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1 CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - FAVENI APOSTILA FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA ESPIRITO SANTO

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1

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - FAVENI

APOSTILA

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

INCLUSIVA

ESPIRITO SANTO

2

A INCLUSÃO SOCIAL DAS PESSOAS COM DEFICI-

ÊNCIAS

https://www.buzzero.com/educacao-e-inclusao-social-60/educacao-infantil-62/curso-online-fundamentos-da-educacao-inclu-

siva-com-certificado-39941

Incluir quer dizer fazer parte, inserir, introduzir. E inclusão é o ato ou efeito de

incluir. Assim, a inclusão social das pessoas com deficiências significa torná-las parti-

cipantes da vida social, econômica e política, assegurando o respeito aos seus direitos

no âmbito da Sociedade, do Estado e do Poder Público.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Organização das

Nações Unidas (ONU), em 1948 relaciona os seguintes direitos que valem para todos,

isto é, os chamados direitos humanos ou da cidadania:

Direitos Civis: direito à liberdade e segurança pessoal; à igualdade perante

lei; à livre crença religiosa; à propriedade individual ou em sociedade; e o direito

de opinião (Art. 3° ao 19).

Direitos Políticos: liberdade de associação para fins políticos; direito de parti-

cipar do governo; direito de votar e ser votado (Arts. 20 e 21).

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Direitos Econômicos: direito ao trabalho; à proteção contra o desemprego; à

remuneração que assegure uma vida digna, à organização sindical; e direito à

jornada de trabalho limitada (Arts. 23 e 24).

Direitos Sociais: direito à alimentação; à moradia; à saúde; à previdência e

assistência; à educação; à cultura; e direito à participação nos frutos do pro-

gresso científico (Art.25 ao 28).

http://slideplayer.com.br/slide/1809473/

Esses direitos foram conquistados arduamente nos últimos 200 anos. Contudo,

segundo as condições históricas de cada país, podem ser descumpridos ou bastantes

fragilizados, o que indica que o esforço do Estado e da Sociedade por sua vigência

deva ser permanente. Uma coisa é certa: para fortalecê-los entre nós, a Sociedade e

o Estado brasileiros devem agir com base no princípio da associação interdependente

dos direitos, isto é, o cumprimento efetivo de um depende do cumprimento dos outros.

Por exemplo, o direito à igualdade perante a lei depende do direito de votar e ser

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votado, o qual está por sua vez associado ao direito de opinião aos direitos à educação

e à saúde.

Quando isto não ocorre, os direitos de todos perdem as suas forças e, em con-

seqüência, os direitos específicos das pessoas com deficiência também. Ora, se o

direito universal à saúde não está associado aos demais e além disso, é cumprido de

modo insuficiente pelo Estado, o direito à saúde específico das pessoas com defici-

ência igualmente será fragilizado ou mesmo negado.

Portanto a inclusão social tem por base que a vigência dos direitos específicos

das pessoas com deficiência está diretamente ligada à vigência dos direitos humanos

fundamentais. Em virtude das diferenças que apresentam em relação às demais, as

pessoas com deficiência possuem necessidades especiais a serem satisfeitas. Tal

fato significa que:

Os direitos específicos das pessoas com deficiências decorrem de suas neces-

sidades especiais;

É preciso compreender que as pessoas não deficientes e as pessoas com de-

ficiências não são “iguais”.

O exercício dos direitos gerais bem como nos direitos específicos destas últi-

mas está diretamente ligado à criação de condições que permitam o seu

acesso diferenciado ao bem-estar econômico, social e cultural.

Assim orientada, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, em

1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiências. Ponto de chegada de

uma luta histórica de entidades nacionais e internacionais e, em particular, das pró-

prias pessoas com deficiências e de suas organizações, a Declaração tornou-se, em

todo mundo, o ponto de partida para a defesa da cidadania e do bem-estar destas

pessoas, assegurando os seguintes direitos:

o O direito essencial à sua própria dignidade humana. As pessoas com

deficiência,

Independente da origem, natureza e gravidade de suas incapacidades, têm os

mesmos direitos que os outros cidadãos, o que implica no direito de uma vida

decente, tão normal quanto possível;

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As pessoas com deficiência têm os mesmos direitos civis e políticos dos demais

indivíduos. O parágrafo 7° da Declaração dos Direitos do Deficiente Mental in-

dica a possibilidade de limitar ou de suprimir tais direitos no caso das pessoas

com deficiência mental;

O parágrafo 7 da Declaração dos Direitos das Pessoas Mentalmente Retarda-

das estabelece: “Sempre que pessoas mentalmente retardadas forem incapa-

zes devido à gravidade de sua deficiência de exercer todos os seus direitos de

um modo significativo ou que se torne necessário restringir ou denegar alguns

ou todos estes direitos, o procedimento usado para tal restrição ou denegação

de direitos deve conter salvaguardas legais adequadas contra qualquer forma

de abuso. Este procedimento deve ser baseado em avaliação da capacidade

social da pessoa mentalmente retardada, por parte de especialistas e deve ser

submetido à revisão

http://slideplayer.com.br/slide/384975/

Periódica e ao direito de apelo a autoridades superiores”;

As pessoas com deficiências têm o direito de desenvolver capacidades que as

tornem, tanto quanto possível, autoconfiantes;

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O direito ao tratamento médico, psicológico e reparador, incluindo próteses e

órteses, visando a sua reabilitação, bem como o acesso a serviços que as ha-

bilitam a desenvolver capacidades voltadas para sua integração ou reintegra-

ção social;

As pessoas com deficiência têm o direito à segurança social econômica e a um

nível de bem-estar digno. Elas têm o direito, segundo suas capacidades, ao

emprego ou de participar de ocupação útil e remunerada;

O direito a que suas necessidades especiais sejam incluídas no planejamento

econômico e social;

As pessoas com deficiência têm o direito de viver com sua família e de partici-

par das atividades sociais. Elas não serão submetidas, mesmo em suas resi-

dências, a tratamento diferente (discriminatório) que não seja o necessário para

melhorar o seu bem-estar. Se a sua permanência em instituição especializada

for indispensável, o ambiente e as condições deverão ser as mais próximas da

vida normal;

http://pt.slideshare.net/Lenereis/fundamentos-da-educao-inclusiva

7

O direito à proteção contra toda a exploração e todo o tratamento discriminató-

rio, abusivo e degradante;

As pessoas com deficiência têm o direito ao apoio jurídico qualificado quando

tal apoio mostrar-se indispensável para sua proteção. Se processos judiciais

forem estabelecidos contra elas, o procedimento legal respeitará as suas con-

dições físicas e mentais;

As organizações das pessoas com deficiência devem ser consultadas em todos

os assuntos que dizem respeito aos direitos mencionados;

As pessoas com deficiência, suas famílias e a comunidade devem ser plena-

mente informadas, pelos meios apropriados, dos direitos contidos na Declara-

ção.

Pode-se perceber que a inclusão social das pessoas com deficiência depende

do seu reconhecimento como pessoas, que apresentam necessidades especiais ge-

radoras de direitos específicos, cuja proteção e exercício dependem do cumprimento

dos direitos humanos fundamentais.

AS NORMAS LEGAIS DE GARANTIA DOS DIREITOS

DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA OS DIREITOS NA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Logo no artigo 1° da Constituição são mencionados dois dos fundamentos que

amparam os direitos de todos os brasileiros, incluindo, é claro, as pessoas com defi-

ciência: a cidadania e a dignidade.

Cidadania: é a qualidade de cidadão. E cidadão é o indivíduo no gozo de seus

direitos civis, políticos, econômicos e sociais numa Sociedade, no desempenho

de seus deveres para com esta.

Dignidade: é a honra e a respeitabilidade devida a qualquer pessoa provida

de cidadania.

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http://pt.slideshare.net/ildaval/direitos-ppds-senador-39352072

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São fundamentos que orientam os objetivos de nossa República, tais como,

“construir uma sociedade livre, justa e solidária “; “erradicar a pobreza e a marginali-

zação e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos,

sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dis-

criminação”.

A expressão o bem de todos indica que os direitos e deveres da cidadania

pressupõem que todos são iguais perante a lei, com a garantia de que são invioláveis

o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Artigo 5°).

Todavia, as pessoas com deficiência possuem necessidades especiais que as

distinguem das outras. Desta forma, é importante compreender que, além dos direitos

relativos a todos, as pessoas com deficiência devem ter direitos específicos, que com-

pensem, na medida do possível, as limitações e/ou impossibilidades a que estão su-

jeitas.

Por isto é preciso repetir que os não deficientes e as pessoas com deficiência

não iguais, no sentido de uma igualdade apenas abstrata e formal, isto é, que não

considera as diferenças existentes entre os dois grupos.

E que as pessoas com deficiência apresentam necessidades especiais, que

exigem um tratamento diferenciado para que possam realmente ser consideradas

como cidadãos. Assim, a Constituição estabelece as seguintes normas relativas:

AO TRABALHO

Art. 7° - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que

visem à melhoria de sua condição social:

...XXXI. Proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admis-

são do trabalhador com deficiência.

Art.37 – Administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos

Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obede-

cerá aos Princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e,

também ao seguinte:

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...VII. A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com

deficiência e definirá os critérios de sua admissão.

http://pt.slideshare.net/Lenereis/fundamentos-da-educao-inclusiva

À Atenção do Estado (Poder Público) à saúde e proteção

Art. 23 – é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos

Municípios:

....II cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas com

deficiência.

Art. 24 – Compete a União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concor-

rentemente sobre:

...XIV. proteção e integração social das pessoas com deficiência

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O MOVIMENTO DE INTEGRAÇÃO SOCIAL DAS PES-

SOAS COM DEFICIÊNCIA

http://www.faculdadeippeo.edu.br/cursos_/especializacao-em-educacao-especial-na-perspectiva-inclusiva-uberlandia-mg/

O movimento pela integração da pessoa deficiente, na Europa, pode ser consi-

derado como decorrente da conjunção histórica de três fatores, segundo estudiosos

do assunto: o advento das duas grandes guerras mundiais, o fortalecimento do movi-

mento pelos Direitos Humanos e o avanço científico.

