebia, atravs da prtica dos estagirios, que estes no dominavam os

    saberes bsicos da ao docente, tais como ser professor e professora de Matemtica da

    forma como eu supunha que os havia preparado, isto , ensinando Matemtica com

    abordagem social, histrica e cultural de seus conceitos. No decorrer da regncia dos

    estagirios, estes reproduziam uma prtica docente ainda presente na escola.

    Perguntava-me por que os licenciandos no conseguiam pr em prtica

    aquilo que estudavam e discutiam em Didtica e Prtica de Ensino. Minha hiptese

    inicial apontava para o problema das concepes e crenas que eles tinham a respeito da

    Matemtica, do ensino e da aprendizagem dessa disciplina, do papel do ensino da

    Matemtica, de como deveria ser uma boa aula de Matemtica, entre outros. Acreditava

    que, na constituio desse iderio do futuro professor, os professores das disciplinas de

    Matemtica da Licenciatura exerciam um papel decisivo e fundamental, porque muitas

    vezes os alunos, em suas aulas, repetiam prticas desenvolvidas por eles. Essas

    inquietaes me estimularam a querer conhecer e a compreender o que pensavam e em

    que acreditavam os professores formadores de professores da UFAC.

    1.1.5 Buscando novos desafios para o meu desenvolvimento profissional

    Pensando em enfrentar essas inquietaes, resolvi ampliar meus

    conhecimentos de formadora de professores e cursar uma ps-graduao, ou melhor, o

    mestrado. Mas qual? Em Educao ou em Educao Matemtica? A opo pela segunda

  • 17

    alternativa foi conseqncia direta de minhas interrogaes e do tipo de trabalho que

    venho desenvolvendo na UFAC. Ou seja, desejava compreender naquele momento as

    concepes e crenas dos professores do Departamento de Matemtica e como estas

    influenciam a formao profissional.

    Assim, formulei a seguinte questo de investigao: quais as concepes que

    permeiam a prtica pedaggica dos professores da Licenciatura em Matemtica e de

    que maneira elas influenciam a prtica dos egressos do curso?

    Este projeto pretendia trabalhar com os alunos da disciplina Prtica de

    Ensino e Estgio Supervisionado, egressos da Licenciatura que estivessem trabalhando

    nos ensinos Fundamental e Mdio e professores do Departamento de Matemtica que

    lecionassem na Licenciatura. Tinha como objetivo perceber qual a influncia da

    formao acadmica no trabalho em sala de aula. Questionava-me se tal influncia

    pautava-se nas questes pedaggicas e de contedo ou se reproduzia uma prtica

    profissional aprendida na vida escolar.

    Fui movida pelo desejo de estudar melhor o mundo do trabalho docente e

    como nos constitumos na prtica pedaggica, tentando assim me aproximar desse

    mundo subjetivo e integrador de mltiplas relaes e significaes.

    Para tanto, a minha narrativa de professora formadora elucida um

    movimento de interao entre um passado e um presente que foram constitudos de

    forma harmnica, pronta e tcnica, os quais, porm, so questionados por uma

    concepo crtica que busca compreender o mundo em suas relaes dinmicas e

    diversas.

    Aps ter descrito minha vida pessoal e profissional e ter refletido sobre a

    mesma, discutirei, a seguir, o processo de construo da pesquisa que relatamos nesta

    dissertao.

  • 18

    1.2 Configurando uma questo de estudo As leituras, discusses e os estudos realizados nas disciplinas5 e nos Grupos

    de Pesquisa da FE/Unicamp dos quais tenho participado tm, de um lado,

    redimensionado minhas concepes e reflexes acerca da formao inicial e continuada

    de professores e, de outro, ressignificado minha prtica de formadora de professores de

    Matemtica.

    Notei que, embora compreendesse a importncia da articulao entre os

    conhecimentos pedaggicos e os matemticos, estava, na verdade, privilegiando os

    primeiros e, por isso, reforando a relao dicotmica entre estes conhecimentos. Talvez

    isso fosse decorrente de minha formao acadmica em Pedagogia, a qual me levava a

    acreditar que a dimenso pedaggica seria auto-suficiente em relao aos contedos de

    ensino.

    Olhando, porm, sob outro ponto de vista, talvez esse privilgio ao saber

    pedaggico fosse tambm decorrente do meu esforo em negar a viso conteudista

    muito presente nos professores da Licenciatura de Matemtica, viso esta que,

    tradicionalmente, tem valorizado a memorizao de conhecimentos, concebendo o aluno

    como um mero recipiente de informaes.

    Esta forma dicotmica de conceber o conhecimento na profisso docente

    parece ainda continuar presente na maioria dos cursos de formao de professores do

    Brasil. O currculo desses cursos no pas apresenta uma organizao disciplinar que

    reflete essa dicotomia: um grande conjunto de disciplinas de Matemtica, de um lado;

    um conjunto menor de disciplinas pedaggicas, de outro; e ainda um nmero muito

    reduzido de disciplinas de Educao Matemtica, as quais talvez pudessem romper com

    essa dicotomia.

