apostila filosofia da religião-aula 2

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CINCIAS DA RELIGIOOs Vrios Caminhos de Investigao do Fenmeno Religioso

As cincias da religio surgiram como campo acadmico somente na segunda metade do sculo 19, como resultado dos estudos da histria da religio que, naquela poca, era aceita apenas como disciplina. No seu incio, as cincias da religio foram por muito tempo tributrias da filosofia e da teologia, chamadas velhas mes, mas aos poucos ganharam sua autonomia.1

Ainda hoje h uma discusso acirrada acerca da terminologia. Qual seria correto: cincia da religio ou cincia das religies? Ou ainda, cincias da religio ou cincias das religies? Em outras palavras, existe um nico mtodo de pesquisa (cincia) e um nico objeto de estudo (religio)? Os cientistas da religio ainda no chegaram a um consenso a este respeito e no nosso objetivo entrar no mrito da questo.2O fenmeno religioso pode ser estudado de vrias perspectivas, cada uma com suas particularidades, objeto e mtodo prprios. Assim, dentro das cincias da religio surgiram vrias correntes ou escolas de estudo do fenmeno religioso.

ESCOLAS HISTRICO-RELIGIOSASAs escolas histrico-religiosas surgiram na segunda metade do sculo 19 e suas razes remontam obra Histria Natural da Religio, de David Hume (1711-1776), publicada em 1757. Ganhou credibilidade especialmente atravs do padre e etnlogo italiano Wilhelm Schmidt (1862-1954), que fundou em Viena uma escola dedicada pesquisa das influncias de uma cultura sobre outra. Para essa escola, a forma religiosa mais antiga seria a dos Pigmeus, da Floresta Tropical Africana, por serem os povos que se encontram no estgio econmico mais primitivo do mundo. Schmidt concentrou anos de pesquisa ampliao da teoria de outro conhecido historiador das religies, o escocs Andrew Lang (1844-1912).Lang levantou a tese de que as sociedades iletradas crem num Ser Supremo, criador primordial que, apesar de no-ativo, continua sendo um referencial tico do povo. E como resultado das suas extensas pesquisas, Schmidt publicou uma obra monumental, em doze volumes, com mais de onze mil pginas, chamada Origem da Idia de Deus (1912ss), a qual contempla um nmero extensivo de religies primitivas da terra.

Outro grande vulto da escola histrico-religiosa o italiano Raffaele Pettazzoni (1883- 1959), para quem se instituiu em 1924, na Universidade de Roma, a primeira ctedra italiana de histria das religies. Pettazzoni fez uma transferncia do historicismo absoluto para o campo histrico-religioso e dedicou-se tese de que a forma original da religio no era o monotesmo e, sim, o politesmo, apesar de concordar com Lang sobre a idia do Ser Supremo. Seus discpulos mais destacados tornaram-se famosos historiadores da religio, como o hngaro ngelo Brelich (1913-1977), que sucedeu Pettazzoni na cadeira de histria das religies na Universidade de Roma, Ernesto De Martino (1908-1965), aberto s sugestesda psicanlise e do existencialismo, e Vittorio Lanternari, cujo interesse so os fenmenos religiosos e culturais de fronteira, que geram sincretismo. A histria das religies est interessada no conjunto dos fatos religiosos enquanto manifestaes da cultura humana, podendo ser um mtodo descritivo, analtico ou comparativo. Dessa forma, sua grande utilidade est na classificao das religies e fornecimento de dados para fins de comparao, mas dificilmente possibilitar a compreenso do significado ltimo da experincia religiosa para o prprio homem religioso.

ESCOLAS LINGSTICASAinda na primeira metade do sculo 19, surgiu a lingstica comparada indo-europia, que acabou propondo mtodos de estudo do fenmeno religioso. Foi o lingista e historiador alemo Friedrich Max Mller (1823-1900) que props o primeiro cruzamento sistemtico da lingstica com o mundo das religies. Para ele, as palavras so originariamente eventos. Os nomes de divindades evocam fatos histricos ou fenmenos da natureza. E assim, estudando a origem dos nomes possvel descobrir a origem das religies. Em suas pesquisas, Mller percebeu que os nomes de muitos deuses tinham uma origem lingstica comum. Por exemplo, nos Vedas, escritos em snscrito, aparece o nome de Agni, uma das principais divindades da ndia. Em latim, aparece o nome Ignis, enquanto em eslavo antigo Ogny. Para Mller, so apenas nomes diferentes, em lnguas diferentes, para se referir a uma mesma entidade. o mesmo caso de Dyaus, conhecido em grego como Zeus, em latim como Jouis e no alto alemo como Zio. Em snscrito, Agni significa fogo e Dyaus cu brilhante. Mller props ento que as entidades espirituais seriam apenas fenmenos da natureza divinizados pelos povos antigos. Surgia assim, a teoria de que a forma mais antiga de religio seria o naturismo, ou seja, a adorao das foras csmicas da natureza, como ventos, rios, astros, plantas, animais, rochas, alm dos j mencionados fogo e cu.