Como consequência das duas grandes guerras, surgiu nos países atingidos

uma grande quantidade de pessoas mutiladas, debilitadas e perturbadas mental-

mente. As sociedades desses países viram-se diante da necessidade de criar formas

de atendimento e reintegração desses indivíduos ao meio social. Além disso, o curto

intervalo entre as duas guerras e o número de baixas ocorridas gerara um déficit de

mão de obra, o que levou à implantação de programas de educação, saúde e treina-

mento para que trabalhadores deficientes pudessem preencher as lacunas da força

de trabalho européia (SANTOS, 1995; CORREIA, 1997).

A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o fortalecimento

dos movimentos de luta em defesa dos direitos civis, influenciados pelas grandes

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transformações sociais ocorridas ao longo da segunda metade do Século XX, estão

na gênese das recentes disposições de igualdade de oportunidades educativas para

crianças com necessidades educacionais especiais. Despontava, então, uma fase de

esperança e luta por melhores tempos, espelhada num renascimento humanista, cada

vez mais crescente e que atingiu seu auge nos anos 60. Nesse período, ocorreu uma

mudança de perspectiva em relação ao tipo de inserção das pessoas deficientes na

força de trabalho, que havia sido originada no pós-guerra. A demanda, que antes tinha

por objetivo preencher lacunas, agora se daria no sentido de integrar os indivíduos

deficientes com base em seus direitos como seres humanos e indivíduos pertencentes

a uma sociedade (SANTOS, 1995; CORREIA, 1997).

Paralelo aos dois fatos já mencionados, o avanço científico dessa época trouxe

informações importantes sobre aqueles grupos considerados minorias sociais. Estu-

dos sociológicos, realizados nos Estados Unidos, citados por Santos (1995), revela-

ram a escassez ou carência total de acesso às provisões sociais, de saúde e educa-

cionais, pelas minorias étnicas.

Pesquisas nas áreas médica, educacional e psicológica defendiam uma abor-

dagem menos paternalista em relação aos indivíduos deficientes e enfatizavam que a

“excepcionalidade”, necessariamente, não deve se constituir num impedimento total

para a aprendizagem dos indivíduos deficientes, nem significar uma incapacidade de-

les em frequentar o ambiente escolar.

As novas tendências no campo educacional, em oposição à visão positivista,

trariam à tona a concepção de educação como instrumento para o desenvolvimento

de um saber e de uma consciência críticas; com abordagens pedagógicas centradas

no aluno, visando a sua formação, como futuro cidadão, como agente social ativo e

histórico.

Os movimentos a favor da integração dos deficientes mentais surgiram nos pa-

íses nórdicos no início da década de 60, quando, em 1950, na Dinamarca, traçava-se

pela primeira vez, um plano para integração de crianças portadoras de deficiência. A

ideia da integração nascia para derrubar a prática da exclusão social a que foram

submetidas as pessoas portadoras de deficiências, durante vários séculos.

Na década de 60, observou-se um boom de instituições especializadas que

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ofereciam aos grupos específicos de indivíduos deficientes, todos os serviços possí-

veis correspondentes àqueles encontrados fora da instituição, disponibilizados para a

população considerada normal. A segregação continuava, só que agora no âmbito

institucional, dentro de escolas especiais, centros de reabilitação, oficinas protegidas

de trabalho, clubes recreativos especiais, etc. (SASSAKI, 1997).

Ao final daquela década, a ideia de integração social foi ampliada e o objetivo

da nova abordagem passou a promover a integração das pessoas portadoras de de-

ficiência nos sistemas sociais gerais, como a educação, o trabalho, a família e o lazer.

O fator propulsor de tal mudança de perspectiva foi a elaboração e a divulgação de

um importante princípio – o princípio da normalização (SASSAKI, 1997).

http://pt.slideshare.net/mhlrute/fundamentos-para-incluso-8163484

Em 1969, na Dinamarca, Nirje – Diretor da Associação Sueca para Crianças

Retardadas - formula o princípio da normalização, que se constituiria na base concei-

tual do processo de integração social dali em diante. Em sua redação inicial, o princí-

pio referia-se apenas a pessoas com deficiência, como se pode constatar: “O princípio

de normalização significa colocar ao alcance dos retardados mentais, uns modos e

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umas condições de vida diários o mais parecidos possível às formas e condições de

vida do resto da sociedade” (STEELNLANDT 1991, in CARVALHO, 1997, p.45).

Este princípio foi generalizado a partir de 1972, por Wolfensberg, para todas as

pessoas com deficiências e contemplou tanto os meios possíveis, quanto os resulta-

dos alcançados. Isto quer dizer que, para Wolfensberg, a normalização era a utilização

de meios tão culturalmente normativos quanto fosse possível para estabelecer e/ou

manter condutas e características pessoais o mais culturalmente normativas quanto

fosse possível (STEELLANDT, 1991).

O pressuposto básico do princípio da normalização era que toda pessoa porta-

dora de deficiência, especialmente, as deficientes mentais, tinham o direito de experi-

enciar um estilo, ou padrão de vida, que fosse comum ou normal à sua própria cultura,

ou seja, a todos os membros de uma sociedade deveriam ser oferecidas oportunida-

des iguais de participar em atividades comuns àquelas partilhadas por seu grupo de

pares (MENDES, 1994).

Definida como um princípio ou como um objetivo a ser alcançado, a normaliza-

ção não era específica da escola; ela passava a englobar os diversos aspectos da

existência em sociedade e de todas as etapas de vida dos indivíduos com deficiência.

Além disso, o princípio da normalização não permaneceu restrito aos fatores relacio-

nados à vida dos indivíduos afetados por uma incapacidade ou uma dificuldade, ele

passava a envolver também todas as outras pessoas que estavam em contato com

aqueles indivíduos, ou seja, sua família e a sociedade que se relacionasse com eles

(DORÉ et. al., 1996).

Uma das opções de integração escolar denominava-se mainstreaming, ou seja,

“inserção na corrente principal” e seu sentido seria análogo à existência de um canal

educativo geral, que, em seu fluxo, vai carregando todo tipo de aluno com ou sem

capacidade ou necessidade específica. Pelo conceito de mainstreaming, o aluno por-

tador de deficiência, ou com dificuldades de aprendizagem, deve ter acesso à educa-

ção, sendo que essa formação deverá ser adaptada às suas necessidades específicas

(MANTOAN,1998).

Foi a partir da década de 80 que a integração social, como movimento, teve

seu maior impulso com o fortalecimento da luta pelos direitos das pessoas portadoras

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de deficiência. No Brasil, essa influência é vista, claramente, na redação dos textos

oficiais que normatizaram o atendimento educacional especial.

Ocorreu, também nessa década, a despeito das críticas iniciais, o desenvolvi-

mento de estratégias de operacionalização do princípio de normalização por meio de

integradores. O processo de “mainstreaming” firmou-se como filosofia de integração

amplamente aceita (MENDES, 1994).

http://pt.slideshare.net/Lenereis/fundamentos-da-educao-inclusiva

A defesa da integração social da pessoa com deficiência, sem dúvida alguma,

foi um avanço social muito importante, pois teve o mérito de inserir esse indivíduo na

sociedade de uma forma mais efetiva, se comparado à situação anterior de segrega-

ção. Entretanto, se o processo de integração social tem consistido no esforço de in-

serir na sociedade pessoas com deficiência que alcançaram um nível compatível com

os padrões sociais vigentes, tal esforço tem se mostrado unilateral em nossos dias;

um esforço somente da pessoa portadora de deficiência e de seus aliados - a família,

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a instituição especializada e algumas pessoas envolvidas na causa da inserção social

- segundo Sassaki (1997).

Da forma como está sendo realizada hoje, a integração escolar/social pouco ou

nada exige da sociedade em termos de modificação de atitudes, de espaços físicos,

de objetos e de práticas sociais. A sociedade “cruza seus braços” e aceita o deficiente

desde que ele se torne capaz de adaptar-se ao seu contexto social e às formas de

desempenhar os papéis sociais necessários.

Essa prática reflete o, ainda vigente, modelo médico de compreensão da defi-

ciência. O modelo médico de compreensão da deficiência significa compreender este

fenômeno tendo, como referência, um conjunto de significados construídos historica-

mente, fundamentados em uma explicação médica da deficiência. Dentro de uma vi-

são organicista de Ser Humano, a explicação médica focaliza a deficiência no indiví-

duo desviante, enfatiza o diagnóstico e prognóstico clínico (a médio e longo prazo) e

tem como objetivo fundamental: classificar, comparar e normatizar o desviante.

O modelo médico de deficiência parte do pressuposto de que as pessoas por-

tadoras de uma deficiência são doentes e debilitadas, pois estão afastados de um

“estado normal” de condição humana, que, nesse caso, seria aquele estado conside-

rado dentro da norma – o ser normal, o ser saudável.

Por conta das diferenças que apresentam os deficientes, dentro desse modelo,

são discriminados como incompetentes para o exercício de atividades sociais (educa-

ção, lazer e trabalho), desconsiderados em seus direitos e deveres, reconhecidos

como indivíduos incompetentes para aprender, pensar e decidir, estando submetidos

a um

permanente estado de dependência em relação a outras pessoas. De forma geral,

nas interações sociais realizadas tendo como referência este modelo de compreensão

do fenômeno, as pessoas acabam se relacionando com o quadro etiológico da condi-

ção deficiente e não com o seu portador.

O modelo médico de compreensão da deficiência está arraigado na realidade

da educação especial brasileira e, em parte, tem sido responsável pela resistência da

sociedade em aceitar a necessidade de mudar suas estruturas e atitudes para inserir

em seu meio os indivíduos com deficiência, de modo a favorecer-lhes o desenvolvi-

mento pessoal, social, educacional e profissional. Partindo do pressuposto de que a

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deficiência é um problema existente exclusivamente na pessoa deficiente, a socie-

dade sempre foi levada a crer que bastaria oferecer a esses indivíduos algum tipo de

serviço especializado e o problema estaria solucionado.

Fundamentado em um modelo médico de deficiência, que “tenta ‘melhorar’ as

pessoas com deficiência para adequá-las aos padrões da sociedade” (WESTMA-

COTT, in SASSAKI, 1997), o processo de integração social tem concentrado esforços

no sentido de inserir na sociedade pessoas com deficiência que já tenham alcançado

um nível de desempenho compatível com os padrões sociais vigentes. O processo de

integração baseado num modelo médico de deficiência, para Sassaki, pouco ou nada

exige da sociedade no que se refere a mudanças de atitudes, de espaços físicos, de

objetos e de práticas sociais.

