apostilla uff história da medicina - parte 6
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
51
Os Caminhos da Terapêutica
A terapêutica farmacológica dos nossos dias é uma prática relativamente recente. Até o
começo do século XIX, a maioria dos medicamentos ainda era de origem natural, de estrutura química
desconhecida. Na verdade, o que se denominava tratamento consistia mais em uma “abordagem”, do
que propriamente em procedimentos cirúrgicos ou farmacológicos. Isto é, envolvia emoções e relações
pessoais e incorporava fatores que determinavam crença e identidade. Hoje, acredita-se serem as
terapias introduzidas na segunda parte do século XX produto de uma mentalidade científica, em
contraste com as utilizadas antes, eficazes ou não, consideradas de base empírica ou mística.
Como evoluíram os caminhos da terapêutica, desde o templo de Epidauro até a poderosa
indústria farmacêutica? É certo dizer que utilizamos os medicamentos de forma racional, em total
coerência com as bases científicas da medicina moderna? Vejamos.
I - A medicina religiosa
A medicina exercida por Asclépio e
seus seguidores era quase completamente
religiosa. As curas, em sua imensa maioria,
eram milagres realizados pelo deus ou por
algum de seus animais favoritos, a serpente e o
cachorro. Em geral os templos se erguiam em
lugares saudáveis e de grande beleza. Além do
santuário dedicado a Asclépio, da fonte e do
bosque sagrado, havia também um lugar para
os pacientes dormirem o sono durante o qual
haviam de ser curados. O paciente, depois de
uma purificação preliminar mais ou menos
longa, por meio de sacrifícios, abluções e
jejuns, era admitido no templo. Por fim,
passava uma ou mais noites à espera do sonho
profético em que o próprio Asclépio viria curá-
lo ou, ao menos, dar-lhe instruções que,
interpretadas pelos sacerdotes, lhes
permitiriam recuperar a saúde.
A confiança no valor dos sonhos era
muito antiga e veio provavelmente do Egito.
Acreditava-se que, durante o sonho, a alma,
temporariamente liberta do corpo, entrava nas
regiões divinas e recebia avisos, conselhos e
ordens da parte dos deuses. Apagadas as luzes
e convidados os pacientes a um completo
silêncio e recolhimento, os sacerdotes
visitavam os enfermos, davam-lhes indicações
terapêuticas (que eles aceitavam como
provenientes do deus) e, talvez lhes
ministrassem medicamentos e até praticassem
alguns atos cirúrgicos, como a incisão de
abscessos. Conseguida a cura, ou o alívio dos
males, cabia ao doente manifestar o seu
reconhecimento, com ofertas e dádivas.
II - A medicina naturalista
A physis , para o médico hipocrático,
possuía o poder de regenerar a si mesma. A
medicina hipocrática faz do poder de cura,
intrínseco, da natureza um princípio
52
fundamental e, do médico, um auxiliar
cauteloso. O médico, como terapeuta, era um
servidor, um assistente da natureza. A
confiança no poder de auto-reconstituição e o
papel do terapeuta são muito claros nos textos
hipocráticos, onde não existe lugar para a
coincidência ou o acaso. O doente que se cura,
aparentemente sem nada ter feito. Realizou,
por instinto, o tratamento ou a dieta corretos. A
natureza é, além de formadora e mantenedora,
terapêutica: a natureza providencia seus meios
de cura. Isto não quer dizer que o médico seja
inútil, pois cabe-lhe prever o curso da doença,
isto é, fazer o prognóstico.
Reforça esta concepção a noção de que
não se deve tratar os doentes incuráveis,
identificados pela arte do diagnóstico e do
prognóstico. Segundo este preceito, o médico
só cura aquilo que a natureza cura, e só
estimula, ou corrige, o doente cuja natureza
ainda pode ser recuperada; de nada serve tentar
ir contra as forças naturais, ou procurá-las
onde elas não mais existem. O médico
intervém apenas como elemento regulador nas
relações entre o homem e seu ambiente. A cura
é entendida como “recuperação”,
“reequilibro”, e depende das decisões sobre o
regime de vida, de modo a melhor manter a
ordem natural.
Na medicina naturalista, a
observação do doente era minuciosa, metódica:
o aspecto do doente, sua posição no leito, a
agitação, a quentura, etc. Se a doença é uma
luta entre a força curativa da natureza, que
tende a restabelecer o estado normal, e as
causas da moléstia que o perturbam, o
verdadeiro agente da cura é a natureza, não o
médico, nem os remédios. A função do médico
é auxiliar esta força natural, por todos os meios
ao seu alcance, a vencer a doença, e pôr o
paciente nas condições mais favoráveis, é não
perturbá-la por uma ação inadequada.
“Primeiro, não prejudicar”, diz o preceito
hipocrático.
Como cada doente é um caso
individual, o diagnóstico da doença, como um
quadro definido, não era possível e, aliás, não
fazia falta. A preocupação importante era
compreender o curso da doença, prever a sua
evolução e o seu modo de término, isto é,
estabelecer o prognóstico. A capacidade de
previsão do médico, sinal de sua compreensão
do problema clínico e garantia do seu domínio
dos meios próprios para debelar o mal,
contribuía para aumentar a confiança do
paciente na pessoa do “técnico”, daquele que
dominava a tekné.
Os meios dietéticos e terapêuticos de
que Hipócrates podia dispor - caldo e papas de
cevada, hidromel (mistura de água e mel),
oximel (mistura de vinagre e mel),, vinho,
algumas plantas medicinais, purgativos,
sangrias, banhos e ungüentos, exercício físico
ou repouso - parecem-nos, hoje, modestos.
Não devemos, porém, esquecer que a
terapêutica, indistinguível da dietética, tinha
por objetivo, não o curar, mas permitir que a
natureza realizasse a cura.
53
III – Galeno
A medicina da Escola de Cós domina
enquanto a filosofia e a sociedade gregas estão
no apogeu. E, durante o período helenístico,
com a hegemonia de Alexandria na cultura
grega, começa a mudar. As influências
orientais, trazidas por Alexandre, o Grande,
oferecem novas drogas, logo incorporadas pelo
gregos. O aumento dos conhecimentos e da
utilização de ervas leva à distinção das funções
de farmacêutico e médico.
Ao tempo do domínio romano,
encontram-se descritas 950 substâncias
curativas, enquanto o Corpus Hippocraticum
não apresenta mais do que 250. Contudo, o
formador definitivo da terapêutica ocidental foi
Claudio Galeno (130-201 d.C.). Galeno,
embora seguidor de Hipócrates, apresenta uma
terapêutica que difere dos preceitos mais gerais
da escola de Cós. E, através do uso extensivo
da noção de doença como um desequilíbrio de
humores, reforçou a utilização de catárticos,
principalmente a sangria.
