apostila teologia - 2015/2 licenciaturas e pedagogia fit...

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1 APOSTILA TEOLOGIA - 2015/2 Licenciaturas e Pedagogia FIT 1720-C04/C06 Conteúdo CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 2 FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 3 EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ....................................................................................................................... 3 MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?........................................................................................... 5 FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS ....................................................................................... 8 Espiritualidade na Relação Pedagógica ........................................................................................................... 10 RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 13 PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS ............................................................ 13 FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO ......................................................................... 15 A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE............................................................................. 17 RELIGIÃO E CONSUMISMO: ...................................................................................................................... 20 MARX E A RELIGIÃO .................................................................................................................................. 22 Ciência e religião na fala dos professores de química, física e biologia.......................................................... 23 FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 29 [email protected]

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APOSTILA TEOLOGIA - 2015/2

Licenciaturas e Pedagogia FIT 1720-C04/C06

Conteúdo

CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 2

FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 3

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ....................................................................................................................... 3

MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?........................................................................................... 5

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS ....................................................................................... 8

Espiritualidade na Relação Pedagógica ........................................................................................................... 10

RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 13

PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS ............................................................ 13

FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO ......................................................................... 15

A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE ............................................................................. 17

RELIGIÃO E CONSUMISMO: ...................................................................................................................... 20

MARX E A RELIGIÃO .................................................................................................................................. 22

Ciência e religião na fala dos professores de química, física e biologia.......................................................... 23

FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 29

[email protected]

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CONCEITOS BÁSICOS

1. TEOLOGIA Etimologia/histórico: A palavra é de origem grega (Teo = Deus; Logia = estudo): o estudo de Deus. Os filósofos gregos utilizavam a palavra, mas restrita ao campo de articulação das idéias filosóficas. Pode ser: 1.1. Olhar interno: Esse aspecto estuda os textos sagrados e suas inplicações/interpretações. Este estudo é realizado pelo praticante da própria fé professada, ou seja, é o muçulmano estudando a Teologia do Corão, é o judeu estudando a Teologia da Torá, etc. No Cristianismo é a reflexão sobre o ser humano, à luz do projeto de Jesus Cristo, para orientar o crente a viver humanamente neste mundo em direção à plenitude da vida. 1.2. Olhar externo: É uma reflexão sistemática, organizada, metódica, que parte da fé e a ela pretende voltar. Sob esse olhar a Teologia se propõe a estudar toda e qualquer expressão religiosa a partir do olhar do crente, ou seja, não questiona ‘se’ tal fenômeno é possível ou não. Tal questionamento é dispensável. A partir do fenômeno apresentado, a teologia utiliza instrumentos de investigação como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a História e a Antropologia da religião.

2. RELIGIÃO Vem do latim ‘religar’, ‘atar’ o sagrado com o profano. A religião é um sistema qualquer de idéias que envolve fé e cultos. Consiste em crenças e práticas organizadas, formando algum sistema privado ou coletivo, mediante o qual uma pessoa ou um grupo de pessoas são influenciados.

Pode-se encontrar muitas crenças e filosofias diferentes. As diversas religiões do mundo são de fato muito diferentes entre si. Porém ainda assim é possível estabelecer uma característica em comum entre todas elas. É fato que toda religião possui um sistema de crenças no sobrenatural, geralmente envolvendo divindades ou deuses. As religiões costumam também possuir relatos sobre a origem do ‘Universo’, da ‘Terra’ e do ‘Ser Humano’, e o que acontece após a morte. A maior parte crê na vida após a morte.

A religião não é apenas um fenômeno individual, mas também um fenômeno social. Institucionalização da fé.

3. RELIGIOSIDADE A ‘atitude particular’ de uma consciência transformada pela experiência do numinoso. Fé praticada por meio

daquele que acredita. É a crença propriamente dita, vivida no cotidiano. Na forma confessional (em cada denominação religiosa), a experiência não é direta, mas mediada pelo sistema

simbólico de uma determinada religião, que fornece significados coletivos e relativamente fixos para a vivência do numinoso; a mediação pressupõe a crença, ou fé, pois que se dá através do estabelecimento de dogmas. O homem primitivo admite tanto as forças e atividades naturais como as sobrenaturais e procura usar ambas em seu próprio benefício. Mas agarra-se à magia sempre que tem de reconhecer a impotência do seu conhecimento e da sua técnica racional.

SAGRADO PROFANO NO SENTIDO SOCIOLÓGICO

Domínio da magia/religião Domínio da ciência e vivência do cotidiano, da vida civil. Reverência, temor, crença em forças sobrenaturais.

Força da razão, rudimentos da ciência inventando técnicas da caça, pesca, agricultura.

Relação religião e as ciências:

CIÊNCIA RELIGIÃO Nasce da experiência É construída através da tradição É norteada pela razão e corrigida pela observação Imune a ambas vive numa atmosfera de misticismo Está aberta a todos É oculta Assenta na concepção de forças naturais Desponta da idéia de um poder místico e impessoal.

REFERÊNCIAS http://www.alternex.com.br/~pilar/col-celso.htm#Ini01 acesso em: 20 abr 2001. http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o acesso em: 21 maio 2005. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JUNG, C. G. Psicologia e religião. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 11i). Petrópolis: Vozes, 1990. MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Ed. 70, 1988. OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo Campo: Imprensa Metodista, 1985.

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FENÔMENO RELIGIOSO

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA O QUE É? COMO SE DÁ?

A experiência religiosa possibilita à pessoa identificar a hierofania (manifestação do

sagrado) e declarar um objeto, um lugar ou um tempo como sagrados. A experiência religiosa é a própria relação da pessoa com o sagrado que ela identifica e/ou reconhece como tal. Segundo Eliade "a essência de qualquer religião é a experiência de uma realidade outra, que se manifesta na consciência do crente antes mesmo de ser incorporada nos ritos e nos mitos, e preservada por um grupo de especialistas". Se aceitarmos esta idéia, necessitamos concluir que, para um evento se tornar experiência religiosa, deve ocorrer a fusão entre a expressão cultural e o sagrado que a ela se acrescenta.

Podemos ver, através de um exemplo, como as pessoas fazem este cruzamento. No caso dos rituais de cura nos meios populares, o/a curandeiro/a conhece uma porção de chás que podem curar muitas doenças. Esta parte seria a cultura. No entanto, as pessoas não a procuram somente para fazer chás, mas também pelos rituais que ele/a realiza. Muitos/as curandeiros/as afirmam ter aprendido seus conhecimentos religiosos diretamente de Deus. Este é o elemento sagrado que, em fusão com a expressão cultural (conhecer os chás), faz com que suas práticas sejam uma experiência religiosa. Neste caso, tanto o/a curandeiro/a como as pessoas que o/a procuram estão realizando experiências religiosas: "A experiência religiosa se define, antes de tudo, como uma relação interior com a realidade transcendente, isto é, a partir da experiência do sagrado vivida interiormente...".

Este outro exemplo, observado em uma comunidade rural do interior do Paraná, ilustra o processo em que se dá o cruzamento entre experiência religiosa e outras expressões culturais. Trata-se do ritual usado para curar queimaduras. As palavras do ritual são as seguintes: "Santa Sofia tinha três filhas: uma fiava, outra cozia e a outra caiu no fogo e se queimou. Santa Sofia perguntou à Virgem Maria com que curaria. Virgem Maria respondeu: cuspa três vezes e reze três ave-marias". Ao pronunciar estas palavras, a benzedeira o faz em tom de oração, utiliza um ramo de chá molhado em água fresca e vai fazendo cruz com este ramo; e, ao terminar cada ave-maria, cospe três vezes sobre a queimadura.

Esta história pode muito bem ter acontecido em qualquer família. A saliva, o ramo de chá e a água são refrescantes e auxiliam na cura da queimadura. Isto pode ser aprendido em qualquer espaço em que a medicina popular seja praticada. No entanto, acrescenta-se o elemento sagrado à história e cria-se um rito. A família passa a ser a de Santa Sofia, a medicina natural passa a ser ensinada pela Virgem Maria. Um procedimento de medicina natural passa a ser um ritual religioso e é imputado ao sagrado a cura do mal.

É muito difícil descrever como se dá a experiência religiosa, uma vez que elementos objetivos e subjetivos se fazem presentes no processo da mesma. Otto a descreve como a relação com o sagrado, como um reconhecimento e apelo a seres superiores e transcendentes, como a experiência de uma realidade outra que se manifesta na consciência do crente. Esta experiência pode ser incorporada nos mitos e ritos e preservada por um grupo de especialistas (igrejas).

Na experiência religiosa vivida, um poder estranho, totalmente diferente, insere-se na vida da pessoa. Diante dela, a atitude da pessoa é primeiro de espanto, depois, de fé. A experiência religiosa não consiste apenas de afirmações racionais e de princípios morais; há no divino um aspecto inefável, percebido pelo sentimento como realidade sagrada, como mistério terrível e fascinante: "eu tenho medo dele e ao mesmo tempo ardo por ele" (Sto. Agostinho). A relação com o sagrado desperta no crente múltiplos sentimentos. Estes sentimentos não são produzidos pela consciência, mas são o efeito subjetivo da presença, no eu, de uma realidade diferente do próprio eu: o numinoso.

Segundo Otto, o numinoso é a absoluta potência e alteridade, o majestas, diante dele o crente se sente pó e cinza; é um mistério escondido, extraordinário, percebido pelo sentimento

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religioso, não pela razão; é um mistério tremendo: desperta sentimentos de temor e tremor, é a ira ou indignação de Javé, é a base para o conceito de justiça divina; é um mistério em que se manifesta uma absoluta energia, vitalidade, paixão; é um mistério fascinante, atrai porque é amor, misericórdia, piedade, conforto. A manifestação do numinoso pode despertar sentimentos de maravilha, estupor, surpresa, descontentamento, faz ficar sem palavras; é inquietante. O numinoso é Augustum, impõe respeito racional.

A experiência religiosa é um encontro com este "numinoso", com o "mysterium tremendum". Quando a alma se põe em contato com este, experiência um sentimento de ser criatura. Sentimento este que é a sombra do sentimento de medo, pelo fato de o "numinoso" ser um objeto que está fora da pessoa e dele emanar uma superioridade esmagadora de poder. O "numinoso" é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana que o experimenta.

Na experiência religiosa ocorre o seguinte processo: sentimento de terror, terror que a manifestação do sagrado inspira, terror dos deuses: deus é um deus que castiga, vigia para ver seu procedimento, pune; sentimento de devoção: desencadeia um comportamento moral e de compromisso com o que a divindade espera do crente; adoração: o crente fica em êxtase diante da divindade e, como resposta, coloca-se em relação de amor com todas as criaturas. As pessoas, em suas experiências religiosas, podem se situar em qualquer uma destas fazes.

Muitas pessoas remetem as causas dos seus males, tais como: doenças ou qualquer situação difícil a alguma entidade sagrada. Esta prática faz com que as pessoas se sintam liberadas da necessidade de enfrentar suas próprias fragilidades. Se não são elas as responsáveis pelas calamidades que atingem suas vidas, mas a origem do bem e do mal está no sagrado, também será este sagrado que deverá solucionar seus problemas. O "Espírito mau" pode ser a origem do mal, enquanto o "que é de Deus", o "Espírito bom", pode ser a origem do bem e da solução do mal.

É na experiência do sagrado que se pode encontrar sentido para a vida, com seus males e seus bens. Este fator faz com que as pessoas, ao não querer ou não poder enfrentar suas fragilidades e responsabilizar-se para resolvê-Ias, possam também culpar o sagrado pelos seus fracassos. Isto Ihes permite permanecer de cabeça erguida mesmo nas situações mais difíceis.

Através da experiência religiosa, o sagrado se incorpora nas coisas, nas pessoas ou nas situações, tornando-as também sagradas. Uma vez que coisas, pessoas e situações pertencem ao âmbito do sagrado, ninguém é responsável por elas, pois o sagrado foge ao controle e não se deve interferir em seu curso normal. A partir desta concepção, a experiência religiosa pode legitimar a manutenção de uma situação de opressão (é Deus quem quer assim). Mas pode também legitimar a luta por mudanças sociais (esta situação não está conforme a vontade de Deus, portanto deve ser mudada).

BIBLIOGRAFIA

ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985.

Sugestão de atividade complementar: 1. Leia este relato de uma experiência religiosa e responda: 1. Qual é o sagrado que aparece neste relato de experiência religiosa? 2. Quais são os símbolos que aparecem no relato? O que eles estão expressando? 3. Como se desenvolve a experiência religiosa: que passos são dados e quais são os

significados de cada passo? 4. Que ensinamentos sobre as relações sociais cotidianas este relato de experiência

religiosa contém?

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A LOBA Existe uma velha que vive em um lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já

viram. Como nos contos de fadas da Europa Oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se perderam, que estão vagueando ou à procura de algo. Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar e cacarejar, apresentando geralmente mais sons animais do que humanos.

Dizem que ela vive entre os declives de granito decomposto no território dos Indios tarahumara. Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix perto de um poço. Dizem que foi vista viajando para o sul, para o Monte Alban num carro incendiado com a janela dianteira arrancada. Dizem que fica parada na estrada perto de EI Paso, que pega carona aleatoriamente com caminhoneiros até Morelos, México, ou que foi vista indo para a feira acima de Oaxaca, com galhos de lenhas de estranhos formatos nas costas. Ela é conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera e La Loba, a Mulher-Lobo.

O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia de ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos. Ela se arraste sorrateira e esquadrinha as montanhas e os arroyos, leitos secos dos rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar.

Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É ar que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado. La Loba canta mais e a criatura lobo começa a respirar. E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro. Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de solou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte.

MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?

A concepção de sagrado muitas vezes é traduzida através de mitos; e a forma de relações entre a pessoa e o sagrado normalmente é favorecida pelos diferentes ritos.

Segundo Eliade (1972, p.7-23), o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

O mito fala apenas do que "realmente" ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos primórdios.

Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade, ou simplesmente a "sobrenaturalidade" de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado ou do sobrenatural no mundo. E mais, é em razão da intervenção dos Entes Sobrenaturais que o ser humano é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.

O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades que estão sendo vivenciadas pelas pessoas. O mito cosmogônico é verdadeiro, porque a existência do mundo aí está para comprová-Io; o mito da origem da morte

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é igualmente verdadeiro, porque é provado pela mortalidade humana, e assim por diante. Pelo fato de relatar as "gesta" dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes

sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas. Conhecendo o mito, conhecemos a origem das coisas, chegando-se conseqüentemente a

dominá-Ias e a manipulá-Ias à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação.

