apostila - homem, pensamento e cultura - abordagem filosófica e antropológica

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Rede e-Tec Brasil 1 Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosófica e antropológica Dante Diniz Bessa Cuiabá - MT 2012 UFMT

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Apostila - Homem, Pensamento e Cultura - Abordagem Filosófica e Antropológica - Curso Técnico em Secretaria Escolar - Programa PROFUNCIONÁRIO

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  • Rede e-Tec Brasil1

    Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem

    fi losfi ca e antropolgica

    Dante Diniz Bessa

    Cuiab - MT2012

    UFMT

  • Brasil. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica. B823 Homem, pensamento e cultura: abordagem filosfica e antropolgica: formao tcnica / Dante Bessa, 4.ed. atualizada e revisada Cuiab: Universidade Federal de Mato Grosso / Rede e-Tec Brasil, 2012 96 p. : il. (Curso tcnico de formao para os funcionrios da educao. Profuncionrio; 3) ISBN 85-86290 1. Educador. 2. Formao profissional. 3. Escola. I. Bessa, Dante. II. Ttulo. III. Srie.

    2012 CDU 37.01

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • Presidncia da Repblica Federativa do Brasil

    Ministrio da Educao

    Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica

    Diretoria de Integrao das Redes EPT

    Este caderno foi elaborado em parceria entre o Ministrio da Educao e a Universidade Federal de Mato Grosso para a Rede e-Tec Brasil.

    Equipe de Elaborao

    Universidade Federal de Mato Grosso UFMT

    Coordenao InstitucionalCarlos Rinaldi

    Coordenao de Produo de Material Didtico ImpressoPedro Roberto Piloni

    Designer EducacionalIzabel Solyszko Gomes

    Designer MasterDaniela Mendes

    DiagramaoVernica Hirata

    Reviso de Lngua PortuguesaPatrcia Rahuan

    Projeto GrficoRede e-Tec Brasil/UFMT

  • Rede e-Tec Brasil5

    Prezado estudante,

    Bem-vindo Rede e-Tec Brasil!

    Voc faz parte de uma rede nacional pblica de ensino, a Rede e-Tec Brasil, institu-da pelo Decreto n 7.589/2011, com o objetivo de democratizar o acesso ao ensino tcnico pblico, na modalidade a distncia. O programa resultado de uma parceria entre o Ministrio da Educao, por meio da Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica (Setec), as universidades e escolas tcnicas estaduais e federais.

    A educao a distncia no nosso pas, de dimenses continentais e grande diversida-de regional e cultural, longe de distanciar, aproxima as pessoas ao garantir acesso educao de qualidade, e promover o fortalecimento da formao de jovens morado-res de regies distantes, geograficamente ou economicamente, dos grandes centros.

    A Rede e-Tec Brasil leva os cursos tcnicos a locais distantes das instituies de ensi-no e para a periferia das grandes cidades, incentivando os jovens a concluir o ensino mdio. Os cursos so ofertados pelas instituies pblicas de ensino e o atendimento ao estudante realizado em escolas-polo integrantes das redes pblicas municipais e estaduais.

    O Ministrio da Educao, as instituies pblicas de ensino tcnico, seus servidores tcnicos e professores acreditam que uma educao profissional qualificada inte-gradora do ensino mdio e educao tcnica capaz de promover o cidado com capacidades para produzir, mas tambm com autonomia diante das diferentes di-menses da realidade: cultural, social, familiar, esportiva, poltica e tica.

    Ns acreditamos em voc!Desejamos sucesso na sua formao profissional!

    Ministrio da EducaoMaro de 2012

    Nosso [email protected]

    Apresentao Rede e-Tec Brasil

  • Rede e-Tec Brasil7

    Prezado estudante:

    Durante todo o tempo que frequentei escolas, seja como aluno seja como professor, sempre estive lado a lado com pessoas que trabalhavam nas escolas, mas nunca pude saber o que pensavam sobre as relaes entre o seu trabalho e a educao, nem sobre o seu lugar na escola. Nunca pude perceber como se sentiam em relao educao feita ali onde trabalhavam e se em suas prticas profi ssionais havia alguma inteno educativa. Certamente, alimentei-me na escola, solicitei documentos, joguei bola e me diverti vendo algum fi lme ou fazendo experimen-tos em laboratrio. Mas nunca havia me dado conta de que esta-va aprendendo alguma coisa com quem preparava a merenda, com quem atendia minhas solicitaes, com quem mantinha a quadra de esportes em condies e com quem garantia o bom funcionamento dos equipamentos.

    Agora, tenho a oportunidade de pensar atentamente sobre o valor educativo das atividades dos funcionrios em uma escola e gostaria de convid-lo(a) a pensar sobre isso comigo. Que bom! Estou feliz com essa oportunidade!

    Assim, neste caderno vou descrever como penso a escola e o trabalho escolar e, ao descrever, pretendo provoc-lo(a) a pensar sobre o que escrevo e principalmente, pretendo provoc-lo(a) a pensar sobre a es-cola na qual trabalha e sobre as atividades que voc realiza nela. Quer dizer: escrevo para que voc pense e construa os seus saberes, mas no para que pense e saiba a mesma coisa que eu.

    isso: naquilo que eu escrevo voc poder notar um olhar diferente do seu, uma outra viso, um outro jeito de encarar a escola. Perceber isso deve ser motivo para pensar sobre o olhar, a viso e o jeito como voc mesmo(a) encara a escola.

    Mensagem do professor-autor

    Dante

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 8Rede e-Tec Brasil

    Nessa interao, vou tentar compartilhar com voc alguns proble-mas que precisamos enfrentar na formao profissional e propor alternativa(s) terico-prticas para enfrent-los.

    Desejo, ento, que voc fique bem vontade na leitura. Concentre-se nela para compreender os problemas colocados e por que eles so co-locados. Concentre-se na leitura para colocar seus prprios problemas em relao ao que est escrito e ao que voc sente na escola. Que a concentrao traga-lhe dvidas suficientes para que possa se descon-centrar da leitura deste caderno e buscar outras fontes que possam complement-la, para investigar as prticas escolares e dialogar com os colegas da escola, com os colegas do curso, com seu tutor, com vistas a construir os saberes de que voc e a escola necessitam para ser mais do que so.

    Dante Diniz Bessa

  • Rede e-Tec Brasil9

    Apresentao da Disciplina

    Os estudos que voc far, aqui, sero orientados por uma investiga-o filosfico-antropolgica, pela qual ter a oportunidade de cons-truir algum sentido sobre o devir humano que possa ajud-lo a (re)pensar suas atividades na escola, com vistas a participar delas como profissional, como educador, como gestor, como pessoa.

    Para desenvolver a investigao, voc precisar de algumas noes b-sicas de filosofia e de antropologia com as quais vai entrar em contato durante os estudos: cultura, linguagem, trabalho, valores, currculo escolar. Cada uma dessas noes tema de uma unidade de estudo, e todas devero ser estudadas nas suas relaes com a educao, com a escola e com a cidadania, de modo a que voc possa ter um caminho investigativo.

    O aprendizado destas noes condio para que voc possa inves-tigar as prticas cotidianas de sua escola, onde todos os atores se fazem humanos e educadores: alunos, funcionrios, professores, pais, comunidade. Sim, pois todos esto na escola, todos fazem a escola e se educam uns aos outros.

    As relaes na escola, como voc j sabe, no so meras relaes entre pessoas: na escola no nos relacionamos com os outros da mes-ma maneira que o fazemos em casa, na igreja ou na rua. As prticas escolares do uma contribuio especfica ao devir humano de cada pessoa. Claro, pois a escola do jeito que porque h uma legislao que a regulamenta, um poder pblico que a mantm, uma comuni-dade a que ela atende, uma histria da qual participa, uma economia qual est vinculada, um Projeto Poltico-Pedaggico que a orienta, entre outros elementos. isso que voc precisa investigar e compre-ender bem: quais as contribuies da escola na educao de homens e mulheres em sua humanidade, no devir humano.

    Para chegar a essa compreenso, alm daquelas noes bsicas de fi-losofia e de antropologia, voc precisa ter uma atitude crtica pela qual dever suspeitar, desconfiar, estranhar, questionar, valorar as prticas

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 10Rede e-Tec Brasil

    escolares cotidianas: por que so essas prticas e no outras? Como so feitas? Para que so feitas? Que influncias podem ter na vida das pessoas e na minha prpria vida?

    Ao buscar respostas para essas perguntas, voc ver que muitas prti-cas ganharo outra importncia, outro sentido, outro valor. E ver que possvel estabelecer outras prticas educativas na escola.

    A atitude crtica deve possibilitar que voc mude sua conduta frente rotina j estabelecida para suas atividades na escola na medida em que constri conhecimentos sobre as mesmas.

    Para construir esses conhecimentos, a disciplina dever ajud-lo a aprender a investigar criticamente as prticas escolares com base em problemas e temas filosfico-antropolgicos: question-las, observ--las, descrev-las, narr-las, analis-las, interpret-las, refletir sobre o seu sentido, com vistas a criar condies para construir, desconstruir e reconstruir a si mesmo e a escola.

    A ajuda vem por meio das reflexes e dos pratiques deste ca-derno, que se referem a atividades que devem ser realizadas para que voc possa, de fato, aprender terico-praticamente. Os resultados e, s vezes, os processos dessas atividades devem ser registrados no seu memorial, para que voc possa voltar a eles, criticamente, quando precisar. No demais lembrar, por fim, que algumas dessas ativida-des podero ser contabilizadas na carga horria da Prtica Profissional Supervisionada, conforme projeto a definir com o tutor.

    Objetivo

    Apropriar e criar condies terico-prticas com as quais problemati-zar, investigar e criticar as prticas escolares, com vistas construo da identidade de profissional da educao.

    Ementa

    Processo de construo da cidadania. Filosofia como instrumento de reflexo e prtica. tica, moral e poltica. O ambiente fsico e social. Relaes homem/natureza. Aspectos e valores culturais. Linguagem e comunicao.

  • Rede e-Tec Brasil11

    Indicao de cones

    Os cones so elementos grficos utilizados para ampliar as formas de linguagem e facilitar a organizao e a leitura hipertextual.

    Ateno: indica pontos de maior relevncia no texto.

    Saiba mais: remete o tema para outras fontes: livro, revista, jornal, artigos, noticirio, internet, msica etc.

    Dicionrio: indica a definio de um termo, palavra ou expresso utilizada no texto.

    Em outras palavras: apresenta uma expresso de forma mais simples.

    Pratique: so sugestes de: a) atividades para reforar a compreen-so do texto da Disciplina e envolver o estudante em sua prtica; b) atividades para compor as 300 horas de Prtica Profissional Supervi-sionada (PPS), a critrio de planejamento conjunto entre estudante e tutor.