    Aos poucos fui percebendo que, para superar este problema, seria necessrio

    estabelecer uma relao dialtica entre contedo e forma. Ou seja, no entender

    5 Disciplinas cursadas: Teoria do Currculo do Ensino Superior; Metodologia da Pesquisa em Educao Matemtica; Epistemologia e Pesquisa em Educao; Seminrio Avanado I: A Articulao Narrativa da Idia de Formao; Seminrio III: Teoria do Conhecimento e Saberes Docentes; Problemas e Tendncias da Educao Matemtica.

  • 19

    simplesmente o contedo como sendo aquele relativo Matemtica, e a forma se

    referindo s metodologias e tcnicas de ensino.

    Mas, aps tomar conhecimento de estudos da Ps-Modernidade, percebi que

    os saberes mobilizados e empregados na prtica cotidiana (Tardif & Raymond,

    2000) no se reduzem apenas a uma tenso bipolar entre contedo e forma ou entre

    teoria e prtica, ou ainda entre conhecimento especfico e pedaggico. Na verdade,

    teoria e prtica constituem uma unidade dialtica e complexa, permeada por mltiplas

    relaes e determinaes, em que uma determina e ressignifica permanentemente a

    outra. Ou seja, so saberes que dela se originam, de uma maneira ou de outra, e que

    servem para resolver os problemas.

    Na busca por novos caminhos, e mediada pela interlocuo com meu

    Orientador e com o Grupo de Pesquisa-Ao e PsModernidade6, passei a compreender

    melhor as amarras de minhas idias e aes.

    nesse processo que estou me reconstituindo como professora formadora de

    professores e pesquisadora, tentando superar minhas limitaes e abandonar um passado

    marcado por verdades e certezas. Como nos diz Deleuze (1992), ns somos ... aquilo

    com o que estamos em vias de romper para encontrar novas relaes que nos

    expressem(p.131). Nesse movimento, estou construindo um olhar sobre um territrio

    complexo do saber, que possui mltiplas relaes e significaes. Entendo que, quando

    negamos esse territrio, contribumos para a manuteno do pensamento simplista e

    dicotmico da sociedade moderna.

    Morin (1996) alerta-nos de que este modo de constituio do pensamento

    ainda dominante no cenrio educativo. Em suas palavras:

    ... na escola aprendemos a pensar separando. (...) Nosso pensamento disjuntivo e, alm disso, redutor: buscamos a explicao de um todo atravs da constituio das partes. Queremos eliminar o problema da complexidade. Este o obstculo profundo, pois obedece fixao a uma forma de pensamento que se impe em nossa mente desde a

    6 O Grupo de Pesquisa-Ao e Ps-Modernidade um subgrupo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educao Continuada Gepec, cujo objetivo estudar os pressupostos epistemolgicos propostos pela Ps-Modernidade, no que diz respeito produo do conhecimento.

  • 20

    infncia, que se desenvolve na escola, na universidade e se incrusta na especializao. (p. 275)

    Esse jeito de pensar que aprendemos na escola camufla a relao existente

    entre o poder e o saber. O poder que o professorado exerce sobre os alunos parte do

    conhecimento cumulativo e prescritivo. Isto quer dizer que quem sabe mais tem mais

    poder de deciso e controle.

    Esta relao de poder e saber determinada tambm pela poltica

    educacional, em favor de uma ideologia dominante que refora a diviso social do

    trabalho. E, assim, imposto ao professorado um currculo normativo que dever ser

    posto em ao, cabendo a ele desenvolv-lo de forma homognea e universal. Esse

    currculo pensado pelos diferentes atores que atuam no sistema educacional, e dentre

    eles o especialista cumpre o papel de prescrever o que ensinar, como ensinar e quando

    ensinar. Reforando assim a diviso do trabalho, o especialista planeja e o professorado

    executa. Deste modo, defender e camuflar esse pensar legitim-lo, desqualificando o

    nosso trabalho e sustentando uma prtica docente baseada na Racionalidade Tcnica

    (Schn, 1992), pela ...qual a prtica profissional consiste numa resoluo instrumental

    de problemas baseada na aplicao de teorias e tcnicas cientficas construdas em

    outros campos(Tardif & Raymond, 2000: 211)

    A maioria dos profissionais que hoje lecionam preparando futuros

    professores foi formada sob o paradigma da Racionalidade Tcnica, que considera a

    competncia profissional como a soluo para todas as mazelas educacionais. Dar

    continuidade a esse modelo de formao formar tcnicos, sem autonomia intelectual e

    profissional, que apenas aplicam o conhecimento produzido pela academia.

    No foi fcil perceber que minha prtica de formadora de professores

    tambm reproduzia, de certa forma, esse modelo. Quando notei que os estagirios, os

    quais eu supervisionava, no aplicavam aquilo que havamos discutido e recomendado

    em Didtica e na Prtica de Ensino durante a Licenciatura em Matemtica/UFAC,

    imaginei que o problema fosse somente das outras disciplinas, notadamente aquelas

    responsveis pela formao matemtica do professor.

  • 21

    Acreditava que o trabalho que estava desenvolvendo era o melhor possvel.