A terapêutica galênica visava restituir
o equilíbrio dos humores, perturbado pela
doença. Além de uma complexa matéria
médica, Galeno servia-se da dietética, da
sangria, da aplicação de ventosas, do repouso,
do exercício, da hidroterapia, da massagem,
etc. Galeno criou e defendeu a teoria de se
tomar remédios com a maior quantidade
possível de substâncias, pois o organismo
escolheria a mais conveniente. As propostas
terapêuticas de Galeno reforçaram o uso de
dois produtos - originários, provavelmente da
Alexandria, no século III a.C. - o
mithridaticum e a theriaka, que seriam
antídotos contra envenenamentos. A
composição desses produtos era cara e
complicada, e variava muito entre os diversos
fabricantes. Contudo, suas indicações se foram
ampliando, juntamente com a expansão do
conceito de veneno. Por exemplo, quando as
pestes passaram a ser entendidas como
“envenenamento do ambiente”, houve
oportunidade para o emprego desses produtos.
Por fim, a theriaka vira uma espécie de
panacéia, pois serve para tratar tudo e, em sua
composição, entram de 64 até 100 substâncias.
Assim, contra sua própria opinião,
Galeno não deve ser considerado um terapeuta
hipocrático. Sua proposta de ministrar uma
polifarmácia, para que o organismo escolha a
melhor substância, não se confunde com a
idéia de que o organismo busca, por si só, o
regime mais adequado ao seu estado. Não se
vê, em Galeno, o mesmo respeito pelo
organismo, a preocupação de não corrompê-lo,
nem a idéia de cura como resultado de
autodesenvolvimento. A terapêutica galênica -
formada pela composições de polifarmácia e
os catárticos (sangrias, eméticos, purgantes e
exsudatórios) - instalou-se por 1500 anos, na
Europa.
54
IV - A Alquimia
Sabe-se que a palavra alquimia é um
vocábulo árabe. As palavras-chave da alquimia
são transmutação, inversão e fusão. O primeiro
livro conhecido desta matéria, escrito por Bolo
de Mendes, chama-se “Física e Mística”, e data
do século II a.C., portanto ainda no período
helenístico. Na sua primeira página encontra-
se o seguinte aforismo:
“Uma natureza se regozija na outra;
uma natureza triunfa sobre a outra;
uma natureza domina a outra”.
E a medicina ocidental irá caminhar
da natureza curadora para a natureza que se
regozija na transmutação. Agora, em pleno
cristianismo, a saúde não está mais no corpo e
sim na alma, fenômeno que, mais do que
prescindir do corpo, o tem como adversário.
Neste novo contexto, Higéia estará
inteiramente deslocada. A natureza não tem
forças próprias; o homem já não se esforça
para se desenvolver, mas para se purificar, ou
para transformar sua natureza imperfeita.
Não há nenhuma contradição entre a
visão cristã e a alquimia. A hóstia se
transubstancia no corpo de Cristo; o homem
que a ingere se transforma de pecador em puro.
Igualmente, os alquimistas procuram, por
todos os meios, a substância universal, capaz
de realizar transformações instantâneas. De
início, esta investigação é muito ampla e inclui
as tinturas, a pedra filosofal e os elixires. Com
o passar do tempo, a idéia de transmutação
liga-se à idéia de sabedoria: o verdadeiro
objetivo é uma purificação mental, com vistas
à salvação.
Na Alta Idade Média, este fato ainda
não estará muito visível na medicina, pois as
práticas terapêuticas correntes eram uma
mistura de receitas celtas e germânicas,
enquanto nas abadias se desenvolvia um
receituário com base em ervas. Os livros
médicos eram apenas listas de fórmulas,
compêndios de matérias médicas, elaborados a
partir de tradições empíricas e de leituras,
principalmente, de Galeno. Mais tarde, ao
redor do século X, com as Cruzadas e as
conquistas árabes, a medicina tomou um novo
impulso. A cultura árabe traduziu, absorveu e
difundiu os textos do Corpus Hippocraticum,
compilou o extenso receituário hindu, fez
estudos próprios de anatomia, e os cotejou com
os de Galeno. Com os árabes, alguns preceitos
de higiene e de dieta reingressaram à cultura
européia; mas as propostas terapêuticas dos
árabes se apoiavam na versão galênica da
teoria humoral e nos preceitos da polifarmácia
e da alquimia. Aliás, seus conhecimentos dos
metais aumentaram a aproximação entre a
medicina e a alquimia, e enriqueceram o
receituário europeu com as primeiras fórmulas
metálicas, principalmente de mercúrio e
arsênico, utilizados como catárticos. Não
podemos esquecer que, neste momento, os
critérios de verdade na medicina, na filosofia e
em todas as áreas de conhecimento eram a
tradição e os dogmas religiosos.
55
V – Renascença
A Renascença, aliada à descoberta do
Novo Mundo e suas flora e fauna, abre um
novo período para a terapêutica. Embora
procure inspiração na antigüidade clássica, a
Renascença não põe a natureza no mesmo
plano da physis . O homem renascentista, ao
recusar obediência ao dogma religioso e ao
afirmar o seu próprio poder criativo, instala-se
no mundo mais como um herdeiro de Deus,
portanto mais como “senhor da natureza” do
que como parte da mesma. O modelo do
médico renascentista é o suíço Paracelso
(1493-1541), figura bastante controvertida na
história da medicina. Personagem típico de seu
tempo, Paracelso aliava enorme vontade em
adquirir conhecimentos a um intenso
misticismo. Considerado louco, truculento,
imprevisível, boêmio, curava os sifilíticos e
proferia violentas declarações contra os
médicos seus contemporâneos. Era violento
inimigo da tradição. Em praça pública,
queimou livros de Galeno, com os quais,
declarou, nada ter aprendido. Além disso, não
falava nem escrevia em latim, a língua dos
letrados, mas em alemão, tal como o povo
rude.
Para ele, as quatro bases da medicina
eram: a alquimia, a astrologia, Deus e a
natureza. Sua escolha terapêutica seguia a
“Teoria das Assinaturas”, segundo a qual a
natureza fornecia sinais do valor terapêutico
das ervas. Assim, a noz, que tem olhos
desenhados na casca, servia nas doenças
oftálmicas e a folha, com feitio de rim, nas
renais. Apesar destas propostas de medicação
específica por doença, ele também receitava
“panacéias”, principalmente sua “pílula
eterna”: um comprimido de antimônio,
ingerido e recuperado nas fezes, repetidas
vezes, e de efeitos alquímicos no organismo.