De forma geral, a defesa do modelo de integração escolar do indivíduo com

deficiência por meio do processo de mainstreaming está muito presente nos projetos

de Educação Especial desenvolvidos, atualmente, no Brasil. No processo de mains-

treaming, o aluno deficiente deve ter acesso à educação, sendo sua formação escolar

adaptada às suas necessidades específicas.

Para que tal objetivo seja alcançado, deve haver uma diversidade de possibili-

dades e de serviços disponíveis a esse aluno, opções que vão da inserção em classes

regulares ao ensino em escolas especiais. O processo de integração, nesse modelo,

é representado por uma estrutura denominada “sistema de cascata” em que é ofere-

cido ao deficiente um ambiente menos restritivo possível, em todas as etapas da inte-

gração, com a garantia desse aluno poder transitar ao longo do “sistema”.

“Mainstreaming“ seria uma concepção de integração parcial, porque o sistema

de cascata prevê serviços segregados que não ensejam o alcance dos objetivos da

normalização. Os alunos que se encontram em serviços segregados, raramente se

deslocam para outros menos segregados (MANTOAN, 1998).

O sistema de cascata e as políticas de integração no modelo mainstreaming,

em muitos casos, acabam sendo usados pela escola para ocultar o seu fracasso em

relação a alguns alunos, isolando-os e somente integrando aqueles que não consti-

tuem um desafio à sua competência (DORÉ et al.,1996).

A seleção dos alunos que se enquadram nas situações de mainstreaming é

feita utilizando-se um processo de avaliação e seleção (supostamente “objetivo”), que

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irá apontar quais serão elegíveis para serem integrados. Entretanto, a objetividade

desse processo é questionável e os critérios utilizados, em muitos casos, são subjeti-

vos, arbitrários e inadequados para revelar a real condição daquele aluno.

Seguindo o curso das transformações das práticas sociais relacionadas à forma

de inserção social das pessoas com necessidades especiais e aos tipos de atendi-

mento oferecidos a eles, observamos o surgimento de uma quinta fase, na segunda

metade da década de 80, incrementando-se nos anos 90: é a fase da Inclusão Esco-

lar.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA

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O fenômeno da Inclusão Escolar surgiu contextualizado nos eventos e trans-

formações sociais que vêm ocorrendo ao longo da história da Educação Especial,

caracterizando uma quinta fase na evolução do atendimento educacional que a soci-

edade, de forma geral, tem oferecido às pessoas com necessidades especiais.

Já havia, na segunda metade dos anos 80, em alguns países da Europa e nos

EUA, um consenso entre os estudiosos e pesquisadores referente à necessidade de

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mudanças na forma como o processo de integração/mainstreaming vinha ocorrendo.

Se havia consenso quanto a essas mudanças, as opiniões dividiam-se em relação às

soluções encontradas para implementá-las, daí surgindo basicamente duas orienta-

ções.

Uma delas propunha a melhoria e o aprofundamento do conceito de integra-

ção/mainstreaming por meio de experiências mais controladas, concomitante ao de-

senvolvimento de pesquisas. O principal promotor do conceito de integração, Wol-

fensberger sugeria a substituição do termo normalização pela expressão “valorização

dos papéis sociais”, esperando, com esta mudança, enfatizar o objetivo da normaliza-

ção, ou seja, o apoio ao exercício dos papéis sociais valorizados pelas pessoas sus-

cetíveis de desvalorização social (DORÉ et al.,1997).

A outra orientação de mudanças trazia para o foco da discussão um novo con-

ceito – a Inclusão Escolar. A Inclusão Escolar despontava como outra opção de inser-

ção escolar e vinha questionar as políticas e a organização da educação especial,

assim como o conceito de integração (mainstreaming). De todas as críticas que os

defensores da inclusão fazem ao processo de integração/mainstreaming, talvez, a

mais radical seja aquela que afirma que a escola acaba ocultando seu fracasso em

relação aos alunos com dificuldades, isolando-os em serviços educacionais especiais

segregados (DORÉ et al.,1996).

Em relação ao surgimento do movimento inclusivista na Educação, apesar dos

estudiosos da área concordar que países desenvolvidos como os EUA, o Canadá, a

Espanha e a Itália foram os pioneiros na implantação de classes e de escolas inclusi-

vas, não foi possível definir, com exatidão, a partir da bibliografia pertinente, o marco

exato do início do movimento de Inclusão Escolar. Em sua retrospectiva histórica, Se-

meghini (1998) comenta que, desde a década de 50, a escola inclusiva está atuante

em vários países da Europa com o desenvolvimento de projetos e programas de in-

clusão, apontando a década de 70 como sendo o marco do surgimento do processo

de Inclusão Escolar nos EUA.

Mrech (1997; 1998; 1999) acredita que tanto o movimento de Integração Esco-

lar e o subsequente movimento da Educação Inclusiva surgiram nos EUA em conse-

quência da promulgação da Lei Pública 94.142, de 1975. Outros autores relatam que

o conceito de inclusão surgiu, nos EUA, relacionado à implantação em 1986 de uma

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política educacional denominada “Regular Education Iniciative (REI)”, que defendia a

adaptação da classe regular de modo a tornar possível inserir ali o maior número pos-

sível de alunos com necessidades especiais; incentivando os serviços de educação

especial e outros serviços especializados a associarem-se ao ensino regular (COR-

REIA,1997; DORÉ et al.,1996).

http://pedagogiacomrespeito.blogspot.com.br/

Sem a preocupação com a precisão histórica de seu surgimento, o fato é que

depois de um período de intensas discussões e críticas a respeito do processo de

integração/mainstreaming e suas possíveis limitações, ao final dos anos 80 e início da

década de 90, começaram a tomar vulto as discussões em torno do novo paradigma

de atendimento educacional – a Inclusão Escolar.

Na realidade, tanto o processo de integração quanto o de inclusão escolar são

formas de inserção escolar ou sistemas organizacionais de ensino cuja origem se fun-

damenta no mesmo princípio, o princípio da normalização. Apesar da origem comum

no mesmo princípio e de terem basicamente o mesmo significado, os conceitos de

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Integração e de Inclusão escolar estão fundamentados em posicionamentos divergen-

tes quanto à consecução de suas metas. A Integração Escolar remete à ideia de uma

inserção parcial e condicionada às possibilidades de cada pessoa, enquanto que o

processo de Inclusão refere-se a uma forma de inserção radical e sistemática, total e

incondicional, de toda e qualquer criança no sistema escolar comum (WERNECK,

1997; MANTOAN, 1997; 1998).

Normalizar uma pessoa, dentro do paradigma inclusivista, segundo Werneck

(1997), não significa torná-la normal; significa garantir-lhe o direito de ser diferente e

de ter suas necessidades reconhecidas e atendidas pela sociedade. Em relação à

área educacional, continua Werneck, normalizar é oferecer ao aluno com necessida-

des especiais os recursos profissionais e institucionais adequados e suficientes para

que ele tenha condições de desenvolver-se como estudante, pessoa e cidadão.

Dessa forma, o objetivo fundamental da Inclusão Escolar é não deixar criança

alguma fora do sistema escolar e garantir que todas possam frequentar a sala de aula

do ensino regular da escola comum, e, que esta escola, por sua vez, adapte-se às

particularidades de todos os alunos para concretizar o objetivo da diversidade, pro-

posto pelo modelo inclusivista. O paradigma da Inclusão não admite diversificação de

atendimentos pela segregação e, na busca de um ensino especializado no aluno, pro-

cura soluções que atendam às suas diversidades, sem segregá-los em atendimentos

especializados ou em modalidades especiais de ensino (WERNECK, 1997; MAN-

TOAN, 1996; 1997).

Portanto, a inserção proposta no modelo da inclusão é muito mais completa,

radical e sistemática, não admitindo que ninguém fique fora da escola; por isso, os

pressupostos da inclusão provocam o questionamento das políticas educacionais e

da organização da educação especial e regular, assim como o conceito de mainstre-

aming e de integração.

Nesse sentido, as escolas inclusivas propõem um modo de constituir um sis-

tema educacional que considere as necessidades de todos os alunos e que seja es-

truturado em virtude dessas necessidades. A proposta inclusivista, assim, provoca

uma ampliação na perspectiva educacional, dentro do contexto escolar, já que sua

prática não prevê apenas o atendimento aos alunos que apresentam dificuldades na

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escola. Além disto, o trabalho educacional desenvolvido dentro do paradigma da in-

clusão apoia a todos os que se encontram envolvidos no processo de escolarização,

professores, alunos, pessoal administrativo, para que obtenham sucesso na corrente

educativa geral (MANTOAN, 1997).

A ênfase da escola inclusivista não se restringe ao atendimento das crianças

com necessidades especiais. A meta do novo paradigma é incluir todos aqueles que

se encontra em situação de exclusão, quer sejam eles deficientes físicos, mentais,

sensoriais, ou crianças fracassadas na escola; ou alunos marginalizados por conta de

suas peculiaridades raciais ou culturais; ou qualquer outra criança que esteja impedida

de usufruir seu direito de acesso à educação democrática e de qualidade que lhe ga-

ranta um desenvolvimento social, emocional e intelectual adequado.

A escola inclusivista respeita e valoriza as diversidades apresentadas por seus

alunos. A proposta da Inclusão exige uma transformação radical da escola, pois ca-

berá a ela adaptar-se às necessidades dos alunos, ao contrário do que acontece atu-

almente, quando são os alunos que devem se adaptar aos modelos e expectativas da

escola. Se a meta do processo de Inclusão é que todo e qualquer educando seja

inserido na escola comum, então, a escola inclusivista deve preparar-se para oferecer

um ambiente propício ao desenvolvimento das potencialidades de todos os tipos de

alunos, qualquer que seja sua deficiência, diferença, déficit ou necessidades individu-

ais (WERNECK, 1997; SEMEGHINI, 1998).

O princípio da Inclusão, sintetiza Correia (1997), apela para uma escola que

tenha sua atenção voltada para a criança-todo, e não só a criança-aluno, respeitando

os três níveis de desenvolvimentos essenciais – o acadêmico, o sócio-emocional e o

pessoal, de modo a proporcionar a essa criança uma educação apropriada, orientada

para a maximização de seu potencial.