    Tratava-se de um curso noturno com a maioria dos discentes trabalhando e no dispondo

    de tempo para ir escola estagiar. Assim, para atender s expectativas dos alunos e aos

    objetivos da disciplina Prtica de Ensino, no que se refere regncia, optamos por

    desenvolv-la atravs de cursos: Curso para professores de Matemtica dos ensinos

    Fundamental e Mdio da zona rural do municpio de Rio Branco; Curso de Matemtica

    preparatrio para o vestibular (oferecido aos professores da rede estadual e municipal e

    aos alunos finalistas de escola pblica. Tnhamos como parceiros o Diretrio Central dos

    Estudantes/UFAC e o Sindicato dos Professores); Curso de Vero de Matemtica no

    Instituto de Educao Loureno Filho. Estes cursos foram elaborados, planejados e

    executados pelos discentes sob a minha superviso, com o apoio de professores da

    Licenciatura em Matemtica.

    Creio que um ponto positivo no desenvolvimento desta forma de estgio

    tenha sido o envolvimento dos discentes nos cursos, os quais nitidamente se esforaram

    no desenvolvimento das atividades, pois percebiam o quanto poderiam apreender sobre

    prtica pedaggica do ensino de Matemtica e aplicao do conhecimento matemtico.

    Eles aprenderam muito com esta forma de Prtica de Ensino. Aprenderam, sobretudo, a

    como planejar e aplicar uma proposta de ensino. Mas, por outro lado, essa forma de

    estgio no representava a vivncia do trabalho docente em situao real, com alunos e

    classes reais. Era preciso tambm, segundo Tardif & Raymond (2000), uma formao

    profissional prtica aliada formao terica, envolvendo uma experincia direta do

    trabalho docente na escola:

    ... a aprendizagem do trabalho passa por uma escolarizao mais ou menos longa cuja funo fornecer aos futuros trabalhadores conhecimentos tericos e tcnicos preparatrios para o trabalho. Mas, mesmo assim, raramente acontece que essa formao terica no tenha de ser completada com uma formao prtica, isto , com uma experincia direta do trabalho, experincia essa de durao varivel e graas qual o trabalhador se familiariza com seu ambiente e assimila progressivamente os saberes necessrios realizao de suas tarefas( p. 210).

    Hoje, reconheo que aquele modo de conceber e desenvolver a Prtica de

  • 22

    Ensino e o Estgio no representava uma ruptura com o modelo da Racionalidade

    Tcnica, pois ainda privilegiava uma formao profissional pautada em saberes

    prescritivos e valores acadmicos ou tcnico-cientficos, concebidos e desenvolvidos em

    situaes idealizadas de prtica.

    Fiorentini et al (1999) apresentam pelo menos duas razes da inadequao

    do modelo da Racionalidade Tcnica no contexto da Formao Continuada, as quais

    tambm podem ser estendidas Formao Inicial:

    A primeira delas que os conhecimentos, nesse paradigma, eram produzidos geralmente de forma idealizada ou fragmentada, privilegiando apenas um ou outro aspecto do processo de ensino-aprendizagem. A segunda que esses conhecimentos eram transpostos em conhecimentos curriculares ou pedaggicos sem que os prprios docentes participassem do processo e, sobretudo, sem que fossem considerados os conhecimentos experienciais produzidos pelos professores ao realizar seu trabalho docente nos diferentes contextos. (p. 36).

    Estes autores chamam de moderno esse modo de produzir conhecimentos

    sobre a prtica docente, o qual se caracteriza por realizar recortes e simplificaes da

    prtica. Assim, no deveria causar estranheza que tais conhecimentos, aos olhos dos

    professores, paream estranhos e em desacordo com aquilo que presenciam e enfrentam

    no cotidiano escolar.

    Parafraseando Contreras (1999), esta forma moderna de entender o

    conhecimento e a ao perpetua a diviso social do trabalho, separando o mundo

    acadmico o dos pesquisadores, os que pensam do mundo escolar o dos

    professores, os que executam. Nesta separao, cabe aos primeiros investigar e elaborar

    conhecimentos para que os segundos os apliquem.

    Os professores, neste contexto, vem-se, portanto, num beco sem sada:

    negar sua condio de produtores de conhecimentos, aceitando cegamente tudo o que

    vem de fora ou, simplesmente, rejeitar os saberes acadmicos em favor dos saberes da

    tradio pedaggica. O problema que, em ambos os casos, o professor no visto

    como sujeito de conhecimento e responsvel pelo seu desenvolvimento profissional, e,

    sim, como um transferidor de saberes, exercitador de destrezas (Freire, 1998: 162).

  • 23

    Desta forma, o professor assume, na perspectiva da Racionalidade Tcnica, o

    papel de produzir e transmitir conhecimentos cientficos normatizados e legitimados

    pela cultura cientfica, a qual se constitui na nica fonte vlida de saber, na medida em

    que desqualifica os saberes desenvolvidos na prtica social, sobretudo durante o trabalho

    docente. Essa perspectiva parte de uma formao que insiste em perpetuar a idia de que

    ... conhecer significa dividir e classificar para depois determinar relaes sistemticas

    entre o que se separou (Santos, 1996: 15). Os currculos dos cursos de formao de

    professores que seguem esse modelo reforam essa fragmentao e deixam para os

    alunos a funo de integrar os saberes adquiridos, quando forem professores. Assim, ao

    chegar disciplina Prtica de Ensino, os alunos esperam que esta d conta de tudo

    aquilo que o curso deixou de proporcionar-lhes.