    Reflita: momento de uma pausa na leitura para refletir/escre-ver/conversar/observar sobre pontos importantes e/ou questio-namentos.

  • Rede e-Tec Brasil13

    Unidade 1 - Devir Humano 151.1 A natureza no humano 17

    1.2 O humano na natureza: cultura 20

    1.3 Cultura e culturas 22

    1.4 O humano no humano: cultura e educao 27

    1.5 Escola, cultura e cidadania 30

    Unidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 332.1 Linguagem: conceito e elementos 36

    2.2 Linguagem e lngua 41

    2.3 Linguagem e comunicao 43

    2.4 Dilogo, comunicao e educao 45

    2.5 Escola, comunicao e cidadania 47

    Unidade 3 - Devir humano, trabalho e educao 513.1 Trabalho: conceito 53

    3.2 Trabalho, tcnica e tecnologia 56

    3.3 Trabalho manual e trabalho intelectual 58

    3.4 Trabalho, alienao e educao 60

    3.5 Escola, trabalho e cidadania 61

    Unidade 4 - Devir humano, valores e educao 654.1 O conceito de valor 68

    4.2 Valorao esttica 70

    4.3 Valorao tica 72

    4.4 Valorao poltica 74

    4.5 Escola, valores e cidadania 77

    Unidade 5 - Devir humano, escola e educao 815.1 O que se ensina e o que se aprende na escola? 85

    5.2 Onde se ensina e onde se aprende na escola? 86

    5.3 Como se ensina e como se aprende na escola? 87

    5.4 Quem ensina e quem aprende na escola? 89

    Sumrio

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 14

    Palavras Finais 94

    Referncias 95

    Currculo do professor-autor 96

    Rede e-Tec Brasil

  • Unidade 1

    Devir Humano

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 16

    Caro estudante

    Para comear a investigao acerca do devir humano, o primei-

    ro passo que voc precisa dar refletir sobre a condio socio-

    cultural do humano, ou seja, ser importante, nesta unidade de

    estudos, que voc compreenda o que cultura e quais so as

    condies fundamentais (a linguagem, o trabalho e os valores)

    pelas quais homens e mulheres fazem cultura(s) e na(s) cultura(s)

    constroem sua humanidade. Da mesma maneira, voc precisa ter

    claras as relaes entre cultura e educao, para entender o sen-

    tido histrico da escola como instituio educativa e qual seu

    papel na construo da humanidade de homens e de mulheres.

    Assim, comece por se perguntar: o que faz com que eu me chame

    e me sinta humano? Veja que essa pergunta no parece ser proble-

    mtica para muita gente. No qualquer um que pensa sobre isso,

    pois muitas pessoas j conhecem as respostas (que so bvias)

    sem ter colocado a pergunta: somos humanos porque nascemos

    de humanos, somos sangue de nossos pais esta uma das res-

    postas bvias; somos humanos porque Deus nos criou assim

    esta j outra resposta bvia; uma terceira afirma: somos huma-

    nos porque o destino e a natureza nos fizeram assim. Apesar das

    diferenas, essas trs respostas dizem a mesma obviedade: somos

    humanos porque h uma fora fora de ns que nos faz assim o

    sangue dos pais, Deus, a natureza, o destino. Mas, a proposta de

    estudo justamente tornar o bvio estranho, no ? Assumir ati-

    tude crtica diante do bvio. Um jeito de fazer isso pensar por

    que, para outras pessoas, essas respostas no so bvias. Veja o

    que esses outros podem nos fazer pensar sobre tal problema.

    Os outros a que me refiro so filsofos, antroplogos e cien-

    tistas sociais que, em geral, acreditam que outra(s) resposta(s)

    possa(m) ser dada(s) caso se questione aquelas respostas bvias.

    Para eles, no nos chamamos nem nos sentimos humanos por

    causa do sangue, de Deus, do destino ou da natureza, mas por-

    que nos fazemos humanos na vida. Humano um conceito que

    criamos para dar sentido ao nosso modo de viver.

    Por isso, interessante que voc compreenda como que o con-

    ceito de humano foi construdo e reconstrudo, voc no acha?

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 17

    Ento, procure pensar nas condies em que cada um vive e pode

    se fazer, se chamar e se sentir humano. Para que possa pensar

    sobre isso com outros, passo a apresentar alguns conceitos j

    elaborados por filsofos, antroplogos e cientistas sociais.

    1.1 A natureza no humanoUm primeiro conceito para ajudar a pensar sobre as condies em que algum se faz, se chama e se sente humano o que est no ttulo da unidade: devir humano.

    Se voc no faz ideia do que quer dizer devir humano, ento, sem ler a sequncia do texto, procure ver se h algo que voc estranha na expresso. Se h, pergunte-se: por que est escrito devir humano e no ser humano? Ser devir humano o mesmo que ser hu-mano? Faz diferena falar e pensar devir humano em vez de ser humano? Afinal, o que significa devir humano?

    Se voc, ao ler o ttulo desta unidade, havia colocado essas ou outras perguntas, porque j est entrando no esprito crtico e investigativo proposto. Avance na atitude de pensar o que significa devir humano.

    Agora, leia com ateno o texto a seguir, de Jos Rodrigues de Olivei-ra, e procure pensar o que pode ser dito sobre a natureza no humano quando ele se refere ao devenir ou devir.

    O DEVENIR

    - Meu pai, devenir fruta ou verdura?

    - Por que perguntas, filho?

    - Meu pai, quero, se possvel, que veja minhas razes. O senhor j me ensinou que,

    quando se recebe uma pergunta, s se deve entrar com outra depois de ter respon-

    dido. E eu, seu filho, firmado na sua ortodoxia, quero para mim as vantagens da sua

    observao.

    - Bem, vejo que voc tem razo. Desejo, no entanto, dizer-lhe que se voc me hou-

    vesse feito, ontem, essa inquirio, confesso que no estaria em condies de res-

    pond-la. Porm hoje, depois de certo progresso que fiz, posso afirmar que DEVENIR

    no fruta nem verdura. , sim, uma concepo filosfica.

    - Agora sim, concepo filosfica! Mas...

    - Nem mais nem menos, agora a vez minha, Scrates.

    ConceitoPodemos entender conceito como o que pensamos e expressamos, isto , os significados que construmos no pensamento e na linguagem e com os quais podemos classificar e diferenciar as coisas e acontecimentos. Relacionando os conceitos, podemos emitir juzos sobre a realidade. Podemos dizer o que pensamos com sentido.

    Scrates viveu em Atenas, na Grcia Antiga, no sc V a.C. e considerado por muitos como o primeiro grande filsofo da histria ocidental.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 18

    - O senhor sabe que no gosto de ser chamado de Scrates, pois acho aquele velho

    muito feio e sua mulher que me desculpe, mas acho o nome dela horroroso! Xan-

    tipa! S sendo grega.

    - Est certo, mas, por que voc me perguntou se devenir fruta ou verdura?

    - Perguntei porque a mame falou que algum comeu a folha do devenir.

    O velho se arrumou na cadeira de balano, tirou os culos e, depois duma

    mordaz e gostosa gargalhada, falou: Paulinho, voc um anjo. Voc, sua me e seus

    irmos azucrinam meus ouvidos, mas tambm fazem ccegas no meu corao. Pres-

    ta ateno, filhote, devenir o mesmo que devir; uma srie de transformaes. A

    transformao ou mudana de estado considerado em si mesmo. O devenir a nos-

    sa caracterstica fundamental e a tudo quanto no mundo nos rodeia. A Filosofia tem

    se empenhado em compreender o devenir, cuja questo decisiva a relao deste

    com o ser. Herclito e Parmnides , quatro sculos antes de Cristo, j se ocupavam

    com o assunto, que veio receber mais luz agora no sculo XX com o nosso querido

    Einstein. J expliquei muito, pelo seu aspecto, vejo que voc entendeu pouco, no

    foi?

    - Para ser sincero, papai, no entendi nada e, se eu quisesse ser chato, iria fazer mais

    perguntas.

    - Pode perguntar, entretanto, Piaget aconselha que devemos aprender as coisas aos

    poucos, as doses do saber devem ser homeopticas. E voc ainda criana. Segun-

    do o mesmo educador, existe a idade para a abstrao. Contudo, faa a pergunta,

    sua curiosidade muito me agrada.

    - Devenir o mesmo que futuro?

    - No. Entretanto, podemos relacion-lo no s com o futuro como tambm com

    progresso e o regresso vida e morte.

    - Com a vida e com a morte!?

    - Sim, com a vida e com a morte. At conosco, com voc, meu filho, veja s: voc vai

    completar 13 anos no prximo ms, j notou sua voz como est ficando diferente?

    Os plos do seu bigode esto engrossando. (Ao ouvir isso o rapazinho no se con-

    teve e escandalosamente sorriu).

    - Voc, devenirmente, caminha para puberdade, depois tornar-se- adulto, daqui

    a cem anos, quando voc morrer, ir modificar o ph da terra onde colocarem seu

    corpo. Antes disso, voc vai mudar de tal forma que quem lhe ver hoje, e s possa

    ver daqui a alguns anos, talvez no lhe reconhea. Salvo melhor juzo, isso devenir.

    Gostou?

    - O devenir se limita de acordo com a ideia que se tem do progresso, sendo a ideia

    um progresso, preciso que o devenir seja compreendido, sendo compreendido,

    encontrar-se- nele um movimento que o que existe de mais concreto. Herclito,

    o filsofo do vir-a-ser, do devenir, disse que o vir-a-ser est em tudo, porque nada .

    Para ns, modernamente, tudo j era. Eu e voc no somos mais aqueles de quando

    Herclito e Parmnides tambm so filsofos que viveram na Grcia Antiga

    entre os sculos VI e V a.C.

    Conhecido como pai da teoria da relatividade,

    Albert Einstein foi fsico e viveu no sculo XX.

    Bilogo suo, Jean Piaget viveu no sculo XX. Suas

    pesquisas contriburam muito para o conhecimento

    do desenvolvimento cognitivo de uma

    perspectiva interacionista.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 19

    iniciamos essa conversa, eu, afora o sutil da natureza, j bebi um copo dgua, emiti

    essas palavras e dei aquelas risadas. Voc, alm de outras coisas que aconteceu,

    j pode ouvir falar em devenir sem aquela estranheza do incio desse bate-papo.

    Verdade?

    - Ah!...Ento quer dizer que aquela caneta que lhe dei h pouco, no essa que est

    a, porque a que lhe dei sofreu o calor das suas mos, a tampinha estava do lado

    oposto, j escreveu e, consequentemente, est com menos tinta.

    - Muito bem! Demorou, mas chegou. Observo com muita satisfao que j ampliou

    a dialtica. Quero, aproveitando a ocasio, que voc saiba que o movimento dialti-

    co o que mais existe de concreto no progresso.