Em termos teóricos e ideológicos, a ideia da inclusão escolar é, sem dúvida

alguma, revolucionária. Entretanto, há que se refletir sobre importantes questões de

natureza pragmática e operacional levantadas pelos pesquisadores da área. A insta-

lação de uma prática educacional inclusivista não será garantida por meio de promul-

gações de leis que, simplesmente, extingam os serviços de educação especial e obri-

guem as escolas regulares a aceitarem a matrícula dos alunos “especiais”, ou seja, a

23

inserção física do aluno com deficiência mental em sala de aula regular não garante

a sua “inclusão escolar”.

http://tecnologia-acessivel-para-todos.blogspot.com.br/

Por outro lado, conforme observa Bueno (1999), a implementação de uma es-

cola regular inclusivista demanda o estabelecimento de políticas de aprimoramento

dos sistemas de ensino, sem as quais não será possível garantir um processo de

escolarização de qualidade.

Uma política de Inclusão Escolar implica no (re) planejamento e na reestrutura-

ção da dinâmica da escola para receber esses alunos (GLAT, 1998).

Em relação a estas mudanças da escola, alguns autores alertam que devam

ser feitas com cautela, ponderação e conscientização, alertando que a realização de

uma reforma de fundo não ocorre de imediato; ao contrário, trata-se de um processo

em curso, que deve ser devidamente estudado e planejado, considerando todos os

fatores envolvidos na questão educacional (CORREIA, 1997; CARVALHO, 1998).

Apesar do conceito de inclusão conciliar-se com uma educação para todos e

com o ensino especializado no aluno, a opção por esse tipo de inserção escolar não

poderia ser realizada sem o enfrentamento de desafios importantes, uma vez que o

maior deles recai sobre o fator humano. Na adoção do paradigma da inclusão, as

mudanças no relacionamento pessoal e social e na maneira de efetivar os processos

de ensino e aprendizagem têm prioridade sobre o desenvolvimento de recursos físicos

e os meios materiais para a realização de um processo escolar de qualidade (MAN-

TOAN, 1998).

24

Essas novas atitudes e formas de interação na escola dependem de fatores,

tais como: o aprimoramento da capacitação profissional dos professores em serviço;

a instituição de novos posicionamentos e procedimentos de ensino, baseados em con-

cepções e práticas pedagógicas mais modernas; mudanças nas atitudes dos educa-

dores e no modo deles avaliarem o progresso acadêmico de seus alunos; assistência

às famílias dos alunos e a todos os outros que estejam envolvidos no processo de

inclusão.

Todas estas mudanças, na opinião de Mantoan (1997; 1998), não devem ser

impostas, ao contrário, devem resultar de uma conscientização cada vez mais evolu-

ída de educação e de desenvolvimento humano.

25

BIBLIOGRAFIA

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de 11 de agosto de 1971. Diário Oficial da união, 11 de agosto de 1971.

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26

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SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades terminais. As transformações na Política da

Pedagogia e na Pedagogia da Política. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

ARTIGO PARA REFLEXAO

http://www.neipies.com/a-cultura-da-nao-reflexao/

27

FUNDAMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Lino de Macedo

O objetivo deste texto é refletir sobre o desafio, agora proposto à Escola Fundamental,

de incluir alunos com necessidades especiais (deficientes mentais, crianças com limi-

tações sensoriais ou neurológicas etc.). Como proporcionar, no espaço e no tempo

escolares, um conhecimento para todas as crianças, quaisquer que sejam suas con-

dições físicas, sociais, de saúde ou suas possibilidades relacionais? Nossa hipótese

é de que, para isso, seja necessário repensarmos o modo de funcionamento instituci-

onal, pautado na lógica da exclusão, em favor de outro, pautado na lógica da inclusão.

Quais são essas duas lógicas? Como nosso raciocínio se organiza preferencialmente

em termos de uma ou de outra? Quais são os desafios, as mudanças de hábitos, as

reformulações pedagógicas necessárias para se substituir um modo de raciocínio por

outro? Como aprender com os excluídos? Questões como essas serão colocadas a

seguir.

A EDUCAÇÃO INCLUSIVA, HOJE

Como cuidar, integrar, reconhecer, relacionar-se com crianças (e pessoas de

um modo geral) com necessidades especiais e que, por isso, diferenciam-se ou utili-

zam recursos diferentes dos normalmente conhecidos ou utilizados, sempre foi um

problema social e institucional. Essa tarefa estava, antes, restrita à família ou a alguma

pessoa que, por alguma razão, assumisse esse papel, bem como às instituições pú-

blicas (hospitais, asilos, escolas especiais etc.), especialmente dedicadas ao pro-

blema. Agora, espera-se que as escolas fundamentais incluam crianças que apresen-

tem limitações.

Refletir sobre os fundamentos da educação inclusiva significa analisar o que

está na base, apóia, e – mesmo que não tenhamos consciência, que não tenhamos

obrigação de trabalhar em sala de aula –, está presente e de alguma forma regula

28

nosso trabalho. É fundamental refletir sobre isso, procurar saber e tomar uma posição

sobre o que pode estar definindo as características de nosso trabalho.

Como base de nossa reflexão queria colocar a premissa de que há, pelo me-

nos, dois modos de organizarmos nossa vida e nosso trabalho na escola: pela classe

ou pelo gênero. Um modo não exclui o outro: coordenam-se, ora como meio, ora como

fim. O que define a exclusão é como os articulamos e como negamos um ou outro.

Na Educação Inclusiva, propõe-se uma forma de articulação entre eles diferente da-

quela à qual estamos acostumados.

Há, agora, dispositivos legais favoráveis à inclusão, ou seja, aos relacionamen-

tos pela lógica do gênero e não mais preferencialmente pela lógica da classe; relaci-

onamentos em um contexto de integração, de presença de uma coisa em relação à

outra. Gostaria de analisar os aspectos positivos da inclusão; mas, também, seu lado

perverso e negativo que já pode ser observado. Talvez seja útil começar analisando

os aspectos positivos da classe, da forma de organizar a vida por classes. Gostaria

de lembrar, também, os aspectos negativos que todos nós chegamos a sofrer na pró-

pria pele ou, então, na pele de nossos filhos, de nossos pais, de nossos amigos, ou

de quem quer que tenha alguém próximo e excluído na sociedade.

O que é organizar o conhecimento, a vida, pela lógica da classe? Por que isso

é positivo e, também, perverso ou negativo? Lembraria, primeiro, a ironia que pode

estar contida na expressão Educação Inclusiva. Se considerarmos como excluídos,

além dos portadores de alguma deficiência, também os pobres, analfabetos, famintos,

os que não têm onde morar, os doentes sem atendimento, então, a maioria de nossa

população estaria na categoria dos excluídos.

A minoria “normal” seria de vinte ou trinta por cento. Então, se os excluídos são

a maioria, a Educação Inclusiva é uma proposta tardia de colocar essa maioria junto

aos que têm acesso às boas condições de aprendizagem e de ensino na escola e que

podem receber uma educação em sua versão ordinária, comum, ou seja, não-especial

ou excepcional.

LÓGICA DA EXCLUSÃO

29

A lógica da exclusão apoia-se na lógica das classes. Classificar é uma forma

de conhecimento, que nos possibilita definir a extensão dos termos que, por possuí-

rem um critério comum, são equivalentes entre si, quanto a esse critério. Ou seja,

classificar é uma forma de conhecimento pela qual reunimos, abstraindo as semelhan-

ças, todos os termos que satisfazem a um critério comum, tornando-os, por isso, equi-

valentes entre si com relação a esse critério.

Todos nós classificamos, necessitamos classificar para conhecer as coisas.

Classificar é, portanto, uma forma de organização ou de raciocínio que coloca os

iguais, os que respondem ao mesmo critério, em um mesmo lugar, em uma mesma

caixa. Iguais, significa, aqui, que os elementos – por terem sido reunidos e por se

enquadrarem no mesmo critério, não guardam diferenças e por isso são equivalentes

entre si, isto é, substituem-se uns aos outros.

“Caixa” é uma metáfora da pertinência, pois os objetos, distantes ou inexisten-

tes, podem estar dentro de uma caixa (a criança “normal”, que ainda não nasceu, já

pertence à caixa dos normais). Fora da “caixa” ficam os que não se ajustam ao critério.

Classificar, portanto, é reunir pessoas, objetos, que tenham uma propriedade comum

e, por terem uma propriedade comum, são substituíveis uns pelos outros.

É o caso dos alunos em uma sala de aula. Do ponto de vista da definição, em

termos de série ou ciclo escolar, todos são substituíveis entre si, pois obedecem ao

mesmo critério. Esse é o poder da lógica da classe: abstrair diferenças.

Hoje, critica-se o lado negativo de se pensar ou organizar o conhecimento pela

classe. É importante, porém, aprendermos a analisar os dois lados de cada coisa. O

“bem” e o “mal” que lhe atribuímos. Como desfrutar o bem e conviver com os impasses

do mal, considerando que nem sempre eles podem ser dissociados?

A ideia de classe como possibilidade de reunir pessoas que, sob um certo cri-

tério, sob uma certa condição, se substituem, ou seja, se equivalem, é uma ideia muito

poderosa na prática. Poderosa, porém, na condição de que, para reunir, seja neces-

sário excluir, deixar fora todos os que não caibam no critério. Esses formarão, agora,

o grupo dos sem-critério, sem-categoria, o grupo dos excluídos.

No que diz respeito aos excepcionais, aos portadores de deficiência auditiva,

física, visual, foi esse o raciocínio reinante na nossa educação até há bem pouco

tempo. Eles estavam, de certa forma, excluídos da escolaridade normal porque não

30

entravam na categoria privilegiada e formavam uma outra classe de pessoas, uma

outra classe de alunos.

Em alguns casos, uma classe que dispunha de alguns recursos, de bom aten-

dimento; mas, infelizmente, em muitos casos, um depósito de pessoas que, a partir

de um certo momento, não se conseguia saber o que era pior nelas, se era a sua

cegueira ou tudo aquilo que, podendo ser normal, tinha sido destruído, prejudicado –

em nome de uma dificuldade nossa em ver o cego além da sua cegueira – ver aquilo

que um cego compartilha com os videntes e que, muitas vezes, são todas as outras

funções.

Então, na verdade, muitas vezes, a nossa cegueira – se eu posso usar essa

metáfora – é maior do que a cegueira do cego, nossa surdez maior do que a do surdo,

nossa limitação maior do que a do mutilado ou do excepcional.

O problema da classe, em outras palavras, é reunir os que entram por um cri-

tério comum e excluir aqueles que estão fora do critério. Se, do ponto de vista cogni-

tivo, do ponto de vista teórico, do ponto de vista de conhecimento, isso é muito sim-

pático, é muito potente; do ponto de vista social, do ponto de vista político, do ponto

de vista educacional, cria, na prática, situações indesejáveis e muitas vezes insupor-

táveis.