Viver os mitos implica, pois, uma experiência religiosa, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana. Nessa experiência, deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado dos Entes Sobrenaturais. Os mitos revelam que o mundo, as pessoas e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar.

Outra definição interessante de mitos que encontramos é a de Malinowski (1984, p.224-230). Este autor, ao tentar demonstrar a natureza e a função dos mitos nas sociedades primitivas, afirma que o mito é uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz as profundas necessidades religiosas, aspirações morais, as pressões e imperativos de ordem social, e mesmo as exigências práticas.

Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação humana. Mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana. Longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.

BIBLIOGRAFIA DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. S.P.: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. S.P.: Martins Fontes, 1992. MALlNOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico Ocidental. Trad. Anton P. Carr e Ligia Aparecida Cardieri Mendonça. São Paulo: Abril Cultural, 38 ed., 1984. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, 1985.

Sugestão de atividade complementar: Leia a narrativa do mito a seguir e responda: 1. Todos os mitos narram uma história dos começos de algo significativo para o grupo

social que o cultiva. Eles conferem significados e propõem ensinamentos sobre os comportamentos que compõem as relações cotidianas daquelas pessoas. O que este mito ensina sobre as relações cotidianas daquela sociedade?

2. Descreva um mito que faz parte da cultura brasileira e destaque os ensinamentos sobre

a vida cotidiana que o mito traz.

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A origem do mundo - retirado do Brhadaranyaka Upanisad (livro sagrado dos Hindus) No início esse universo era Si-Próprio (Atman) na forma de Homem (Purusa). Olhando em volta ele não viu

ninguém além de si mesmo. Então, primeiramente, ele disse "Sou Eu'" e assim a palavra "Eu" foi criada. Portanto até hoje as pessoas que são interpeladas respondem "Sou eu", e então dizem qualquer que seja o nome que elas tenham. Uma vez que ele, antecedendo (purva) todo esse universo, queimou (us) todo o mal, ele é o Homem (Purusa). Aquele que sabe isso queima qualquer um que anteceder a ele.

Ele estava com medo: portanto aquele que está totalmente sozinho tem medo. Ele refletiu: "Já que não há nada além de mim, de que tenho medo?" então seu medo desapareceu, pois o que ele poderia temer? As pessoas sentem medo por um instante. Ele não se alegrou: portanto todo aquele que está totalmente solitário não fica alegre. Ele desejou um segundo. Ele era do mesmo tamanho e formato que um homem e uma mulher fortemente abraçados. Ele dividiu si próprio (pat) em dois pedaços, e dele um marido e uma esposa (pati e patni) nasceram. Por isso o sábio Yajnavalkya disse: "Esse corpo é como um meio fragmento". Portanto esse espaço foi preenchido por uma mulher. Ele uniu-se a ela, e deles nasceu a humanidade.

Ela refletiu: "Como pode ele unir-se a mim depois de haver-me gerado de si? Vergonha! Irei esconder-me". Ela tornou-se uma vaca: ele tornou-se um touro e uniu-se a ela, e disso todo o gado foi gerado. Ela tornou-se uma égua: ele tornou-se um garanhão. Ela tornou-se um asno fêmea: ele tornou-se um asno macho e uniu-se a ela, e disso surgiram os animais de casco. Ela tornou-se uma cabra: ele tornou-se um bode; ela tornou-se uma ovelha: ele tornou-se um carneiro e uniu-se a ela, e disso cabras e ovelhas nasceram. Assim foram criados todos os pares, até mesmo chegando às formigas.

Ele sabia ser uma criação, pois havia criado todas essas coisas. Assim a criação surgiu. Todos os que sabem isso se tornam criadores em suas criações. Então ele agitou-se. Da sua boca, como do buraco de fogo (yoni) e de suas mãos, ele criou o fogo. Portanto, tanto a boca como as mãos não possuem cabelos no seu lado de dentro. Quando alguém fala dele, dizendo: "Sacrifiquem para aquele deus!", "Sacrifiquem para aquele deus!", falando de um único deus e depois de outro único deus, é a sua criação, e ele próprio é todos os deuses. Agora, tudo o que é úmido, ele criou do sêmen, e isto é Soma. Todo esse universo é comida e o comedor da comida. Pois Soma é comida, e Agni, o comedor da comida. Essa foi a insuperável criação de Brahma, pois ele criou os deuses, que eram melhores que ele, quando ele, sendo mortal, criou imortais. Portanto foi uma criação insuperável. Todo aquele que sabe isso nasce na sua insuperável criação.

COMPARAÇÃO ENTRE MITO – SÍMBOLO – RITO

mitos símbolos ritos origem realidade humana

realidade social Há uma realidade humana e social cheias de interrogações, injustiças sofrimentos e

angústias; uma forma de dar sentido a elas é deixá-las em contato ou vinculá-las ao sagrado, assim deixa-se de precisar procurar os ‘porques’. Sendo assim, cria-se uma estória relacionada com a origem, ligada com uma entidade sagrada � mitos. Estes são gerados por um lento e amplo processo cultural e quando gestados são legitimados pelas questões colocadas pela própria cultura (presente com valores, sentidos e questões que a sociedade quer para si, isso a legitima). O mito é uma narração que por si só leva sua mensagem, se precisar dar explicações sobre o conteúdo do mito ou ele não está mais explicitando a realidade da sociedade ou a sociedade perdeu vínculo com ele. Quando se estuda os mitos, existem duas perguntas a serem respondidas: ‘qual a realidade social humana presente?’ e ‘qual o recado/mensagem que ele devolve para a sociedade?’

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Símbolo vai invocar: Rito - o significado do mito - uma imagem - um sentimento - uma realidade humana e social - pode falar por ele mesmo, exemplo: o presépio evoca a história de Jesus

- através da ação, revive o conteúdo do mito; - atualiza, faz acontecer novamente o evento; - e junto com isso a realidade humana (� atualização � eficácia) e dá sentido a esta realidade

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS As pessoas, nas diferentes comunidades, elegem um local privilegiado onde o sagrado se

concentra. Pode ser uma pessoa, um lugar, uma árvore, um rio, um objeto ou outro símbolo qualquer que evoque uma experiência religiosa primordial, e onde as pessoas crêem que o sagrado ali permanece. É nesses locais que o sagrado se manifesta, se revela, onde ocorre a hierofania.

A hierofania pode ir desde a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore, até a hierofania suprema para um cristão, que é a encarnação de Deus em Jesus Cristo. As almas, os deuses e os demônios, isto é, os poderes sobrenaturais na maioria das vezes são concebidos desta forma.

A regulação entre estes seres sobrenaturais e as pessoas humanas é que constitui o domínio da ação religiosa, surgindo então o que denominamos como o fenômeno religioso. A palavra fenômeno vem do grego "tà phainàmenon", significa "aquilo que aparece", "aquilo que se mostra". Portanto, fenômeno religioso significa um sagrado que se mostra, que se revela.

Ao conjunto de concepções do sagrado, dos mitos que explicitam como se dá a presença do sagrado no mundo e dos rituais criados para favorecer as relações das pessoas com o sagrado é que se denomina "religião" Muitas pessoas: benzedeiras, pajés, curandeiros, pais e mães de santo, pregadores populares, puxadores de rezas etc. acreditam ser eles próprios os objetos da hierofania. A compreensão de que Deus se serve deles para se manifestar Ihes dá a certeza de legitimidade e de exclusividade ao realizar sua missão.

Uma vez entendendo-se como objetos da hierofania, as pessoas passam a desenvolver formas de conduzir outras pessoas a fazer parte de seu sistema de crenças. Para isto, criam uma série de gestos, palavras e objetos sagrados, ou seja, criam ritos que possam favorecer a experiência religiosa das outras pessoas e levá-Ias a alcançar as graças esperadas.

Muitas vezes estas pessoas que se acreditam como objetos da hierofania e criam ritos para favorecer a experiência religiosa de outras pessoas acabam por criar novas religiões. Weber denomina estas pessoas como carismáticas, ou seja, pessoa dotada de carisma. Segundo Weber (1991, 158-167), carisma se refere a qualidade pessoal, considerada extracotidiana, em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, poderes extracotidianos específicos, ou então se a toma como enviada de Deus, como exemplar, portanto, como líder. O reconhecimento de uma pessoa como carismática pode resultar em uma entrega crente e inteiramente pessoal, nascida do entusiasmo ou da miséria e esperança da pessoa que o reconhece como tal.

Weber (1991, 158-167) afirma ainda que, em sua forma genuína, a relação entre a pessoa carismática e seus seguidores é de caráter especificamente extracotidiano. É uma relação estritamente pessoal, ligada à validade carismática de determinadas qualidades pessoais do carismático e à prova destas. Quando esta relação assume o caráter de uma relação permanente, formando uma comunidade de correligionários, é necessária uma modificação substancial: institucionaliza-se o carisma.

A institucionalização do carisma se torna necessária, uma vez que há um interesse ideal e material dos seguidores, em continuar a existência da relação. A continuidade do exercício do carisma exige que este seja colocado sobre fundamentos cotidianos duradouros: organizado juridicamente e economicamente.

Esta necessidade se torna mais nítida quando desaparece a pessoa portadora do carisma e surge a necessidade da sucessão. O resultado da rotinização do carisma pode desembocar em

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instituições de tipo igrejas. Ou seja, os discípulos do carismático institucionalizam o carisma: criam um corpo doutrinal, práticas cultuais e uma organização sacerdotal, isto é, uma igreja.

A doutrina se distingue do mito por ser mais orgânica, argumentativa e racional, além de estar voltada para a interpretação da realidade. A passagem de mito à doutrina segue vários estágios: coletas dos mitos espalhados num único ciclo, formação de ciclos de mitos homogêneos, consolidação de um verdadeiro e próprio corpo doutrinal: a teologia.

Este discurso racional sobre o divino, a teologia, é guardada em livros sagrados. Os sacerdotes têm a função tanto de compor o discurso racional sobre a divindade como a de guardiões da tradição teológica. Os textos sagrados passam por um processo de interpretação e comentários, a fim de se tornarem mais compreensíveis mesmo nas mudanças de condições históricas.

Este processo de interpretações e comentários dos textos sagrados é realizado por diversas escolas teológicas, às vezes em forte conflito devido à preferência dada a uma ou outra das três questões principais da teologia:

Deus, o mundo e o homem. Este fator muitas vezes gera rupturas e a formação de outras igrejas.

Quanto as formas organizadas de ação na sociedade, as organizações religiosas se compõem em: Igreja, seita e misticismo.

As igrejas se caracterizam mais por uma atitude de tolerância para com as estruturas do mundo que são "conseqüências do pecado", por tentativas de remediá-Ias, sem, contudo, deixar de rejeitá-Ias intimamente. As igrejas tendem à universalidade, isto é, ter a mesma extensão da sociedade; acolhem todas as pessoas e Ihes distribui os meios da graça. Esta função integradora das igrejas exige que estas mantenham um compromisso com as diversas formas de comportamento existentes numa dada sociedade e a aceitar os principais elementos presentes na estrutura social existentes. As igrejas caracterizam-se ainda por uma estruturação hierárquica interna.

As seitas apresentam-se como grupos que adotam atitudes de intransigências para com o "mundo", isto é, rejeitam comportamentos e instituições das sociedades às quais pertencem, julgando-os corruptos. Os membros das seitas se propõem à obediência literal dos textos sagrados, desprezando as adaptações aceitas pelas igrejas. Por não aceitarem compromissos com o mundo, chegam a se isolarem da sociedade, permanecendo na expectativa do iminente reino de Deus. Os membros da seita visam à perfeição individual e ao ascetismo. A seita é hostil ou indiferente ao Estado e contrária à ordem eclesiástica.

O Misticismo representa o polo da religiosidade de tipo individual; designa a procura de uma experiência religiosa de tipo íntimo que acontece freqüentemente em grupos bem pequenos, os quais se distanciam abertamente, bem mais que a seita, da tradição religiosa eclesial. O misticismo é a tradição individual do protesto contra a redução da experiência religiosa a formalismos nos ritos, a racionalismos nas doutrinas, a burocracias na organização eclesial.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sergio Miceli et aI. São Paulo: Perspectiva, 1974. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985. WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Barbosa. Brasilia: Universidade de Brasília, 1991.

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Espiritualidade na Relação Pedagógica A Espiritualidade presente na complexidade da condição humana

Este trabalho parte da noção de complexidade da condição humana como defendida por Edgar Morin. Discute, inicialmente, a distinção entre espiritualidade e religiosidade e, sem desprezar a realidade de que o estudo científico da espiritualidade tem sido um grave problema na história da pesquisa antropológica, considera a espiritualidade como um aspecto da condição humana (Grof, 1992, 1997; Santos Neto, 2002, 2006; Espírito Santo , 1996, 1998; Morais , 1997). Tem por objetivo responder à seguinte pergunta: Qual a importância de considerar a espiritualidade na relação pedagógica em sala de aula? A relação entre espiritualidade e relação pedagógica (Paris, 2000) é um tema complexo que apresenta problemas e desafios diversos, com implicações em vários âmbitos: individual, profissional, político, social e cultural. Neste trabalho estamos interessados nas implicações para a relação pedagógica em sala de aula.

Assim apresentamos o que estamos entendendo por relação pedagógica tomando como fundamento a abordagem multirreferencial (Ardoino, 1988, Castoriadis, 1982, Barbosa, 1998; Paris, 2000). A abordagem por nós adotada quanto à espiritualidade apresentada-a enquanto dimensão do ser humano (Grof , 1992, 1997; Boff , 1999; Santos Neto , 2002, 2006), constituinte de sua forma de ser no mundo e de como com ela interferir na realidade do mundo vivido, avaliar, criar e, enfim, construir-se como sujeito histórico. Esta maneira de compreender a espiritualidade exige um mergulho profundo na condição humana, numa perspectiva de autoconhecimento. A partir de uma concepção mais ampliada de ser humano, o ser humano hilo-holotrópico (Grof, 1992, 1997), mostramos a importância de considerar este aspecto no processo educativo, uma vez que o entendemos como espaço privilegiado de constituição dos seres humanos, a partir da construção do conhecimento permeado pela relação pedagógica. Finalizamos considerando que a prática da educação exige métodos e estratégias educativas que têm por objetivo a constituição do ser humano permeado pela complexidade das diferentes variáveis que concorrem para a relação pedagógica, pois indivíduo/sociedade/espécie não só são inseparáveis, mas também co-produtores um do outro, isto é, “como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo” e exige da parte dos educadores a coragem de assumir a inteireza da condição humana (FREIRE, 2003, p. 98). Nesse sentido, Grof (1997) em seus estudos enfocou a consciência humana com toda sua complexidade e a capacidade de identificação com todos os seres do universo.