Em todo caso, Paracelso operou uma revolução
salutar na farmacopéia, ao manipular,
pessoalmente, os remédios extraídos das
plantas e os de origem mineral. Ele foi o
pioneiro na criação de composições que têm
por princípio o ferro, o enxofre e o mercúrio,
do qual verificou a ação específica na sífilis.
Também foi o primeiro a observar que certos
venenos, quando dosados com cautela, podiam
transformar-se em medicamentos.
Do final deste período em diante, os
médicos se dividiram em diversas escolas
terapêuticas, a misturar, cada uma a seu modo,
teorias e práticas antigas com conhecimentos
recentes. Havia os seguidores de Galeno
(tradicionalistas e humoralistas); os espagiritas
- seguidores de Paracelso - que destilavam e
purificavam suas drogas e deixaram
descendentes, os quimiatras; os ecléticos, que
tentavam validar todas as propostas; os
solidistas, que desenvolviam teorias localistas
da doença, buscavam lesões visíveis, e
rejeitavam a teoria humoral. Todos faziam uso
intenso de drogas catárticas, independente de
qual teoria usavam para justificar a
necessidade de eliminação. Do mesmo modo,
independente de suas escolas, todos
terminavam por utilizar as mesmas drogas, por
tentativas. Ou seja, utilizava-se o mesmo
medicamento para inúmeras doenças e os
doentes terminavam por fazer uso de todas as
terapêuticas. A sangria, o arsênico e o ópio
56
eram usados rotineiramente e, assim,
permaneceram até quase o século XX.
Assim, a terapêutica seguiu, de
Galeno ao século XIX, uma trajetória de caos
crescente. Entretanto, a denominação geral de
“terapêutica galênica” tem sua razão de ser,
pois as mudanças consecutivas, tomando-se a
Escola de Cós como ponto de referência, só
aprofundaram a ruptura. Iniciada na própria
Grécia, no período helenístico, consolidada por
Galeno e desenvolvida, depois, ao longo da
Idade Média e da Renascença, a cura passou a
vir de algo externo ao homem, algo que o
transforma ou purifica: Panacéia venceu
Hygéia.
VI – Iluminismo
Com a chegada do Iluminismo, no
século XVII, este panorama começa a mudar.
E, ainda mais visivelmente, no século XVIII, o
Século das Luzes.
O século XVII constitui o ápice do já
referido caos terapêutico. A hegemonia ainda
está com os quimiatras e seus metais, ligados
ao misticismo. Ao lado de suas fórmulas, a
quina - proveniente da América - começa a ser
amplamente utilizada, com base apenas em sua
eficácia empírica. O uso ds sangrias e das
demais práticas purgativas milenares se
intensificou, e os médicos passaram a
prescrever, também, amuletos e penitências,
pois a crença na doença como resultado de
pecados e possessões - herança da Idade Média
- sobrevivia ao início Renascença.
O racionalismo, típico desta época,
termina por varrer do mapa as concepções
mágicas da natureza, que passa a ser entendida
na transparência de linhas geométricas: o
racionalismo iluminista considera que o real é
racional. Não existem mistérios, inclusive
divinos, que a razão humana não consiga
compreender. Apenas na razão deve o homem
confiar para conhecer a si mesmo, relacionar-
se com Deus e com o mundo todo. Mudam,
assim, mais uma vez, a observação e a
interpretação da natureza. Da interpretação de
sinais obscuros, a serem decifrados; da Teoria
das Assinaturas, de Paracelso, chega-se a uma
leitura direta e descritiva dos fenômenos e
elementos naturais. O mundo racional é claro:
apenas pela observação, através dos sentidos,
será possível descrevê-lo, sem necessidade de
nenhuma interpretação. O entendimento e o
conhecimento vêm da ordem, da arrumação
dos fatos observados. Se posto em ordem, tudo
será compreendido e conhecido, como faz, por
exemplo, a História Natural com a fauna e a
flora. Assim, o elemento chave do
conhecimento clássico não é tanto a
“matematização” do mundo; esta é apenas uma
poderosa linguagem, um instrumento da
necessidade de ordenar, dar hierarquia e
classificar coisas e seres.
A confiança na harmonia universal,
sustentada pela razão, traz modificações nas
concepções de doença e tratamento. A doença
deixa de ser produto de magia ou possessão e
volta a ser um evento natural. Torna-se um
objeto de estudos, a ser classificado e ordenado
em seu “reino”. Cria-se uma “Medicina
Classificatória”, semelhante à História Natural:
57
cada doença é vista como um ser com
existência própria, a se observar e descrever
nos seus detalhes, a classificar em família,
ordem e espécie.
Esta medicina é defendida pela elite
dos médicos do século XVII e XVIII, como
Sydenham (1624-1689), na Inglaterra, e
Cabanis (1757-1808), na França. Desenvolve-
se junto com uma proposta renascentista: a de
um retorno à natureza e ao emprego das forças
naturais como fonte de saúde e de cura. Esse
movimento encontra defensores em muitos dos
pensadores destes séculos, como Montaigne
(1533-1592), Descartes (1596-1650) e Leibniz
(1646-1716); a associarem a confiança na
razão e na bondade divinas à idéia de natureza
mantenedora e curativa. Para este filósofos
racionalistas, a Razão Divina não deixaria que
o homem se visse entregue, sem recursos ao
sofrimento; tanto o seu organismo possuía
forças próprias, como a natureza oferecia
meios curativos. Como tudo o mais, a busca da
cura tinha ter base em propostas racionais,
derivadas da observação e da classificação da
doença e de elementos da natureza que
pudessem servir como remédio. Assim, graças
ao Iluminismo, retornam algumas concepções
hipocráticas de saúde, doença e cura, e voltam
alguns médicos a se chamar de hipocráticos.
VII - Ceticismo Terapêutico
Em meados do séc. XVIII, surgiu um
importante movimento de crítica às condutas
terapêuticas, um questionamento da habilidade
do médico de intervir e mudar o curso da
maioria das doenças. Esta tese punha ênfase na
natureza limitada de grande número de casos, e
concluía consistir a tarefa dos médicos apenas
em ajudar o processo natural de recuperação,
com o mínimo de "medidas heróicas". Essa
proposta não-intervencionista se baseava, em
parte, na controvertida eficácia dos meios
terapêuticos disponíveis. Assim, o
hipocratismo dos iluministas, confiante na
capacidade dos sentidos de ler a natureza e
conhecer sua ordem intrínseca, foi uma fonte
inspiradora para a atitude dos novos cientistas
frente ao tratamento: o ceticismo terapêutico.