    - Obrigado, meu pai. Amanh vou pedir a minha me para comprar um dicionrio

    novo para o senhor, pois o seu est bastante devenirzado.

    - Tambm j sei quem comeu a folha do devenir.

    E ento, o que achou dessa bela maneira de expressar a natureza no humano? Voc consegue perceber, com ela, o que significa dizer que o devir (devenir) a natureza no humano? Quer dizer, o que h de na-tural no humano a transformao, a mudana, o tornar-se diferente do que j se foi e do que se .

    Isso sugere que cada um de ns muda ao longo da vida, que a espcie humana muda ao longo da histria e que o conceito de humano tam-bm muda. O pensar muda. Portanto, a humanidade, aquilo com que os humanos se identificam, muda conforme so criadas e inventadas novas condies de existncia e de vida.

    Pois , o devir humano a natureza que se faz na humanidade e em cada um de ns. Ela faz com que homens e mulheres sejam o que so

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 20

    e possibilita que a espcie humana a transforme em outra natureza, a histria, num movimento permanente.

    Se for assim, como que acontece esse devir? s ficar parado e esperar que ele aja sobre cada homem e sobre cada mulher? Ser que voc pode participar e influenciar esse devir de algum modo? Se puder, em que condies isso pode acontecer?

    No passe adiante sem pensar sobre isso. Anote suas concluses

    Voc pensou? Ficou com dvidas? Siga em frente, para que possa acrescentar investigao outros elementos que possam ajud-lo a compreender melhor o que quer dizer devir humano.

    1.2 O humano na natureza: culturaAt aqui tentei chamar sua ateno para o fato de que a presena da natureza no humano , ao mesmo tempo, a presena do humano na natureza: temos uma natureza tal que podemos mud-la. Devir huma-no significa a transformao da natureza humana.

    Isso quer dizer que a natureza faz o humano de tal maneira que o humano faz sua prpria natureza.

    Agora quero chamar sua ateno para que pense nas questes sobre por que e como natureza e humano se transformam mutu-amente.

    Acontece que o devir humano no se d apenas na e pela natureza, mas, principalmente, na e pela cultura. Essa uma viso predominan-te entre filsofos, antroplogos e cientistas sociais.

    Voc pode pensar, at mesmo, que o humano tem uma natureza cul-tural. O humano se transforma no mundo que ele mesmo constri: mundo social, cultural, histrico - o mundo humano.

    Assim, parece evidente que, para pensar e investigar o devir humano, preciso estudar a cultura. Sim, porque a cultura condio para al-gum se fazer, chamar-se e sentir-se humano.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 21

    Mas o que significa cultura?

    O que isso quer dizer?

    Em primeiro lugar, cultura pode ser entendida num sentido bem am-plo como o conjunto de prticas pelas quais homens e mulheres agem sobre e transformam o que est na natureza, tornando-se correspon-sveis com a natureza pelo mundo humano e pela humanidade que constroem.

    Segundo, quer dizer que cultura a forma de viver dos humanos em grupos sociais e, ao mesmo tempo, a forma de viver em grupos sociais especficos.

    Assim, no primeiro caso, voc pode pensar em cultura no singular, como aquilo que diferencia homens e mulheres de outros seres, como os animais, por exemplo. J no segundo caso, voc pode pensar em culturas, no plural, como o que diferencia grupos sociais entre si. Mas, no pode deixar de notar que esses conceitos e diferenciaes so criados pelos prprios homens que aprenderam a pensar numa dada cultura!

    Assim, um terceiro significado o de que cultura o conjunto de conhecimentos, de valores, de crenas, de ideias e de prticas de um grupo social, ou de um povo, ou de uma poca.

    Com esses trs significados voc pode perceber que cada um de ns, homens e mulheres, fazemo-nos humanos quando produzi-mos e adquirimos cultura; quando aprendemos e construmos nos-so modo de viver socialmente. Por isso, o devir humano , ao mes-mo tempo, devir natural e cultural. Tem a ver com transformaes biolgicas do nosso corpo como, por exemplo, as funes psquicas (pensar e significar, que se desenvolvem na espcie humana e em cada homem e mulher) que nos tornam capazes de criar, de con-servar e de transformar nosso jeito de viver. E tem a ver, tambm, com as transformaes no prprio jeito de viver, que contribuem com a transformao das condies biolgicas (naturais) de exis-tncia. Isso se d quando, por exemplo, inventamos mquinas para trabalhar e pensar por ns.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 22

    O jeito de viver humano um jeito de viver sociocultural e envolve trs elementos muito importantes, que ajudam a padronizar o comporta-mento de cada pessoa em um grupo social: a linguagem, o trabalho e os valores. Com esses elementos, homens e mulheres produzem e transformam coisas e ideias, decidem o que e o que no importan-te e organizam as relaes entre eles, criando regras para a vida social. Portanto, ao mesmo tempo em que homens e mulheres produzem cultura, so levados por ela a se fazerem humanos.

    A condio de viver, de pensar e de organizar a vida coletiva (vida social), como voc pode perceber, o que movimenta o processo de autocriao humana, de produo da humanidade, de construo do mundo humano.

    Como, ento, voc responderia seguinte questo: somos hu-manos porque pensamos ou pensamos porque somos humanos? E o que voc pensa sobre isso tem a ver com o que j sabe, com o que no sabe ou com o que os outros sabem sobre voc? No deixe de anotar as respostas e dvidas para retom-las mais tarde!

    1.3 Cultura e culturas Voc se lembra que antes eu havia escrito que, com o conceito de cultura, homens e mulheres se diferenciam de outros seres e os gru-pos humanos se diferenciam entre si? Nesse sentido, afirmei que voc pode pensar em cultura e em culturas, no ? E pode falar de hu-mano e de humanos tambm, no ?

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 23

    Cultura o jeito de viver dos humanos em geral e, ao mesmo tempo, o jeito de viver de grupos sociais especficos. Assim, falamos em cultura no singular como aquilo que diferencia os homens de tudo o mais que existe no mundo. Culturas, no plural, o que diferencia os homens entre si.

    Voc diria que humanos de grupos sociais diferentes so humanos diferentes?

    Pode-se dizer, de maneira geral, que modos diferentes de organizao de grupos sociais (famlia, comunidade, categorias profissionais, povos etc.) podem tornar as pessoas desses grupos diferentes entre si, porque culti-vam costumes, jeitos de viver prprios de cada grupo e dentro do grupo.

    Voc concorda com o que eu disse acima? Se os comporta-mentos e prticas sociais so plurais, isto , se existem modos diferentes de organizar e de viver a vida social, podemos di-zer que existem diferentes culturas ou apenas uma na qual as pessoas se diferenciam? Se existem diferentes culturas, como se relacionam? Escreva uma carta ou um e-mail a algum de quem gosta expressando sua opinio sobre esse problema. Conte o que voc pensa sobre a ques-to e pergunte qual a opinio dela.

    Esta atividade a primeira para que voc possa construir uma noo de cultura e suas relaes com a educao e a escola no devir humano. Ao re-aliz-la, espero que voc reflita sobre o problema colocado, com base nos contedos estudados at aqui. Para isso, sugiro que, na carta ou no e-mail, voc exponha o problema ao seu interlocutor de modo que ele possa en-tend-lo bem e dar uma resposta. Para fazer a exposio do problema, importante que voc diga como compreendeu o conceito de cultura e a re-lao entre cultura e devir humano. Exposto o problema, o ltimo passo construir argumentos que embasam sua posio sobre o mesmo, isto , se existem diferentes culturas ou no, se elas podem ou no podem conviver ou se existe uma cultura universal que d conta da diversidade, por exem-plo. Se entender que os contedos da disciplina so insuficientes para construir uma posio inicial sobre o problema, procure consultar outras fontes indicadas no saiba mais, ao final da unidade, nas referncias, ao final do caderno, ou em outras que tenha conhecimento. Importante que voc compreenda bem o problema das relaes entre culturas diferentes e tenha elementos para se posicionar diante dele.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 24

    No fcil se posicionar diante do problema anterior, no ? Ento, para que voc possa pens-lo melhor, introduzirei dois conceitos: et-nocentrismo e diversidade cultural.

    Se voc pensar que a cultura serve como uma lente para ver e pensar, e que s consegue enxergar o mundo e dar sentido a ele pela lente que tem, a tendncia de que voc supervalorize sua forma de ver e de pensar. Ao fazer isso, possvel que desvalorize e negue outras possibi-lidades, fixando sua viso e seu pensamento no centro de todas, como sendo a melhor, a correta, a verdadeira, a real. A nica possvel.

    Para entender, considere a seguinte metfora: se algum est acostu-mado a olhar a rua pelo buraco da fechadura, a rua ganha um forma-to e uma extenso especfica: da fechadura. Se a pessoa puder olhar da janela, ento a rua ganhar outro formato e extenso. E se puder ainda sair de casa e andar, ver que a rua ter mltiplos formatos. Ento, se a pessoa ficar olhando pelo buraco da fechadura, jamais poder saber que a rua pode ser diferente e achar muito estranho que outro que esteja na rua fale dela de outra maneira. Dir que um louco. Um ignorante. Uma pessoa inculta, s porque enxerga a rua de forma diferente.

    A essa fixao de uma cultura no centro de todas as culturas, voc pode chamar de etnocentrismo.

    O etnocentrismo responsvel por muitos dos conflitos sociais (en-tre etnias, gneros, religies, geraes, grupos religiosos etc.). Uma postura etnocntrica tambm responsvel por preconceitos contra minorias, contra outras culturas, preconceito contra a diferena, pre-conceito em relao ao outro.

    Metfora uma figura de linguagem pela qual o sentido

    expresso figurativamente

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 25

    Voc j pensou sobre isso? Sobre sua postura em relao queles que tm um jeito de viver diferente do seu? Como voc se relaciona com os adolescentes ou com as crianas da escola em que trabalha? Voc j tentou se colocar no lugar deles para entender como pensam e veem o mundo? Procure fazer isso observan-do suas prticas e conversando com eles sobre a escola.

    Esta atividade deve ajud-lo a perceber que o modo como voc pensa e vive no so nicos e que voc pode aprender com os outros. Por outro lado, a atividade um exerccio de observao e de descrio, para que voc experimente construir uma ideia sobre a realidade me-todicamente, isto , considerando-a a partir dela, mas no a partir do seu pensamento prvio. O resultado da atividade deve ser um relatrio da conversa e das observaes com alunos da escola, seguido de uma reflexo comparativa entre o que os alunos pensam sobre a escola e o que voc mesmo pensa. O relatrio pode ser feito diretamente no memorial ou deve ser anexado a ele.