Precisamos aceitar o universo como ele é, e não impor a ele aquilo que acreditamos que ele é ou pensamos

que ele deveria ser. Nossas teorias precisam lidar com os fatos em sua totalidade, e não com uma seleção

de fatos convenienteque se ajuste a nossa visão de mundo e a nosso sistema de crenças (GROF, 1997,

p.114).

Para entender como as relações com o “universo” influenciam a vida cotidiana, o autor utilizou uma abordagem que denominou integração holomônica ou terapia holotrópica com suporte teórico nas observações da pesquisa psicodélica associada com a prática da respiração holotrópica, técnica elaborada por ele e sua esposa, para a exploração da consciência a partir de um ritmo de respiração controlada, em busca de um instrumento para a transformação permeada pelo autoconhecimento.

Faz-se necessário explicitar que Grof apresenta de forma minuciosa todas as Dimensões da Consciência, explorando diferentes aspectos. Mas, nosso texto aborda apenas dois sub-temas: subjetivismo e espiritualidade, como instrumento para a busca da inteireza do ser. Segundo o autor, o primeiro desafio é entendermos que a existência e a natureza das experiências vivenciadas extrapolam as noções fundamentais da ciência materialista e da visão de mundo mecanicista, porque fazem conexões com o universo todo, e as comunicações são estabelecidas por meios e canais desconhecidos ou pouco explorados.

A compreensão da existência e a natureza das experiências vivenciadas são um processo que conduz o homem a identificar-se com outros aspectos, além do corpo físico, dos sentimentos e da cultura imposta que, muitas vezes, apregoa verdades únicas propiciadoras de uma falsa visão de mundo, cerceadora da totalidade do ser. Entretanto, para o desenvolvimento de um novo olhar é necessário uma mudança de paradigmas. Tal mudança é possível e comprovada pelas diversas disciplinas científicas e conceitos importantes que apresentaram uma relevante contribuição e, ao mesmo tempo, drástica, exigindo uma mudança na visão de mundo. Como exemplo pode-se citar, com base em Grof (1997) que:

a física quântica-relativística (Capra , 1975, p. 1982), a astrofísica (Davies , 1983), a cibernética e a teoria de

sistemas de informação (Bateson , 1972, 1979; Maturana ; Varela , 1980; Varela , 1979), a teoria da

ressonância mórfica de Sheldrake (Sheldrake, 1981), o estudo de Prigogine e Stengers sobre as estruturas

dissipativas e a ordem por flutuação (Prigogine; Stengers, 1984), a teoria do holomovimento de David Bohm

(Bohm, 1980), o modelo holográfico do cérebro de Karl Pribram, 1971, 1977) e a teoria de processo de

Arthur Young (YOUNG, 1976).

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Os exemplos acima ratificam o pensamento de Grof (1997) sobre a evolução da consciência da existência do indivíduo, conectada ao cosmos, uma vez que “não há lugar para qualquer forma de espiritualidade como um aspecto relevante e significativo da existência num universo em que a matéria é primária, e a vida, a consciência e a inteligência são seus produtos acidentais”.

Por isso, o autor (id., ibid.) alerta para que não se confunda a espiritualidade com religião, porque as experiências vivenciadas por meio da auto-exploração experiencial despertam a espiritualidade que conduz o homem a uma busca mística, pois:

“a divisão realmente importante no mundo da espiritualidade não é a linha que separa as principais

religiões individuais uma das outras, mas a linha que separa todas elas de seus ramos místicos”. Mas

também, salienta a importância das teorias científicas, desde que, alicerçadas em observações do universo

e “não nas crenças dos cientistas de como é o universo ou seus desejos de como ele deveria ser para caber

em suas teorias” (GROF, 1997 p. 247).

Desse modo, a forma como a espiritualidade é aqui entendida, permite afirmar que ela está presente em todo e qualquer tipo de conhecimento independente do sistema. E a partir dessa premissa pode-se concluir que a espiritualidade é de extrema importância para a Educação condutora do conhecimento específico com suporte nas diversas disciplinas entrelaçadas ao conhecimento empírico. A Educação em nível mundial exige uma mudança de paradigmas, o que só se efetivará se o educador modificar sua postura em relação à visão de mundo. Para Grof (1997, p. 251) não se deve separar pesquisa científica e a busca espiritual, pois é essa junção que permite a transformação do indivíduo:

“Um novo paradigma tão abrangente poderia ser um importante catalisador na evolução da consciência

que parece ser uma condição crítica para a sobrevivência da vida neste planeta”.

Morin (2005) também defende a espiritualidade como um caminho para a transformação do ser, porém sobre outro aspecto: a cultura é que constitui os hábitos, as normas, as crenças, os valores etc., dentro de qualquer sociedade.

Essa cultura, de acordo com o autor, é centrada no capital humano, responsável pela transmissão do conjunto de seus hábitos e costumes e pela evolução mental, psicológica e afetiva dos indivíduos, por meio da linguagem, considerada por ele, o nó de toda cultura e de toda sociedade humana , porque a linguagem e o homem são indissociáveis.

A linguagem é decorrência do pensamento que combina palavras com diversos sentidos, isto é, a linguagem é uma capacidade do espírito humano, indispensável a todas operações cognitivas e práticas que promovem a revolução mental, sendo que o espírito emerge do cérebro humano, com e pela linguagem, dentro da cultura.

Os três termos, cérebro - cultura – espírito, são inseparáveis. Uma vez que o espírito emergiu, retroage

sobre o funcionamento cerebral e sobre a cultura. Forma-se um circuito entre cérebro – espírito – cultura,

no qual cada um desses termos necessita dos outros. O espírito é uma emergência do cérebro que suscita a

cultura, a qual não existiria sem cérebro. [...] Quando escrevo espírito, quero dizer mind, com todas as

diversas qualidades que surgem com ela entre as quais o ingegno de Vico (aptidão combinatória, inventiva)

(MORIN, 2005 p. 38).

Outra capacidade do indivíduo humano para desenvolver atividade transformadora e produtiva é a de considerar ora sujeito, ora objeto, o que promove o questionamento, a curiosidade e a conseqüente investigação, o prazer de aprender/conhecer, permitindo uma visão de mundo mais ampla, embora complexa, uma vez que cada indivíduo apresenta uma subjetividade singular que o diferencia dos demais, por ser uma unidade dentro da diversidade. “O tesouro da humanidade está na diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está uma sua unidade geradora” (MORIN, 2005 p.66).

A relação com o outro depende da autonomia do indivíduo considerando o conhecimento empírico, a racionalidade, a sensibilidade, o imaginário, a afetividade, elementos necessários para as relações interpessoais que são marcadas pelas influências sociológicas, como exemplo, a educação familiar e escolar. Dessa forma, cada cultura por meio do seu conjunto de hábitos e costumes pode inibir ou estimular o espírito humano de se tornar um ser autônomo.

Entretanto, o processo de autonomia é permeado pela complexidade, aqui entendida como o entrelaçamento das idéias ações individuais, coletivas, do confronto de indivíduo com outro ser, de nos colocarmos no lugar do outro, de ser ora sujeito ora objeto. E esta complexidade precisa ser questionada, investigada, entendida e respeitada, porque toda ação escapa à vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retro-ações do meio em que intervém, uma vez que indivíduo/sociedade/espécie além de serem indissociáveis, são co-autores um do outro, isto é, um depende do outro para o desenvolvimento individual e coletivo (MORIN, 2003 p.88).

O pensamento de Morin, embora sobre outro aspecto, confirma a importância da espiritualidade no processo de formação do indivíduo e a complexidade que envolve esse processo que exige uma mudança de paradigmas em todos os âmbitos, principalmente no paradigma educacional. Santos Neto (2006, p. 35-36) afirma a importância da

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espiritualidade na formação e construção do sujeito. Compreende que este processo só será possível se o sujeito estiver aberto a sua inteireza:

[...] inteireza é hilo-holotrópico, o que quer dizer: é marcada pelas condições de vida da histórica, da cultura,

da materialidade, da individualidade (o hilotrópico); mas também é marcado pelas possibilidades

transpessoais, cósmicas, mitológicas, espirituais (holotrópico).

Desta forma, falar em abertura/mudança no campo educacional significa compreender o processo de educação – como relações entre seres humanos que se desenvolvem na inteireza, num constante movimento de construção e reconstrução de si mesmo e da história da humanidade.

O trabalho educativo precisaria estar atento à dimensão da espiritualidade: desobstruí-la, ajudá-la a tornar-

se presente no quotidiano das experiências e das decisões, fazer ver que ela não é campo tão somente das

religiões (SANTOS NETO, 2006 p. 38-39).

No sentido de transformação, Boff (1999) fala que o ser humano é um ser de mudanças e que está sempre se refazendo. As mudanças podem ser interiores ou exteriores.

Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base. São superfícies e exteriores. Mas há mudanças

que são interiores. São verdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido a vida ou

de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as

coisas” (BOFF, 1999, p. 17-18).

Ressaltamos que Boff (1999, p. 21) considera como espiritualidade “aquelas qualidades do espírito-humano tais como amor e compaixão, paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção, noção de responsabilidade, noção de harmonia que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto aos outros”.

Esta idéia, da atenção à dimensão da espiritualidade, propõe o pensar do papel do professor ou da professora. O professor ou a professora necessita de um ciclo de ação/reflexão pedagógica na totalidade. Assim encontramos em Freire (1992, p. 110): “O educador ou a educadora crítica, exigente, coerente, no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, sempre a entende em sua totalidade”.

Isso não significa que os conteúdos escolares fiquem à orla do processo educativo. Os conteúdos escolares fazem parte deste ciclo de ação/reflexão na totalidade, pois são eles que auxiliam no processo de construção e formação do indivíduo.“Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo...” (FREIRE, 1992, p. 110).

Assim Espírito Santo (1998, p. 19), em seu livro o Renascimento do Sagrado afirma que “muitos especialistas trabalham conteúdos específicos, desprezando a visão integral dos ser humano. Sustenta a necessidade de introduzirmos o autoconhecimento”. O autoconhecimento é imbricado com a espiritualidade, capaz de desenvolver diferentes níveis de consciência, provedores da inteireza do ser humano. Portanto, é importante uma educação baseada na condição humana, considerando a subjetividade dentro da diversidade e a complexidade que permeia esses dois sistemas antagônicos e indissociáveis.

Professores e professoras devem refletir sobre quais documentos abordar em sala de aula. Já não há lugar para a aula cujo professor considere seus alunos uma tábua rasa e ele o detentor do saber como fonte de verdade última. Faz-se necessário refletir sobre quais conteúdos contribuem para a formação de seres humanos em transformação e que se desenvolvem na/para inteireza, em sintonia com o universo. Não basta falar de conteúdos e aulas, é preciso unir profissionais que pensem e executem um projeto político pedagógico para tal situação. Além disso, é preciso que todo o sistema educacional e sua estrutura estejam articulados, para a importância da espiritualidade na formação do sujeito.

A educação mundial está em crise, clama por transformações e, conseqüentemente, por mudanças de paradigmas. E, nesse sentido, a busca de novos caminhos para uma outra compreensão de mundo envolve a educação em todos os níveis e em todas as idades. O desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro.” Tal processo apresenta-se como um grande desafio para o educador, porém necessário e possível. (MORIN, 2003 p.104)

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RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS

Sociedades tribais: organização do trabalho (caça, pesca e coleta). Esta forma de

produção exige um rígido controle do equilíbrio entre a densidade demográfica e a extensão de território disponível para extrair o alimento necessário à sobrevivência.

O principal meio de produção é a florestas, as águas e a terra. Tem como base um sistema de trocas regulado pelas relações de parentesco.

Organização social em famílias ou aldeias e clãs. O clã representa o espaço social, estruturado por um sistema de parentesco, que constitui a entidade social de referência à qual se identificam os indivíduos ou grupos.

É no nível do clã que se situa a instância da autoridade, que gera o uso do principal meio de produção (a terra), que resolve os conflitos importantes e ordena as atividades comuns ao conjunto dos grupos familiares. É no seio dos clãs que se dão os intercâmbios de mulheres.

As extensas famílias que compõem o clã possuem grande autonomia em relação à organização da vida material, de tal forma que se constituem em unidades auto-suficientes tanto no plano da organização da produção como no plano da distribuição do produto social.

As sociedades tribais são os primeiros sistemas em que aparecem as conotações religiosas como explicadoras e legitimadoras das relações sociais. As significações religiosas são de dois tipos: as que se elaboram em torno dos fenômenos da natureza e as ligadas às expressões sociais do grupo.

As representações religiosas elaboradas em torno das relações da pessoa humana com a natureza apresentam uma analogia. As forças da natureza são personificadas nos seres, tornando-os bons ou maus ou até mesmo ambivalentes.

Alguns clãs do sul da índia representavam as forças da natureza sob a forma de uma multidão de espíritos organizados por um chefe e dotados de uma vontade e uma inteligência superiores às das pessoas humanas.

Estes espíritos, ao seu bel-prazer, também eram eventualmente capazes de fazer o mal. Tratava-se sempre de espíritos ambivalentes, que podiam ser bons ou maus. O bem não era o contrário do mal, mas apenas sua ausência.

Desse modo a natureza apresentava-se como uma realidade boa em si mesma, que era perturbada por esses gênios na intenção de fazer o mal, não somente aos humanos, mas também aos animais e vegetais e a tudo aquilo que tem vida.

Por este motivo as pessoas procuravam se proteger de sua maldade, desenvolvendo práticas que visavam agradar ou afastar os perturbadores. Algumas vezes ofereciam alimentos a tais espíritos ou então, os criadores de gado imolavam uma vítima, na esperança de poupar outras.

Quando se tratava de preservar vidas humanas (em casos de doenças) intervinha no ritual um mediador capaz de entender e interpretar os sinais pelos quais a divindade (desta vez era a divindade e não os espíritos) comunicava o tratamento a ser seguido.