Isto é, permitiu pensar que, na carência de
certezas, o melhor é não fazer nada.
Entretanto, esta passividade não seria
imobilista, pois se considerava que a natureza
curava.
Com esta convicção, os clínicos de
Paris abandonaram medicações tradicionais e
buscavam terapêuticas coerentes com a visão
de mundo de que era possível um
conhecimento seguro sobre as coisas. A
“observação rigorosa” é imperativa para estes
médicos, não mais com fins classificatórios,
mas para interpretar e concluir. Bichat critica a
observação clássica, dizendo ser inútil
subdividir a matéria médica em reino animal,
vegetal e mineral; os medicamentos deveriam
ser classificados segundo seus efeitos no
organismo:
“Os mesmos medicamentos são
usados, sucessivamente, por humoralistas e
solidistas. As teorias mudam, mas os
remédios continuam os mesmos. Sempre
que usados, apresentam os mesmos efeitos,
58
independente da opinião ou da teoria dos
médicos. Isto prova que só se pode avaliá-
los através da observação”.
Estes médicos céticos representaram o
primeiro exemplo de uma atitude experimental
em terapêutica. Muito criticados pela ênfase no
diagnóstico e seu descaso frente ao tratamento,
podemos supor que evitaram inúmeras mortes
iatrogênicas e estimularam a busca de
medicamentos eficazes. Assim, Laënnec
(1781-1826), o inventor do estetoscópio,
passou a prescrever apenas “ar puro” para os
tuberculosos, por observar que os doentes da
área rural, sem qualquer medicação, se
curavam mais amiúde do que os tratados com
os vários remédios da época. Foram
reintroduzidos, nas primeiras décadas do séc.
XIX, alguns recursos naturais, como a
hidroterapia e o uso de dietas.
Charles Pierre Louis (1787-1872), em
1828, fez uma avaliação do valor terapêutico
da sangria, ao comparar a evolução dos
doentes muito e pouco sangrados (já que não
dispunha de casos sem sangria), e demonstrou
a nocividade desta prática. Suas conclusões
surgiram através de quantificações, sendo
Louis considerado o pai da estatística médica e
da introdução da idéia de probabilidade no
raciocínio clínico.
O ceticismo também foi praticado em
Viena e disseminou-se pela Inglaterra,
Alemanha e EUA, e chegou e assumir um tom
de verdadeiro niilismo terapêutico,
principalmente com Skoda (1805-1881), em
Viena; Oliver Wendell Holmes, nos EUA (“Se
toda a matéria médica, tal como se encontra
hoje, fosse lançada ao fundo do mar, seria
muito melhor para a humanidade e muito pior
para os peixes”) e Magendie (“Vê-se bem que
nunca tentaram não fazer nada”), em Paris.
O ceticismo terapêutico tornou-se
comum nos meios médicos, sofisticados,
americanos, sem encontrar, imediatamente, a
mesma receptividade entre a maioria dos
médicos. Este empiricismo radical negava
utilidade a qualquer medida terapêutica não
provada em ensaios clínicos, e pareceu atender
às exigências dos meios acadêmicos europeus,
mas não às necessidades da prática cotidiana.
Assim, as velhas formas de tratamento não
desapareceram de imediato, mas passaram a
ser empregadas menos vezes e, em geral, em
menores doses.
Talvez, o nome de maior destaque
entre os formuladores e divulgadores deste
ceticismo médico tenha sido William Osler
(1849-1919). Contemporâneo da descoberta do
bacilo anthrax (1849) e do Haemophilus
pertussis (1906), pareceu evidente a Osler
serem a bacteriologia e a patologia os
caminhos naturais para o desenvolvimento da
medicina. Para alguém apaixonadamente
interessado em anatomia patológica, era
irrealista supor que lesões tão graves pudessem
ser prevenidas ou curadas por uma substância
química. O livro de terapêutica de Osler
(Handbook of Therapeutics ), publicado em
1889, é uma clara demonstração de seu apenas
moderado interesse pelo tema. "As primeiras
páginas tratam sucessivamente de oxigênio
(uma página), do uso da água (três páginas e
meia), do frio (vinte páginas), do gelo (duas
páginas) e de banhos frios e quentes (três
páginas). Então, Osler se refere a elementos e
compostos inorgânicos e, só na página 293
aborda um remédio específico, a ipecacuanha.
59
Não cabe comentar a extravagância, a
nossos olhos, de alguns destes remédios, mas a
parcimônia de sua descrição. Prescrevia-se um
número muito maior de substâncias; mas aqui
estava o primeiro professor de terapêutica da
Inglaterra a desprezar a maioria das
substâncias, em favor de métodos físicos ou
dos íons inorgânicos mais simples. A partir
daí, a terapêutica sofreu um considerável
atraso em seu desenvolvimento.
Desde 1809 já havia análises bem
sucedidas do mecanismo de acão de algumas
drogas; entre 1850 e 1870, se fizeram
surpreendentes estudos de antagonismo entre
determinadas substâncias. Contudo, embora
houvesse diversas demonstrações sobre como
descobrir ou sintetizar e introduzir uma nova
droga, desde o primeiro College
Pharmacopoeia, de 1618 até o British
Pharmacopoeia, de 1864, houve uma redução
do número de substâncias, de cerca de 2.000
para 650 ítens; e também uma redução na
complexidade das preparações.
Assim, a medicina moderna nasceu
sem uma proposta terapêutica própria, e se
caracterizou mais como um modo de
abordagem e diagnóstico das doenças do que
como um método de tratamento e cura. A
revolução de Bichat, se permitiu uma nova
compreensão do processo de doença, através
da associação entre sintoma e lesão, não
permitiu nenhuma inferência terapêutica. Em
princípio, a fisiologia, ao lado da química,
levou à elaboração dos primeiros sistemas
terapêuticos livres das teorias dos humores, de
Galeno, e dos últimos resquícios da alquimia.
A Magendie se pode atribuir a
conformação definitiva do que se entende hoje
por farmacologia e fisiologia. Ele desenvolveu
um método realmente experimental em suas
pesquisas. E, apesar de sofrer considerável
oposição por usar animais, realizou uma série
de estudos sobre o sistema nervoso, o
peristaltismo e a formação da imagem na
retina, entre muitos outros, sendo considerado
o pai da medicina de laboratório.