    Em contraposio a esse modelo da Racionalidade Tcnica, que ainda

    domina esse currculo, Fiorentini et al (1999) defendem que o saber docente seja visto e

    concebido como reflexivo e experiencial, o qual se constri na prpria atividade

    profissional sob a mediao da reflexo antes, durante e aps a ao. E nessa

    mediao que a profisso docente constitui-se numa prtica pedaggica que reflete sobre

    o porqu, para qu, quem, para quem, o qu, como, quando, onde ensinar e onde

    aprender, convivendo com a transformao e com a incerteza, invocando, enfim, o

    professor a um caminho onde ... o sujeito (...) se abre ao mundo e aos outros

    inaugurando com seu gesto a relao dialgica em que se confirma como inquietao e

    curiosidade, como inconcluso em permanente movimento da Histria (Freire, 1998:

    154) e desafiando, assim, uma formao castradora e autoritria que nega a experincia

    de cada sujeito no processo de ensino e aprendizagem.

    Seguir este caminho saber buscar, indagar e refletir sobre o mundo do

    trabalho docente, compreendendo que o ... verdadeiro pensamento o que olha de

    frente, enfrenta a desordem e a incerteza (Morin, 1996: 277), as quais fazem parte das

    prticas educativas imersas num processo de reflexo sobre a prpria ao num contexto

    plural e diversificado. E, ao escolher um caminho, percebe-se a necessidade de entender

    a formao do sujeito a partir de suas experincias vividas em espaos e tempos

  • 24

    mltiplos, que do sentido e movimentam sua vida de mulher e homem que sonha, sorri,

    chora, pensa e ama.

    Desta forma, no se pode olhar e pensar a formao docente somente num

    determinado tempo, ou seja, o tempo da formao acadmica da Licenciatura e, sim,

    perceb-la tambm no percurso de vida do sujeito, sobretudo quando este se depara com

    uma diversidade de situaes as quais demandam indagaes e reflexes.

    Sob essa viso de formao contnua, a Prtica de Ensino e o Estgio

    Supervisionado adquirem importncia estratgica porque representam o momento de

    imerso do licenciando no mundo do trabalho. Um mundo complexo que desafia,

    mobiliza e problematiza os saberes, as idias e os modelos de prtica docente, at ento

    adquiridos, mediante estudos/leituras e discusses tericas ou pela prpria vivncia no

    ambiente da prtica pedaggica. Nesse processo de formao, o futuro professor

    internalizou valores e modos de ser e fazer-se professor e aluno.

    Assim, mergulhar no mundo da prtica profissional com valores, saberes e

    imagens adquiridos enquanto aluno representa um momento de risco, uma aventura ou

    uma viagem por um caminho o de professor ainda pouco conhecido e vivido. E

    durante essa viagem ou aventura, segundo Larrosa (1999), que acontece a experincia

    formativa: ... viagem no no planejado e no traado antecipadamente, uma viagem aberta em que pode acontecer qualquer coisa, e na qual no se sabe onde se vai chegar, nem mesmo se vai chegar a algum lugar. (...) E a experincia formativa seria, ento, o que acontece numa viagem e que tem a suficiente fora como para que algum se volte para si mesmo, para que a viagem seja uma viagem interior (p. 52-3).

    Esse autor convida-nos a recuperar a categoria da experincia, entendendo-a

    como ... aquilo que nos passa. No o que passa (o que podemos conhecer), seno o

    que nos passa (como algo a que devemos atribuir um sentido em relao a ns

    mesmos) (1996: 137). A experincia vai constituindo um corpo de conhecimentos que

    conduz o sujeito a encontrar conexes com ... o futuro que est aberto e o passado que

    est vigente (1999:137). Ele concebe a experincia como formadora e a caracteriza

  • 25

    como um saber finito, particular, subjetivo, relativo e pessoal; que no se pode

    separar do indivduo concreto no qual se encarna, e que tem a ver com a vida boa7

    (1996: 142-3).

    De fato, para reconhecer a experincia como formadora preciso tambm

    compreender que sua constituio acontece para cada sujeito de forma diferente, pois

    cada um compe um ser pessoal e profissional a partir de seu mundo vivido, e neste

    cotidiano que mobilizamos e ressignificamos nossos saberes.

    A Prtica de Ensino de Matemtica e Estgio Supervisionado pode ser vista

    como uma experincia marcante para os licenciandos, ou seja, um momento muito

    especial para eles, durante o qual o professor em formao passa pela experincia da

    ao docente, a qual pode ser vista como fonte primeira de sua competncia, de seu

    saber-ensinar (Tardif & Raymond, 2000: 213).

    Ao tomar contato, por intermdio de meu orientador, com a experincia da

    Unicamp no desenvolvimento das disciplinas de Prtica de Ensino de Matemtica e

    Estgio Supervisionado I e II (PEMES I e II), encontrei a uma proposta de trabalho que

    parecia contemplar as exigncias de uma experincia problematizadora e significativa de

    imerso do licenciando no trabalho docente. Pensei: essa uma oportunidade mpar para

    eu conhecer e compreender como se d o processo de formao do futuro professor num

    ambiente de ao e de insero na prtica escolar mediado pela reflexo individual e

    coletiva, por leituras tericas e pela investigao dos estagirios sobre a prtica escolar.