As religiões dos povos tribalistas são de caráter animista. Não procuram desvendar a relação entre causa e efeito que está na base da ordem das coisas.

Suas construções simbólicas têm a função de agir simplesmente ao nível dos efeitos. Neste sentido, o animismo corresponde às necessidades de sobrevivência imediata dos indivíduos e dos grupos. Trata-se de uma função de proteção desempenhada pela religião.

A vontade da pessoa humana pode influenciar as forças da natureza por meio de práticas rituais de natureza mágica. O objetivo destas práticas é o de neutralizar as forças adversas agindo direta e eficazmente sobre elas, o que geralmente exige a intervenção de um agente religioso, o feiticeiro, como mediador.

Atribuindo um sentido à natureza, a construção religiosa reduz a contradição que o grupo experimenta em sua vida cotidiana, dotando o próprio grupo de um meio para conjurar os efeitos de fenômenos cujas causas objetivas ele não domina. Assim, a religião preenche a função social de proteção e de reguladora das relações sociais de parentesco.

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As representações religiosas ligadas às expressões sociais do grupo têm como base o totem. O totem é um significante que remete a vários significados: representa o grupo enquanto unidade social; e, sendo o lugar de residência do divino, torna-se o meio através do qual é transmitida a vida cósmica ao grupo e a cada um de seus membros, na medida em que a ele se associam.

Como o totem é um elemento natural (planta ou animal), também constitui o ponto de encontro entre a ordem transcendental e a ordem da natureza: A vida (transcendental) permanece inatingível, e é representada pelo deus sem nome, na Tanzânia, ou pela floresta, pelos pigmeus. Mas encontrava em Cheyon (um totem) uma mediação eficaz, já que este se encontrava na fonte da vida concreta. O medium na transmissão da vida era a árvore totem, pois a divindade nela habitava.

Quando o clã é sedentário, o totem constitui também o lugar em que se articulam o passado e o presente: a presença dos antepassados do clã é simbolizada em torno do totem. É à unidade do clã que é concedido o sentido reproduzido em todas as linhagens pela mediação das práticas religiosas.

O intercâmbio de mulheres, prática necessária à sobrevivência das tribos, criava situações muito complicadas, uma vez que estes intercâmbios envolviam o acesso aos meios de produção ou a divisão destes. A unidade do clã, mesmo com o intercâmbio de mulheres com outros clãs, é indispensável para a sobrevivência do grupo.

É precisamente para superar as contradições criadas por ocasião dos intercâmbios de mulheres que intervém a produção simbólica. Esta construção se dá através do conceito de vida.

No caso dos Kuravas, da índia, a construção simbólica fazia o divino aparecer como catalisador da vida cósmica. Esta vida era transmitida pela mediação de um símbolo, o totem, que era o ponto de encontro entre o cosmos, a ordem social e a natureza.

É o conjunto do clã que recebe a vida; cada grupo familiar ou cada indivíduo só participa desse dom na medida em que pertença a essa totalidade.

Há, portanto, uma inter-relação entre a necessidade de sobrevivência dos clãs e a necessidade de sobrevivência de cada família ou indivíduo. Se um deles perecer, os outros também não sobreviverão.

Pode-se perceber, assim, a incidência do modo de organização social e a predominância do sistema de parentesco sobre a produção simbólica. A organização simbólica, por sua vez, também desempenha a função de acentuar o caráter harmonizador das relações sociais, desenvolvendo nos grupos familiares e nos indivíduos o sentimento de pertença à totalidade do clã.

Ela também expressa valores que correspondem à necessidade de sobrevivência do grupo (fecundidade e solidariedade). O sistema de crenças ao mesmo tempo em que vem criar e reforçar a unidade do grupo, também é reforçado por ela.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.

Sugestão de atividade complementar Leia individualmente o texto referente a esta aula e responda por escrito: 1. Quais eram as características das sociedades tribais? 2. Quais eram os principais problemas que enfrentavam e como os resolviam? Em grupo, escolha uma das

seguintes dificuldades enfrentadas pelas sociedades tribais e faça uma encenação sobre a forma como resolviam este problema com o auxílio da religião (máximo 4 minutos para cada grupo):

a) organização de uma saída para caçar, pescar ou coletar alimentos; b) escassez de alimentos; c) sobra de uns alimentos e falta de outros; d) desavenças no clã; e) clã muito grande; f) necessidades de arranjos matrimoniais; g) doença em um membro do clã.

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FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO O feudalismo é semelhante ao modo de produção tributário. Isto porque é ainda o poder

político que organiza a economia e se apropria de um tributo em espécie e em serviço. Estas taxas são fixadas sobre a produção dos grupos de base.

No entanto, diferencia-se também do sistema tributário. A diferença se dá pelo fato de que a arrecadação do tributo apresenta-se como um direito, uma vez que os meios de produção pertencem às instâncias de poder (rei ou senhor feudal) e não mais às bases produtoras (camponeses).

O senhor é o proprietário do meio de produção (terra). O produtor possui os instrumentos de trabalho e o direito de uso dos meios de produção, mas que deve prestar serviços ao senhor.

As relações trabalhistas não têm mais como centro as aldeias, mas os indivíduos: senhor/camponês. No entanto, as aldeias continuam sendo quem organiza o trabalho, constituindo grupos nos quais se forjam as solidariedades.

O poder político-econômico não é exercido diretamente do rei ou senhor feudal para seus súditos. Existe uma hierarquia de delegação de poderes. O rei ou senhor feudal delega a função de oferecer favores ou punir seus dependentes a uma escala de intermediários. Esta escala vai desde o chefe do grande feudo, passa pelos chefes das federações de vilas, aos chefes de clãs, etc.

No feudalismo existe uma contradição que não encontra sua justificação ao nível da produção material do grupo; ou seja, uma vez que o grupo produz o necessário para sua sobrevivência sem o auxílio do senhor feudal, nada justifica que tenha a obrigação de repassar todo excedente para o dono do feudo.

Nas sociedades feudais, a cobrança do tributo não é justificada pela contrapartida de uma proteção, como nas sociedades tributárias. Assim, é preciso uma poderosa produção ideológica para que os servos o admitam como natural e necessário à sobrevivência da ordem social global.

Para conseguir justificativa para seu funcionamento, a sociedade feudal buscou a religião como um de seus apoios ideológicos. Os dirigentes buscavam a explicação e legitimação de sua própria excelência, enquanto os dominados encontravam razões para aceitar sua condição, na esperança de uma compensação de natureza pós-histórica.

Uma das formas de legitimar religiosamente o sistema feudal foi criar a idéia de panteão de deuses, organizados hierarquicamente. Neste sistema, a divindade principal normalmente tinha o poder de conceder favores ou fornecer castigos a seus fiéis. Este poder da divindade principal coincidia com os poderes que o rei ou o senhor feudal detinham sobre seus subordinados.

No caso de feudalismo Kandyano, do século XVII, no Sri Lanka, houve a formação de um sincretismo entre as religiões budista e hinduísta. O panteão criado neste sincretismo apresentava uma verdadeira pirâmide divina. No ápice da pirâmide estava Buda, considerado como ser sobrenatural, do qual não se podia esperar favores espirituais e materiais; mas abaixo de Buda podia-se encontrar as divindades.

Em primeiro lugar, Sakra, protetor do universo budista (a Sansana), que delega seus poderes a Saman. Este, juntamente com Vichnu, Skandha, Nata e Pattini, fazem parte do Hatara Varan Deiyo (panteão das divindades nacionais), encarregado de defender a fé e proteger o reino. Estes são deuses no sentido convencional do termo: podem conceder favores e punir pecados. Abaixo dessas divindades nacionais, encontram-se as divindades locais, correspondentes aos Patus (grupos de aldeias) ou às aldeias (que são so Bandara Deiyo ou deuses senhores) que protegem as comunidades locais.

No nível mais baixo da escala colocam-se os demônios, os pretas, espíritos maus dos ancestrais pecadores, punidos por causa do seu mau Karma. Eles são as causas de todos os males, considerados como punições não racionais. Entretanto, eles necessitam dos homens para serem resgatados. Essa hierarquia celeste é homóloga à hierarquia existente ao nível sócio-político, pois reproduz a estrutura do poder. As divindades do templo são representadas em uma posição idêntica àquelas que os homens são obrigados a guardar nas cerimônias de juramento aos reis ou aos senhores. O status da divindade corresponde ao seu nível moral, atingido pela acumulação de bens espirituais (seus méritos, adquiridos no curso de cada vida temporal).

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Se a divindade obtém seu status por seus méritos, subentende-se que os reis ou senhores feudais também. Por este motivo, assim como as divindades merecem respeito, consideração e oferendas, também os reis e senhores feudais merecem, pois fizeram o mesmo caminho que a divindade.

Desta forma, o rei ou senhor feudal continua sendo um homem, mas um homem especial, que depende diretamente das divindades protetoras: os reis são vistos como deuses e os deuses são vistos como reis.

Esta escala "moral" inclui não apenas as divindades, mas também o conjunto dos homens. Cada qual ocupa uma posição nesse espaço temporal-espiritual em função de seu Karma em uma vida anterior.

Nos países europeus, a legitimação do sistema feudal se deu via cristianismo. A lógica teológica criada no cristianismo não difere muito da fornecida pelo sincretismo budista e hinduísta. No período feudal europeu foi estabelecido a hierarquia celeste cristã que conhecemos até hoje.

Na hierarquia celeste cristã, acima de todos está o grande Deus, formado por três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estas três pessoas compõem uma única divindade que é, ao mesmo tempo, onipresente, onisciente e onipotente (tal como o rei ou o senhor feudal). Esta divindade tem o poder tanto de conceder favores espirituais e materiais como de punir os pecados da humanidade.

Embora não havendo divindades menores na teologia cristã, há no entanto, no âmbito do sagrado, entidades menores (anjos e santos). Estas têm a função de proteger a humanidade e interceder junto à divindade maior, visando obter seus favores ou acalmá-Ia para que não venha a punir seus fiéis.

Além dessas entidades intermediárias, existem outras entidades muito mais próximas das pessoas comuns, com as mesmas funções dos anjos e santos. Estas entidades próximas, por sua vez, também organizam-se de forma hierárquica. São os diferentes representantes da divindade aqui na terra, atuando concretamente na instituição Igreja: Papa, Cardeais, Arcebispos, Bispos, Padres, Religiosos/as (monges, freiras).

Por último, nesta hierarquia, encontram-se os simples mortais, que dependem da hierarquia divina para "ir bem" tanto nesta vida como em um tempo vindouro (pós-morte). Para conseguir estas graças, devem servir a todos os outros que se colocam acima deles na hierarquia divina.

Embora não haja no cristianismo a noção de Karma, há a noção de pecado/castigo. Se estou em uma posição inferior na sociedade é porque cometi (ou alguém de minha família cometeu) algum ato que desagradou a Deus, por isto estou sendo punido.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982.

Sugestão de atividade complementar :Veja a letra do hino a seguir. 1. Compare a proposta de relações sociais contida nele com as relações sociais acima descrita. 2. Compare a concepção de religião presente no hino com a concepção de religião acima descrita.

Utopia 1-Quando o dia da paz renascer, quando o Sol da esperança brilhar, eu vou cantar... Quando o povo nas ruas sorrir e a roseira de novo florir, eu vou cantar... / Quando as cercas caírem no chão, Quando as massas se encherem de pão, eu vou cantar, Quando os muros que cercam os jardins forem destruidos, Então os jasmins vão perfumar... / Vai ser tão bonito se ouvir a canção Cantada de novo

No olhar do homem a certeza do irmão, Reinado do povo (bis) 2-Quando as armas da destruição, destruídas em cada nação, eu vou sonhar. E o decreto que encerra a opressão, assinado só no coração, vai triunfar / Quando a voz da verdade se ouvir, / E a mentira não mais existir, será enfim. / Tempo novo de eterna justiça, sem mais ódio, nem sangue, cobiça, Vai ser assim.

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A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE Escrito por Cláudia Sales de Alcântara[1]

[EXTRATO] [...] III – A MODERNIDADE E A SECULARIZAÇÃO DA SOC IEDADE A religião institucionalizada não conseguiu tornar a sociedade mais justa, livre e igualitária e nem conseguiu responder às questões existenciais da humanidade, fazendo com que o ser humano, insatisfeito com as imposições feitas pela igreja, buscasse encontrar explicações concretas para o que antes era explicado de forma abstrata. O aumento do comércio e, por conseguinte, o surgimento do capitalismo, o descobrimento de novos “mundos”, o aparecimento da imprensa (século XV) e de novas tecnologias, abalaram de vez o sistema feudal. A fragmentada sociedade feudal da Idade Média transforma-se então, em uma sociedade dominada, progressivamente, por instituições políticas centralizadas, com uma economia urbana e mercantil. Estas novas mudanças foram aos poucos modificando a mentalidade teocêntrica da humanidade; a célebre frase de René Descartes, "Cogito, ergo sum" (Penso, logo existo), resume o resultado dessas transformações. O Renascimento (século XIV) e o Iluminismo (século XVIII), a Reforma Protestante (século XVI) e a Revolução Industrial (século XVIII), consolidaram de vez o novo sistema que substituiria o antigo regime feudal: o Capitalismo. No campo do pensamento, o mito e a religião foram aos poucos substituídos pelo mito do progresso científico e tecnológico (positivismo de Comte). A ascensão da burguesia e de sua ideologia (Iluminismo) levou a humanidade a utilizar-se da razão não somente para descobrir o mundo, mas também, para entenderem a si mesmos no contexto da sociedade; surgia uma cultura laica, ou seja, sem a interferência da igreja. O homem agora voltaria a ser a medida de todas as coisas. Estas concepções, contudo, estavam carregadas de esperança, com a responsabilidade de propor novas cosmovisões em substituição as antigas representações religiosas.

A desmistificação dos dogmas pelo racionalismo, proporcionando a possibilidade de uma interpretação pessoal dos textos sagrados, e a necessidade de uma nova moral religiosa que atendesse aos interesses econômicos da burguesia em ascensão (já que a Igreja Católica condenava a usura, a avareza, a cobiça, e defendia a doutrina do "justo preço", o que contrariava o ideal burguês de obtenção do maior lucro possível), possibilitou a chamada Reforma Protestante.