Dizer que a exclusão se apóia na lógica da classe não significa que classificar

seja algo errado. Classificar é necessário e, por isso, bom. Todos necessitamos clas-

sificar: a classificação é uma fonte de conhecimento. Pela classificação, pode-se se-

parar, por exemplo, as frutas maduras das que ainda estão verdes, pode-se formar

agrupamentos segundo um certo critério. Sem a classificação, é difícil aprender ou

conhecer.

O problema, então, não reside em agrupar as coisas por classe, o problema

reside no uso político, nas visões educacionais decorrentes de um raciocínio de

classe, que cria preconceitos, separa, aliena.

Como, durante séculos, a organização familiar e escolar foi determinada pela

classe, o desafio de uma educação inclusiva consiste em romper com o preconceito,

ao conviver com pessoas que, em nossa fantasia, não são como nós, não têm nossas

propriedades ou características.

31

Essa atitude permanece até que um acidente, uma morte, uma doença em fa-

mília nos lembre que essa é uma circunstância de todos nós, em algum momento de

nossa vida. Alguns têm essa circunstância permanentemente; para outros, ela se

torna permanente e, para outros ainda, ela é momentânea, ou seja, vem e vai.

Se fui claro até agora, o problema da classe consiste em estruturar as coisas

numa relação de dependência, ou seja, depende-se do critério para estar dentro ou

fora. É o critério, como forma, quem autoriza a exclusão ou a inclusão na classe, ou

seja, o critério é o referente; portanto depende-se de atender, ou não, ao critério para

pertencer, ou não, a uma classe.

Além disso, quem está fora do critério, ou seja, excluído em relação ao critério,

não é nada. Em outras palavras, na lógica da exclusão, os que estão fora do critério

compõem algo indefinido, por isso são frequentemente designados pelo termo “sem”:

sem-terra, sem-teto, sem-projeto.

Na lógica da classe, a exclusão dos termos que não possuem o critério que

define a classe é obtida pelo raciocínio do “sim” e do “não”. O “sim” afirma a pertinên-

cia, isto é, autoriza a inclusão. O “não” nega a pertinência, autoriza a exclusão.

Crianças (ou pessoas em geral) que não se encaixem em certos critérios estão

fora e, portanto, entregues à própria sorte. Ou seja, a exclusão é o destino dos que

não pertencem, por não satisfazerem os critérios, a uma certa classe.

LÓGICA DA INCLUSÃO

Define-se a inclusão pela lógica da relação, por intermédio da qual um termo é

definido em função de outro. A lógica da exclusão, como vimos, é definida pela exten-

são dos termos que possuem algo em comum, ou seja, atendem a um critério ou

referente (exterior). A lógica da inclusão é definida pela compreensão, ou seja, por

algo interno a um conjunto e que lhe dá um sentido.

Há um discurso simpático, politizado e bem-intencionado, favorável à relação.

Em tese, somos todos favoráveis ao raciocínio da relação; mas, gostaria de analisar

os riscos de uma relação perversa que, nesse sentido, pode repetir o que já conhece-

mos sob o nome de classe ou exclusão. O que é relação?

32

Relação é uma forma de interação, de organizar o conhecimento, ou de pensar

o que quer que seja, na perspectiva de outro. Do ponto de vista da classe, por exem-

plo, se uma mulher for casada com um alcoólatra, se o referente for beber, e se ela

não beber, então, ao contrário de seu marido, ela é considerada não-alcoólatra, ou

seja, está excluída da classe das pessoas que bebem.

Em outras palavras, seu marido pertence à classe das pessoas alcoólatras e

ela não; ele é dependente do álcool, ela não. Do ponto de vista da relação, dá-se o

inverso. Se uma pessoa for casada com um alcoólatra, então, todas as pessoas que

pertencem à sua família, também estão compreendidas por essa relação, ou seja, são

mulher ou filho de um “alcoólatra”.

Em outras palavras, pode ser que uma pessoa que pertença à família de um

alcoólatra não beba uma gota de álcool, mas o fato de pertencer à mesma família, em

termos relacionais, implica que ela, também, sofra as consequências do alcoolismo,

pois é também parte de um mesmo todo.

Sei que a análise do tema inclusão/exclusão pode causar um certo embaraço,

pois, em certos conteúdos, a exclusão é ruim, mas, em outros, proporciona a ilusão

de liberdade. Pela lógica da classe, se um marido for impotente e sua mulher, não, a

dificuldade dele não a atingirá, pois ela é potente.

Do ponto de vista da relação, a impotência será algo comum ao marido e à

mulher, ainda que os dois possam ocupar, quanto ao problema, diferentes posições.

Sei que isso pode parecer desagradável e difícil de suportar, mas esse é um dos prin-

cípios da lógica da inclusão.

O objetivo desse texto é analisar o fundamento dessa lógica. Ou seja, não dá

para ser contra a exclusão, em certos domínios, e, em outros, ser a favor, por se sentir

menos mal, menos afetado. Por exemplo, pode ser que quem use droga seja o filho

ou o irmão.

Do ponto de vista da classe, é verdade; do ponto de vista da relação, é falso.

Se o filho ou irmão é um drogado os outros integrantes da família também estão en-

volvidos no problema. Assumir isso é, muitas vezes, a condição para um trabalho de

recuperação do doente.

O que está sendo analisado aqui, em termos da relação entre o alcoólatra e

sua mulher, pode ser pensado, igualmente, quanto à relação professor/aluno. Se uma

33

criança tem dificuldades de aprendizagem ou de convivência em sala de aula, se suas

limitações causam “problemas” quanto aos hábitos pedagógicos do professor (estra-

tégias de ensino, organização do espaço e tempo didáticos, expectativas, etc.), pela

lógica da classe, a dificuldade é do aluno e não necessariamente do professor.

Na lógica da relação o “problema” é de todos, o que desafia o professor a refletir

sobre a insuficiência de seus recursos pedagógicos, nesse novo contexto, a rever

suas formas de se relacionar com os alunos, a estudar temas que pensava nunca ter

que estudar. Tudo isso altera muito a situação tradicional da escola, por mais que ela

seja, também, julgada insatisfatória.

Classificar, como mencionado, é reunir coisas que tenham um critério comum

e, portanto, sejam substituíveis entre si. Relacionar é reunir coisas que façam parte

uma da outra, e que, nesse sentido, não valham por si mesmas, pois é a relação com

o outro, e vice-versa, que as define.

Consideremos, por exemplo, duas canetas, uma medindo 10 cm e outra, 15

cm. O fato de que, pela classe, ambas sejam canetas não anula o fato de que, pela

relação, uma seja maior (ou menor) do que a outra. Portanto, na relação, quem nos

define são também os outros com quem nos relacionamos, pois somos definidos por

esse jogo de posições que nos situa uns e em relação a outros, de diversos modos.

Para analisar o problema da inclusão, penso ser útil usar exemplos, considera-

dos ora na perspectiva da classe, ora na perspectiva da relação, e, algumas vezes,

usar exemplos “fortes” para tomarmos consciência do preço do estarmos juntos, isto

é, para refletirmos sobre uma certa idealização de que incluir sempre seja bom e tran-

quilo.

Numa reunião de pais, podemos estar juntos com um alcoólatra, ladrão ou pros-

tituta. Na relação “o meu e o seu filho são alunos dessa escola”, todos estamos com-

preendidos no mesmo contínuo. Suportamos isso? Suportamos, por exemplo, sen-

tarmo-nos ao lado de uma prostituta e vê-la, nesse momento, apenas como a mãe de

uma criança que, eventualmente, está tendo dificuldades? Porque os incluídos não

são os deficientes mentais, os incluídos somos nós, e a inclusão não vale só para

essas pessoas; vale para todos nós porque, caso contrário, estaremos novamente

raciocinando pela classe, não pela relação.

34

A RELAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES

Relacionar é definir algo em relação ao outro, pela sua posição ou lugar, por

aquilo que está entre os dois, não nele ou no outro. Para insistir no exemplo, pela

lógica da classe, o alcoolismo está no marido, não na esposa. Pela lógica da relação,

o alcoolismo é um problema deles e é por isso que viver com ele, alcoólatra, significa

conviver com aquilo que nos relaciona.

Caso contrário, raciocinamos novamente pela classe, como se a educação in-

clusiva significasse colocar os cegos e mutilados dentro da classe e nós continuarmos

normais. Não é isto, isto é mentira, ilusão, perversidade, arrogância. Incluir significa

abrir-se para o que o outro é e para o que eu sou ou não sou em relação ao outro.

Por isso, a educação inclusiva supõe, sobretudo, uma mudança em nós, em

nosso trabalho, das estratégias que utilizamos, dos objetos e do modo como organi-

zamos o espaço e o tempo na sala de aula.

Temos que rever as estratégias para ensinar matemática e língua portuguesa.

Temos que rever a grade curricular, os critérios de promoção ou de avaliação.

Temos que rever nossa posição ou lugar frente a esses outros, outrora excluí-

dos, que agora fazem parte do todo ao qual pertencemos.

Incluir significa aprender, reorganizar grupos, classes; significa promover a in-

teração entre crianças de um outro modo.

Na lógica da exclusão ou da classe, o referente é externo (isto é, independente

dos objetos que são por ele classificados), único (mesmo podendo integrar várias qua-

lidades ao mesmo tempo) e sucessivo (podemos classificar um objeto de infinitas for-

mas, mas em “tempos” ou “espaços” diferentes).

Na lógica da inclusão ou da relação, o referente (que compreende ou dá sentido

a ela) é interno (é o que faz a mediação entre um termo e um outro e, nesse sentido,

está entre eles) e, por isso, é múltiplo e simultâneo (podemos nos relacionar no

mesmo espaço e tempo de muitas e muitas formas).

DA INTERDEPENDÊNCIA

35

Se, na classe, a estrutura é de dependência ou de independência, numa rela-

ção que se queira verdadeira, a propriedade é de interdependência[3]. Já discuti a

dependência e a independência, no raciocínio sobre a classe. Penso que, agora, seja

interessante analisar a interdependência, que caracteriza o raciocínio da relação.

Uma relação estrutura-se pela propriedade da interdependência, cujas carac-

terísticas são: ser indissociável, complementar e irredutível.