    Meu interesse juntou-se ao interesse de meu orientador, que, h tempos,

    desejava submeter a um processo investigativo mais sistemtico o trabalho que vinha

    desenvolvendo em Prtica de Ensino de Matemtica e Estgio Supervisionado I e II, na

    Unicamp. Mas, havia outra colega8, igualmente orientanda de Dario Fiorentini, que

    tambm estava interessa em investigar o processo formativo que ocorria nessas

    disciplinas. Assim, iniciamos em 1999 cada uma investigando sob um olhar diferente

    7 Entendida como a unidade de sentido de uma vida plena; uma vida que no s inclui a satisfao, seno, e sobretudo, inclui aquelas atividades que transcendem a futilidade da vida mortal (1996: 143). 8Alm disso, os sujeitos da pesquisa de Jaramillo so outros. O ttulo do projeto de Jaramillo (2000) era (Re)constituio do iderio de futuros professores de Matemtica num contexto de investigao sobre a prtica pedaggica. Este projeto de Doutorado ainda se encontra em desenvolvimento.

  • 26

    o processo formativo dos alunos nossas investigaes junto s turmas PEMES I e II da

    Licenciatura Noturna em Matemtica da Unicamp.

    Aps vrias reformulaes e discusses com meu orientador, a questo

    orientadora de minha investigao ficaria sendo a seguinte:

    Como acontece o processo de formao do futuro professor de Matemtica,

    em saberes, aes e significados, quando experiencia, na prtica escolar, a atividade

    docente, em um contexto de formao que interliga ao, reflexo e investigao?

    Como a prpria questo indica, estou interessada em compreender como os

    licenciandos se constituem na prtica escolar quando entram em contato com ela, tendo

    como mediao a reflexo partilhada, leituras, investigaes e a interlocuo com os

    diferentes sujeitos da prtica educativa. Mediao essa proporcionada pelas disciplinas

    PEMES I e II desenvolvidas na FE/Unicamp. Interessa-me, particularmente,

    compreender como o futuro professor, neste contexto, apropria-se da experincia

    docente e atribui significados a ela, ressignificando continuamente seus saberes e aes.

    Por outro lado, acreditamos que a busca de compreenso do processo

    formativo de cada um no se explica nem se limita ao espao temporal em que ocorrem

    essas duas disciplinas. A forma como as aes so produzidas e o modo como so

    mobilizados os saberes e valores na prtica de cada um tm razes na histria de vida de

    cada licenciando. Por isso, torna-se necessrio mergulhar retrospectivamente na prtica

    passada dos alunos, futuros professores, e prospectivamente em sua prtica emergente na

    escola, no mundo que constitui o trabalho docente, a sala de aula.

    Mas, antes de descrevermos metodologicamente esta pesquisa, faz-se

    necessrio, primeiro, discutir, ainda que brevemente, alguns conceitos bsicos que

    constituem nosso objeto de estudo. Estes conceitos so formao profissional, saberes

    docentes, experincia e prtica de ensino.

    1.3 Breve discusso conceitual e reviso bibliogrfica

    O professor, em atividade de aula, dentro das quatro paredes que delimitam

    seu campo prximo de trabalho, o principal responsvel, junto aos alunos, pelas aes

  • 27

    que desenvolve ou deixa de desenvolver. Sua autonomia para resolver os problemas que

    surgem neste ambiente de trabalho , entretanto, relativa. H fatores de conjuntura

    social, cultural e poltica que variam de escola para escola e interferem no

    desenvolvimento de suas aes em classe, os quais fogem de sua alada.

    H, por outro lado, situaes imprevisveis que surgem durante seu trabalho

    pedaggico e dizem respeito mais diretamente sua ao e competncia profissional.

    Essas situaes exigem decises e solues que deveriam estar ao alcance do professor.

    Dizemos deveriam porque dependem de sua formao e conhecimento profissional em

    saber lidar com situaes imprevisveis, como tambm exigem que o professor reflita

    em ao, mobilize saberes e tome, rapidamente, a deciso que, no momento,

    considerar a mais adequada.

    So essas mltiplas relaes contextuais da ao docente e a

    imprevisibilidade do que acontece em sala de aula que configuram a prtica pedaggica

    como complexa, exigindo dos profissionais que a exercem um alto nvel de reflexo e

    autonomia profissional. claro que essa autonomia depende, em grande parte, da

    formao inicial e continuada dos professores.

    A prtica pedaggica neste domnio pode ser concebida como um processo

    dinmico e diverso, da qual emergem saberes profissionais que vo se configurando num

    cenrio de reflexo e ao; estes saberes no se formam num nico espao e tempo

    determinados, mas fazem parte da trajetria do ser. Deste modo, acreditar que a

    formao est centrada em um nico momento do sujeito negar o seu movimento

    social, histrico e cultural. De fato, esse movimento faz parte da vida, j que estamos

    imersos em prticas sociais e a prtica educativa uma delas.

    Desta forma, pensar a constituio dos saberes dos professores somente no

    perodo da formao inicial, independente da continuada, isto , daquela que acontece no

    prprio processo de trabalho, negar a histria de vida do futuro professor... neg-lo

    enquanto sujeito de possibilidades. Esta viso que separa a formao profissional em

    inicial e continuada parece fazer parte do pensamento simplificador presente no modelo

    da Racionalidade Tcnica.