A ética protestante, ao contrário da católica, valorizava a competitividade e a busca do lucro, ajustando-se, portanto, aos ideais burgueses daquele momento histórico em que se desenvolvia o capitalismo, como afirma Max Weber:

"Mas o que era ainda mais importante: a avaliação religiosa do infatigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto instrumento de ascese, e ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida que aqui apontamos como espírito do capitalismo". (WEBER, 1989, p. 123).

Por este motivo, aos poucos, a Igreja Católica Romana precisou rever suas concepções e

adequar-se a essa nova estrutura social, política e econômica com uma nova mentalidade, cada vez mais distante da medieval (Contra Reforma). Estas mudanças caracterizaram-se por um movimento de reafirmação dos princípios da doutrina e da estrutura da Igreja, corrigindo, desde o seio da Igreja, as fontes de descontentamento que alimentavam a Reforma Protestante. As instituições religiosas, contudo, perdem o poder de dar “as cartas” no mundo moderno; já não possuem a hegemonia da cultura, do Estado e das instâncias reguladoras do cotidiano. Nesta nova realidade, não era mais a religião que dava sentido ordenador da realidade social, com suas mediações, mas a própria interdependência de escolha racional centrada no ser humano. Deus estava agora presente na natureza, portanto no próprio homem, que poderia agora descobri-lo através da razão. Para encontrar Deus, bastaria levar uma vida piedosa e virtuosa (moral kantiana); a Igreja torna-se dispensável.

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IV – A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA EM MEIO À PÓS-MODERNID ADE Mircea Eliade em seu livro, O sagrado e o Profano, a essência das religiões, afirma que “seja qual for o grau de dessacralização que o mundo tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (Mircea Eliade, 2001, p. 27).

A moderna humanidade que passou por um grande processo de dessacralização e secularização, não conseguiu proporcionar um mundo mais justo através da razão. O avanço teológico e a ciência, em vez de proporcionarem a solução de todos os males da sociedade, mostraram-se incapazes de superar as contradições da convivência social. O desenvolvimento do capitalismo “selvagem”, as duas grandes guerras mundiais, a utilização da bomba atômica, os riscos da industrialização para a ecologia, entre outros, mostrou a ineficácia da razão como “salvadora da pátria”, fez-se então necessário um retorno aos antigos referenciais que tinham sido ignorados na modernidade; é neste contexto que nasce o que chamamos de pós-modernismo, como afirma Eduardo Subirats:

“Em torno de todo jargão do Pós-moderno desenvolvem-se atitudes culturais de signo regressivo. Assim se passa com o nacionalismo que se ampara por detrás dos historicismos nostálgicos ou dos diferentes regionalismos; assim, a busca de valores substanciais, de uma ordem ética ou estética transcendente, através da reivindicação do tradicional, do retorno a formas de pensamento religioso e da defesa de uma autonomia de princípios morais também de signo transcendente”. (SUBIRATS, 1991)

As igrejas tinham encastelado Deus a tal ponto que ele se tornou impotente diante das necessidades do mundo. Este período é então caracterizado pelo aumento da insegurança (pois todas as certezas em que estava embasada a sociedade “caíram por terra”), do relativismo de qualquer conhecimento (negação de verdades universais da racionalidade), da globalização e da retomada do interesse pelas concepções religiosas, como uma tentativa de “achar um sentido do mundo acessível à compreensão humana” (Max Weber 1982, p. 625). O retorno da religião (sentimento religioso) neste aspecto pode ser visto como um fenômeno periódico que se utiliza à religião em função de exigências de natureza social, como afirma Franco Crespi:

“De fato, a religião se apresenta como uma forma de mediação especifica, que leva em conta o caráter ilimitado do desejo humano e explica o mundo finito, colocando-o em relação com o horizonte infinito de um além-mundo, que assim se torna parte constitutiva da própria vida terrena”. (CRESPI, 1999, p. 15).

Embora as instituições religiosas, neste momento, continuassem não possuindo poder de regular o universo cultural, social e pessoal, os indivíduos continuaram a viver dimensões do sagrado de formas bem particulares (subjetividade), podendo ser estas dimensões observadas nas atitudes políticas, esportivas e culturais, ganhando assim uma nova dinâmica fora das Igrejas, tornando-se mais presente do que nunca na sociedade contemporânea ( nas Ong’s, manifestações culturais, associações comunitárias, no Greenpeace, nos clubes esportivos, etc.). Esta dimensão do sagrado é fortemente caracterizada por um retorno ao sentimento religioso (mostrado na primeira parte deste artigo), ou seja, um retorno às experiências emocionais, mesmo que o individuo não seja consciente do fato, como podemos observar na colocação de Mircea Eliade:

“Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferente dos outros: a paisagem natal ou sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude (...) são os “lugares sagrados” do seu universo privado (...)” (Mircea Eliade, 2001, p. 28).

Com o enfraquecimento da religião institucional, já pré-anunciada pelos teólogos da morte de Deus, o ser humano sente-se agora livre para buscar, de forma autônoma, seu próprio universo de significações em um mundo fragmentado (sincretismo). “Assim, o pluralismo religioso torna-se, simultaneamente, fator e resultado da secularização” (PIERUCCI, 1997, p. 115), abrindo caminho para a concorrência entre diversas instituições religiosas que se lançam em uma competitividade, utilizando-se das mesmas operações da economia de mercado capitalista e fazendo com que a religião, que no período medieval moldava o mundo, seja moldada pelo “gosto do freguês”. O que resta na sociedade pós-modernista é a presença simultânea de várias instituições religiosas (cristãs ou não), convivendo entre si, não mais influenciando o todo social, pois os

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seres humanos não se identificam mais com discursos universais, mas atuando de maneira coadjuvante, influindo, ainda que em menor escala, os fundamentos da sociedade.

São nesses momentos de “morte” institucional que a experiência religiosa ganha novos sabores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi dito, a religião continua a existir na pós-modernidade nos ritos, crenças e atividades, grupos e projetos não explicitamente religiosos. As tradições continuam atuando conforme a subjetividade de cada indivíduo. A religião passa a existir na intimidade, produto da construção pessoal subjetiva e autônoma que não necessita prestar contas a uma instituição. É o fim da religião totalizante da sociedade, contudo, não significa o fim da religião na particularidade de cada indivíduo. BIBLIOGRAFIA CRESPI, Franco. A Experiência Religiosa na Pós-Modernidade. Bauru, SP: EDUSC, 1999. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização. A propósito do auto-engano em sociologia da religião. In: Novos Estudos Cebrap, n. 49, nov., 1997. SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1991. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989. NOTAS [1] Arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal do Ceará – UFC, teologa pelo Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos – ICEC/ Fortaleza e mestranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.

[10] A secularização de uma sociedade, em seu sentido radical, pode ser entendida como um processo pelo qual a religião deixa de ser a forma de integração da cultura, particularizando-se. Ela faz com que tal sociedade já não esteja mais determinada pela religião, mas restrita a um âmbito particularíssimo do ser humano.

[11] René Descartes (1596 - 1650), também conhecido como Cartesius, foi um filósofo, um físico e matemático francês. Notabilizou-se sobre tudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do Cálculo moderno.

[12] A filosofia positiva de Comte nega que a explicação dos fenômenos naturais, assim como sociais, provenha de um só princípio. A visão positiva dos factos abandona a consideração das causas dos fenômenos (Deus ou natureza) e torna-se pesquisa de suas leis, vistas como relações abstratas e constantes entre fenômenos observáveis.

[13] Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798 - 1857) foi um filósofo francês e o pai da Sociologia.

[14] Ele foi, juntamente com Karl Marx e Emile Durkheim, um dos modernos fundadores da Sociologia. É conhecido, sobretudo pelo seu trabalho sobre a Sociologia da religião. Escreveu a Ética protestante e o espírito do Capitalismo, nesse seu trabalho ele tinha a intenção de examinar as implicações das orientações religiosas na conduta econômica dos homens, procurando avaliar a contribuição da ética protestante, em especial o calvinismo, na promoção do moderno sistema econômico.

[15] A dessacralização do mundo é uma característica fundamental da Modernidade, já que impulsiona o processo de secularização.

[16] Nos anos 60 surgiu nos Estados Unidos uma formulação teológica conhecida exatamente como “teologia da morte de Deus”. A frase “Deus está morto”, aponta para uma constatação, a saber, a morte de valores absolutos na sociedade.

[17] Sincretismo - Palavra originada do grego; significa sistema que consiste em conciliar os princípios de várias doutrinas ou filosofias. http://www.ftl.org.br/index.php?view=article&catid=35%3Aartigos-online&id=81%3Aa-instituicao-religiosa-na-posmodernidade&option=com_content&Itemid=75#_ftn14 acessado em 16 set 2010

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RELIGIÃO E CONSUMISMO: OS DEUSES NA VITRINE DA PÓS-MODERNIDADE

http://www.eternoretorno.com/2008/10/14/religiao-e-consumismo-os-deuses-nas-vitrines-da-pos-modernidade/ acessado 16 set10

No livro “Mal-estar na pós-modernidade“, Zygmunt Bauman, sociólogo polonês contemporâneo, irá discorrer sobre vários aspectos que marcam o período atual que vivemos, chamado por ele de “pós-modernidade“. Vale lembrar que este termo não é um consenso para designar a contemporaneidade, embora seja o mais usual. Como ponto de partida, Bauman faz uma releitura da clássica obra de Freud, “O mal-estar na civilização“. Freud, analisando o surgimento das primeiras civilizações, irá dizer que o homem trocou um quinhão de liberdade por um quinhão de segurança; já Bauman, olhando para o homem pós-moderno irá dizer que

este trocou um quinhão da segurança por um quinhão de felicidade. “Quinhão” aqui é uma forma de dizer, pois a busca pela felicidade não é quantificável, é uma profusa

característica marcante das pessoas nesse atual momento. Não que antes as pessoas não buscassem a felicidade, mas é que a felicidade inventada pelo modernismo, isto é, uma espécie de panacéia, torna-se peremptoriamente uma necessidade que deve ser buscada a qualquer custo por homens e mulheres pós-modernos. A dinâmica constante desse movimento se dá pelo fato da felicidade não ter um ponto de chegada, pelo contrário, a chegada parece guarnecer o cheiro do horror. Dessarte, o prazer é justamente a incessante e infrutífera busca: a ordem é obter as benesses da felicidade, mas marcada com a eterna – pelo menos no plano terreno – sensação de insatisfação, um dos principais espectros do pós-modernismo.

Consumismo e religião na pós-modernidade

Entre as várias faces da sociedade, analisadas por Bauman, que vêm passando por transformações, tais como a arte, a política, a cultura, entre outras, que perpassam sobretudo as relações humanas, também encontramos a religião. As novas organizações eclesiásticas também passam por reformulações, ou pelo menos a transformação de dogmas em eufemismos. Seus “clientes”, agora, são norteados pela necessidade de felicidade que implica em uma constante busca de “autos” realizações em vários dos aspectos “espirituais”, é possível verificar uma interessante semelhança entre o consumismo e a religião nas análises de Bauman.

Homens e mulheres pós-modernos, marcados pela crise da identidade, não precisam mais das promessas celestiais nem se importam com os castigos do fogo do inferno no mundo do além, estes já estão no plano concreto, tangível pelas capacidades de consumo de cada um. Porém, a busca pela felicidade duelando com as crises de identidade implicam em um rol de produtos de consumo para que os homens possam “curar suas personalidades”, de modo a estarem altamente capazes de beliscar as promessas de encanto que o capital oferece. Bauman nos diz que:

“A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da

personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”.

Nesse sentido, homens e mulheres pós-modernos não precisam mais de padres, pastores e sacerdotes tradicionais que falam das fraquezas do homem, eles já estão fartos de suas fraquezas e precisam de “auto-afirmação”, e mais do que isso, precisam de uma “receita” breve, rápida, curta e para o agora de como podem resolver seus males e conseguir suas satisfações. (Nesse ponto quero fazer uma nota irresistível: a difusão dos blogs também se deve aos escatológicos títulos que o internauta deve bem conhecer, tais como “Saiba como…”, “Tudo sobre…”, “Os 10 melhores/maiores…”, “Descubra aqui como…”, essas breves notas despontam acenando aos desesperados que buscam consolo na leve virtualidade)

A efígie fluida do homem pós-moderno, isto é, a busca incessante pelo acúmulo de sensações de prazer, que se produz na teia das incertezas onde o paraíso e o inferno se entrelaçam no cotidiano, cria condições para uma procura crescente por “mestres”, “gurus”, “autoridades”, ou “deuses humanos” capazes de “vender” produtos que possam intensificar as sensações de prazer. Isso não implica que as “casas divinas” fechem suas portas, mas em novas diretrizes de adaptação a essa ordem do consumo para que não se tornem obsoletas. As instituições religiosas são, antes de tudo, empresas que se confrontam com as leis – agora humanas – da economia liberal na difícil competição do mercado, competem por almas potenciais que, em troca do “conselho” para se dar bem na trama social, oferecem o que podem no momento.

A religião não desaparece do cenário, pelo contrário, intensifica-se em múltiplas religiões. Multiplicam-se os sabores da experiência com algum plano espiritual que deixa de falar o tempo todo das fraquezas humanas e passa a fomentar um indivíduo capaz de vencer os dissabores sociais. Os discursos da penitência e das autoflagelações estão fora de moda, até o Vaticano tratou de escamotear seus discursos, e já apresenta em seu rol, alusões à juventude e à diversidade de crenças e culturas. Os fiéis exigem líderes capazes de fornecer pequenos – e fáceis – conselhos. Procuram antes de tudo um “guia espiritual” capaz de satisfazer questões que a vida cotidiana vai sufocando. O sujeito

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busca sua sobrevivência em um emprego, mantém uma rotina mais ou menos fixa: acordar, ir ao trabalho, voltar para casa, bater continência a rede Globo e dormir, por vezes um pequeno lazer no fim de semana antes de iniciar a repetição; só sobram então, questões que vão remoendo em angústias e, da mesma forma que se compra um medicamento para cefaléia, homens e mulheres pós-modernos saem em busca de “consumir” especialistas espirituais que tenham a oferecer, não mais um consolo espiritual, mas uma espécie de “produto” espiritual que possibilitará uma visão mais clara e segura para que os frutos da felicidade sejam colhidos em seu melhor momento.