O francs Emile Benveniste (1902-1976) trilhou a pista aberta por Mller e ampliou essa linha de pesquisa, concluindo que a anlise lingstica possibilita no apenas a descoberta das origens religiosas, mas tambm a compreenso da religiosidade em si. Com uma habilidade lingstica acima da mdia, o francs George Dumzil (1898-1986) ampliou ainda mais essa teoria, dando tambm a sua parcela de contribuio. Entretanto, apesar da sua considervel contribuio, hoje consenso a limitao da lingstica no alcance do real significado da religiosidade.

ESCOLAS PSICOLGICASComo disciplina cientfica autnoma, a psicologia da religio nasceu no final do sculo 19, nos Estados Unidos. Esses estudos foram iniciados pelo pastor americano Granville Stanley Hall (1844-1924), que dedicou-se ao estudo da psicologia da converso. Aluno de Hall, o suo, de orientao calvinista, James Henry Leuba (1868-1946), deu continuidade aos estudos sobre converso do seu professor. Apesar de ter passado por uma marcante experincia de converso, atravs do Exrcito de Salvao, abandonou a sua fposteriormente, dedicando-se apenas pesquisa cientfica. J seu aluno quacre, Edwin Diller Starbuck (1866-1947), seguiu as trilhas da psicologia da converso mas permaneceu fiel sua f at o fim. Outros pesquisadores conhecidos so William James (1842-1910) e George Albert Coe (1862-1951), tendo este ltimo pesquisado sobre as influncias do temperamento na converso. Entretanto, os mais conhecidos nessa rea so, sem sombras de dvida, o moraviano Sigmund Freud (1856-1939) e o suo Carl Gustav Jung (1875-1961). Freud faz uma abordagem negativista da religio, interpretando a mesma como um produto de conflitos ancestrais, equivalentes infncia da humanidade. No seu livro Totem e Tabu (1913), ele tenta explicar a origem da religio com a controvertida teoria do Complexo de dipo4. Nostempos dos ancestrais da humanidade, numa horda primeva5, teria existido um pai prepotente e ciumento que ficava com todas a mulheres do seu cl, expulsando seus filhos de casa. Um dia os filhos se juntaram, mataram esse pai e o devoraram num banquete totmico de comunho. Porm, esse homicdio tornou-se para aqueles irmos uma causa de profundo sentimento de culpa e o pai morto se tornou mais poderoso do que era enquanto em vida. Nesse clima de remorso coletivo, os filhos passaram a agir exatamente como o pai. Proibiram relaes com as mulheres do seu prprio grupo que antes tanto desejavam, surgindo assim a exogamia. Proibiram tambm a matana de um determinado animal que passou a representar o pai, surgindo assim o totemismo6. A imagem do pai continuou se fortificando, surgindo assim a idia de Deus. Se referindo a esse pai assassinado, Freud afirma que no fundo, Deus nada mais do que um pai glorificado e que a raiz de toda forma de religio a saudade do pai7.J Jung adota uma postura positivista, mas interpreta a religio como uma resposta ao inconsciente coletivo que se formaliza em profundas marcas psquicas. Teria, assim, um papel estabilizador da personalidade. So muitas as contribuies da psicologia para o estudo da religio, porm, os pressupostos da maioria dos seus tericos so questionveis. Via de regra, os fenmenos religiosos so considerados na psicologia como o espelho da psique humana, da mesma forma que na sociologia esses fenmenos so o espelho da sociedade. O sentimento religioso seria uma elaborao do desejo humano por satisfao. O professor de fenomenologia, Waldomiro Octvio Piazza, critica essa escola por sugerir que a religio no passa da expresso de sentimentos e temores do subconsciente humano 8. Ou seja, fruto da imaginao do homem.

ESCOLAS SOCIOLGICASO belga Claude-Henri de Saint Simon (1760-1825) um dos primeiros e principais tericos dessa escola, com sua nfase no retorno s origens. Mas seu interesse principal era mesmo o cristianismo, que para ele devia ser centrado na filantropia, que seria sua verdadeira base. Um dos seus discpulos mais conhecidos Augusto Comte (1789-1857) que acabou afastando-se do seu mestre e voltando seu pensamento para o fato religioso em si, quando elaborou a famosa lei dos trs estgios, segundo a qual a religio passa por trs sub-estgios sucessivos: fetichismo, politesmo e monotesmo.Na rea francesa das escolas sociolgicas, surgiu mile Durkheim (1853-1917), que se tornou o maior expoente dessa escola. Para ele, tudo o que h de essencial na sociedade fruto da religio e, portanto, a essncia da religio a idia de sociedade. A partir dos seus estudos de grupos australianos, ele levantou a tese de que a forma mais antiga de religio seria o totemismo9. Sobrinho e discpulo de Durkheim, Marcel Mauss (1872-1950) tornou-se tambm um grande vulto, dirigindo seus interesses para o mbito etnolgico e dedicando-se ao estudo das sociedades iletradas, especialmente seus sistemas mgicos e formas de sacrifcio. Podemos citar ainda, Gabriel Le Brs (1891-1970), que marcou uma reviravolta na sociologia da religio com sua tentativa de criar uma metodologia destinada a medir a prtica religiosa dentro das dinmicas sociais. Na rea alem, destacou-se o historiador Max Weber (1864-1920), que se dedicou investigao sobre a tica econmica das grandes religies universais. Amigo e colega de Weber, Ernst Troeltsch (1865-1923) tambm se despontou na sociologia da religio, mas, como Saint Simon, dedicou-se histria e sociologia do cristianismo. As escolas sociolgicas contribuem em muito para a compreenso do fenmeno religioso, especialmente no estudo da funo social da religio. Entretanto, crticas srias tm sido feitas a elas, por reduzir o fenmeno religioso a um subproduto da sociedade. Como comenta Filoramo e Prandi, a sociologia da religio no coloca a religio no centro dos seus interesses; antes, fixa a ateno no fato religioso entendido como produto social ou como fruto de uma criao coletiva [...] Assim, o objetivo da sociologia da religio o estudo das funes sociais da religio.10Isto pode ser observado claramente nas palavras do prprio Durkheim: O objeto da experincia religiosa a sociedade [...] Se a religio gerou tudo o que existe de essencial na sociedade, porque a idia da sociedade a alma da religio. As foras religiosas so, portanto, foras humanas, foras morais.11