  • 28

    Como pensar, ento, uma formao profissional sob a perspectiva da

    complexidade? Petraglia (1999) entende que um curso de graduao visto como um

    todo pode considerar as disciplinas como partes integradoras e significativas, com

    suas caractersticas e qualidades individuais, as quais possuem estudos prprios,

    mas contribuem para a viso e compreenso de conjunto, na dimenso da

    complexidade do ser e do saber (p. 48).

    Entretanto, isso no o que predomina nos currculos dos cursos de

    graduao e, em particular, nas Licenciaturas. O que vemos com freqncia a

    compartimentalizao dos saberes cientficos organizados em disciplinas. Segundo

    Morin (2000), ... uma disciplina tende naturalmente autonomia pela delimitao de suas fronteiras (...). A fronteira disciplinar, sua linguagem e seus conceitos prprios isolam a disciplina das outras e dos problemas que a recobrem. O esprito hiperdisciplinar sujeita-se, nesse caso, a se formar, como um esprito de proprietrio que impede toda a circulao estranha na sua parcela de saber (65-7).

    Esse currculo disciplinar conhecimentos especficos e pedaggicos tem

    como objetivo formar professores aptos a desenvolverem uma prtica coerente com os

    saberes acadmicos. Assim, cada disciplina vincula-se a uma rea do conhecimento,

    cumprindo um objetivo especfico na formao profissional, dentro de um currculo

    proposto para atender s necessidades educativas da sociedade. Em suma, a formao de

    professores sofre uma interveno direta do contexto social, o qual define quais as

    competncias, habilidades e atitudes esperadas do futuro docente.

    Segundo Marcelo Garca (1999), a formao de professores ... no

    representa seno outra dimenso do ensino como atividade intencional, que se

    desenvolve para contribuir para a profissionalizao dos sujeitos encarregados de

    educar as novas geraes (p. 22).

    Com isso, atuais e futuros professores assumem o papel de especialistas em

    uma dada disciplina e armazenam informaes e conhecimentos a serem desenvolvidos

    na prtica pedaggica. Essa lgica concebe a formao profissional como pronta e

  • 29

    acabada, a qual parece negar o contexto dinmico e complexo no qual os profissionais

    da Educao iro desenvolver uma prtica social, afetiva e intelectual.

    Buscando uma outra concepo de formao docente, Marcelo Garca

    (1999) desenvolve o conceito de formao contnua, a qual se realiza integrando teoria e

    prtica em um movimento de reflexo-ao fundamentado nos saberes acadmicos e nas

    crenas e concepes que os atuais e futuros professores adquirem a partir de suas

    experincias. Porque, segundo Lortie (apud Marcelo Garca, 1999), "... os estudantes

    que iniciam um programa de formao j possuem algumas concepes, conhecimentos

    e crenas enraizados e interiorizados em relao ao que se espera de um professor, qual

    o papel de escola, o que um bom aluno, como se ensina, etc"(p. 85).

    Dito de outra forma, os saberes adquiridos nas prticas escolares anteriores

    so incorporados em um processo incidental, isto , no so intencionalmente

    transmitidos, mas so adquiridos de acordo com o contexto escolar e as necessidades e

    expectativas de cada sujeito.

    Do exposto at aqui, temos o desafio de tentar superar a idia da formao

    preparatria e partir para a idia de uma formao que articule os saberes acadmicos

    com os experienciais. Ou seja, necessrio pensar em uma formao em formao,

    considerando tambm as concepes, crenas e saberes que so mobilizados na

    produo do trabalho docente. Neste processo, o futuro professor constitui-se num

    movimento de ao reflexiva e de tomada de decises cotidianas, o qual contribui para o

    seu desenvolvimento profissional. Acreditamos que a superao da idia da formao

    preparatria s ser possvel quando assumirmos a perspectiva defendida por Freire

    (1998):

    ... fundamental que, na prtica da formao docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensvel pensar certo no presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrrio, o pensar certo que supera o ingnuo tem que ser produzido pelo prprio aprendiz em comunho com o professor formador (p. 43).

    A reflexo crtica assume, portanto, um papel importante na formao

  • 30

    docente, sem a qual nosso trabalho passa a ser automatizado dentro de uma abordagem

    reducionista, em que a rotina lhe d o tom. Passamos a trabalhar de forma repetitiva,

    reproduzindo o que est pronto e o que mais acessvel, fcil ou simples. Refletir, pois,

    acerca do contexto no qual estamos inseridos, com suas limitaes e possibilidades,

    permite-nos avanar por olhar o mundo escolar em sua dinmica e complexidade.

    Entende-se por reflexo a ao de pensar sobre o que se faz (Ges, 2001: 101), que

    faz parte do processo de criar e recriar a prtica pedaggica em sua complexidade. Pois,

    para Gmez (1992), a reflexo no um conhecimento puro, mas sim um

    conhecimento contaminado pelas contingncias que rodeiam e impregnam a prpria

    experincia vital (p. 103). neste sentido que compreendemos a reflexo: como um

    caminho passvel de rupturas, principalmente, com o pensamento simplificador, que

    busca indcios para compreender melhor o cotidiano escolar e desenvolver aes

    pedaggicas que integrem mais o aluno e o professor no processo de ensinar e aprender.

    Para aprofundar a discusso em torno da relao entre os saberes acadmicos

    e os experienciais que so mobilizados pelos estagirios em um contexto de iniciao

    prtica docente, abordaremos, a seguir, os saberes docentes e a disciplina Prtica de

    Ensino.