Percebe-se, dentro desse viés de Bauman, uma ordem do consumo norteando as religiões. As religiões perdem

aquela autoridade quanto a uma ordem fundamental que mais ou menos direcionavam a vida dos indivíduos como o foi na Idade Média; céu e inferno não deixam de prevalecer enquanto dogmas, mas a necessidade é falar menos dos horrores como forma de manutenção; devem-se exaltar, agora, as qualidades humanas, ou angariar elementos, mesmo que sejam de “outro mundo”, que possibilitem a “performance” espiritual, como se fosse o “essencial” que falta para dar o sentido de completude humana.

Por outro lado, aquelas “experiências máximas” que a religião tradicional prometia, isto é, a oferenda de uma

vida eterna paradisíaca além da possibilidade de superação das abjeções da vida terrena, sai de cena dos palcos sagrados e vão desfilar nas alegorias privadas das empresas de todo e qualquer tipo de produto material. A “experiência completa”, o êxtase intenso, é agora deslocado para o plano da mercadoria; um carro zero de luxo é o suficiente para superar qualquer promessa obsoleta de vida eterna. A vida eterna permanece, é claro, nas idiossincrasias de cada um, mas deixa de ser uma questão elementar quanto o é um bem material. Marx já alertava no século XIX sobre a supremacia das mercadorias escravizando a vida dos homens, hoje elas destoam graciosamente definindo as identidades pessoais.

Bauman nos diz que a cultura pós-moderna, ao alcance de todo indivíduo, desde que ele possua a moeda de troca, exige uma vida devotada ao consumismo. Longe de discursar sobre as fraquezas humanas e seus pecados, as mercadorias discursam sobre o aumento das potencialidades humanas em suas múltiplas formas e conteúdos.

Torna-se máxima das vitrines do paraíso na terra, atiçar a fragilidade dos homens e mulheres pós-modernos através de mensagens como “Você pode fazer isso”, “Todo o mundo pode fazê-lo”, “Cabe somente a você decidir”, “Se você deixa de fazê-lo, só tem de botar a culpa em você mesmo”. É fundamental no consumismo afastar qualquer projeção que não seja a ubíqua felicidade felicitando na vida terrena. Os novos profetas, diz Bauman, são aqueles recrutados da aristocracia do consumismo, que conseguiram transformar a vida numa obra de arte da acumulação e intensificação das sensações, dos bens materiais, da riqueza na terra. É desnecessário apresentações desses profetas, temos vários que estão no palco, em geral, com seus livros autobiográficos que mostram a trajetória da miséria à luxúria.

Considerações finais Aparentemente opostas, as intenções religiosas e consumistas se encontram e se abraçam num horizonte onde

os atores em busca da “experiência máxima” estão em constantes aventuras, espirituais e materiais, na eterna busca daquilo que um dia irá preenchê-los em totalidade psicofísica.

Se a religião tradicional oferecia a “experiência máxima” à custa de uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna da religião concilia os dogmas com a ordem liberal do consumo. Seus seguidores, embora não abandonem os dogmas, sabem muito bem que as ofertas de algum paraíso ou de um submundo de trevas já não os convencem mais a ponto de sacrificarem suas felicidades. São aceitáveis os elementos recrutados do mundo supra-sensível, como Deus, Jesus Cristo, santos e outros personagens, desde que eles sirvam para aumentar os potenciais psicológicos e físicos para conseguir acumular mais sensações de prazer oferecidas na vida terrena. Deuses e heróis mágicos perderam seu poder de sedução frente às mercadorias e à “religião do consumo”, estas sim, únicas e eficientes para promoverem a “experiência máxima” do prazer, mesmo que seja momentânea, a ponto do término de abrir uma embalagem, verificar o conteúdo, sentir o perfume do “novo” e se embriagar novamente em busca da próxima oferenda…

Assistir homens e mulheres pós-modernos em busca da felicidade é como assistir um burro correndo atrás de um alimento que vai a sua frente, bamboleando, de acordo com o trotar que afeta o montador que, em sua perniciosa astúcia, vai segurando o pedúnculo.

Referências: BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. São Paulo: Jorge Zahar, 1998. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). 1ª edição, Rio de Janeiro, Imago, 1974.

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MARX E A RELIGIÃO CRITICA IDEOLÓGICA

(concepção da pessoa humana)

CRITICA POLÍTICA

(relação indivíduo e Estado)

Estado abstrato -

Não existe uma igualdade real

na sociedade o indivíduo tem uma diversidade hierarquizada

⇒ conflito entre si

CRITICA ECONÔMICA

(relação indivíduo –

modo de produção capitalista)

A mercadoria de valor prático foi acrescido de valor simbólico

felicidade

Estado Burguês representante

DEUS

Onipresente

Onipotente

Onisciente

Bom

Justo ....

Mercadoria produzida

$

representa

a felicidade

Esta parte deveria dominar o mundo

Bom

Inteligente

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ALI

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Ciência e religião na fala dos professores de química, física e biologia Vilmar Malacarne*

Resumo Este trabalho apresenta resultados de pesquisa realizada com professores das Ciências Naturais na região de cobertura do Núcleo Regional de Educação de Cascavel, PR. São apresentados dados a respeito de como tais professores compreendem e abordam, em seu cotidiano escolar, elementos atinentes à Ciência e à Religião. Estão presentes, no trabalho, trechos de entrevistas realizadas com os professores e que buscam explicitar aspectos ligados principalmente a problemas de sua formação, nos conceitos aqui abordados, e que acabam resultando em dificuldades no processo de ensino e de aprendizagem na educação básica. Palavras-chave: ciência e religião; ensino de ciências; formação de professores. Introdução Este texto traz para a discussão o pensar de professores de Química, de Física e de Biologia que atuam nas escolas do Ensino Básico, principalmente no Ensino Médio, na região de cobertura do Núcleo Regional de Educação de Cascavel, PR, sobre temas como Ciência e Religião e sua presença durante a atuação docente. Especificamente, buscou-se compreender se os professores possuem clareza a respeito das diferenças de abordagem entre as duas áreas do conhecimento (Ciência e Religião), tendo em vista que, a partir desta constatação, seria possível inferir elementos a respeito da sua formação inicial, assim como a respeito de sua atuação em sala de aula no ensino de ciências. Pelo fato de a região em questão ter um forte apelo à religiosidade, a clareza conceitual destes dois temas permitiria seu melhor desenvolvimento no processo de ensino e de aprendizagem, principalmente com os alunos adolescentes da escola básica.

Quando questionados se julgavam a astronomia uma Ciência ou não, obteve-se a resposta unânime de todos os 14 professores de que é Ciência. Entre eles, destaca-se a professora NP, que disse: “É uma Ciência, pelo menos no meu conceito é uma Ciência.” Em geral, nas falas, percebe-se certa dúvida em torno da opinião que acaba de ser expressa, porém os entrevistados acabaram por optar em considerar a astronomia como Ciência. Percebeu-se, também, certa restrição à forma de desenvolvimento desta área do conhecimento, considerando-a como meramente técnica, sem o envolvimento humano, o que pode, talvez, reduzir, no entendimento dos entrevistados, o seu status de Ciência, mesmo a considerando como tal.

Observou-se, de forma geral, que há certa clareza quanto a considerar a astronomia como Ciência, mesmo que os motivadores desta opinião não sejam de todo claros e calcados em pressupostos que caracterizam a Ciência. Quanto à astrologia como Ciência, 5 professores julgaram-na Ciência, entre eles a professora NP, que disse: “Porque as duas (a astronomia e a astrologia) são ligadas praticamente, né, então não pode deixar, uma ser Ciência e a outra não.” Neste caso, a professora estabelece uma possível ligação entre a astronomia e a astrologia, pois que, na sua opinião, trabalham com objetos ligeiramente próximos, mesmo que não na sua totalidade, e isso justifica a sua posição de considerar a astrologia como Ciência.

Obteve-se, também, a resposta de 9 professores que não consideram a astrologia como Ciência. Nestas, a opinião da professora SM, que diz: “Eu acho que é muito mito, é muita... eu não acredito nisso, porque eu não acredito nessa coisa, não consigo entender... acreditar que um astro faça alguma coisa em mim, não acredito.”

Justifica a sua resposta negativa utilizando-se de argumentos baseados na descrença pessoal na área e não em informações ou critérios que a aproximam ou a afastam de um cunho científico. Encontramos, para a astrologia, uma mescla de opiniões que justificam a opção por considerá-la ou não considerá-la como Ciência, demonstrando que ela está imbricada de crendices populares e de poucas posições embasadas em critérios consistentes que poderiam classificá-la como científica ou não. Há, ao que tudo indica, muito mais um receio implícito de afirmar que acreditam, por exemplo, no horóscopo, do que em considerar efetivamente a astrologia como não-Ciência.

Quando solicitado o posicionamento quanto ao criacionismo como conhecimento científico ou não, as opiniões foram divididas, sendo que 7 professores o consideram como Ciência, dentre eles a professora SB, que disse: “Da maneira que eu entendo, para mim também seria Ciência”. Trata-se de uma afirmação que, mesmo sem elementos de cientificidade, reconhecem-no como Ciência.

Quanto a não considerar o criacionismo como Ciência, obtiveram-se 7 opiniões. Opiniões como a da professora NP, que diz “É simplesmente uma ideia, então não é Ciência, é uma ideia de criação”. Para ela,

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a teoria criacionista possui falta de sustentação e de fundamentação para poder ser considerada como Ciência, fundamentação esta não necessariamente atrelada a elementos científicos.

Os posicionamentos neste item acabam por refletir, de alguma forma, as questões religiosas que participam da cultura regional. As opiniões acabam, assim, sendo transpassadas por aspectos de fé e de formação acadêmica, realidade esta que, a partir das falas dos professores, tende a também estar presente na sala de aula em momentos em que estes temas estão em pauta.

Quando o evolucionismo foi citado, teve-se um consenso a respeito de ser considerado como Ciência, visto que os 14 entrevistados assim o consideraram. Ocorreram opiniões como a da professora NP, que disse: “O evolucionismo é um ramo da Ciência que estuda a evolução, aí sim é uma Ciência, porque ele tem fatos concretos da evolução, é uma Ciência sim.” Para o professor, neste momento dos diálogos, evolução e Ciência são consideradas como sinônimos.

De forma geral, o evolucionismo é visto como Ciência, porém, como em outros casos, não aparecem nas falas dos entrevistados critérios associados à Ciência para assim classificá-lo, ou seja, o mero termo, que induz a entender evolucionismo como evolução, no sentido usual em que é empregado, já o faz ser associado à Ciência.

A próxima solicitação foi para a medicina tradicional (oficial) e se esta era entendida como Ciência. Aqui também houve consenso sobre o tema, pois os 14 professores consideraram-na como tal. Tivemos opiniões como a do professor IC que disse: “É uma Ciência mas é fraca. Eu vou pegar para você uma rápida aqui, antigamente tinha o clínico geral, hoje em dia a medicina se espalhou em 50 ramos diferentes, então por isso que eu falo que ela é fraca...” Para este professor há, ao que tudo indica, uma descrença na medicina atual; por consequência, pairam dúvidas sobre a sua validade como Ciência, mesmo a considerando como tal.

A definição da medicina tradicional como Ciência passa, assim, por critérios que vão do pessoal ao científico, passando por um sem número de elementos, porém a informação transmitida, apesar de não necessariamente pautada na consciência dos critérios adotados, é da visualização dela como Ciência.

Para a medicina caseira, outro tema questionado, obteve-se um quadro um tanto curioso, pois, assim como anteriormente, para a medicina tradicional, todos os 14 professores consideraram-na como Ciência. Entre eles, opiniões como a da professora RL, que disse: “Pois é, também é, mas a gente tem dificuldade de fazer esta relação, mas é. Tanto que a medicina tradicional sempre vai ver o princípio empírico, caseiro, para começar uma pesquisa, sempre tem fundamento, né.” Nesta fala, está presente o apelo pelos resultados da medicina caseira, já verificados inclusive por ela, em casos específicos e, desta forma, a sua caracterização como Ciência.

De forma geral, para os entrevistados, a medicina caseira está tão ligada à sua rotina de vida que, indiferente das justificações colocadas pela metodologia científica, ela é vista como uma Ciência.

Quando os temas entram no âmbito da religiosidade, como o espiritismo, primeira das três religiões listadas, a disparidade de opiniões se acentua. Neste caso, obteve-se a resposta de que 5 professores o consideram como Ciência. O professor JT é da opinião seguinte:

Eu acho que também é uma Ciência. Eles cultuam, né, seus, tem sua devoção lá, né, e tem o seu conhecimento e acredito que, na medida que eles também adquirem algum conhecimento sobre determinado assunto, eles estão construindo um conhecimento e em função disso acho que seria Ciência também.

Para ele, o fato de resultar em determinado tipo de conhecimento já caracteriza o espiritismo como Ciência. Diferentemente daqueles, 9 professores não consideram o espiritismo como Ciência. Entre eles, está a professora NP, que afirma: “Eu vejo como segmento de fé, alguma coisa, mas não como, como Ciência.” Para eles, a falta de provas ou o fato de ser uma religião já o descaracterizam como Ciência.

Ao que tudo indica, há, entre os entrevistados, quando se trata do espiritismo, a influência da sua religiosidade para a tomada de posição diante dessa crença, que, em uma região de amplo apelo Católico Apostólico Romano, não tem grande aceitação ou popularidade. Como em momentos anteriores, o critério científico não é o elemento preponderante para um posicionamento nesta questão.

Situação semelhante à anterior ocorreu quando o protestantismo foi citado e solicitado posicionamento sobre ele ser ou não Ciência. As opiniões se dividiram: 8 professores julgaram-no como Ciência. Dentre estes, o professor JT, que disse: “O protestantismo. Eu acho que também é, porque todas as, todas as doutrinas, né, eu acho que dá para caracterizar como uma Ciência, um conhecimento. Todas as religiões, né.” Há, na sua fala, uma nova confirmação de proximidade entre Ciência, evolução e conhecimento, critério que é adotado para caracterização do protestantismo como Ciência.

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Contrabalançando o grupo, 6 professores não consideraram o protestantismo como Ciência. Nesse grupo, foram emitidas opiniões como a da professora NP, que disse: “Eu vejo como segmento de fé, alguma coisa, mas não como, como Ciência.” Nesta fala, a princípio, a distinção entre Ciência e Religião é a base das opiniões.

O que se verifica no grupo de respostas sobre o protestantismo se assemelha ao que foi visto com o espiritismo, ou seja, influência religiosa de um lado e desconhecimento das bases científicas de outro, demonstrando falhas no processo de formação que, ao que tudo indica, refletem-se também na sala de aula no exercício da sua profissão como docente.