    Pois , as roupas, os enfeites, as tatuagens, o jeito de falar, as brinca-deiras e muitas outras coisas que voc faz e usa, ou fazia e usava, so diferentes do que as crianas e os adolescentes que frequentam a es-cola fazem e usam. Assim, se voc acredita que seu jeito de vestir, de enfeitar, de pensar e de viver o certo, vai achar que precisa ensinar os outros a se comportarem como voc. Na escola, onde, em geral, trabalha-se para ensinar um comportamento padro, as diferenas de comportamento ficam bem marcadas e geralmente no so bem-vin-das. Na escola, muitas vezes, os mais jovens so obrigados a pensar e a fazer o que certo para os adultos, mas que no , necessariamen-te, o certo para eles. Voc tem a um exemplo do etnocentrismo.

    Alis, sobre etnocentrismo e diversidade cultural h uma pol-mica entre tericos no Brasil: afinal, a identidade do povo bra-sileiro uma mistura das culturas dos indgenas, dos negros e dos europeus ou no h uma identidade nica, mas diversas identidades? Observe a sua comunidade, sua escola, sua cida-de, as novelas na televiso e outros contextos que interessem e veja como consegue se posicionar quanto a essa polmica.

    Bem, se o etnocentrismo a supervalorizao de uma cultura e a iluso de que ela a nica correta, ento porque existe mais de

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 26

    uma cultura. No s existe mais de uma como as culturas so dife-rentes: s vezes parecidas, s vezes antagnicas (contrrias). No so a mesma. Com isso, voc pode pensar na ideia de diversidade cultu-ral, que diz respeito s diversas culturas especficas de grupos sociais determinados que se diferenciam na construo da humanidade. Veja mais um exemplo para que possa entender bem o conceito de diversidade cultural.

    Alguma vez voc j foi a uma floresta nativa? Como se sentiu? Eu j fui e me senti perdido. Sinceramente, fiquei com medo de adentrar muito para no correr o risco de me perder. Afinal, no conhecia nada ali. Ao contrrio, nas cidades, em qualquer cidade, no me preocupo se posso ou no me perder. At tenho medo da violncia, assalto etc., mas no de me perder. E algum que tenha vivido a maior parte da sua vida numa floresta, ser que sente a mesma coisa que sinto? A floresta tem um sentido para um indgena, por exemplo, que tenha aprendido a viver ali. As rvores, os cips, os cheiros, os rastros consti-tuem um cdigo, um sistema de signos, uma linguagem que ele com-preende do seu jeito. Essa a cultura dele. Ele aprendeu e construiu esses significados. Talvez, ao contrrio, na cidade, os sinais de trnsito, as ruas, os veculos, essa linguagem que eu compreendo, lhe causem outro sentimento. Enfim, diante de uma mesma situao, o indgena e eu percebemos coisas diferentes e nos comportamos de formas di-ferentes. Eis a diversidade e a diferena entre ns.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 27

    Isso pode ajudar a pensar, ento, que culturas diferentes tm lgicas diferentes, isto , grupos sociais diferentes ordenam e organizam o mundo de maneiras diferentes, ao contrrio da viso etnocntrica na qual se pensa que outra cultura, por ser diferente, no tem lgica, no tem ordem, irracional, absurda.

    Agora, que importncia pode ter para voc saber que existe uma di-versidade de culturas? Ora, voc j deve ter percebido que diferentes culturas se encontram, convivem umas com as outras, relacionam-se, entram em conflito, diferenciam-se. Na medida em que isso acontece, preciso saber lidar com a diversidade sem querer necessariamente fazer com que a sua cultura ou uma suposta cultura universal se coloque sobre todas as outras. Pense bem nos exemplos anteriores.

    Essa uma questo bem importante, voc no acha? Que cultura essa na qual podemos perceber as diferenas entre culturas particula-res? E por que as diferentes culturas se encontram nela?

    A escola, que espao da diversidade, pois rene homens e mulheres; crianas e adultos; negros e brancos; alunos, professores e funcion-rios; tem o papel de valorizar e respeitar a(s) cultura(s) com e pela(s) qual(is) diferentes pessoas e grupos sociais se fazem, chamam-se e sentem-se humanos.

    Porm, antes de pensar na escola, pense na educao de um modo geral.

    1.4 O humano no humano: cultura e educao As culturas se transformam. Transformam-se em ritmos diferentes umas em relao a outras, conforme o contato mais ou menos fre-quente entre elas e conforme novidades (inovaes) vo sendo produ-zidas no devir cultural.

    No nos iludamos, hein! Cultura um conceito para significar as prticas que constituem o jeito de viver e de pensar das pessoas e de grupos sociais. J vimos isso. A cultura muda, portanto, quando as prticas sociais mudam.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 28

    As culturas se transformam tambm pela recepo que as novas geraes fazem daquelas prticas sociais ensinadas pelas geraes mais velhas.

    Um exemplo: durante muito tempo acreditou-se na vocao feminina para cuidar do lar e da educao dos filhos e na vocao masculina para trabalhar fora de casa e participar da vida pblica. Quanto tempo levou para que essas crenas fossem derrubadas e mulheres e homens pudes-sem assumir outros lugares sociais? No difcil para voc pensar, en-to, que, se o papel das mulheres fica restrito ao ambiente domstico, ela est excluda de outras atividades, que s os homens podem fazer.

    Esse um exemplo de prtica social de restrio participao de pessoas ou grupos sociais na vida pblica. No caso, temos o exemplo da restrio da participao das mulheres na vida pblica, que aos poucos foi sendo desconstruda e reconstruda.

    Para que essa transformao (desconstruo e reconstruo) da cul-tura acontea, as pessoas tm de ter um mnimo de participao nas prticas sociais. Para participar, precisam poder e saber agir, alm de saber o que esperar (prever) como ao do outro. Isso seria quase im-possvel se as pessoas no conhecessem as regras, as normas de con-vvio, os smbolos, a lngua, as relaes de poder, enfim, os padres de comportamento social.

    No difcil perceber a situao das crianas quando chegam escola, no ? Procure observar ou lembrar de alguma situ-ao de aluno ou aluna recm-chegado na escola que possa exemplificar as dificuldades que algum sente quando chega em um ambiente social novo para ela. Procure ver ou lembrar como essa pessoa foi recebida na escola e como ela foi se in-serindo na vida escolar.

    No interior da cultura, portanto, homens e mulheres recebem, apren-dem, reproduzem, transmitem, transformam e criam o mundo e a hu-manidade por meio das prticas socioculturais. Com isso voc j deve ter entendido que homens e mulheres se educam e so educados nessas prticas, quando participam de um mundo humano.

    Participar sob dois sentidos: fazemos parte desse mundo e o assi-milamos por um lado e, por outro, agimos nele, adaptando-nos.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 29

    Assim, possvel dizer que a educao acontece em todos os lugares em que as pessoas esto se relacionando umas com as outras: na fa-mlia, no trabalho, no templo religioso, no quintal, no mato. Em qual-quer ambiente desses, algum educa algum com ou sem inteno de educar.

    O processo pelo qual homens e mulheres entram em uma cultura e aprendem a ser e a viver nela denominado endoculturao.

    A educao como endoculturao a forma pela qual as pessoas aprendem a conviver socialmente, compartilhando, disputando e ne-gociando valores, crenas, saberes, normas e significados. , ao mes-mo tempo, um acontecimento pessoal (educo-me com os outros) e social (sou educado pelos outros). E , sobretudo, o modo como o humano se faz presente no prprio humano. o modo como o hu-mano transforma o humano. O humano transforma o humano pela educao, pela endoculturao, pelo apropriao da cultura.

    Voc deve estar pensando que, sendo a educao uma forma de transmisso cultural entre os indivduos, ento a cultura no se transforma. Ser? Qual o seu testemunho sobre isso? E o de seus colegas de trabalho? O seu modo de pensar e de viver o mesmo dos seus pais, por exemplo? Pense na sua histria de vida e procure saber da histria de mais um ou dois colegas. Lembre-se de que escrever tudo muito importante. Com esta atividade voc pode-r refletir sobre um dos aspectos pelos quais a cultura preservada e transformada por homens e mulheres, quando transmitida de ge-rao para gerao. Ao mesmo tempo, a atividade um exerccio de interpretao da realidade contextual a partir da memria pessoal. Um tipo de investigao que pode ser usado com outros sujeitos em uma pesquisa antropolgica. O resultado da atividade deve ser uma dissertao narrativa na qual voc deve contar como se posicionou diante dos seus pais ou pessoas mais velhas relativamente a algum evento polmico, para que lhe fique explcito de que modo a cultura pode se transformar ou ser preservada, o que deve ajud-lo a refletir sobre o que acontece na escola na relao entre adultos, adolescen-tes e crianas.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 30

    Se voc notou que a educao um acontecimento pessoal, precisa notar que homens e mulheres recebem o transmitido socialmente de forma pessoal. As pessoas ou grupos sociais (novas geraes ou novas profisses, punks, jogadores de futebol, por exemplo), com seu jeito prprio de receber e de se relacionar com o que recebem, com o que gostam ou desgostam, com o que valorizam ou desvalorizam, vo reinventando a(s) cultura(s). Portanto, pela educao que a cultura e a humanidade so transmitidas, conservadas e transformadas. Educa-o tem tudo a ver com devir humano.

    1.5 Escola, cultura e cidadaniaDesde o nascimento as pessoas aprendem a viver em uma cultura que as geraes anteriores criaram. Essa transmisso cultural a presena do humano no humano. A educao , em sentido bem amplo, o pro-cesso pelo qual homens e mulheres se fazem, chamam-se e sentem-se humanos por receberem e transformarem a cultura das geraes que os antecedem.

    Voc deve estar se perguntando: o que a escola tem a ver com isso, no ?

    Pois bem, a escola foi criada como instituio educativa, para transmi-tir s novas geraes aqueles elementos culturais (saberes especficos, significados, procedimentos e valores) necessrios participao dos indivduos na vida sociocultural, conforme a diviso do trabalho, do poder e do saber.

    A necessidade de ensinar e de aprender saberes especficos para poder participar da vida sociocultural fez com que escola fosse atribuda a funo de cuidar e de ensinar, s crianas e aos jovens, conhecimen-tos (cientficos e tcnicos) e valores que no se aprende em casa nem na rua e, por outro lado, lugar em que se aprende (muitas vezes sem saber), de maneira diferente, os mesmos conhecimentos e valores que se aprende em casa e na rua.

    A escola, mesmo sendo uma instituio criada especificamente para ensinar, , como qualquer outra instituio social, um espao em que homens e mulheres constroem, desconstroem e reconstroem cultura. Logo, tambm um espao educativo em sentido amplo. Contudo, a

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 1 - Devir Humano 31

    escola tem a extraordinria tarefa social de criar intencionalmente as condies educativas para que as pessoas possam receber, descons-truir e reconstruir o mundo humano j construdo.