    Ao estabelecer uma discusso terica acerca dos saberes docentes, apoiamo-

    nos em alguns estudos que tematizam tal problemtica no contexto da formao

    profissional. Dentre alguns, destacamos aqui os trabalhos de Tardif, Lessard & Lahaye

    (1991); Barth (1993); Gauthier & Tardif (1997); Freire (1998); Gauthier (1998); Tardif

    (1999); Fiorentini, Nacarato & Pinto (2000).

    Inicialmente situaremos os pressupostos bsicos defendidos por cada um

    destes autores.

    Tardif et al (1991), por exemplo, definem ... o saber docente como saber

    plural, formado pelo amlgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da

    formao profissional, dos saberes das disciplinas, dos currculos e da experincia (p.

    218).

    Os saberes docentes desenvolvidos nas escolas, na viso dos autores, embora

  • 31

    ocupem uma posio importante nos processos de produo dos saberes sociais, alm de

    no serem socialmente reconhecidos como vlidos, parecem acentuar a desvalorizao

    profissional.

    Tardif et al (1991) argumentam que o saber da experincia constitui para os

    professores os fundamentos da prtica e da competncia profissional. Em suas

    palavras,

    A experincia provoca assim um efeito de retorno crtico (feedback) aos saberes adquiridos antes ou fora da prtica profissional. Ela filtra e seleciona os outros saberes, e por isso mesmo ela permite aos(s) professores(as) retomar seus saberes, julg-los e avali-los, e, ento, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validao constitudo pela prtica cotidiana (p. 231).

    O conceito de experincia destes autores leva-nos a pensar que ela constitui-

    se, para o estagirio que inicia sua experincia na docncia, em uma instncia mediadora

    de ressignificao dos saberes adquiridos durante a formao pessoal e profissional.

    Concebemos a ressignificao como um processo criativo de atribuir novos

    significados a partir do j conhecido, validando um novo olhar sobre o contexto em que

    o sujeito est imerso. Nesse sentido, nos aproximamos do conceito de ressignificao

    que vem sendo desenvolvido por Jimnez (2001):

    O termo re-significao vem sendo usado, nesse contexto de troca, partilha e de aprendizagem com outro, como um processo de produo de (novos) significados e (novas) interpretaes sobre o que sabemos, fazemos e dizemos... O processo de re-significao atua, portanto, sobre as experincias e os saberes em ao que vm sendo produzidos pelos sujeitos que se encontram para falar sobre eles. (p. 44)

    Desta forma, quando estamos imersos numa prtica social, em especial na

    sala de aula, nossas reflexes e significaes sobre o que sabemos, fazemos e dizemos

    podem constituir-se em algo formativo para cada um de ns. nesse processo de

    produo de significados e de ressignificao de saberes e aes que nos constitumos

    professores; ou seja, aprendemos a ser professor e professora no trabalho.

    no trabalho, portanto, que o professor renova e ressignifica os saberes

  • 32

    adquiridos durante todo o processo de escolarizao, passando, ento, a desenvolver seu

    prprio repertrio de saberes. Esse repertrio resulta daquilo que Gauthier et al. (1998)

    chama de reservatrio de saberes, o qual constitudo de saberes disciplinares: a

    matria; saberes curriculares: o programa; saberes das cincias da Educao; saberes da

    tradio pedaggica: o uso; saberes experienciais: a jurisprudncia particular; saberes da

    ao pedaggica: o repertrio de conhecimentos de ensino ou a jurisprudncia particular

    validada.

    Assim sendo, Gauthier et al. (1998) definem o saber como sendo ... os

    argumentos, os discursos, as idias, os juzos e os pensamentos que obedecem s

    exigncias de racionalidade, ou seja, as produes discursivas e as aes cujo agente

    capaz de fornecer os motivos que as justificam (p. 336-7).

    Barth (1993), ao tentar caracterizar o saber em movimento no contexto da

    prtica, o qualifica ... como sendo, ao mesmo tempo, estruturado, evolutivo, cultural,

    contextualizado e afetivo (p. 61). Ou seja, o saber no fixo; faz parte da

    construo pessoal evolutiva de cada um e, por isso, sempre provisrio, no tem fim.

    Assim, quando reavaliamos um saber, um conceito, este ser mudado a partir de nosso

    ponto de vista, tendo em vista a nossa experincia. Portanto, este saber, que vivido e

    experienciado em nosso cotidiano, em especial no mundo do trabalho docente, evolui

    como uma espiral.

    E, nesse processo, o nosso saber partilhado por todos que participam deste

    mundo. Como seres individuais e coletivos, partilhamos saberes num tempo e espao

    demarcados por uma realidade que nos impulsiona a ensinar e a aprender. Por isso, o

    saber interpretado dentro de um contexto vinculado a uma realidade sociocultural, que

    necessita da interao do eu com o ns. Por isso, assume tambm o saber como

    afetividade. Pensado, experimentado e vivido pelo sujeito, este saber afetivo influencia

    ... nosso modo de aprender a realidade e o modo de nos apreendermos a ns

    prprios (Barth, 1993: 84).