Seus trabalhos foram igualmente
importantes para a farmacologia. Já no início
do século, em 1805, a morfina tinha sido
destilada do ópio e, entre esta data e 1832,
mais de uma dezena de substâncias, algumas
utilizadas até hoje (estricnina, colchicina,
quinina, cafeína, codeína), foram destiladas e
purificadas por químicos e farmacêuticos.
Além de colaborar nestas descobertas,
Magendie promoveu a utilização destes novos
produtos na clínica, na mesma medida em que
seu ceticismo punha da lado os métodos
antigos. Ao longo do séc. XIX, Claude
Bernard (1813-1878) continuou o trabalho de
Magendie, refinando o método experimental e
utilizando animais nas observações e testes de
hipóteses, assim consolidando a fisiologia
como disciplina rigorosa e independente.
Não obstante o ceticismo destes
líderes, e o surgimento de algumas medicações
baseadas na lógica científica, a prática da
medicina continuava a ser variada e a seguir
diferentes métodos. Como vimos, os novos
conhecimentos sobre o corpo e a doença - e
mesmo os primeiros produtos da farmacologia
- pouco alteraram a arbitrariedade nas práticas
terapêuticas. De fato, a medicina do séc. XIX
encontrava-se na situação incômoda de
competir, pelo mercado de trabalho e por
prestígio, com outros terapeutas e sistemas, em
60
uma crise que se arrastava desde o séc. XVII.
E, muitas vezes, o clínico tinha menos
popularidade que charlatães e curandeiros.
No séc. XIX, o aumento da difusão
de conhecimentos técnicos e eruditos permitiu
ao chamado charlatão ganhar força diante da
“corporação médica”, pois o domínio da
palavra escrita se ampliou para grupos menos
fechados. O aprendizado de conhecimentos
tradicionais e a veiculação de novas idéias
aumentaram e se ampliaram a absorção da
ciência médica e a capacidade de contestá-la.
Assim, neste momento, a luta entre um
conhecimento “oficial” e um paralelo, ou
ilegítimo, dava-se entre cidadãos de um
mesmo nível, diferentemente de tempos
anteriores, em que as feiticeiras e os bruxos
eram marginais e clandestinos na sociedade. O
desprestígio dos clínicos se evidenciava, por
exemplo, na abundância de publicações
intituladas “medicina sem médico”, editadas
com o objetivo de fornecer ao leitor a instrução
necessária para se tratar; algumas dessas
publicações faziam questão de frisar que seus
autores, embora soubessem anatomia,
fisiologia e matéria médica, não eram médicos,
isto é, não ofereciam perigo!
VIII – Homeopatia
Um grupo de médicos naturistas
escapou, em parte, deste descrédito: os
homeopatas. O fundador da homeopatia,
Samuel Hahnemann (1755-1843), além de
criticar a falta de cuidado e respeito ao doente,
propunha uma concepção vitalista; do ponto de
vista terapêutico, tinha como princípio
doutrinário a regra básica de que “os
semelhantes são curados pelos semelhantes”.
O objetivo fundamental deste método é
descobrir a característica básica do indivíduo
para, em seguida, tratá-lo com o remédio
similar. Esta essência é procurada desde os
sintomas relatados pelo paciente, organizados
segundo uma hierarquia: os sintomas mentais
são considerados uma expressão mais pura do
desequilíbrio, enquanto os sintomas físicos
devem ser relativizados. De acordo com
Hahnemann, a tarefa do médico é a cura do seu
paciente, e não lhe cabe fazer teorias sobre as
doenças. Para a homeopatia, a doença não é
uma entidadade, mas um desequilíbrio da
“energia vital”.
A teoria terapêutica homeopática
conseguiu unir a idéia do poder de cura da
natureza ao socorro do remédio, uniu as ações
de Higéia e Panacéia: para a homeopatia, a
natureza curativa não é um severo exercício de
ascetismo e controle, de niilismo terapêutico e
recurso exclusivo às próprias forças, pois o
homem pode valer-se da medicação. Esta, por
sua vez, não é misteriosa ou atemorizante; mas
uma natureza semelhante, que se une à outra
para fortalecê-la e não para transformá-la.
61
IX - Bacteriologia: em busca das causas
Os últimos vinte anos do século XIX
assistiram à uma transição. A idéia de tratar o
doente pelos sintomas, de considerar a idéia da
doença específica mudou. Anteriormente, a
discussão sobre infecção e contágio se
restringia aos domínios da etiologia, com a
qual a terapêutica nada tinha a ver. A partir de
agora, a doença existe, tem uma causa a ser
pesquisada, para servir de indicação para o
melhor tratamento.
Os clínicos, combatentes do
ceticismo e esperançosos de uma farmacologia
e uma terapêutica com base na fisiopatologia e
na clínica, não se convenceram, de imediato,
da importância da microbiologia para o seu
trabalho. Para eles, a existência, ou não, de
microorganismos e de um raciocínio
etiológico, não era fundamental para a
terapêutica. Dominava a idéia de que o
remédio era específico para cada doente, e não
para cada doença. Assim, o combate ao agente
etiológico através de substâncias tóxicas não
só não era importante, como podia representar
um risco para o paciente. A resistência
apresentada por muitos médicos - e mesmo por
cientistas, como Claude Bernard - à idéia de
que as doenças fossem provocadas por
microorganismos, não é simples produto do
obscurantismo ou falta de fé na ciência. Para
estes clínicos, a crença na positividade da
natureza, em Higéia, isto é, na possibilidade da
natureza providenciar remédios e forças
intrínsecas benignas, os fazia duvidar - não da
existência de bactérias - mas do valor do
conhecimento das bactérias para a medicina.
Se as idéias de Pasteur (1822-1895)
não convenceram logo, também não
demoraram muito a fazê-lo. Contribuiram para
isto o surgimento dos postulados de Koch
(1834-1910), a descoberta consecutiva de
novas bactérias e o salvamento dramático de
um jovem, com o soro anti-rábico, realizado
por Pasteur em 1885. Em 1889, Behring
(1854-1917) conseguiu controlar a difteria, em
crianças doentes, com o soro antidiftérico.
Assim, a microbiologia tornou-se indiscutível
na medicina: ao invés de ser apenas um ítem
da discussão etiológica, passou a interferir na
conduta sobre a doença.