    A escola, em sua tarefa social, educa tanto para a obedincia aos costumes (padres de comportamento) sociais como educa para um posicionamento crtico e autnomo em relao a esses mesmos cos-tumes.

    RESUMONessa primeira unidade voc deve ter percebido que homens e mu-

    lheres no nascem humanos, mas se tornam humanos pelas transfor-

    maes que realizam na natureza. Essas transformaes realizadas

    por homens e mulheres o que chamamos de cultura. Na cultura, as

    geraes mais velhas educam as novas geraes que, por sua vez,

    transformam o modo de viver no qual so educadas, vo se diferen-

    ciando dos mais velhos e construindo um novo modo de viver e uma

    nova humanidade.

    Deve ter se dado conta, ao mesmo tempo, que a cultura um con-

    junto de respostas de grupos sociais diferentes a exigncias diversas

    da vida e que, portanto, h diferentes culturas; diferentes modos de

    viver que fazem de homens e mulheres seres diferentes entre si: di-

    versas culturas, diferentes humanidades.

    Voc notou que, quando algum valoriza sua cultura acima das de-

    mais, temos o etnocentrismo: aquela viso que pe a prpria cultura

    como central em relao a outras, que se tornam perifricas.

    Viu que a transmisso cultural, o cultivo que as geraes mais velhas

    fazem das geraes mais novas a endoculturao, ou transmisso

    cultural, parte importante da educao humana de homens e mulhe-

    res. E viu, por fim, que, no processo histrico, a tarefa social da edu-

    cao coube escola, encarregada de ensinar ou criar as condies

    para que crianas, jovens e adultos possam aprender conhecimentos

    e valores especficos para responder s necessidades do modo de

    viver, criado por outros homens e mulheres que os antecederam.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 32

    Considerando o que voc investigou at aqui, sobre o devir humano e suas relaes com a cultura, com a educao e com a escola, procure descrever suas atividades na escola, para

    refletir sobre o conceito de humano que as orientam.

    Com essa atividade espero que voc possa demonstrar que compreen-deu o conceito de devir humano, isto , de que homens e mulheres se tornam humanos pelas relaes que estabelecem com outros homens e mulheres no contexto cultural e que a escola, como instituio social, busca educar homens e mulheres na humanidade. Assim, aqui voc far o exerccio de descrever suas prticas de trabalho na escola, para refle-tir sobre o conceito de humanidade que as orienta: que tipo de pessoas eu ajudo a educar fazendo o que fao? O resultado da atividade deve ser uma dissertao em que voc descreve as principais atividades que realiza na escola, seguido de reflexo crtica sobre o conceito de huma-no implcito nelas.

    Leituras:

    SANTOS, Luiz Carlos. O que cultura. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    BRANDAO, Carlos Rodrigues. O que educao. So Paulo: Brasiliense, 1981.

    ROCHA, Everardo. O que etnocentrismo. So Paulo: Brasiliense, 1984.

    DUARTE JR. Joo-Francisco. O que realidade. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    Filmes:

    O enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

    Greystoke, A Lenda de Tarzan, de Hugh Hudson - BB

    Cidade de Deus, de Fernando Meirelles - Brasil

  • Unidade 2

    Devir humano, linguagem e educao

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 34

    Caro estudante.

    Como se sente depois de ter lido e estudado a primeira unidade?

    Foi trabalhosa? Fez pensar? Espero que sim!

    Se voc sentiu alguma dificuldade, procure entender a origem dela:

    se foi por causa das palavras estranhas, cujos significados voc no

    conhecia ou se foi por causa da forma como o texto est escrito ou

    se foi por causa do contedo do texto. E, se no foi por nenhuma

    das causas anteriores, pode ser que a escrita esteja mostrando um

    mundo diferente do que voc est acostumado. So possibilidades

    de entender a eventual dificuldade que voc tenha sentido!

    Espera a! Para que mesmo voc est lendo este caderno? Para

    compreender o que est escrito? Para saber o que eu, como

    professor-autor, sei e penso sobre o assunto em estudo? Ou o

    texto pretexto para voc se perguntar, pensar e buscar respos-

    tas sobre como nos fazemos humanos na cultura e na escola?

    As trs alternativas ao mesmo tempo? Como assim?

    Ah, sim! Voc recebe do seu jeito aquilo que tento lhe trans-

    mitir por meio da escrita. Ento, na leitura, voc precisa saber ler

    e interpretar o que est escrito? isso? E eu escrevo tendo de

    saber escrever e expressar, pela escrita, o que penso e sei sobre

    o assunto de tal maneira que voc possa ler e interpretar, no

    isso? A escrita serve, ao mesmo tempo, para que eu expresse

    meu pensamento, para que eu e voc possamos nos referir ao

    mesmo mundo, e para que voc possa significar as suas vivn-

    cias com base na leitura que faz, ao mesmo tempo que pode

    significar a leitura com base nas suas vivncias. Buscamos nos

    comunicar, e, no entanto, nem nos conhecemos pessoalmente.

    Como isso possvel?

    Eis o problema a ser investigado nesta unidade: como nos faze-

    mos humanos na linguagem e nas prticas simblicas?

    Na unidade anterior, voc viu que uma das prticas culturais pela

    qual construmos, desconstrumos e reconstrumos o mundo hu-

    mano a prtica simblica ou prtica de linguagem. Aqui, voc

    Lembre-se de que o modo como voc est recebendo o que est escrito neste caderno

    sua maneira de transformar a cultura,

    a cultura escolar, a cultura humana. um

    modo de desconstruir e reconstruir significados,

    procedimentos e valores. Tenha coragem! Fique firme na investigao!

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 35

    ver como nessas prticas a simbolizao e a comunicao se

    relacionam entre si e com o devir humano.

    Minha ideia, nesta unidade, de ajud-lo a refletir sobre o sen-

    tido da linguagem na construo da humanidade de homens e

    mulheres, o que voc far ao compreender o que a linguagem

    e o que faz de homens e mulheres seres simblicos, por que a

    linguagem um elemento no qual homens e mulheres se relacio-

    nam e nessas relaes constroem, disputam e negociam sentidos

    para o mundo humano e por que o dilogo fundamental na

    educao em geral e na educao escolar.

    Muito bem, nos pargrafos anteriores, procurei chamar sua

    ateno para o seguinte: a linguagem nos possibilita ter con-

    tato uns com os outros. uma das condies da vida socio-

    cultural. Portanto, o humano se faz simbolicamente, um ser

    que cria e usa smbolos com os quais e pelos quais significa o

    mundo e comunica aos outros, criando, ento, um ou diversos

    mundos simblicos.

    Quando eu escrevo, crio um mundo simblico. Quando voc l, po-

    der criar outro mundo com os mesmos smbolos que eu constru.

    Contudo, nem sempre pessoas e grupos sociais conseguem se

    entender com outros sobre os significados que constroem no

    mundo. Pois , como dizia Plato, a linguagem pode ser, ao mes-

    mo tempo, remdio e veneno. Sim, pois se os significados so

    construdos na linguagem, homens e mulheres podem muito bem

    se enganar e serem enganados com ela. Com a linguagem, as

    pessoas podem tanto esclarecer quanto obscurecer. Tanto podem

    emancipar-se, tornar-se autnomas nos seus saberes, nas suas

    decises e atitudes, como podem se iludir e ficar dependentes

    dos outros. Sobretudo quando os outros utilizam mecanismos de

    poder diversos, para evitar que a linguagem multiplique os sig-

    nificados e faa o pensamento fluir. Ou seja, usam a linguagem

    para conservar o mundo como est.

    Ento, tanto as pessoas se entendem como se desentendem na

    linguagem. Tanto podem dizer o que querem como podem ficar

    limitados a dizer o que os outros querem que digam.

    Plato foi um filsofo grego, que viveu no sculo V a.C.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 36

    Voc concorda que h situaes em que as pessoas parecem com papagaios que s conseguem repetir o que os outros dizem e no conseguem dizer nem pensar diferente? Isso j aconteceu com voc? Voc teria condies de descrever uma situao em que isso aconteceu? Ento escreva: onde, quando, com quem e o que aconteceu.

    2.1 Linguagem: conceito e elementosA linguagem elemento constituinte do humano, pois com ela ho-mens e mulheres significam as coisas e os acontecimentos, expressam seus sentimentos e pensamentos, comunicam-se uns com os outros, entendem-se e desentendem-se entre si. Com a linguagem, homens e mulheres organizam o mundo humano, construindo sentido para o que aprendem e para o que fazem, bem como para o que existe e acontece no mundo.

    Sem linguagem, a convivncia humana seria muito diferente do que . Tal como foi dito na unidade anterior, o devir humano tem elementos naturais e culturais. Isso quer dizer que h fatores biolgicos que possi-bilitam significar, falar, escutar, escrever, ler e sentir, por exemplo. Nos-so corpo, por assim dizer, possui certas condies para a linguagem.

    Mas esse equipamento corporal ser suficiente para poder expressar, representar, significar e comunicar? O fato de voc poder escutar ou emitir algum som, ler ou escrever alguma palavra, ver, sentir ou fazer algo lhe garante que possa construir significados para o som, para a palavra ou para ao?

    Parece que no. Afinal, quando nasceu, j existia uma linguagem sua disposio, na qual voc aprendeu a ser e na qual aprendeu a se relacionar com os outros. Mesmo aqueles indivduos cujo corpo no apresenta todas as condies biolgicas para aprender a falar, por exemplo, conseguem se relacionar com os outros por meio de outras formas de linguagem, que no a oral.

    Na escola em que voc trabalha existem alunos com necessi-dades educativas especiais? Veja se consegue identificar suas necessidades e, depois, procure observar como elas se comu-

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 37

    nicam com as outras crianas e com os professores, para ver que tipo linguagem usam, conforme a necessidade. Procure perceber como as diferenas, quando se relacionam, promovem a igualdade de direitos entre elas.

    Com essa atividade importante que voc possa compreender que existem diferentes linguagens e que, na escola, onde existem pessoas diferentes, preciso que todos possam se comunicar, com linguagens adequadas, na educao da humanidade. Alm disso, a atividade um exerccio de observao sobre o comportamento de grupos especficos na escola, o que pode ajud-lo em outros momentos, e de reflexo so-bre as diferenas e a igualdade na escola. Como resultado, voc deve descrever as diferentes necessidades especiais dos alunos que frequen-tam a escola e indicar como cada uma delas se comunica com os outros, dizendo que tipo de linguagem usa. No deixe de consultar pessoas, livros ou outras fontes que possam ajud-lo na descrio.