Ser indissociável significa que, na relação, não existe a não-dualidade, não

existe o separado ou separável. É por isso que, conforme já comentei, enquanto, na

classe, uma pessoa pode ser alcoólatra e a outra, normal, na relação, predomina o

princípio da indissociabilidade, ou seja, o que vale para um vale para outra, mesmo

que ocupem posições diferentes, nesse mesmo contínuo relacional.

Então, a indissociabilidade é o princípio pelo qual compartilhamos um mesmo

todo, ainda que eventualmente em posições diferentes. Ou seja, pertencemos todos

a um mesmo contínuo, mesmo quando negamos esse contínuo, mesmo querendo sair

fora dele, mesmo tendo medo dele.

Na classe, isso não ocorre porque, o que decide a presença ou não é o critério

que junta ou separa os termos em função de sua equivalência, ou possibilidade de

substituição. Na relação, nos limites do sistema que está sendo considerado (família,

escola, etc.) estamos sempre dentro, compondo as partes que definem o sistema

como um todo.

A complementaridade é o princípio pelo qual, num todo, a parte que falta para

a outra parte virar todo é complementar. Por exemplo, do ponto de vista pessoal, o

homem, enquanto gênero, não depende da mulher. O homem pode viver a sua vida

inteira independente da mulher, do ponto de vista pessoal.

Do ponto de vista biológico, o homem é complementar à mulher, enquanto es-

pécie. Porque há uma parte do homem que ele só encontra na mulher.

Do ponto de vista da espécie, portanto, do ponto de vista biológico, há uma

parte da mulher que só os homens têm.

Por isso, do ponto de vista biológico, a relação homem-mulher é uma relação

complementar.

36

Recorrendo a outro exemplo biológico: nosso sistema respiratório é composto

por uma parte, o ar, que nosso aparelho respiratório não produz. O ar complementa o

que nos falta para respirar. Complementaridade significa que há uma parte que nos

completa e que está fora de nós.

É isso que quer dizer interação e assimilação, na teoria de Piaget. O que quer

dizer assimilação? Por que somos fadados à interação? Interação quer dizer relação.

Porque o nosso sistema respiratório precisa do ar e nós não fabricamos o ar. Por isso,

assimilar significa poder incorporar do outro aquela parte sem a qual eu não sou, eu

não me completo.

Tomemos, agora, um outro exemplo, no âmbito social. Um texto, enquanto

texto, não depende de sua leitura. Se tiver as propriedades, a estrutura, a forma etc.,

de um texto, é um texto. Mas, do ponto de vista funcional, um texto que não continue

sendo lido deixa de ser um texto.

Porque um texto que tenha sido construído como texto e que ninguém leia não

é um texto. Por isso, leitura e escrita são atos sociais complementares: a leitura é

aquilo que complementa a escrita enquanto ato social de comunicação e vice-versa,

ou seja, o princípio da complementaridade baseia-se na ideia de que uma parte do

todo, que não esteja em um lado, há de estar no outro.

Para se afirmar, por exemplo, que uma caneta B é maior que uma caneta C, é

necessário considerá-la como referência. Só que, ao mesmo tempo, a caneta B, pode

ser maior que uma caneta A, pois, nessa outra referência, ela tem mais comprimento.

Qual é a relação disso com complementaridade? Complementar é o que falta para

algo se completar. Para se dizer que uma coisa é maior ou menor que outra, a outra

é que lhe falta para se definir sua condição de maior ou menor.

O interessante, do ponto de vista teórico, e talvez injusto do ponto de vista prá-

tico, é que, às vezes, usamos as pessoas portadoras de deficiência, como referência

para afirmarmos que somos normais, que não temos o que elas têm. Ou seja, usamos

o critério da classe, pois deficiência, por definição, indica a pessoa, segundo o critério

“eficiência”. Se usássemos o critério da relação, isso nos desafiaria para outras formas

de compreensão.

37

A proposta de inclusão, pela qual tenho a maior simpatia, apesar de todos os

desafios que nos coloca, é considerar a relação entre as pessoas de forma interde-

pendente, ou seja, indissociável, irredutível e complementar.

Como, de um ponto de vista relacional, nos comportarmos de modo in-

dissociável com uma criança deficiente, por exemplo?

Como não a reduzir aos nossos medos, dificuldades ou preconceitos?

Como não a reduzir ao que gostaríamos que fosse, aos nossos anseios

ou expectativas?

Como reconhecê-la por aquilo que é ou pode ser, nos limites que a de-

finem, como, aliás, definem qualquer um de nós?

Como pensá-la como parte de nós, que nos desafia naquilo que sempre

recusamos ou negamos em nós e, graças a isso, aprender com ela e,

quem sabe, nos aperfeiçoarmos, graças a ela?

Outro aspecto da relação é o da irredutibilidade. Numa relação, nada é redutível

porque tudo depende da relação, que se estabelece entre uma coisa e outra. Por

exemplo, simultaneamente, se em uma relação algo é menor, em outra pode ser maior

e em outra ainda pode ser igual. Por isso, na relação, o princípio é o da irredutibilidade,

pois um objeto não se reduz ao nosso referente, ele admite múltiplos referentes, ou

seja, pode ser compreendido de muitas formas.

Na lógica da classe, ao contrário, somos redutíveis, redutíveis ao critério que

nos define. Na lógica da relação, somos irredutíveis no sentido de que não somos

reduzidos a uma coisa ou outra porque quem nos define é a relação.

DA CO-DEPENDÊNCIA

Eu queria, agora, voltar ao caso do alcoólatra ou de pais que tenham filhos

“deficientes” ou de professores que trabalhem com crianças com dificuldades para

fazer ou aprender algo. Trata-se da questão de analisar a interdependência em rela-

ção à co-depedência e refletirmos sobre suas semelhanças e diferenças. O objetivo,

38

contudo, é propor uma revisão, dentro de nós, da co-dependência, para que ela possa,

pouco a pouco dar lugar ou ser transformada em interdependência.

Co-dependência é um termo criado na sociologia (Giddens, 1992/1993) para

analisar as relações, por exemplo, entre uma esposa e seu marido alcoólatra, uma

mãe e seu filho deficiente, uma mulher e seu marido dependente. Co-dependência é

um princípio que, na aparência, é de interdependência, de relação, complementari-

dade, indissociabilidade, mas, na prática, é uma complementaridade, muitas vezes

doentia.

Pensemos na figura clássica de uma mulher e seu marido alcoólatra ou de uma

mãe e seu filho excepcional. A co-dependência implica a ideia de que o marido alcoó-

latra ou o filho deficiente dependam dos cuidados da esposa ou mãe. Isso é verdade.

Pela lógica da classe, como vimos, essa mulher pode-se pensar saudável (não-alcoó-

latra) e “normal” (não-deficiente). Além disso, ela pode estar trabalhando, ganhando

dinheiro, cuidando da casa, levando seu marido ao hospital, etc., ao contrário deles

(do alcoólatra ou do deficiente) que, em nosso exemplo, não têm autonomia para isso.

A co-dependência refere-se a um tipo de relação na qual o que cuida torna-se

dependente do que é cuidado, fazendo com que esse não possa sair dessa posição

(por exemplo, deixar de ser alcoólatra ou, mesmo sendo deficiente, ganhar autono-

mia). Ou seja, a doença do marido ou a limitação física ou neurológica do filho trans-

formam-se na “doença” ou “limitação” de quem cuida deles.

Vamos imaginar um alcoólatra que, por alguma razão, deixe de beber, volte a

trabalhar, reivindicando uma nova ou a antiga posição na casa, assumindo responsa-

bilidades etc. As relações, então, modificam-se, tornam-se outras. O mesmo vale para

uma criança ou pessoa deficiente, que ganhe autonomia, ou seja, liberte-se de uma

certa dependência, porque mudou de hábitos, desenvolveu habilidades que lhe pos-

sibilitam realizar, a seu modo, coisas antes impossíveis para ela.

Essas conquistas implicam uma alteração na conduta das pessoas que, antes,

eram responsáveis por isso. Quantas pessoas suportarão essa mudança de relação,

aceitarão mudanças de posição ou “prestígio”, por mais sofrido, choroso, por mais

que, por exemplo, uma mulher tenha apanhado e passado noites em claro? Se, por

um “milagre”, seu marido deixar de beber, ela suportará com alegria e com facilidade

perder o seu posto de salvadora? Muitas vezes não.

39

O objetivo de nossa reflexão não é julgar ninguém. É apenas lembrar as trapa-

ças em que podemos nos envolver, mesmo ou principalmente quando há um pressu-

posto relacional. Às vezes, é muito difícil perder um lugar duramente conquistado,

mesmo se conquistado em um contexto de sofrimento, luto, tristeza ou dor. Habitu-

amo-nos a uma certa posição, a uma certa função, isto é, transformamo-nos, pouco a

pouco nessa própria função.

A co-depedência é uma análise interessante para aqueles que devem confiar

seus filhos com problemas de deficiência para uma nova escola ou novos professores.

Para aqueles, portanto, que vão perder um pouco suas funções. Eles podem reagir,

sentindo-se perdendo coisas, tendo medo etc.

É uma pena que pensemos assim, pois uma criança que ganha autonomia li-

bera sua mãe para outros projetos ou realizações. Além de aprender a compartilhar

com essa “nova” pessoa (o alcoólatra ou deficiente, na medida que modificam seu

modo de ser) funções de responsabilidade, implica um jogo de ganhos e perdas, nem

sempre fácil de ser regulado.

No caso da mulher do alcoólatra, ela vai ter que respeitar um certo direito seu,

por exemplo, junto aos filhos. Ela vai ter que suportar que ele traga também dinheiro

para a casa, que tome decisões, que discorde. Ela vai ter que dividir papéis que, ou-

trora, por razões muito compreensíveis, eram gerenciados exclusivamente por ela, ou

seja, muitas vezes a recuperação do marido significa um outro tipo de sofrimento, o

sofrimento de perder a importância que tinha, mesmo que isso, na teoria, não seja

formulado.

O mesmo vale para uma criança excepcional, que depende das pessoas que

cuidam dela, às vezes, vinte e quatro horas por dia. Se essa criança entra em uma

escola e aprende, pouco a pouco, a ser responsável por si própria; se, por uma edu-

cação inclusiva, que todos nós desejamos; se, por uma educação qualquer que seja,

que todos desejamos bem-sucedida, essa criança adquirir recursos próprios para cui-

dar de si, por exemplo, se essa criança passar a ter responsabilidades por si mesma,

se ela dispensar aquele cuidado sofrido, choroso, difícil da sua mãe porque agora ela

pode ser ela mesma, essa mãe cederá o seu lugar com alegria? Ou usará argumentos

para manter uma situação que agora já não tem mais sentido?