    Compreender o saber em construo romper com o entendimento do saber

    pronto e acabado e admitir um contexto escolar complexo, dinmico e plural, composto

  • 33

    por sujeitos (docentes e discentes) em formao. E, ainda, assumir-se como ser social e

    histrico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos,

    capaz de ter raiva porque capaz de amar (Freire, 1998: 46).

    Assim, aps discutir brevemente os saberes docentes com base na literatura,

    assumimos com Fiorentini et al (1999) o conceito de saber docente: como um saber reflexivo, plural e complexo porque histrico, provisrio, contextual, afetivo, cultural, formando uma teia, mais ou menos coerente e imbricada, de saberes cientficos oriundos das cincias da educao, dos saberes das disciplinas, dos currculos e de saberes da experincia e da tradio pedaggica (p. 55).

    Entendemos que esta concepo de saber nos ajudar a compreender melhor

    o nosso objeto de estudo, ou seja, o processo de vir a ser professor e professora na

    prtica docente, no contexto da Prtica de Ensino de Matemtica da Unicamp, a qual

    vem sendo concebida pelos seus docentes como instncia experiencial de formao que

    interliga ao, reflexo e investigao.

  • CAPTULO II

    SOBRE O PROCESSO METODOLGICO DA

    INVESTIGAO

    No captulo anterior tentamos descrever os antecedentes que me levaram a

    optar por este estudo, alm de discutir a problemtica relativa formao inicial do(a)

    professor(a) de Matemtica, delimitando como foco de nossa pesquisa o processo

    experiencial de formao do professor (a) de Matemtica que acontece na Prtica de

    Ensino de Matemtica e Estgio Supervisionado I e II (PEMES I e II) na Licenciatura de

    Matemtica da Unicamp. Esta opo foi motivada, de um lado, pela possibilidade de

    acompanhar mais diretamente os sujeitos da investigao em suas experincias de

    insero no trabalho escolar e, de outro, por se tratar de uma experincia diferenciada de

    formao, a qual tem como eixo de trabalho a investigao e/ou a reflexo sistemtica

    sobre a prtica pedaggica.

    Considerando que existem, na Unicamp, duas classes de Prtica de Ensino de

    Matemtica e Estgio Supervisionado uma desenvolvida na Licenciatura Noturna e a

    outra na Diurna , selecionamos dois sujeitos para um estudo mais sistemtico: uma

    licencianda do diurno (Ana) e um licenciando do noturno (Allan).

  • 36

    O ano de observao/investigao foi o de 1999. As Prticas de Ensino de Matemtica e

    Estgio Supervisionado I (1o semestre) e II (2o semestre) estiveram, nesse ano, sob a

    responsabilidade dos professores Dario Fiorentini (noturno) e Dione Lucchesi de

    Carvalho(diurno).

    A opo por poucos casos possibilita, segundo Gil (1988) e Ldke & Andr

    (1986), seu estudo profundo e exaustivo, com contornos claramente definidos,

    permitindo ... compreender melhor a manifestao geral de um problema, as aes, as

    percepes, os comportamentos e as interaes das pessoas (...) relacionadas situao

    especfica onde ocorrem ou problemtica determinada que esto ligadas (p.18-9).

    Objetivando investigar, como acontece, durante as disciplinas PEMES I e II,

    o processo de formao do futuro professor de Matemtica quando este tem a

    oportunidade de experienciar, na prtica escolar, a atividade docente, optamos pelo

    estudo de casos sob uma abordagem qualitativa. Nessa abordagem, a observao

    participante fundamental, pois ... possibilita um contato pessoal e estreito do

    pesquisador com o fenmeno pesquisado, o que apresenta uma srie de vantagens,

    uma vez que ... a experincia direta sem dvida o melhor teste de verificao da

    ocorrncia de um determinado fenmeno (Ldke & Andr, 1986: 26).

    Coerentemente com esta modalidade de pesquisa e com a questo

    orientadora de investigao, procurei lanar mo de instrumentos compatveis com a

    construo do material emprico. Estes instrumentos so:

    dirios de campo da pesquisadora; dirios de campo dos estagirios; material produzido pelos alunos no desenvolvimento das disciplinas (resenhas,

    reflexes, relatrios, memoriais, monografias);

    observaes e registros etnogrficos realizados durante os encontros de discusso terico-metodolgica na Unicamp;

    observaes e registros etnogrficos realizados durante as aulas ministradas pelos estagirios na escola;

    entrevistas semi-estruturadas individuais e coletivas (gravadas em udio e, posteriormente, transcritas).

  • 37

    Os dirios de campo, alm de constiturem uma fonte complementar s

    gravaes realizadas nos encontros na FE/Unicamp e na escola, serviram tambm para

    registrar nossas impresses iniciais durante a pesquisa, ou seja, permitiram levantar

    hipteses e estabelecer as primeiras interpretaes e reflexes acerca do processo de

    formao dos sujeitos da investigao.

    Os textos, produzidos pelos discentes durante as atividades de ensino nos

    dois semestres de 1999, representam material importante que pode oferecer indcios de

    mudana isto , ressignificao de saberes, idias e prticas no processo de

    formao de cada um.

    As observaes etnogrficas foram realizadas por mim na FE/Unicamp e na

    escola. Na Universidade, no 1 e no 2 semestres de 1999, observamos e participamos

    das atividades de ensino desenvolvidas pelos professores regentes Dario e Dione. Na

    escola, a partir do 2 semestre, observ