    Pois , alm dessa capacidade biolgica, a linguagem um sistema simblico: um conjunto de signos que podem ser combinados e usa-dos segundo regras. Esse sistema simblico criado culturalmente. bvio, portanto, que voc precisa conhecer e saber usar alguma lin-guagem para poder expressar seus sentimentos, pensamentos e emo-es, representar as coisas e acontecimentos do mundo e comunicar--se com os outros.

    Com a linguagem voc tem condies de simbolizar, e com a simbolizao tem con-dies de significar e registrar aconteci-mentos que no podem ser repetidos, nem revividos. Que importncia tem o registro de acontecimentos? Ora, os outros s sa-bero desses acontecimentos e aprende-ro alguma coisa sobre eles se estiverem registrados.

    Como voc saberia alguma coisa sobre a chegada dos portugueses nessas terras, chamadas de Brasil, se Pero Vaz de Cami-nha no tivesse escrito cartas?

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 38

    Tente pensar numa situao do dia a dia, como o recreio em sua es-cola. Que sentido tem o recreio para alunos, para professores e para funcionrios? Quando voc faz esse questionamento, percebe que s pode saber o significado para cada um desses grupos se as pessoas falarem ou descreverem para voc em palavras, certo?

    Agora se coloque numa outra posio: ao invs de tentar escutar e tomar a linguagem oral/verbal (as palavras faladas de alunos, de professores e de funcionrios) para saber o significado do recreio, procure observar voc mesmo como as pessoas se comportam nesse intervalo de tempo.

    Voc percebe como os alunos se movimentam, conversam, gritam, correm, brincam, riem, choram...E como os professores e os funcion-rios, em geral, no ficam no ptio da escola no momento do intervalo, a no ser quando precisam cumprir alguma funo especfica?

    Observando e descrevendo o que percebe, voc criar significados para o recreio sem precisar perguntar a outras pessoas. Como isso possvel?

    Ao fazer isso, voc simboliza, transformando o comportamento dos alunos, dos professores e dos funcionrios em expresso simblica. Usando palavras, voc est simbolizando. Ao usar palavras voc est a significar o que percebe e pode registrar para transmitir a outros. Talvez voc possa dizer: os alunos se sentem livres no ptio ou o ptio deixa as crianas enlouquecidas!, conforme a viso simblica que voc j tenha construdo com experincias anteriores, ou seja, com seus pr-conceitos.

    Na descrio, voc usar um repertrio de palavras que conhece para poder expressar o que percebeu ou sentiu ao observar os alunos no ptio, ou seja, vai falar ou escrever a algum conforme as condies lingusticas que tiver para isso. Mas voc poder simbolizar por de-senhos tambm. Talvez, quem escutar ou ler o que voc escreveu ou desenhou no entenda tal como voc pretendeu expressar. Isso um problema, porque os signos se tornam independentes dos sujeitos quando so expressos.

    No caso da minha escrita, por exemplo, as palavras que voc est len-do tm o significado da sua leitura e, ao mesmo tempo, o significado com o qual eu as escrevi.

    A simbolizao uma espcie de traduo

    de outras coisas em palavras, desenhos,

    gestos, sons, objetos etc. de outras formas

    que no so palavras, desenhos, gestos e sons,

    por exemplo, assim como a linguagem.

    Simbolizar transpor em signos e smbolos as ideias, os

    acontecimentos, os pensamentos, os sentimentos, as coisas, as

    pessoas e outros signos e smbolos

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 39

    Voc compreendeu o conceito de simbolizao e como constru-mos um mundo simblico? Ento, faa isso: observe o recreio. Depois, procure conversar com algum (um colega de trabalho, talvez) tentando dizer em palavras ou desenhos o que voc observou e o que entendeu que acontece l. Preste ateno se seu colega con-corda com voc. Preste ateno, sobretudo, em como voc pode ficar sabendo se o seu colega concorda ou no com voc. Qual o papel da linguagem e da simbolizao nessa relao entre vocs?

    Com esta atividade espero que voc consiga compreender com maior nitidez a relao entre o que acontece e o que se diz, na construo da realidade. Com a atividade, voc poder fazer mais uma experincia de observao e descrio, agora enriquecida pelo dilogo com outro observador.

    O resultado desta atividade deve ser o registro por escrito ou em ou-tra linguagem, das concluses do estudante sobre suas observaes e dilogo com o colega, de modo a que fique explcita a compreenso da simbolizao como expresso da percepo e como representao de um acontecimento, isto , de modo que fique claro que o que se diz no o mesmo que acontece.

    Como construo e como prtica cultural, as linguagens podem ser transformadas pela apropriao e pelo uso (prtica) que as pessoas fa-zem quando as aprendem, criando novos significados para os signos e novos signos para expressar e representar novos pensamentos, senti-mentos e acontecimentos. Mas, o que significa mesmo significado? Que pergunta estranha, no? Qual o significado do significado?

    Acontece que os signos so significantes, assim como os acontecimen-tos e os prprios homens so significantes para outros homens. Os signos possibilitam a construo de significados pelos quais homens e mulheres se situam no mundo. No caso do exemplo da floresta, na unidade anterior, tanto para o indgena como para mim as rvores so significantes. Porm, o significado da rvore diferente para cada um de ns. Por isso, o mundo do indgena diferente do meu. Cada um tem um mundo simblico relativo cultura na qual foi educado

    Ento, os signos so significantes porque possibilitam que voc cons-trua, expresse e comunique significados com eles, para dizer aos ou-

    O significado algo que o homem cria a partir dos signos e smbolos. o que as pessoas pensam que os acontecimentos, pessoas e palavras dizem a elas.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem fi losfi ca e antropolgicaRede e-Tec Brasil 40

    tros o que sente, v, pensa, isto , para compartilhar, disputar e nego-ciar o sentido do mundo com os outros.

    Registrando em signos ou smbolos os acontecimentos do mundo, seus sentimentos, emoes e pensamentos podem tornar-se presentes para voc mesmo e para os outros. Isso permite lembrar e pensar o passado, viver e pensar o presente e imaginar o futuro. Com a linguagem, ento, instaura-se a his-toricidade no homem e, com ela, a humanizao da natureza.

    A linguagem tambm inseparvel da imaginao e da criao. Por isso, voc pode dizer, tranquilamente, que o devir humano simblico e acontece na linguagem. Ou seja, so homens e mulheres que criam, juntos com outros homens e mulheres, o sentido da vida e do mundo humano. No h humano sem linguagem.

    Voc se expressa na sua lngua, certo? Mas o modo como voc fala o mesmo de outras pessoas que compartilham essa lngua com voc? O modo como falam na sua regio sempre foi o mesmo? Voc diria que a lngua que voc fala a mesma que seus antepassados falavam?

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 41

    2.2 Linguagem e lnguaVoc, talvez, possa estar a se perguntar se linguagem e lngua so a mesma coisa, j que antes os exemplos eram sobre falar e escrever.

    Respondo a voc dizendo que so e no so. Quero dizer, assim, que a lngua um tipo de linguagem entre muitos. A lngua linguagem, mas no toda linguagem, muito embora seja, ao longo da histria, a linguagem mais importante para homens e mulheres. Tradicionalmen-te, as linguagens so classificadas em dois gran-des tipos: as no-verbais e as verbais.

    Entre as no-verbais voc encontra a linguagem por sinais, por gestos, por desenhos, por cores etc. J a linguagem verbal so as diversas lnguas fala-das e escritas no mundo (portuguesa, tupi-guara-ni, espanhola, inglesa, por exemplo).

    As lnguas so convencionais, foram criadas por homens e mulheres em determinadas condies histricas e foram se constituindo em estrutura in-dependente de quem as usa.

    Como estrutura, a lngua pode ser entendida como um cdigo, um sistema simblico, pelo qual os signos se movimentam, indo do falante ao ou-vinte, do escritor ao leitor. Para que esse movimento seja possvel, tem de haver um emissor (falante ou escritor) que codifica (simboliza) na lngua o que pensa, percebe, sente e emite um signo para um receptor (ouvinte ou leitor) que o recebe e decodifica. O emissor e o receptor precisam compartilhar e saber usar a lngua na sua estrutura (ter com-petncia para isso, ter participao numa comunidade lingustica) e saber us-la de sua prpria maneira (desempenho atos de fala ou de linguagem que realiza), ou seja, ter um jeito de falar que comu-nique, que os outros possam entender.

    Codificar e decodificar signos supe que as lnguas sejam transparen-tes como cdigos. como se o que fosse dito na fala ou na escrita ti-vesse um significado preciso, que pode ser compreendido pelo simples fato de se saber usar a lngua. E se algum no consegue entender os

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 42

    significados prprios da lngua porque no tem competncia, no sabe us-la. Esse um jeito de significar e entender a lngua.

    Contudo, h outro jeito. Veja: quando voc aprendeu a falar, quando aprendeu a usar a lngua portuguesa, ela j tinha sua estrutura, porm s ao vivenciar suas experincias com ela que a lngua passou a exis-tir, na prtica, para voc. Ento, as prticas socioculturais com a lngua dizem respeito, primeiramente, fala humana. Homens e mulheres, ao falarem, criaram a lngua como uma instituio sociocultural, para poder expressar alguma coisa para os outros, independentemente das regras de combinaes e uso que a estruturam.

    Ao mesmo tempo em que homens e mulheres criaram a lngua, o hu-mano passou a ser criado na linguagem, como conceito, como sentido da vida de homens e mulheres, cuja existncia vai sendo marcada pelos limites da lngua e do emissor que expressa esse conceito, por sua prpria boca e pela boca dos outros. Assim, voc, por exemplo, vai se tornando aquilo que voc mesmo diz e o que os outros dizem e escrevem a seu respeito e para voc. Os limites criados pela lngua permitem ou impedem voc de pensar sobre o que dizem que voc . Voc levado a pensar que s pode fazer o que dizem que pode fazer e ser como dizem que deve ser.

    Contudo, um mundo novo pode se abrir quando voc se perguntar sobre o significado do que dito e escrito a seu respeito e sobre a validade ou verdade desse significado.

    Quer dizer que um mundo novo se abre quando voc percebe que pode ser voc mesmo e no o que os outros dizem que deve ser.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 43

    Tem muita gente que pensa que pessoas sem escolarizao tm dificuldades para aprender, para compreender conceitos e que elas tm preguia de pensar. Voc concorda com essa posio? Voc poderia descrever um ou mais exemplos que mostrem se essa ideia verdadeira ou se falsa?

    Pois , na linguagem e na lngua que voc se torna o que e pode mudar seu mundo e a si mesmo, mudando, ao mesmo tempo, a lin-guagem e a lngua, quando cria outras formas de falar, de expressar e de comunicar.