ESCOLAS ANTROPOLGICASO estudo da religio do ponto de vista antropolgico comea efetivamente com o antroplogo ingls Edward Burnet Tylor (1832-1917), com sua teoria do animismo. Com essa teoria, Tylor discorda do seu contemporneo Max Mller, afirmando que a religio surgiu da concepo de alma princpio vital que anima o corpo humano, bem como a natureza. Esse conceito, por sua vez, teria surgido da tentativa do homem antigo de entender e explicar o fenmeno do sonho. E a partir do conceito da alma, teria surgido tambm o conceito de espritos. Assim, as religies teriam evoludo do animismo politesta para o monotesmo. Mas foi o polons Bronislaw Malinowski (1884-1942) quem forneceu um status metodolgico antropologia em geral, e ao estudo da religio em particular, se ocupando especialmente com o rito e mito, elementos essenciais para a expresso do sagrado. Tylor e Malinowski so expoentes da antropologia cultural, mas surgiu uma outra linha de pesquisa conhecida como antropologia social. Essa teve seu incio com o ingls Edward Evan Evans- Pritchard (1902-1973), que privilegia a sociedade como recipiente da cultura. Enquanto a antropologia cultural est mais atenta aos comportamentos, tcnicas, linguagens e smbolos, a antropologia social volta seu olhar para as instituies e, em especial, aos sistemas de parentesco. Nesse campo, podemos citar tambm o antroplogo francs Roger Bastide (1898-1974) que estudou a influncia da religiosidade africana sobre a brasileira.

Uma terceira linha de pesquisa o estruturalismo, desenvolvido pelo etnlogo belga Claude Lvi-Strauss (1908), que viveu vrios anos no Brasil, onde estudou os indgenas Bororo, Kadiwu, Nhambikuara e outros. Lvi-Strauss estudou o mito e o rito, analisando oitocentos mitos na sua obra Mitologias (1964). Escreveu tambm sobre questes do totemismo e deu maior amplitude aos estudos das relaes de parentesco.

Apesar da relevncia da antropologia para a anlise cultural de qualquer povo, tm-se percebido sua limitao no que se refere religiosidade. Como comenta Dagmar Castro, a antropologia tende a objetivar a subjetividade humana12. Ou, nas palavras de Piazza, se referindo especificamente a Malinowski e Lvi-Strauss, a tendncia dessa escola reduzir a religio a uma frmula para fazer funcionar a sociedade13. Assim, em especial no meio missionrio, a antropologia tem lanado mo da fenomenologia para anlise do fenmeno religioso, como veremos.

NOTAS1 No Brasil, as cincias da religio como rea acadmica surgiram no final da dcada de 1970 e esto sefirmando ao ganhar cada dia maior credibilidade. J temos, pelo menos, quatro universidades que oferecem o curso cincias da religio em nvel de ps-graduao: UMESP, USP-SP, UFJF e Mackenzie.2 Para uma melhor compreenso deste tema, ver o texto Cincia da Religio, Cincias da Religio, Cincias das Religies? do antroplogo e professor de cincia da religio da UFJF, Marcelo Lima, em Teixeira, A(s)Cincia(s) da Religio no Brasil. 2001. pp.197-232.3 Durkheim. As Formas Elementares de Vida Religiosa. 1989. pp.81,108,109.4 Totem e Tabu. 1974. pp.162-178. Posteriormente, Freud retomou e levou adiante esta questo, especialmente em seu livro Moiss e o Monotesmo (1939), pp.99-112.5 Freud usa a linguagem de Darwin, ampliada por Atkinson (1903), onde horda indica um grupo relativamentepequeno, mais ou menos organizado, muito prximo do que hoje seria chamado de cl.6 Freud apia a teoria de Durkheim (1912), segundo a qual o totemismo seria a forma mais antiga de religio, bem como, as discusses da poca sobre a ligao entre exogamia e totemismo. Exogamia a prtica muito