Finalizando o bloco de questões sobre a caracterização de temas como Ciência ou não, o catolicismo foi citado. Este foi considerado, por 8 entrevistados, como Ciência. Entre os entrevistados, opiniões como do professor JT, que disse: “Eu acho que sim, porque, embora assim as religiões queiram ou não... quanto maior a devoção, maior o conhecimento bíblico, maior o conhecimento histórico no decorrer da evolução, né, desta religião, então eu acho que dá para classificar como Ciência.” Como em outros casos, conhecimento e evolução dão a base para culminar classificando o catolicismo como Ciência.

Diferentemente dos seus colegas, 6 professores não consideram o catolicismo como Ciência. Entre eles, inclui-se a professora JC, que disse: “(Tempo) Porque o material que eles têm mesmo é a Bíblia, e na Bíblia quem vai te afirmar que aquilo é verdade?” Argumento restrito a critérios pessoais, mas que aponta para uma separação, mesmo sem muita fundamentação, entre Ciência e Religião é aqui utilizado para justificar o posicionamento.

Os números apresentados, principalmente quando foram citadas as três Religiões, não variaram muito entre si. Nas concepções dos entrevistados, transparecem as dificuldades em identificar elementos que caracterizam ou não um determinado conhecimento como científico.

Demonstram-se, assim, os problemas relativos à falta de compreensão dos entrevistados em questões gerais relativas à sua atividade, deficiências essas que podem advir do processo de formação inicial desses professores (basta observar a formação destes e que foi apresentada neste texto) que, ao se confrontarem com discussões sobre estes temas, em muitas das suas atividades como professores, tendem a estar despreparados para lidar com a sua complexidade. Há, assim, a necessidade de que se revejam certas estruturas que constituem o processo formativo destes professores para encontrar formas de prover subsídios para que esta formação contemple estas reflexões.

O conjunto das respostas desta questão, que solicitava a caracterização como Ciência ou não de determinados temas, corrobora a percepção de que há problemas de formação na grande maioria dos professores que atuam como docentes de Química, Física e Biologia na região pesquisada, e que também atuam em outras disciplinas quando buscam completar a sua carga horária. Neste sentido, é preciso que sejam revistos os currículos e os conteúdos dos cursos de formação de professores destas áreas, sob pena de que as novas gerações não consigam visualizar, de forma clara, as diversas áreas do conhecimento nas suas implicações no conjunto das coisas da vida de cada um.

Para término da entrevista com os professores, dados os posicionamentos destes relativos ao conjunto das áreas anteriormente descritas, solicitou-se que tentassem definir o que entendiam, de forma livre, por Ciência. Optou-se aqui por transcrever 5 destas falas, selecionadas para se ter uma visão mais consistente do posicionamento destes professores sobre o tema.

Professora SB: Ciência eu entendo como conhecimento. (...) Conhecimento, né, vamos dizer, de um determinado assunto, e o que me leva a entender aquele... o que me leva a conhecer aquele assunto, para mim vai ser benefício, vamos dizer assim, nem que seja para me dizer... reafirmar aquilo que já se sabe, que já é da Ciência, do conhecimento da Ciência, ou que seja para mim negar “não, isto não é verdade, isto não é real”.

Professora NP: Ciência para mim é você estar sempre em, como é que eu vou te..., discutindo, criticando, trabalhando, evoluindo em cima de conhecimentos e melhorando tudo o que há em sua volta. Para mim isto é Ciência tudo o que leva a melhorar, a discutir, a procurar respostas para mim é Ciência.

Professora MK: A Ciência, na verdade, para mim, ela nunca vai acabar, ela nunca está acabada, tem uma transformação por minuto, por segundo, eu considero a Ciência uma transformação por segundos, né, e eu acho assim que o homem está sempre buscando, buscando, procurando e tentando ver coisas, resultados, muitas vezes não encontra resultados, mas está pleiteando resultados.

Professora SM: “Seria o que o homem... (tempo) constrói, ele com o pensamento dele.”

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Professora NR: “É uma evolução (...) porque tu vai estudar a natureza. (...) Os métodos? São, são semelhantes, porque cada um tenta provar que a sua é uma forma verdadeira, tanto na Ciência pesquisando quanto na Religião, né.

Nas tentativas de conceituar Ciência, as opiniões (bastante semelhantes) dos professores, mesmo que estabelecendo relações com os mais diversos elementos, principalmente os de ordem religiosa ou de construções pessoais de outra ordem, longe das aspirações dos modelos e das premissas científicas, deixam transparecer três características: conhecimento, evolução e comprovação. Conhecimento aqui entendido, na interpretação das falas dos entrevistados, como visualizar o que as coisas nos apresentam de pronto; evolução, no sentido de melhorar a vida das pessoas, de avançar e ou progredir; comprovação, na perspectiva de ter provas empíricas de que a coisa é como dizem que é até o limite do dito. A questão que carece ser esclarecida fica por conta das contradições que são encontradas entre a conceituação de Ciência e a aplicação do conceito, por mais claro que possa ser, por exemplo, nos temas anteriormente listados para os professores, em que se solicitava classificar como Ciência ou não.

O que é facilmente percebido é que, além da falta de clareza sobre o que é e quais são os pressupostos mais básicos da Ciência, falta nos professores entrevistados a clareza de como aplicar estas estruturas nas coisas do dia-a-dia individual e, certamente, da sala de aula. Um ensino de Ciência, na forma das disciplinas aqui abordadas, que não consegue, e isso foi observado na maioria absoluta dos entrevistados, explicitar pelo menos uma noção entre conceito de Ciência e aplicabilidade na relação com algumas (conhecidas) áreas do conhecimento e ou da rotina de vida de cada indivíduo demonstra que está com problemas graves de constituição. A revisão dos processos que culminam na formação destes professores torna-se, assim, urgente, pois que esta formação pode estar comprometida e comprometendo todos os níveis do ensino, principalmente o básico.

Aspectos de ciência e de religião na sala de aula. As falas dos professores, especialmente as relativas às discussões sobre Ciência e Religião,

trouxeram alguns relatos que acreditamos interferir diretamente nas posturas assumidas em sala de aula quando tais temas se fazem presentes explicitamente. Algumas outras destas falas serão aqui transcritas, trazendo assim a possibilidade de novos elementos para a reflexão sobre as lacunas entre a formação destes profissionais e as posturas adotadas na prática docente e demonstram ser uma frutífera base para compreender a formação dos professores e a realidade do ensino de Ciências.

Sobre as diferenças entre Ciência e Religião, há o diálogo com a professora JC, que diz: JC – (...) dentro da Biologia mesmo, tem o primeiro conteúdo que eles veem, no 1º ano, é sobre a origem da vida, lá de uma explosão, do big bang originou, aí foram surgindo, né, e já na Bíblia não, não é isto que diz, então eu acho que é totalmente, como é que vou dizer, é complicado até para a gente da área, né, porque eu acredito em Deus, e no livro você tem que falar o que está no livro. Sobre as alterações que a Ciência sofre ao longo dos tempos, o diálogo com a professora SC traz à tona elementos interessantes: SC – Por exemplo, quando a gente trabalha questões evolutivas, planetas, seres. Têm crianças e adolescentes que são bastante relutantes em estar acreditando, têm alguns, que por mais que a gente trabalha, têm alguns que questionam muito se são verdadeiras ou não, será que é real, né. Eu tento trabalhar com aquilo que é mais concreto pra eles de acordo com estas mudanças. Porque às vezes, até a gente mesmo, adultos no caso, tem uma visão um pouco complicada desta questão de estar evoluindo ou não, né.

Quando da entrevista com o professor GA, o discurso deixa transparecer algumas das suas dificuldades no ensino de Ciências também na sua relação com a religiosidade.

E – E aí, quando tu vais para a sala de aula e tu vê lá aquela “gurizada” e sabendo que a maior parte vem de famílias Católicas, até a maioria Católicos fervorosos, praticantes e coisa e tal, e aí o que acontece quando você vai ensinar Ciência para eles? GE – Tem bastante dificuldade, tem certo ponto que a gente toca lá, em sala de aula, que fica difícil, por exemplo, eu, em Ciências, quem trabalha Ciências, precisa trabalhar com sexualidade com eles, né, então aí é um ponto que a gente, para tocar com eles, tem que ter cuidado, porque a maioria, queira ou não queira, as famílias são tradicionais, são aquelas que você tem que ter o cuidado para falar com os lunos, então muitas coisas eles não levam assim pelo lado mais da Ciência e sim da Religião, né, até no início da aula a maioria do pessoal tem costume de fazer oração, e eu, de um tempo para cá, eu perdi este costume de fazer oração, porque eu vi que dentre todos os alunos tinha alguns alunos que não pertenciam à Católica.

Do diálogo com a professora NR, destacou-se a discussão sobre aspectos da necessidade do professor de ensinar conteúdos nos quais ele não acredita, além de, também, outros elementos sobre Religião e ensino de Ciências:

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NR – Porque você fica aí com as perguntas, a gente, como professor, às vezes fica, né, mas eu vou seguir a minha Ciência ou vou voltar lá na minha Religião, lá na minha base? Só que daí você tem que pensar que acima de tudo tem um Deus, né, daí você tem um Deus e você tem que largar às vezes um pouco a Ciência e ir mais leve, mais ”light”. (...) E – Na verdade estaria ensinando uma coisa na qual você não acredita, mas ensina porque é a tua obrigação enquanto professora? NR – É, não tanto a tua obrigação, mas é parte do currículo, né, você tem que passar aquele conteúdo, você tem que provar através da Ciência, mas se você comparar com a Religião não teria muita lógica, mas ele vai precisar saber para a vida, para o mundo, para um vestibular, então você tem que passar.

A professora SM, ao tratar de algumas das suas crenças e a sua relação com os conteúdos do ensino, diz: SM – (...) eu não aceito muitas teorias que nos é passado, por exemplo, na área de Ciência, eu não acredito muito nestas coisas, entende, eu fico mais para o lado da Religião. Eu, quando explico em Ciências, por exemplo, eu vou te falar, eu vou explicar em Ciências, 5ª série, a teoria de big bang, eu não acredito nesta teoria. (...) E – E como será que funciona na cabeça dos alunos isso? SM – Confusão total, sabe por quê? Porque, por exemplo, um aluno de 5ª série, vou falar porque sou da Religião Católica, não sei das outras, quando está na 5ª série você, você já está no terceiro ano da catequese, vou te falar isso porque eu, da minha parte entendi, quando o aluno está na 3ª série primária ele entra na catequese, na 4ª está no segundo ano e na 3ª... na 5ª série está no terceiro ano da catequese. Ali já é passado tudo, é passado tudo que quem fez o mundo foi Deus em sete dias e isso e aquilo explicadinho, a criança já tem isso na cabecinha dele. Quando chega na 5ª série o professor de Ciências, abre o livro de Ciências e vai, né, a primeira... o primeiro conteúdo que tem, segundo, terceiro conteúdo, é a teoria do big bang, vai explicar que o mundo surgiu de tá... tá... essas coisas, quando você vai abrir o livro de história vai te contar que o homem surgiu do macaco, então, como é que... que confusão que vai dar, e aí que vem a questão, “mas, professora!”, se tu for trabalhar na Religião e depois for trabalhar na escola tu vai ser duas pessoas, tu vai falar aquilo que Deus montou e depois tu vai falar aquilo que a Ciência tá provando. E daí eles “mas como que é isso?” Eles te falam, “Para que isso? Então a senhora acredita em quem? A senhora acredita em Deus ou acredita nessas coisas?”. E vem um monte de questão.

Observa-se, assim, no conjunto dos trechos selecionados, que, de fato, os professores têm profundas dificuldades em estabelecer diálogos da Ciência com a Religião, mesmo na particularidade do ensino no ciclo básico da educação nacional. Tais situações culminam em conflitos não-resolvidos na formação dos alunos e que tendem a se arrastar para a vida e a sua relação com as múltiplas visões de mundo.

Por si só estes relatos já apontam os profundos problemas da formação docente e que necessitam ser amplamente discutidos buscando medidas para sua superação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Observa-se, de forma geral, nas falas dos entrevistados, que há, provavelmente fruto de um processo

de formação que não contemplou o conhecimento no seu conjunto ou que desconsiderou o papel da religiosidade na formação do indivíduo e na constituição da sociedade, dificuldades de tratar em sala de aula de questões de extrema relevância para um melhor entendimento da atuação tanto da Ciência quanto da Religião. Assim, a dificuldade do professor se transforma dificuldade para o aprendizado do aluno e, por consequência, em falta de clareza para o trato das questões que envolvem estes segmentos no conjunto da vida e na própria produção de conhecimentos.

A inegável presença da religiosidade na vida das pessoas é uma constante também na rotina da maioria das escolas. Mesmo sob a égide da Ciência, a escola, e muitos dos seus membros, transitam pelos caminhos da fé e da religiosidade, quer através de alguma Igreja ou mesmo da simples espiritualidade. Neste sentido, fornecer elementos para que a discussão entre a Ciência e a Religião se dê com a clareza necessária para que cada um dos segmentos possa permitir um melhor conhecimento sobre a pessoa ou sobre as questões do meio, torna-se fundamental para uma melhor formação dos indivíduos no interior da escola. REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. O. de. A vulgarização do saber. In. MASSARANI. L.; MOREIRA, I. de C. E BRITO, F. Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência – UFRJ, 2002. p. 65-71. BARBOUR, I. G. Quando a Ciência encontra a Religião: Inimigas, estranhas ou parceiras. Trad. Paulo Salles. São Paulo: Cultrix, 2004. BRONOWSKI, J. Ciência e valores humanos. Trad. Alceu Letal. São Paulo: EDUSP, 1979. CANDOTTI, E. Ciência na educação popular. In. MASSARANI. L.; MOREIRA, I. de C. E BRITO, F. Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência – UFRJ, 2002. p. 15-23.

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CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1998. ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FREIRE-MAIA, N. A Ciência por dentro. 6ª ed., Petrópolis:Vozes, 2000. IZQUIERDO, I. A. Aumentando o conhecimento popular sobre Ciência. In. WERTHEIN, J, e CUNHA, C. da (Orgs). Educação científica e desenvolvimento: o que pensam os cientistas. Brasília: UNESCO, 2005. p. 129-136. MALACARNE, V. Os professores de Química, Física e Biologia da região oeste do Paraná: formação e atuação. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2007. McGRATH, A. E. Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião. Trad. Jaci Maraschin. São Paulo: Loyola, 2005. MURPHY, G. L. Cosmologia, evolução e biotecnologia. In. PETERS, T. e BENNETT, G. (Orgs). Construindo pontes entre a Ciência e a Religião. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Loyola, 2003. p. 245-262. SAVIOLI, R. M. Fronteiras da Ciência e da fé. São Paulo: Gaia, 2006.