    Na linguagem e com a linguagem que homens e mulheres se encon-tram com os outros e podem perceber e imaginar como os outros pen-sam e vivem, do que gostam ou no gostam, o que valorizam ou no valorizam, o que sabem e o que no sabem. Mas, na linguagem, tam-bm, que homens e mulheres constroem e aceitam muitos preconceitos.

    Com a linguagem, portanto, voc pode virar as costas ou pode tentar se colocar no lugar dos outros para conhec-los, o que sugere que haja comunicao entre diferentes.

    2.3 Linguagem e comunicaoComo voc j viu, preciso compartilhar e saber usar uma linguagem para que haja comunicao. Pode ser, por exemplo, a linguagem dos sinais ou a lngua portuguesa. E preciso, tambm, que se pratique essa linguagem. Com isso, voc tem condies para expressar e signi-ficar alguma coisa: sentimentos, pensamentos, saberes, conhecimen-tos, opinies.

    Entretanto, o problema que voc est investigando como nos fa-zemos humanos no e pelo uso da linguagem (prticas simblicas), lembra?

    Lembra tambm de que, se a linguagem no transparente para o receptor, ento ele tem de dialogar com o emissor: fazer perguntas, conversar etc. preciso saber se o que ele entendeu o que o emissor queria dizer. Quando isso acontece, emissor e receptor estabelecem um tipo de interao em que ambos trocam de papis. J no so mais emissor e receptor. So agora interlocutores.

    Preconceitos so significados construdospor outros que aceitamos sem perguntar pela sua verdade e validade para a vida social, ou melhor, eles j esto validados para ns quando no nos preocupamos em question-los, como voc pode perceber na reflexo anterior.

    Interlocutores so aqueles que esto envolvidos num processo de comunicao: emissor e o receptor; os dialogantes, enfim, so pessoas que se relacionam na e pela linguagem, sabendo us-la

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 44

    Mas o que preciso, ento, para que a comunicao acontea?

    preciso que a linguagem seja compartilhada, que os significados possam ser expressos e mais: preciso que possam ser compreendi-dos e que haja interao entre emissor e receptor de tal modo que se faam interlocutores. A comunicao acontece com base nos signos, nas regras de combinao e uso dos signos na linguagem, com base nos significados que os signos podem possibilitar e, o mais importan-te, com base no entendimento e cooperao entre os interlocutores na construo dos significados.

    Pense nos meios de comunicao com os quais nos relaciona-mos diariamente: TV, rdio ou jornal, para citar os mais tradi-cionais. Que tipo de cooperao ou interao h entre quem emite (apresentadores, locutores e escritores) e quem recebe (espectadores, ouvintes e leitores) os signos? Como voc se coloca diante de um noticirio de televiso, por exemplo? No v adiante sem pensar nisso!

    Com os meios de comunicao parece que no h interlocuo, no ? Voc um mero espectador, ouvinte e leitor. S tem direito de en-tender aquilo que dito sem poder questionar, pedir esclarecimentos, ter mais informaes. Embora receba informaes, no est autori-zado, socialmente, a question-las. No existe interlocuo com os meios de comunicao.

    Assista ao noticirio da televiso. Preste ateno em quem tem autoridade para participar da construo do significado dos acontecimentos do dia. Quais so as pessoas que opi-nam e defendem algum significado sobre acontecimentos polticos ou econmicos, por exemplo? No deixe de anotar suas concluses.

    A comunicao exige aes cooperadas e interativas. Isso quer dizer que, para comunicar-se voc precisa estar em contato com o seu interlocutor.

    Na comunicao, contudo, os interlocutores no tm de chegar a acordos e produzir significados coletivos. O caso que, estando em

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 45

    contato, voc pode interagir, participar, questionar, ter uma compre-enso mais consistente do que o outro diz e, com isso, fica melhor informado, podendo se posicionar melhor em relao ao que dito.

    Na comunicao, portanto, os interlocutores podem trocar diferentes perspectivas e colocarem-se no lugar um do outro. Nessa condio que se estabelece o dilogo. Assim, eu posso muito bem aprender que a floresta tem um significado para o indgena que no o mesmo para mim. E voc pode aprender e compreender que o que o recreio significa para os alunos no o mesmo que para os professores e fun-cionrios, por exemplo.

    2.4 Dilogo, comunicao e educaoDilogo a palavra compartilhada. Uma situao de interlocuo ou interao pela linguagem, em que os participantes tm direito fala e, claro, direito e dever escuta.

    E por que o dilogo fundamental na comu-nicao?

    Ora, porque dialogando possvel perceber as diferenas e negociar, disputar, compartilhar o sentido do mundo humano.

    Mas, preste ateno: a histria da humani-dade e dos grupos humanos a histria de transformaes, de mudanas, o devir, justa-mente na tentativa de criar condies para a vida social. Assim, segundo o mais conhecido educador brasileiro, Paulo Freire:

    O dilogo deve ser entendido como algo que faz parte da prpria na-

    tureza histrica dos seres humanos (...). Isto , o dilogo uma espcie

    de postura necessria, na medida em que os seres humanos se transfor-

    mam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O dilogo o

    momento em que os seres humanos se encontram para refletir sobre sua

    realidade tal como a fazem e refazem (FREIRE, 1987, p.122-3).

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 46

    O dilogo vivenciado na busca da comunicao pode lev-lo a assumir uma atitude crtica, isto , uma postura de quem e quer ser aut-nomo no pensamento e na ao. Essa postura assumida no dilogo pode levar a duas situaes. A primeira a de produzir significados coletivos, acordos sobre o mundo, sobre ns mesmos, sobre a vida. o que se costuma chamar de consenso.

    A segunda abre para mltiplas possibilidades de significao com base no fluxo das diferentes falas (culturas e pensamentos) que se mani-festam no mundo, ao contrrio da ideia de uma fala (cultura e pensa-mento) nica e universal. Aqui a comunicao visa expresso para que os diferentes possam trocar posies.

    Procure pensar sobre as situaes de dilogo de que voc participa na escola. Aquelas informais com os colegas na hora do cafezinho e aquelas institucionais, como uma reu-nio de trabalho. Voc nota alguma diferena? Em que con-siste essa diferena? Para que fique bem ntido para voc, procure descrever em detalhes uma e outra situao, assim poder comparar melhor. Caso no participe de situaes formais de dilogo, procure entender por que, abrindo di-logo com a comunidade escolar.

    Apesar de diferentes, em uma ou em outra situao, uma cultura do dilogo educa no dilogo, isto , pode possibilitar que os diferentes se encontrem para dizer uns aos outros o que pensam, como vivem e o que esperam da vida, alm de possibilitar que, desse encontro, novos significados possam ser criados. Dialogar com um aluno sobre o que ele pensa sobre o recreio pode levar voc a ter outra viso do aluno, do recreio e de voc mesmo. Nesse sentido, o dilogo educativo, a educao dialgica e tem tudo a ver com o devir humano.Contudo, se voc quiser compartilhar a palavra, no apenas pela compreenso dos significados que vai conseguir. Voc precisa construir a situao para poder valid-los. No porque um significado compreendido que ele pode ser considerado vlido, isto , aceito. Voltando situ-ao da sua relao com este texto, por exemplo, pode ser que voc no tenha nenhuma dificuldade de compreenso de seu contedo. Mas isso no significa que o esteja aceitando para as suas prticas escolares. Mesmo sem compreender e aceitar poder, contudo, res-significar o seu prprio modo de agir. Uma educao dialgica, assim,

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 47

    sempre uma educao crtica que consiste na possibilidade de os interlocutores trocarem de papis, exporem o sentido daquilo que fa-zem ou dizem quando querem ensinar e aprender, de tal maneira que quem escuta possa questionar, duvidar, expressar outros significados at poder compreender e aceitar ou criar outras possibilidades de sig-nificao.

    Ento, voc pode dizer que uma educao dialgica e crtica se afirma na base da interao, da interlocuo, do dilogo e da argumentao, que compem um momento participativo de reflexo e significao, mas nunca se afirma apenas na repetio daquilo que as autorida-des dizem: governantes, estudiosos, padres, pastores, professores, entre muitos.

    Pois em que consiste educar-se e educar seno em compreen-der e tomar posio frente ao sentido da fala e da ao (prticas e atitudes) do outro, para que possamos tambm falar e agir?

    2.5 Escola, comunicao e cidadaniaNa escola, como um espao cultural e social, muitas vezes supe-se que o significado das coisas, dos acontecimentos, das aes e mesmo dos conhecimentos podem ser transmitidos transparentemente pela linguagem. Basta algum dizer alguma coisa que o outro compreende o sentido do que dito! Mas, se Plato estivesse certo, voc precisaria pensar melhor sobre isso, no ? Sim, pois, como acabou de ver, a lin-guagem no to transparente assim: podemos tanto nos entender como nos desentender na linguagem. Que influncias isso pode ter em seu trabalho na escola?

    Retome a situao do recreio que voc observou para pensar nos efeitos da linguagem e do dilogo no devir humano. Tente entender melhor isso.

    Voc viu que os significados podem ser construdos a partir da obser-vao de situaes novas e de significaes j construdas em outras experincias (pr-conceitos). Assim, no difcil notar que, de alguma maneira, essa relao tambm se d na linguagem (no simblico).

    Homens e mulheres regram, disciplinam, controlam o comportamen-to pelos significados. Com a significao modelam valores, poderes

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 48

    e formas de incluso e de excluso nos grupos sociais. A linguagem tanto pode cristalizar ideias, significados e comportamentos, como pode multiplic-los e diversific-los.

    Essas duas posies podem levar tomada de decises na escola, con-forme aquilo que nela se tem entendido por educao, considerando que a escola tenha um projeto poltico-pedaggico e que a comu-nidade tenha participado na construo do significado da educao proposto nesse projeto.

    Por exemplo, com base na segunda significao, gente louca gente que no sabe e no pode conviver com outros, ento precisa ser disci-plinada para que possa se comportar como pessoa normal. A discipli-na na sala de aula e o controle das pessoas no recreio seriam prticas educativas com esse fim. Contudo, nesse exemplo, no se questiona se o comportamento exigido na sala de aula tem algo a ver com o comportamento do recreio, isto , se a disciplina exigida em sala no afeta o comportamento no recreio.

    Ser que afeta?

    Como instituio que educa, a escola se faz em um espao de partici-pao, de interlocuo, de compartilhamento, de disputa e de nego-ciao de significados que implicam transformaes na vida de cada um dos que a frequentam.

    Voc pode pensar, ento, que a linguagem tem uma dimenso comu-nicacional que possibilita compreender o significado expresso por al-gum pelo dilogo, isto , no momento da interlocuo, quando dois ou mais indivduos (duas ou mais culturas) se relacionam por meio da linguagem.