O mecanicismo estava presente na
medicina desde o séc. XVII, com filósofos,
como Descartes (1596-1650), e naturistas,
como Hoffmann. Entretanto, para os clínicos,
da segunda metade do séc. XIX até Pasteur, o
vitalismo era o pilar das propostas terapêuticas.
Procurando atuar sobre o conjunto do
organismo, eles pressupunham existir uma
inteireza e uma singularidade do ser vivo em
coerência com uma concepção vitalista de
organismo.
Até 1890, o vitalismo foi a fonte de
argumentação mais utilizada, senão para o
conjunto das disciplinas da medicina, pelo
menos, no momento de instituição da
terapêutica. A partir desta data, a explicação
mecanicista ganhará ímpeto também neste
terreno. Igualmente, a concepção ontológica, a
idéia da doença como um ser independente,
começou a ganhar espaço. Não mais a doença
dos clássicos, classificada pelos parentescos
dos sintomas, mas, mesmo assim, uma
62
entidade com existência autônoma que penetra
o organismo.
Em 1892, o papel dos germes na
causação das doenças não provocava mais
dúvidas, e as propostas terapêuticas
começavam a se alterar. O micróbio traz uma
nova cisão para a clínica, entre a causa da
doença e suas consequências, entre a doença e
o doente, entre o doente e o remédio. Além
disso, produz uma divisão dentro do próprio
organismo, com a pretensão de se atuar de
maneira localizada, sem afetar o conjunto do
organismo; essa pretensão só foi possível
graças à noção do corpo montado em peças
autônomas, peças que se relacionam em suas
funções, e não mais, como para os vitalistas,
aspectos diferentes de um ser indivisível.
De agora em diante, o remédio passa
a ser específico para a doença, e não para o
doente, e mais: específico contra a causa da
doença, não contra as suas consequências no
organismo. Assim, a noção de agente
etiológico criou, definitivamente, a doença
específica. Esta criação orientou todas as
demais disciplinas médicas - inclusive a
fisiopatologia - para a identificação de doenças
específicas, individualizadas por suas
etiologias.
Assim, os livros de terapêutica
mudaram: a terapêutica deixou de ser uma arte,
tornou-se uma ciência aplicada. As críticas ao
emprego de medicamentos foram, até Pasteur,
mais voltadas para encontrar remédios
efetivos, para o indivíduo, que não se
organizassem em extensas listas de medicação
sintomática. Após a consolidação da teoria
microbiana, há uma mudança nestas críticas. O
empirismo começa a ser visto como um
recurso grosseiro, um fator de atraso. Perde
importância, assim, a observação à beira do
leito como uma prioridade para a tomada de
decisão. A idéia de que a ciência deve guiar o
médico, impõe-se.
X - Quimioterapia: as “balas mágicas”
A quimioterapia, isto é, a
farmacologia científica, distante do mundo
natural, desenvolveu-a o químico Paul Ehrlich
(1854-1915). Ao pesquisar corantes
específicos para as diferentes estruturas
celulares, ele imaginou ser possível sintetizar
substância químicas capazes de bloquear,
especificamente, as células dos
microorganismos patogênicos.
Em 1881, Ehrlich passou a empregar
o corante azul de metileno - já aproveitado por
Robert Koch na identificação do bacilo da
tuberculose - e, a seguir, desenvolveu um
corante de alta especificidade para o bacilo de
Koch. Seu trabalho sobre antitoxinas o
persuadira de que o corpo podia abrigar
substâncias letais a microorganismos
específicos, embora inofensivas sob qualquer
outro aspecto. Imaginou, então, que esses
corantes poderiam ser mais do que
instrumentos de laboratório, fornecer um meio
específico para atacar micróbios. E partiu em
busca dessas substâncias químicas, desse
míssil teleguiado, dessa “bala mágica” dirigida
apenas contra o germe.
63
O primeiro triunfo real deu-se em
1904, quando, após selecionar numerosos
corantes de benzopurpurina, Ehrlich chegou ao
primeiro quimioterápico, o vermelho Trypan,
com o qual curou camundongos acometidos da
doença "mal das cadeiras", causada pelo
tripanossomas. O caráter revolucionário deste
primeiro composto não obteve repercussão
social na Europa, pois o composto atuava
sobre uma doença pouco conhecida.
Em 1905, Fritz Schaudinn identificou
a causa da sífilis, o Treponema pallidum .
Devido à semelhança do treponema com o
tripanossoma, Ehrlich começou a testar suas
substâncias sintéticas também contra o
treponema e, por volta de 1907, já havia
produzido e selecionado mais de 600
compostos arsênicos. Em 1909, descobriu-se
que o composto de nº 606 era tanto ativo
quanto específico contra o agente da sífilis. A
nova droga recebeu o nome de Salvarsan e foi
usada, pela primeira vez, para tratamento da
sífilis no homem, em 1910. Neste momento,
surgia a terapêutica de bases científicas, que se
consolidou com a síntese das primeiras sulfas,
em 1937. Em 1938, foi introduzida a fenitoína;
em 1939, a petidina; em 1941, a penicilina; em
1943, os primeiros derivados da 4-
aminoquinoleína; em 1947, a estreptomicina;
em 1948, a clortetraciclina e o cloranfenicol;
em 1951, a isoniazida; em 1951, a
procainamida, etc.
Assim, Panacéia voltou à cena e
trouxe consigo esperanças tão antigas quanto
as provocadas pela teriaga, que tornaria o
organismo invulnerável. Que não sejam mais
ervas colhidas em ocasiões especiais, ou
chifres de animais, é secundário. O importante
é que a crença nas drogas voltou de forma
poderosa e com extrema ampliação de
expectativas, em relação ao passado: não
apenas cada homem medicado ver-se-á livre de
todos as doenças, mas toda a humanidade
conseguirá resistir às agressões externas.
XI - Do Ceticismo à Onipotência
As pesquisas dos laboratórios
farmacêuticos se traduziram em substâncias
que forneceram aos médicos novos
instrumentos de intervenção, e transformaram
radicalmente a Medicina. A tecnologia
terapêutica simboliza o desejo e a capacidade
de modificar a história natural das doenças e,
por isso, suas implicações vão muito além de
uma atividade terapêutica específica. Os
medicamentos constituem, hoje, um
instrumento central para a prática médica; são
o resumo da atitude e das esperanças em
relação ao curso de uma doença; relacionam-se
com a compreensão e interpretação das
doenças e as infinitas possibilidades de cura.
Em conseqüência, acha-se amplamente
difundido o sentimento de que "para tudo há
um remédio" ou, na pior das hipóteses, haverá!