*Vilmar Malacarne - Doutor de Educação - Área de Ensino de Ciências e Matemática (USP). Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Cascavel e Membro do

grupo de pesquisa em Formação de Professores de Ciências e Matemática. E-mail: [email protected]

Submetido em: abril de 2008 | Aceito em: julho de 2009 http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/viewFile/1651/1534

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FÉ CEGA, FACA AMOLADA Ódio gera ódio e escolhe seus alvos a esmo.

Contra o radicalismo dos crimes cometidos em nome da religião, a única arma deve ser um exercício radical de tolerância.

Por André Santoro. Revistas das Religiões, ed. 15, nov.2004, p.30-35.

INTOLERÂNCIA EM NOME DA PAZ

Na manhã do dia 20 de março de 1995, membros de uma seita japonesa espalharam o venenoso gás sarin dentro de vagões

superlotados do metrô de Tóquio. O ataque matou 12 pessoas, intoxicou milhares de passageiros e foi atribuído ao movimento de

cunho terrorista Aun Shinrikyo (A Verdade Suprema). O líder da seita, Shoko Asahara, apresentava-se como um messias e

prometia uma batalha do fim dos tempos que lhe proporcionaria o domínio do Japão e do mundo.

Além da matança indiscriminada, o que mais assustou foi o fato de a seita basear-se em princípios de várias doutrinas que

pregam a paz e a tolerância, como o Budismo japonês, o Budismo tibetano e o Hinduísmo. “O fato de o Japão ter dado as costas à

sua espiritualidade tradicional e ter adotado uma mentalidade francamente materialista, para não dizer hostil à religião, ajudou a

tornar a juventude japonesa extremamente vulnerável a esse tipo de movimento”, afirma o reverendo Ricardo Mário Gonçalves,

do Instituto Budista de Estudos Missionários, em São Paulo.

Na linha budista japonesa, os movimentos de retorno aos fundamentos da doutrina surgiram no século 19 – assim como

no Protestantismo norte-americano – como reação ao processo de modernização pelo qual passava a sociedade japonesa. “Existe

fundamentalismo no Budismo, como em todas as grandes religiões”, afirma o reverendo Ricardo. E suas principais características,

de acordo com ele, são a simplificação extrema da doutrina para a solução de problemas materiais imediatos, o uso de técnicas

agressivas de propaganda para massificar a religião e a adoção de posições políticas conservadoras, desencorajando atitudes

críticas frente aos problemas sociais.

ORIGENS DO TERROR ISLÂMICO

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos passaram a ser vistos com desconfiança pelo mundo ocidental. O

simples fato de ostentar um nome árabe tirou o sossego de muitos viajantes que desejavam entrar em países cristãos,

especialmente nos Estado Unidos. Muito já se falou sobre as passagens belicosas do Corão. “Matai os idólatras, onde quer que os

acheis; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”, diz um trecho do livro sagrado do Islamismo. Por outro lado, várias passagens

pregam a alternativa da paz e do diálogo. Matar um inocente, com base nessa visão, seria o equivalente a matar a humanidade.

Mas, afinal, o Islã pode ser usado como justificativa para atos de terror? O historiador Bernard Lewis oferece uma possível

resposta a esta questão. A violência promovida atualmente por alguns grupos islâmicos, de acordo com o pesquisador, seria a

reedição de atos sangrentos praticados por uma seita de radicais surgida no Irã no século 10. A luta dos “Assassinos”, como eram

chamados, tinha como objetivo final a restauração da unidade do Islã, que havia sido abalada pela morte do profeta Muhammad.

Como muitos terroristas de hoje, eles também eram treinados para matar e morrer, na esperança de alcançar o Paraíso e todas as

suas benesses.

Apesar do valor histórico de sua pesquisa, o próprio Bernard Lewis faz uma advertência: os Assassinos tinham

características fundamentalistas e foram, talvez, o primeiro grande movimento de intolerância dentro do Islã. “Mas eles não

inventaram o assassinato, apenas emprestaram dele o nome. O homicídio, tal como é, é tão antigo quanto a raça humana”, afirma

o escritor em seu livro Os Assassinos: Os Primórdios do Terrorismo no Islã.

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Fanático, de acordo com o dicionário Aurélio, é aquele que: “1) se considera inspirado por uma divindade, pelo espírito

divino; iluminado; 2) tem zelo religioso cego, excessivo; intolerante; 3) adere cegamente a uma doutrina, a um partido; é

partidários exaltado; faccioso; 4) tem dedicação, admiração ou amor exaltado a alguém ou algo; entusiasmo, apaixonado”. No

português, a palavra geralmente é usada em tom negativo. Mas a raiz latina do vocábulo esconde um sentido mais amplo, que vem

do latim fanaticus, uma variação de fanum, que significa templo ou lugar consagrado. “O fanaticus era aquele que freqüentava o

fanum”, diz José Rodrigues Seabra Filho, especialista em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo.

A etimologia joga um facho de luz sobre a palavra que é pronunciada à exaustão em nossos dias. Fanático não é só o

homem-bomba que, por algum motivo obscuro, abre mão da própria vida par ceifar outras tantas. Nem apenas o terrorista que, na

esperança de alcançar o Paraíso, joga um avião contra um prédio. De acordo com o psicanalista Raymundo de Lima, professor da

Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, o fanático – não apenas o religioso – pode ser detectado com base em alguns

sintomas, como a certeza de ser portador de uma verdade inquestionável, a tentativa de imposição tirânica desta mesma verdade,

cuja importância ultrapassaria o instinto de preservação da própria vida, e isolamento do grupo.

Qualquer semelhança com uma crença que extrapola os limites da fé e descamba para a fúria cega contra o próximo não é

mera coincidência. As religiões, aliás, sempre estiveram associadas a algum grau de fanatismo, por um motivo simples: elas só se

mantêm graças à partilha dos mesmos valores por uma determinada comunidade. É claro que os métodos de persuasão variam

bastante, o que significa dizer que nem todos os religiosos são fanáticos, no sentido pejorativo da palavra. “Mas a sensação da

certeza proporcionada pelas religiões abre espaço para a violência, mesmo que seja em nome da paz”, afirma o filósofo Luiz

Felipe Ponde, da PUC de São Paulo.

MEDO DO NOVO

A violência é um elemento que não pode ser dissociado da natureza humana. Quando o homem começou a manifestar

suas crenças em sistemas mais ou menos organizados, essa agressividade visceral passou a ser aliviada por uma válvula de escape:

o ritual do sacrifício. A teoria acima, elaborada pelo antropólogo francês René Girard, é uma explicação possível para os atos de

crueldade promovidos por alguns indivíduos que se dizem iluminados. Os sacrifícios, que podem resultar no derramamento de

sangue de um animal ou de uma multidão de pessoas inocentes, aplacariam a ira divina e fariam girar a roda da fé.

O pensador justifica sua visão de que a violência, longe de ser um simples efeito colateral, pode ser uma necessidade

interna das religiões. E busca as possíveis origens desse instinto de destruição no Antigo Testamento. “Talvez seja este, entre

outros, o significado da história de Caim e Abel. Caim cultiva a terra e oferece a Deus os frutos de sua colheita. Abel é um pastor

e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. Um dos irmãos mata o outro – justamente o que não dispõe deste artifício contra a

violência”, escreveu Girard em seu livro A Violência e O Sagrado.

Em geral, a prática religiosa é permeada por atitudes positivas: o exercício da caridade, a pregação do diálogo e do

respeito ao outro, a valorização da ética, a celebração da partilha, entre outras. No entanto, todo credo baseia-se em algum tipo de

restrição ideológica. “Um dos pilares da construção religiosa é a crença coletiva em certos valores”, diz o pesquisador César

Vinícius Ornelas, da PUC de São Paulo, que prepara uma tese de doutorado sobre fundamentalismo religioso. O pensamento, ao

extremo, é mais ou menos assim: se eu creio na verdade e este é o caminho correto, o outro – que não segue minha doutrina – só

pode estar errado.

É claro que, mesmo com a adesão do grupo a princípios comuns, a fé pode andar longe das atitudes radicais. “A

religiosidade pressupõe uma experiência existencial e a busca de um sentido ético para a vida. Mas o sagrado e o profano são os

dois lados necessários da vida. Quando tudo se concentra no templo, há o risco do fanatismo”, afirma o rabino Alexandre Leone,

da Congregação Israelita Paulista.

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VOLTA ÀS RAÍZES

A tentativa de compreender o mundo exclusivamente através do prisma da religião pode desencadear um processo de limitação das liberdades individuais. E costuma surgir como resposta a alguma ameaça externa. Em meados do século 19, alguns seguidores do Protestantismo norte-americano passaram a se sentir ameaçados pelo impulso de mudança que tomava conta da sociedade. Em oposição aos protestante mais liberais, eles começaram a defender uma interpretação literal da Bíblia – ou, na visão da época, um retorno aos fundamentos do Cristianismo. Em 1915, um grupo de professores de Teologia da universidade de Princeton publicou uma coleção intitulada Fundamentals: A Testimony of the Truth (Fundamentos: Um Testemunho da Verdade, inédito no Brasil). A partir de então, os seguidores desse novo Protestantismo passaram a se denominar fundamentalistas. O termo que hoje rotula grupos extremistas islâmicos e seguidores de seitas apocalípticas, entre outros, nasceu como uma reação à modernização. “Não só modernização tecnológica, mas modernização dos espíritos, do liberalismo, da liberdade das opiniões, contrastando fundamentalmente com a seguridade que a fé cristã oferecia”, escreveu o teólogo Leonardo Boff em seu livro Fundamentalismo: a Globalização e o Futuro da Humanidade. Ser fundamentalista de acordo com Boff, “é assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da História, que obriga a contínuas interpretações a atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial”. O próprio fundamentalismo religioso pode ser interpretado de forma positiva, desde que deixemos de lado as conseqüências mais sangrentas da interpretação inflexível dos mandamentos religiosos. “Quanto mais vamos aos fundamentos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo, mais encontramos a dimensão libertária, o cuidado para com os pobres, o respeito para com todas as pessoas e a veneração para com a natureza”, afirma Leonardo Boff. Encarada desta forma, a busca pelas raízes das religiões pode ter uma causa nobre e humanista. Nem todo comportamento fundamentalista, portanto, é baseado em mecanismos de intolerância e intransigência. Um exemplo seria a Teologia da Libertação, que retoma as bases do Cristianismo para promover atitudes humanistas e democráticas. Apesar de representar uma interpretação rígida de alguma doutrina, o fundamentalismo não dever ser confundido com ortodoxia. “Cada religião baseia-se em um cerne dogmático de crenças. Às vezes, existe uma autoridade, como a do papa ou da Congregação Romana, que determina que interpretações desviam-se desse dogma e, portanto, da ortodoxia”, escreveu o filósofo Jürgen Habermas no livro Filosofia em Tempo de Terror. O ortodoxo defende a preservação da doutrina, mas não é, necessariamente, fechado ao diálogo. E, acima de tudo, goza de boa reputação entre seus pares, algo que não costuma acontecer com grupos fanáticos. “A maioria dos seguidores do Islamismo, Cristianismo, Judaísmo, Budismo, Sikhismo e Hinduísmo considera que os fundamentalistas são uma minoria irresponsável”, afirma o historiador Robert Scott Appleby em The Ambivalency of the Sacred (A Ambivalência do Sagrado, sem tradução para o português).

Muito antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidores de diferentes religiões já experimentaram algum tipo de fundamentalismo. “Ele não se limita aos grandes monoteísmos. Ocorre também entre budistas, hinduístas e até confucionistas quando rejeitam muitas da conquistas da cultura liberal, lutam e matam em nome da religião e se empenham em inserir o sagrado no campo da política e da causa nacional”, escreveu a teóloga e ex-freira católica Karen Armstrong na obra Em nome de Deus.

Apesar de ter surgido oficialmente no século 19, a busca pelos fundamentos religiosos é um fenômeno que ganhou força nas últimas duas décadas, especialmente após a queda do Muro de Berlim. Os discursos ideológicos, que se apoiavam num mundo polarizado entre duas grandes forças políticas, perderam terreno para as justificativas religiosas. Hoje, matar em nome de um regime de governo tornou-se tão menos contuntende – e freqüente – quanto cometer crimes usando a fé como pretexto.

PERSPECTIVAS Todos os dias somos bombardeados com notícias sobre novos atentados em tradicionais zonas de conflito. Repetindo o

eterno ciclo de violências que se arrasta desde as cruzadas, quando cristãos e muçulmanos digladiavam-se, facções religiosas pregam o ódio mútuo – muitas vezes com a ajuda dos meios de coerção de seus próprios Estados – como forma de defender seus dogmas. Em Israel, grupos judaicos fundamentalistas pleiteiam um Estado regido pelas leis da Tora em vez de um sistema de governo laico. Segundo o rabino Alexandre Leone, por conta do apego desses grupos às próprias crenças, eles abominam qualquer tipo de manifestação religiosa não judaica. A mesma lógica – de defesa dos fundamentos de sua fé – permeia os ataques de fiéis evangélicos a cultos afros no Brasil. O argumento é de que esses fiéis se sentiriam ameaçados pelos rituais praticados no Candomblé e na Umbanda, que, na visão deles, estariam associados a obras do demônio e iriam contra a vontade de Deus.

Talvez ainda sejamos obrigados a conviver com a rotina diária da religião a serviço do ódio – ou vice-versa – durante um bom tempo. Há saída para o ciclo de intolerância dentro do qual a humanidade se encontra há vários milênios, mas o caminho não é dos mais fáceis. “Ao terrorismo devemos responder com ações de justiça social em nível mundial, com relações mais equânimes, com formas de inclusão e de diálogo com todas as culturas”, afirma Leonardo Boff. Utópico? Talvez. “A pergunta que fica, dentre muitas outras, é se é possível resgatar o passado sem aniquilar o futuro. Podemos lidar com a tradição sem violentar o presente?”, afirma César Ornelas. Cabe a nós encontrar as respostas. Sem demora.