    Nas relaes e pelas relaes que homens e mulheres estabelecem com a linguagem, com o mundo e com os outros na e pela lingua-gem que criam, mantm, transformam e recriam as instituies, os valores, as relaes, enfim, organizam a vida e o mundo dando a eles sentido e constituindo o modo de viver humanos, por meio da cultura e identidade. Com a linguagem, homens e mulheres se educam e so educados. Tornam-se humanos.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 2 - Devir humano, linguagem e educao 49

    RESUMONesta unidade de estudos, voc deve ter compreendido como a lin-

    guagem importante para o devir humano e para a educao de

    homens e mulheres, pois nela possvel registrar acontecimentos,

    falar do mundo, expressar o que acontece no nosso corpo e pensa-

    mento e, sobretudo, na linguagem nos relacionamos com os outros

    de tal modo que ela fundamental para ensinar e para aprender a

    viver humanamente.

    Voc deve ter se dado conta, depois, que a lngua que falamos um

    tipo de linguagem: a linguagem verbal. Deve ter notado que apren-

    deu a ser o que escutando o que outros dizem a respeito de homens

    e mulheres em geral e a seu respeito.

    Em terceiro lugar, voc deve ter visto que a linguagem permite a

    comunicao quando pessoas a compartilham, sabem us-la e inte-

    ragem entre si por meio dela. Por meio da linguagem, duas ou mais

    pessoas podem conversar, questionar-se e negociar sentidos.

    Por fim, deve ter notado que a comunicao e o dilogo possibilitam

    que, na relao com os outros, com os diferentes, podemos construir

    consensos ou afirmar nossas diferenas. Em ambos os casos, constru-

    mos e refletimos, junto com os outros, sentidos para a humanidade:

    aprendemos nossa humanidade e a humanidade dos outros conver-

    sando crtica e autonomamente com eles.

    Entreviste alguns professores e funcionrios da escola em que voc trabalha (pode ser uns 7) e pergunte: o que significam mi-nhas atividades na escola para educao dos alunos? Anote as respostas. Depois, compare-as entre elas e com o significado que voc mesmo d a suas atividades de trabalho. Por fim, com base na compa-rao, tente responder s seguintes perguntas: 1) os significados so os mesmos para todos que voc entrevistou? 2) nas respostas h alguma coisa diferente sobre suas atividades que voc ainda no tinha se dado

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 50

    conta, no que diz respeito ao seu carter educativo? 3) voc entende que, a partir do que ficou sabendo dos seus colegas de escola, suas ati-vidades podem ter um significado diferente do que voc dava a elas?

    O resultado desta atividade dever ser um relatrio descrevendo e com-parando as respostas de pelo menos 7 pessoas (entre professores e co-legas) que trabalham na escola sobre o significado do seu trabalho para a educao dos alunos, seguido de uma reflexo crtica sobre as respos-tas obtidas, com vistas a construir um novo significado, se for o caso.

    Leituras

    BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que comunicao. So Paulo: Brasiliense, 1982.

    HOUAISS, Antnio. O que lngua. So Paulo: Brasiliense, 1990.

    Filmes

    Ilha das Flores, de Jorge Furtado

    Domsticas O Filme, de Nando Olival e Fernando Meirelles

    Cidade de Deus, de Fernando Meirelles

  • Unidade 3

    Devir humano, trabalho e educao

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 52

    Na unidade anterior, voc estudou a linguagem como uma das

    condies do devir humano, pois, com a mesma, homens e mu-

    lheres se relacionam uns com os outros e nas relaes tanto

    se diferenciam como se aproximam em acordos. Nesse sentido

    voc pode dizer que o devir humano devir simblico, pois o

    significado do que humano construdo na linguagem, no

    dilogo com outros. Quer dizer que, sem linguagem, a huma-

    nidade de cada um no tem sentido. O trabalho que cada um

    desenvolve pode ser compreendido de maneiras diferentes,

    como voc pode ter notado com a atividade realizada no lti-

    mo pratique.

    Sabendo disso, nesta unidade, ento, podemos passar a estudar

    outra das condies bsicas do devir humano: o trabalho, pelo

    qual homens e mulheres transformam a natureza, o mundo e a

    si mesmos.

    Assim, aqui, espero ajud-lo a refletir sobre o sentido do traba-

    lho na construo da humanidade de homens e mulheres, a par-

    tir das seguintes perguntas: que influncia pode ter o trabalho

    no devir humano? Como nos fazemos humanos no trabalho? Por

    que as condies de trabalho e suas transformaes diferenciam

    socialmente homens e mulheres uns em relao aos outros?

    Como o tema atravessa vrias disciplinas deste curso, vou le-

    vantar algumas questes rpidas e especficas sobre o trabalho

    como elemento de criao e transformao do humano. Ques-

    tes sobre as quais voc pode comear a pensar aqui e continuar

    a pensar ao longo do curso e da vida.

    Voc deve lembrar que, na unidade 1, relacionei trabalho com

    uma dimenso prtica da vida humana. Lembra? Trabalho como

    prtica de transformao da natureza.

    Voc concorda que com o trabalho a natureza transformada?

    Veja: a sardinha que nadava livre nos mares, um ser vivo, ago-

    ra sardinha enlatada, alimento industrializado. O petrleo que

    estava escondido no subsolo terrestre, agora combustvel. As

    rvores da floresta que guiavam o indgena no seu caminho e

    me assustavam agora viraram mveis e casas. So inmeros os

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 3 - Devir humano, trabalho e educao 53

    exemplos e todos eles esto ao alcance dos nossos olhos e das

    nossas mos, so tangveis.

    Mas no se engane, pois, com o trabalho homens e mulheres

    tambm transformam as foras materiais em foras simblicas:

    linguagens, valores, ideias. O que se faz com os braos tambm

    se faz com o pensamento. E vice-versa. Com a diferena de que

    com os braos o trabalho feito com fora fsica e com o pensa-

    mento se usa fora intelectual, imaterial. Contudo, no difcil

    notar que voc pensa quando trabalha fisicamente e, de alguma

    maneira, usa fora fsica no trabalho intelectual.

    Ento, mesmo que o seu trabalho aparentemente exija apenas

    fora fsica, h nele, tambm, foras simblicas e normativas que

    o controlam. sobre isso que eu gostaria de convid-lo a inves-

    tigar e refletir nesta unidade.

    Tente transformar a situao em um problema, partindo das se-

    guintes perguntas: a humanidade se faz no trabalho? Ser que

    nosso trabalho tem alguma coisa a ver com o que sou? Traba-

    lhando estou educando? Se educo outros e me educo no traba-

    lho, como isso acontece?

    3.1 Trabalho: conceitoComece a responder s perguntas anteriores pensando no significado de trabalho. Na unidade anterior, voc viu o que simbolizar e signifi-car o mundo pela palavra e como, com isso, possvel tomar conscin-cia e/ou enganar-se no que se pensa sobre o mundo e sobre os outros.

    Viu tambm que os significados so criados por homens e mulheres, portanto, podem ser transformados, esquecidos e recriados. Nesse sentido, a pergunta a ser feita : o que significa trabalho?

    Antes de seguir a leitura, escreva o que voc pensa que o trabalho. Ao final da unidade, retome o que escreveu e faa uma crtica.

  • Homem, Pensamento e Cultura: Abordagem filosfica e antropolgicaRede e-Tec Brasil 54

    A origem da palavra trabalho est no substantivo da ln-gua latina tripalium, que era usado para nomear um ins-trumento agrcola formado por trs paus pontiagudos, usado para bater cereais. H a hiptese de que o tripalium tambm teria sido usado como instrumento de tortura. A esse substantivo liga-se o verbo tripaliare, cujo significado torturar. Como voc pode notar, o significado etimolgi-co da palavra trabalho tem a ver com sacrifcio, com dor, com sofrimento. Foi com esse significado que a tradio do pensamento ocidental comeou a pensar o trabalho.

    Entre os antigos gregos, o trabalho era relacionado com a escravido. A escravido, na filosofia de Aristteles, por

    exemplo, funda-se no pensamento de que h homens que, natural-mente, no so livres porque dependem do trabalho para sobreviver e, por isso, no podem desenvolver plenamente a natureza humana: usar a razo.

    Entre os romanos, o trabalho seria uma espcie de castigo, uma pu-nio para os derrotados nas guerras. Os romanos escravizavam os povos dominados pela fora de seus exrcitos.

    J entre os cristos, na Idade Mdia, o trabalho era associado dor, ao sofrimento e servido.

    No Brasil, ainda hoje, temos notcias de que pessoas so escra-vizadas por outras, o que , por direito, considerado crime.

    Dos gregos ao final da Idade Mdia, o trabalho era smbolo de exclu-so social, ou, pelo menos, as pessoas que dependiam do trabalho no participavam da vida pblica e da construo de conhecimentos.

    Como assim smbolo de excluso?

    Alguns trabalhavam para a sobrevivncia de todos, enquanto outros se dedicavam ao conhecimento, espiritualidade e ao governo. Segundo esse jeito de pensar, o verdadeiro ser humano se aproxima mais das coisas espirituais, enquanto aqueles que produzem apenas as condies materiais de sobrevivncia (para si e para os outros) esto mais prximos da animalidade. Ou seja, o trabalho era considerado coisa de bicho.

    Aristteles foi um filsofo grego que viveu

    no sculo IV a.C.

    Etimologia o estudo da origem das palavras. Muitos pensadores buscam na etimologia elementos

    para entender melhor o significado corrente ou para mostrar como o significado foi transformado pelo

    movimento histrico.

  • Rede e-Tec BrasilUnidade 3 - Devir humano, trabalho e educao 55

    que os antigos acreditavam que a verdadeira vida humana, a vida ideal, a natureza humana, estava na vida contemplativa; na vida de-dicada ao conhecimento e virtude moral. A vida contemplativa aquela em que voc se dedica exclusivamente ao pensamento e s coisas da alma e do esprito, para atingir a perfeio e o encontro com as foras superiores da natureza ou coisas divinas.

    Contudo, a partir do Renascimento (sculos XV e XVI, na Europa) e com a modernidade, o trabalho ganha outro significado (e outro va-lor): passa a ser considerado uma fora de criao, como modo de interveno humana na natureza, para transform-la.

    Segundo Hegel, filsofo alemo no incio do sculo XIX, foi com o trabalho que o ser humano desgrudou um pouco da natureza e pde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos ob-jetos naturais (Konder, 1991, p.24). Quer dizer que, diferentemente dos antigos e medievais, os modernos passam a ver a humanizao no trabalho e no mais apenas sofrimento e castigo.

    Esse significado d outra importncia ao trabalho. Ele j no mais smbolo de excluso, mas o modo como o humano se afirma dian-te da natureza. A verdadeira natureza humana j no est mais em contemplar a natureza e na realizao moral, mas est na capacidade de agir