Tal trajetória - do ceticismo à
onipotência - não se devem ao
aperfeiçoamento da terapêutica, mas à
introdução dos novos conceitos de etiologia,
evolução e sintomatologia específicas; à
capacidade de classificar as doenças em
entidades clínicas distintas e de localizar o
corpo como sede das doenças. Essas foram
64
condições de possibilidade para que Ehrlich
formulasse o conceito de "bala mágica": uma
substância química que destruiria germes
específicos e seria inócua quanto ao restante do
organismo.
Tal processo estimulou um grau
inimaginável de especialização na medicina,
além da prescrição desnecessária de remédios,
e estimular a se acreditar que para tudo há um
remédio, e que todos os “males” têm base
anatomofisiopatológica. Firmou-se a crença de
que a medicina antiga matava por ignorância,
do médico ou da medicina, matava porque não
era uma verdadeira ciência. Porém, desde o
começo do século XX, a medicina tornou-se
perigosa, não na medida de sua ignorância,
mas na medida de seu saber. Surgiram efeitos
nocivos devidos não a erros de diagnóstico,
nem à ingestão acidental de alguma substância,
mas à própria ação da intervenção médica no
que tem de mais racional.
Estudos de utilização de
medicamentos evidenciam distorções comuns
a quase todos os países. Por exemplo, constata-
se a abundância de produtos desnecessários ou
com potencial tóxico inaceitável, de prescrição
injustificada, automedicação, etc. Tais desvios
ilustram, parcialmente, o grau apenas relativo
de cientificidade da prática terapêutica. Ou
seja, a maioria destas condutas mostra-se
injustificada do ponto de vista científico e sem
relação com os perfis de morbimortalidade:
não interrompem o curso das doenças, não
atingem as causas fundamentais dos estados
mórbidos e, não raras vezes, sequer aliviam os
sintomas. De modo geral, as especialidades
farmacêuticas mais vendidas são os complexos
vitamínicos, os tônicos, os protetores do
fígado, as misturas para combater a tosse,
freqüentemente apresentados como
combinações em doses fixas.
Como se sabe, a informação sobre os
fármacos procede, em sua maior parte, dos
próprios fabricantes, uma fonte cujo interesse
comercial supera o sanitário. Assim,
progressivamente, através de sofisticadas
estratégias de propaganda, formou-se um
campo de pressão sobre os médicos e os
usuários dos serviços de saúde. E a
necessidade de assegurar uma expansão
constante do mercado acabou por sobrepor-se
à necessidade sanitária real.
XII - Remédio também é Cultura
A cultura (como um sistema de
significados, uma forma de ver o mundo e
entender a vida) influencia toda experiência
humana, incluindo o estar doente. Esta
sentença se nos referimos à população leiga, e
sobretudo às chamadas populações de "cultura
exótica", poderá ser aceita sem grande
resistência. Entretanto, se falamos sobre o
mundo ocidental industrializado e, afronta
maior, se nos referimos aos profissionais de
saúde (ainda mais se são médicos), a afirmação
de que a cultura influencia decisões e condutas
pode ser inaceitável. E, no entanto, as práticas
de saúde são, em todo o mundo (sem
distinções geográficas ou econômicas), e por
todo mundo (incluídos os profissionais de
saúde), sempre mediadas pela cultura.
65
Desde o primeiro estudo comparativo
internacional sobre a utilização de fármacos,
realizado em 1968, em seis países europeus, é
possível constatar amplas diferenças nos
padrões de uso. O desenvolvimento posterior
do Drug Utilization Research Group (DURG)
- “Grupo de Pesquisa sobre a Utilização de
Drogas”, que se vem ampliando desde 1969,
permitiu desenvolver uma metodologia comum
e documentar as grandes diferenças na
regulamentação legal e nos padrões de uso de
medicamentos. Na Alemanha, Suíça, Grã-
Bretanha, Itália e Espanha o número de
produtos comercializados oscila entre 10.000 e
30.000, comparado com os 2.000 a 3.000 dos
mercados dos Países Nórdicos. Para o conjunto
de anti-hipertensivos, observa-se uma
diferença de quase três vezes no uso destes
produtos entre a Suécia (que apresenta as cifras
mais altas) e a antiga Tcheco-Eslováquia. Não
existem razões para acreditar serem as
diferenças de morbidade uma explicação
razoável para estas discrepâncias; que
refletem, principalmente, as variações culturais
entre os diversos países.
Por exemplo, a influência das
tradições profissionais está presente na
aceitação, na Alemanha, da combinação de
remédios, que médicos ingleses considerariam
“não-científica” e, em alguns casos, pouco
segura. Na França, tal como entre nós, o BCG
é considerado uma imunização obrigatória
contra formas graves de tuberculose; nos
Estados Unidos é quase impossível encontrar
esse produto. Entre os franceses, uma das
classes de drogas mais comumente prescritas
são os chamados vasodilatadores cerebrais;
não há qualquer pesquisa científica que
sustente esta suposição, e estes medicamentos
em nenhum outro lugar do mundo são usados
com igual freqüência.
Outra prática muito comum é a
prescrição de lactobacilus toda vez que se
receita um antibiótico, supostamente para
prevenir efeitos colaterais sobre o aparelho
digestivo. Esta prática teve sua origem com
Ilya Metchnikoff, cientista russo que viveu na
França e recebeu um Prêmio Nobel.
Metchnikoff, viveu na era pré-antibiótico e
acreditava que o segredo da eterna juventude
estaria no iogurte búlgaro. Quando os
antibióticos foram descobertos, demonstrou-se
que eles mudavam a composição da flora
bacteriana do trato intestinal; surgiu a idéia de
repor a "boa" bactéria destruída pelas drogas
com o lactobacilus, cuja imagem era muito
positiva, graças a Metchnikoff. Até hoje, no
entanto, nenhum ensaio clínico demonstrou
que a "boa" bactéria é reposta no intestino,
mais rapidamente, com o lactobacilus do que
sem ele. Porque, então, a prática de prescrever
lactobacilus e iogurte permanece? É que, se
não faz efeito, faz sentido.
Falta de apetite é um dos mais sérios
sintomas para um francês. Enquanto muitos
americanos conhecem seus fígados apenas
quando têm hepatite ou cirrose, os franceses se
preocupam com esse órgão todo o tempo. Os
franceses, sobretudo na região da Provence,
atribuem uma ampla variedade de problemas
ao aparelho digestivo e, principalmente, ao
fígado: crises de enxaqueca, dismenorréia,
acne, palidez e fadiga. As mães explicam a
lerdeza de suas crianças como um
"temperamento hepático", e a cinetose (náusea
associada a viagens) é igualmente atribuída ao
66
fígado. Também se atribuem ao órgão
depressões nervosas, palpitações, queda de
pressão arterial, insônia e desmaios. Na
França, crise de foie reforça o significado
social do ato de comer e beber; traduz a
qualidade superior da comida francesa.