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O difícil, quando nos relacionamos com uma pessoa deficiente, é a deficiência

em nós, não nela. É claro que ela é deficiente e a deficiência dela está assumida na

sua pele e no seu rosto, na sua cabeça. É claro que o deficiente é ele, mas é esse

tipo de deficiência, na relação, que quero sublinhar aqui.

Porque, para mim, o pior numa deficiência é isso: é o gozo de uma superiori-

dade sobre alguém, por alguma razão, que muitas vezes poderá valer para todos nós.

Todos somos deficientes em alguma coisa, só que a gente não sabe: é a nossa arro-

gância que não nos permite dizer. Não estou querendo afirmar que todas as pessoas

são iguais. As diferenças são legítimas, as diferenças são reais e há perdas que são

reais e as pessoas precisam aprender a compensá-las. Esse é o outro aspecto bonito

da relação.

Quando pensamos em termos de classe, o problema é de afirmação ou nega-

ção. É tudo (o termo atende ao critério) ou nada (não atende). Na relação, temos um

jogo de compensações, de lugares ou posições relativas, em que os termos se ex-

pressam de muitas formas. Isso também é uma questão de afirmação e negação;

mas, funciona ou opera de outro modo.

A co-dependência pode ser a face perversa da interdependência. Implica a

ideia de que, se o filho se torna mais livre e autônomo, já não se sabe mais de quem

cuidar! Vou usar um outro exemplo para deixar isso, quem sabe, mais claro. Vou usar

o exemplo da enfermeira e o do professor.

A enfermeira, em uma visão positiva, é aquela que cuida de doentes, mas que

não se fixa em um doente particular, ou seja, em alguém que, em consequência, não

poderia sarar, pois caso contrário ela ficaria sem função. A enfermeira, em uma visão

de interdependência, cuida para que seus pacientes sarem logo, pois há muitos outros

esperando e que precisam do lugar.

O mesmo vale para um professor. Ele não é só para um aluno. Seu propósito

é que o aluno aprenda para que outros possam ocupar seu lugar. Esse é o desafio de

uma relação construtiva. Ensinar ou cuidar é “perder” por ter ensinado ou cuidado,

aquele a quem ensinamos ou a quem cuidamos. É deixá-lo partir ou alterar a posição

relacional conosco, pois já não precisa mais de nós.

Em verdade, não se trata de “perder”, mas ganhar. Um filho que ganha autono-

mia desenvolve recursos próprios, abre-se para um mundo maior, amplia seu espaço

41

relacional, o mesmo ocorrendo com sua mãe, que sempre “vai junto”, ainda que em

outro lugar ou de outra forma.

Um professor que ensina um aluno, ganha tudo aquilo que o conhecimento traz

como abertura ou inclusão de novas possibilidades. Na co-dependência, isso não

ocorre. Precisamos que uma determinada pessoa continue dependente de nós, pois

nos definimos por essa relação.

A co-dependência refere-se a uma enfermeira ou um professor que cuidam de

um único “doente” ou “aluno”. O doente não pode melhorar para que ela não se sinta

ameaçada em sua função ou lugar. “Se o doente sarar eu não sou mais enfermeira

porque quem me define é este doente concreto, particular”. “Eu sou professora desse

aluno, ele vai ficar velho e vou continuar dando aulas para ele, explicando as mesmas

coisas, pegando em sua mão e ensinando-o a escrever. O aluno, nesse sentido, nunca

pode aprender. Como é que eu fico, se ele aprender? Fico sem lugar, sem definição.

Essas considerações são importantes, quando analisamos a questão da Edu-

cação Inclusiva. Se aceitamos crianças “deficientes” (não importa o grau), em uma

escola para todas as crianças, e se elas forem tratadas de um modo excludente ou

co-dependente, não terão um tratamento comparável aos outros, teremos a exclusão

da inclusão, teremos uma farsa de inclusão.

Olhar com pena para um “deficiente” pode significar uma relação de co-depen-

dência, principalmente se estiver associada a uma ideia de superioridade: ele tem

problemas ou limitações que eu não tenho (como se não tivéssemos alguma). Ou seja,

pode significar a pretensão de que somos melhores do que ele e, em um contexto de

relação, o melhor (no sentido de uma diferença para mais ou para menos) é sempre

relativo e transitório.

Além disso, a pena pode implicar uma ajuda na perspectiva de co-dependência.

Como ajudar pessoas que sofrem limitações ou que necessitam de algo especial para

realizar uma tarefa na perspectiva da interdependência? Não se trata de dizer que os

“deficientes” não tem limitações reais, ou seja, que não possuem um problema con-

creto, seja no plano físico, sensorial, mental etc.

A questão é como nos relacionamos com essas limitações. Nesse sentido, ao

invés de ter dó de um cego, poderíamos ter respeito e admiração por uma pessoa

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que, tendo essa limitação, sobrevive num mundo que é visual. Por isso, nosso desa-

fio, enquanto professores ou educadores, é pesquisar o que ele pode fazer, o que,

apesar de sua restrição, ele tem condições de melhorar, o que, de resto, vale para

qualquer um de nós. Como vê-lo não por aquilo que, eventualmente, temos a mais do

que ele, mas por aquilo que ele, sendo o que é, pode ser melhor?

AUTONOMIA E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Há uma visão de autonomia que pode ser assim definida: ser autônomo é fazer

o que quer, do jeito que quer, na hora em que quer. Ser autônomo é ser livre dos

outros. Não concordo com essa noção de autonomia: nem o pior dos ditadores faz o

que quer, do jeito que quer, na hora em que quer. Ele pensa que faz. Para mim, o

conceito construtivo de autonomia é: ser autônomo é ser parte e todo, ao mesmo

tempo. Esta é a ideia de educação inclusiva, ou seja, ser parte e todo ao mesmo

tempo.

Enquanto todo, sou eu, com minhas singularidades, características, tamanho,

cheiro, com meus olhos ou sem meus olhos, com minha inteligência desenvolvida ou

não, com minhas pernas ou sem as minhas pernas. Sou eu naquilo que eu sou, na

minha identidade, enquanto todo. Ao mesmo tempo, eu sou sempre parte. Autonomia

nesse sentido é ser responsável, como parte e como todo, numa relação.

Tomemos o jogo, como exemplo. Em um jogo de damas, xadrez ou cartas,

autonomia significa que, em cada jogada e ao longo de toda a partida, somos respon-

sáveis por nossas ações e sofremos as consequências do modo como as realizamos.

Nesse sentido, trata-se de um todo (um jogador ou time) contra um outro todo (o ad-

versário ou o time contrário), cada qual com suas responsabilidades.

Ao mesmo tempo, somos parte porque dependemos do outro para continuar

jogando. Além disso, dependemos das regras, do tabuleiro, das peças, do tempo. De-

pendência não em um sentido negativo, mas, no sentido de que, em uma relação,

somos irredutíveis, temos algo singular, próprio e, ao mesmo tempo, somos comple-

mentares, formamos partes, indissociáveis, no sistema que as constituem.

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O que teremos de aprender com os professores das APAES? Como vamos

convocar pais e mães de crianças deficientes e aprender com eles a lidar com essas

crianças? Qual vai ser a nossa disponibilidade de repensarmos o ritmo, a rotina, os

objetos, o mobiliário, os recursos materiais? Como vamos repensar o espaço na sala

de aula?

Como vamos suportar, nós professores, o fato de que a educação inclusiva veio

tornar mais complexa a nossa vida, mais desafiadora a nossa tarefa de professores.

Vamos precisar estudar o que antes estávamos dispensados de estudar, vamos ter

que aprender técnicas nas quais antes não precisávamos pensar, vamos ter que

aprender a ver mais devagar quando estávamos acostumados a ver numa certa velo-

cidade, vamos ter que aprender a ouvir sem audição, a acompanhar num ritmo mais

rápido quando estávamos acostumados a um ritmo mais lento.

Vamos ter que rever as nossas expectativas de professores, rever as nossas

formas de avaliar, de aprovar, de reprovar. Vamos ter que melhorar a nossa condição

de trabalho.

É importante enfatizar esse ponto porque muitas pessoas veem essas inclu-

sões como piora, como mais uma dificuldade no caminho dos professores, como mais

uma pressão. O salário é pouco, as condições de trabalho são ruins, o tempo é pouco

e, agora, há mais essa exigência de incluir crianças com dificuldades, deficientes.

É isso que afirmam muitas pessoas que têm coragem de dizer o que pensam,

que não têm vergonha de falar do incômodo, por mais justo que possa ser, que é

receber crianças que se diferenciam muito da “média da classe”. É importante assu-

mirmos o preconceito, a nossa dificuldade, o nosso medo, a nossa impotência porque

só assim vamos poder, pouco a pouco, assumir de fato, uma formação que promova

a educação inclusiva.

COMO AGIR NA CO-DEPENDÊNCIA?

A ideia da co-dependência foi desenvolvida em relação a alcoólatras. Sabemos

que a droga é um problema muito difícil no mundo todo, e que o índice de recuperação

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de drogados é de apenas 30%, aí incluídos pobres, ricos, remediados, pessoas que

se internam em hospital particular, público.

No caso da Associação dos Alcoólatras Anônimos, um recurso que tem ajudado

muito na problemática da co-dependência é, por exemplo, filhos, irmãos, pais, espo-

sas de alcoólatras se associarem e, numa reunião, discutirem sua dependência. Eles

não são alcoólatras, são filhos, são pais, são mulheres.

No caso da escola é fundamental que professores, que trabalhem com educa-

ção inclusiva e que queiram ser sérios e responsáveis, se reúnam e discutam as suas

dificuldades de incluírem seus alunos.

É importante que isso ocorra na escola, num lugar no qual se tenha con-

fiança, porque é muito difícil se expor em uma situação pública.

É importante que o professor fale que tem nojo de uma criança deficiente

que baba, que vomita; é importante que ele assume que tem medo de

ser contaminado por essa pessoa, que fica bravo quando ensina uma

criança e ela não aprende.