Embora o consumo de drogas para o fígado
tenha caído bastante nos últimos anos,
permanecem algumas conseqüências dessa
preocupação. Por exemplo: cerca de 7,5% das
drogas francesas, de aspirina a antibióticos,
têm a forma de supositórios, comparado com
1% nos EUA. Desta forma, as drogas são
absorvidas sem passar pelo fígado; enquanto
uma anemia comum, na Inglaterra ou na
América, seria tratada com ferro, na França, o
paciente deverá receber uma prescrição de
vitamina B12 (tratamento mais próprio para
anemia perniciosa, um quadro raro na França),
vitamina isolada de extratos hepáticos, ou
mesmo um extrato hepático.
De uma maneira geral, os médicos da
antiga Alemanha Ocidental parecem ser
cuidadosos com a prescrição de medicamentos.
Com relação aos antibióticos, por exemplo, um
grande número de profissionais só os
prescrevem se o quadro do paciente exige a
internação em um hospital. Entretanto, os
alemães são extremamente pródigos no
consumo de tecnologia cardiológica. Os
pacientes alemães fazem três vezes mais
eletrocardiogramas do que os americanos, e os
médicos alemães prescrevem seis a sete vezes
a quantidade de digitálicos utilizada por
franceses e ingleses, embora a prevalência de
doenças cardiovasculares nestes países seja
aproximadamente a mesma. À luz de uma
medicina científica, praticada em países
desenvolvidos como estes, o que justificaria tal
discrepância?
No início do século passado, houve,
na Alemanha, um movimento chamado
"medicina romântica", que nada mais era do
que a vertente médica de um outro, muito mais
amplo - literário, musical, filosófico - chamado
Romantismo. Este movimento, de oposição ao
cartesianismo, valorizava o sentimento contra
a razão. Ao invés de ver o mundo como uma
máquina, o Romantismo o via como um
organismo, uma síntese de forças opostas.
Assim, filósofos e cientistas alemães
desenvolveram explicações baseadas na
relação entre positivo e negativo, atração e
repulsão, centrífugo e centrípeto, expansão e
contração, oxidação e redução, tese e antítese.
Há mais de um século, os alemães
deixaram de falar em "medicina romântica",
mas muito do seu pensamento sobre medicina,
sobre saúde e doença, parece estar determinado
por um entendimento, digamos, "romântico",
do corpo humano e do processo de adoecer,
entendimento em que o coração desempenha
um papel central. Por exemplo, em alemão não
existe um termo técnico para "dor no peito", o
que leva médicos e pacientes a, em qualquer
caso de dor torácica, referir-se a "dor no
coração". Quando um clínico alemão se refere
a um caso de "insuficiência cardíaca", pode
simplesmente estar diante de um paciente sem
dispnéia de esforço, com eletrocardiograma e
Rx de tórax normais, mas que alega desânimo
e cansaço. Por isso, os digitálicos - substâncias
que aumentam a força de contração do
músculo cardíaco - são usados como tônicos,
em baixas dosagens, na ausência de dispnéia e
67
na presença de eletrocardiograma normal,
quase de modo profilático.
O Romantismo também explica outro
grupo de diagnósticos peculiares entre os
alemães: pressão baixa (uma condição sequer
mencionada em ensaios americanos), colapso
circulatório e distonia vasovegetativa,
diagnósticos referentes à circulação. A pressão
baixa, hoje em dia, não é considerada doença
mas, ao contrário, algo que contribui para a
longevidade. Entretanto, num catálogo alemão
de drogas, existem 85 fármacos para o
tratamento de pressão baixa.
As diferenças de padrão de
prescrição entre os diversos países se
sustentam em profundas variações na cultura
médica, mais do que apenas em efeitos de
diferentes preços e políticas de controle de
lucros. As diferenças na assistência à saúde
entre as nações não se explicam simplesmente
por fatores econômicos ou pelo perfil de saúde
da população. Os valores culturais do médico,
do paciente e da sociedade também são
influências importantes.
Referências Bibliográficas
AVORN, J; CHEN, M e HARDEY, R. Scientific versus commercial sources of influence on the
prescribing behaviour of physicians. Am J Med, 73: 4, 1982.
DENG, P; HAAIJER-RUSKAMP, FM e ZIJSLING, DH. How Physicians choose drugs. Soc Sci Med,
27 (12): 1381, 1988.
DIXON, B. Além das Balas Mágicas . São Paulo: T.A. Queiroz-EDUSP, 1981.
FOUCAULT, M. La crisis de la medicina o la crisis de la antimedicina (Conferência ditada no curso
de medicina social, realizado em outubro de 1974, no Instituto de Medicina Social da UERJ,
Rio de Janeiro, Brasil). Educ med salud, 10 (2), 1976.
JATOI, I. ; BAUM, M. American and European recommendations for screening mammography in
younger womem: a cultural divide? B M J , 307: 1481, 1993.
LAMAS, GA; PFEFFER, MA; HAMM, P; WERTHEIMER, J; ROULEAU, J-L e BRAUNWALD, E.
Do the results of randomized clinical trials of cardiovascular drugs influence medical practice?
New Engl J Med , 327 (4): 241, 1992.
LAPORTE, J-R; TOGNONI, G e ROZENFELD, S. Epidemiologia do Medicamento - Princípios
Gerais. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1989.
68
LUNDE, PKM. Seleção e uso de medicamentos a nível internacional, nacional e local. In: LAPORTE,
J-R; TOGNONI, G e ROZENFELD, S. Epidemiologia do Medicamento - Princípios Gerais.
São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1989.
MAYLE, P. Toujours Provence . Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
PAYER, L. Medicine and Culture . New York: Henri Holt and Co., 1988.
RELMAN, AS. Shattuck Lecture - The Health Care Industry: Where is it taking us? New Engl J Med,
325 (12): 854, 1990.
SAYD, JD. Mediar, Medicar, Remediar - Terapêutica na medicina contemporânea: o pensamento
médico brasileiro. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Medicina Social de
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: xerox, 1995.
TAYLOR, D. Prescribing in Europe - forces for change. B M J , 304: 239, 1992.