É importante que ele escute depoimentos de colegas, que leia textos que

mencionem pesquisas, que ensinem técnicas de como trabalhar com es-

sas pessoas, é importante que assuma perante os seus alunos as suas

dificuldades, que se coloque no mesmo contínuo que seus alunos.

Enquanto ele for arrogante e achar que “isso é com você, isso não é comigo”,

ou “deixe comigo, que eu trato de tudo, eu dou conta de tudo”, ou enquanto escamo-

tear, negar, mentir, ele não poderá ser ajudado. E ele pode aprender isso, inclusive,

com seus próprios alunos. Para que isso aconteça, temos que estudar técnicas, pes-

quisar, fazer cursos, chamar professores que trabalhem, que tenham experiência so-

bre esse assunto, chamar os pais e perguntar sobre a vida da criança em casa, como

é que ela se cuida, como é seu dia, etc.

A educação inclusiva é uma educação democrática, comunitária, pois supõe

que o professor saia da sua solidão, arrogância, falso domínio e tenha a coragem de

dizer não sei, tenho medo, nojo, vergonha, pena, não respeito, quero aprender ou

rever minhas estratégias pedagógicas, pois não consigo ensinar para certos tipos de

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criança, não sei controlar o tempo, não sei ajudar – não no sentido da co-dependência,

mas no sentido da interdependência, – não sei respeitar meu aluno.

Todas essas revisões são difíceis, mas esse é o caminho, esses são os novos

desafios.

Depois de algum tempo de convivência com todas essas formas de deficiência,

o professor não teria que passar por uma terapia?

Sou professor de Psicologia de Desenvolvimento em um Curso de Psicologia.

Quem pode, tem coragem, recursos, tempo, deve-se submeter a essa experiência.

Isso, porém, não vale só para quem trabalha com deficiência, mas para qualquer um.

Considerando a questão por outro lado, pode ser que muitos professores não

suportem trabalhar com crianças como essas. Então, pode ser que muitos professores

tenham que ser redistribuídos e é por isso que a gente tem que ser honesta, corajoso.

Quem se dispuser a r fazer terapia, ótimo. Apesar dos meus vínculos com a psicologia,

não quis falar da terapia porque acho que a educação tem que encontrar respostas

no contexto educacional; caso contrário, podemos impor uma condição que é alheia

à escola. Ou seja, a escola tem que encontrar recursos dentro dela, senão sai fora do

espírito da inclusão. Mas se puder incluir psicólogos que façam palestras, oficinas,

que colaborem, melhor ainda. O senhor pode comentar os tipos de jogos que pode-

riam ser aplicados na “sala de aula inclusiva”?

Eu diria que, em princípio, a maior parte dos jogos é aplicável a qualquer tipo

de criança. Lembro-me, por exemplo, que uma vez eu dei um curso de pós-graduação

e tinha, entre os alunos, uma professora de deficientes visuais, por sinal, uma exce-

lente profissional. Nesse curso ela pensou nos mesmos jogos para cegos e os resul-

tados foram muito interessantes. Outra vez, tive um aluno cego e fiquei admirado com

o que ele pode fazer com os jogos que trabalhamos no curso.

É claro que há jogos que são melhores para determinados tipos de caracterís-

ticas e outros para outras. Não posso responder com mais detalhes sem entrar nas

características de cada jogo. Em princípio, considero que o jogo é universal e foi feito

para todos. Portanto, de um modo geral, é possível aproveitar os jogos para todos os

tipos de criança.

Como fazer quando a co-dependência não termina, pois quem era o depen-

dente não quer se libertar?

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O que eu considero mais bonito, no princípio da co-dependência, é a ideia de

que ninguém está “fora da chuva”. O princípio da co-dependência é a ideia de que não

é o filho que é doente, é a doença dele que nos afeta e, na medida que nos afeta,

também nos tornamos doentes e, para ele sarar, temos que sarar também. E temos

medo de sarar porque sarar significa abandonar ou resignificar cuidados que se tor-

naram a razão de nossa vida.

Aprendemos a nos identificar através dos cuidados com nosso filho e ele só se

libertará na medida que nos libertemos também. Isso não significa abandoná-lo; esta

é uma outra ideia de autonomia que eu gostaria de marcar aqui.

Outro dia, uma colega comentou que, por intermédio da análise dos vídeos que

os professores trouxeram para indicar a autonomia de seus alunos, podia se concluir

que muitos deles agiam como se promover autonomia de crianças fosse o mesmo que

as deixar abandonadas. Não que esses professores sejam irresponsáveis, mas, na

concepção deles, a criança autônoma é a que faz o que quer, sem a interferência ou

negociação com o adulto ou colegas.

Tornar crianças responsáveis por si mesmas não significa abandoná-las à pró-

pria sorte. Isso seria tão ou mais grave quanto o supercuidado que sufoca. O ponto-

chave da ideia de relação é a noção de regulação. Regulação é o princípio pelo qual,

numa relação, numa interação, temos que permanentemente aprender a trabalhar,

considerando o que deve ser mais, menos ou igual, em termos de nossos objetivos

ou metas, em termos dos meios que utilizamos.

Há momentos em que ajudamos mais, momentos em que ajudamos menos,

em que começamos ajudando mais e depois vamos reduzindo a ajuda. Portanto, re-

gulação é um processo dinâmico em que se busca um melhor equilíbrio, ou formas de

compensação, face às perturbações geradas no processo de interação. Pensar que

ou ele é dependente de mim para tudo, ou tem que fazer tudo sozinho, é fazer um

raciocínio de classe: é tudo ou é nada.

A regulação possibilita-nos trabalhar com diferenças, com insuficiências, com

o aperfeiçoamento, ou seja, com tudo o que é inevitável em uma relação. Não é assim

com os nossos filhos? Num certo momento, a gente tem que dar tudo para eles; pouco

a pouco, a gente vai se afastando e, em outros momentos, a gente volta com tudo, se

afasta, certas coisas se sustentam.

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Não é assim na vida inteira? Na questão da diferença, é ir calibrando as dife-

renças e é por isso que regulação implica que nada é sempre maior do que ou sempre

menor do que. Num momento, é maior, em outros é menor ou é igual, depende.

Por isso, regulação é a palavra-chave, quer dizer, esse ora muito, ora pouco,

ora mais ou menos, ora igual, ora tudo. Porém, em tudo que tem espaço para ser

menos ou tem espaço para ser mais, vamos negociando a qualidade e a quantidade,

naquilo que nós e os outros precisamos para nos constituir enquanto relação. Não

sendo possível falar algo definitivo, tudo que podemos é colocar a questão e dar a

direção, as coordenadas.

Em uma relação, quando o outro não consegue assumir a sua própria depen-

dência das drogas, o que fazer para que não haja falta de respeito? Se os pais são

drogados, os filhos podem nascer com alguma deficiência?

Vou aproveitar essa questão para falar de outro aspecto relacionado a isso.

Uma mudança – que eu diria radical nas nossas concepções – deveria ser a de não

raciocinar por causa, mas, por fator. Temos um costume muito arraigado de pensar

“por causa”. Por exemplo: uma criança vai mal na escola porque, no primeiro ano de

vida, seu pai abandonou sua mãe. Sabemos que nem sempre isso ocorre.

A vida é muito sábia nesse sentido, ela nos dá um exemplo para qualquer coisa

positiva ou negativa. Às vezes, numa mesma casa, uma criança faz de uma infelici-

dade um motivo para “dar a volta por cima” e a outra aparentemente não. Não estou

querendo dizer que tanto faz, não se trata disso.

Se raciocinamos em termos de causa, o pensamento pode ficar linear, depen-

dente das boas ou más causas. Raciocinar em termos de fator é considerar que tudo

depende de uma multiplicidade de aspectos. Temos que juntar as forças favoráveis e

lutar contra as forças desfavoráveis e sair dessa ideia determinista, dependente, cô-

moda, que explica que um jovem é alcoólatra porque seu pai era alcoólatra. É um

pouco simples este raciocínio. O mundo está cheio de gente que é filho de alcoólatra

e nem por isso ficou alcoólatra. E vice-versa, está cheio de gente cujos pais não são

alcoólatras, mas que é alcoólatra.

Não quero dizer que tanto faz, estou querendo dizer que a vida depende de

uma multiplicidade de fatores. Há fatores favoráveis numa certa direção, há fatores

desfavoráveis. Pensar, porém, na causa nem sempre explica suficientemente e, às

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vezes, dá inclusive uma ideia falsa, explica cedo demais um problema e, na verdade,

as coisas são um pouco mais complexas.

O que o senhor pensa de uma criança portadora de deficiência numa sala com

vários alunos? Uma alternativa à terapia é o espaço terapêutico na própria escola?

Vou começar pela segunda parte. É importante separarmos intervenções par-

ticulares de intervenções públicas, coletivas. A terapia, tal como a medicina, tal como

tantas outras áreas de atuação, pode ter uma intervenção particular, privada, ou uma

intervenção pública, coletiva. Acho que não se trata de pensar nos extremos: só par-

ticular ou só pública.

Penso que, como aqui, estamos em um espaço público institucional, temos que

pensar o que, num espaço público, institucional, deve ser feito em favor da educação

inclusiva, que é o nosso tema de hoje. É claro que recorrer a intervenções particulares

como terapia, colocar um professor para essa criança, podem ser úteis, mas eu não

gostaria de trabalhar essa questão agora porque estamos aqui para falar dos limites

do público, do institucional, em favor de uma educação coletiva e generalizada.

Quanto mais fatores puderem ser evocados para o aperfeiçoamento do nosso trabalho

e das pessoas que a gente quer bem, melhor.

Agora, vamos discutir o que significa colocar numa sala de aula uma criança

com síndrome de Down, junto com as demais crianças. Vou apenas repetir aquilo que

falei mais de uma vez. Não sei o que vai acontecer. O que sabemos é que o que a

escola não-inclusiva produz, o que a escola não-inclusiva conseguiu ser até agora. O

que essa nova escola – que se abre para outros desafios – vai obter, o que essa nova

escola vai ser, qual será a nova cara dessa nova escola, o que esse novo professor –

que somos todos nós – terá que ser, como ele vai precisar alterar os seus relaciona-

mentos, ainda não sabemos.

Mais que isso, estamos entrando em contato com os problemas, com tudo o

que deve ser modificado e repensado. As soluções ou respostas são poucas e nem

sempre generalizáveis. Estamos nos preparando para esse dia.

Para terminar, acho que temos mais a aprender com deficientes mentais do

que supomos.

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