apostila do módulo de contação de histórias, por cris velasco

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Apostila utilizada no curso A Arte do Brincante para Educadores, módulo Contação de Histórias.

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Page 1: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

EU QUERO HISTÓRIA DE BOCA! Cristiane Velasco

Avoa, Alma, avoa Alma, Saudade comprida Alma é querer de novo Dançar o inteiro da Vida!

Nunca soube responder à pergunta o que é que você vai ser quando

crescer? e isto sempre foi motivo de grande angústia para mim. Minha vida era

uma colcha enorme de retalhos desconexos (dança flamenca, dança clássica

indiana, artes plásticas, literatura, psicologia) e a pergunta seguia beliscando...

Quando eu era menina, tinha dois sonhos recorrentes: em um deles eu

aparecia voando, no outro, eu respirava dentro d’água. Ambos me alimentavam

da mesma Alegria. Cresci buscando encontrar um fio que costurasse meus

retalhos e me devolvesse essa sensação primeira dos sonhos da minha

infância...

Coleção de cacos

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.

Tem países demais, geografias demais.

Desisto.

Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,

orgulho da cidade.

E toda gente coleciona os mesmos pedacinhos de papel.

Agora eu coleciono cacos de louça

quebrada há muito tempo.

Cacos novos não servem.

Page 2: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Brancos também não.

Tem de ser coloridos e vetustos,

desenterrados – faço questão – da horta.

Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,

restos de flores não conhecidas.

Tão pouco: só o roxo não delineado,

o carmezim absoluto,

o verde não sabendo

a que xícara serviu.

Mas eu refaço a flor por sua cor,

E é só minha tal flor, se a cor é minha

no caco de tigela.

O caco vem da terra como fruto

a me aguardar, segredo

que morta cozinheira ali depôs

para que um dia eu o desvendasse.

Lavrar, lavrar com mãos impacientes

um ouro desprezado

por todos da família. Bichos pequeninos

fogem de revolvido lar subterrâneo.

Vidros agressivos

ferem os dedos, preço

de descobrimento:

a coleção e seu sinal de sangue;

a coleção e seu risco de tétano;

a coleção que nenhum outro imita.

Escondo-a de José, por que não ria

nem jogue fora esse museu de sonho.

Carlos Drummond de Andrade

Page 3: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Somente a partir de 1998, quando vim a conhecer um pouco da arte de

contar histórias, dos brinquedos e cantigas tradicionais, da riqueza de nossa

Cultura Popular e comecei a trabalhar com crianças na Casa Redonda é que

reencontrei o Sentido que estava guardado.

Desde então venho me costurando por dentro; dançando, cantando,

escrevendo, compondo espaços e elementos para contar histórias. Dessa costura

nasceu o Dançando Histórias que envolve três apresentações: Contos Indianos,

Contos Flamencos e Avoou: Contos Brasileiros.

Em 2007, revendo meu trabalho a partir de questões novas (como, por

exemplo, as fronteiras entre narração e interpretação, o contador e o ator), vim a

consultar o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, onde encontrei a

esclarecedora definição: É preciso não confundir o contador de histórias com o

narrador, que pode ser uma personagem que conta um acontecimento, como na

narrativa clássica, nem com o que os franceses chamam da “Récitant”, que se

manifesta à margem da ação cênica e musical. O contador de histórias é um

artista que se situa no cruzamento de outras artes. Quase sempre sozinho em

cena, narra sua ou uma história, dirigindo-se diretamente ao público, evocando

acontecimentos através da fala e do gesto, interpretando uma ou várias

personagens, mas voltando sempre ao seu relato. Reatando os laços com a

oralidade, situa-se em tradições seculares (...), a arte do contador de histórias se

insere na corrente do Teatro–Narrativo (...) casando perfeitamente a atuação e a

narrativa (...), com recursos mínimos, o contador de histórias rompe a quarta

parede e tira bastante proveito dos milagres da cena.

O Apanhador de Desperdícios (Tudo o que não invento é falso...) Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

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fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

Com as crianças aprendo que as histórias são brincadas com o corpo todo.

Através das manifestações da Cultura Popular Brasileira aprendo a maravilha que

é o Inteiro das coisas. Nessas duas fontes, re-aprendo a Alegria.

Um dia, contando uma história na Casa Redonda para crianças de 2 a 7

anos apareceu a palavra Alma. Um menino perguntou: O que é Alma? Eu devolvi

a pergunta: O que vocês acham que é Alma? Então outro menino respondeu:

Page 5: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Alma é aquela luzinha que tem dentro do Coração...

Sabemos que o Coração é o primeiro órgão a se diferenciar no embrião de

uma criança; no início era o Coração, pulsando, único. Mais tarde é ele que vai

reger cada célula do corpo humano, marcando o ritmo que contém em si a

pulsação maior, a música do universo. O Coração é o nosso sol, o nosso centro.

Kaká Werá, índio brasileiro, contou um dia que a memória cultural se

baseia no ensinamento oral da tradição, que é a forma original da educação

nativa, que consiste em deixar o espírito fluir e se manifestar através da fala

aquilo que foi passado pelo pai, pelo avô e pelo tataravô. (...) Um narrador da

histórias do povo indígena começa um ensinamento a partir da memória cultural

do seu povo, e as raízes dessa memória cultural começam antes de o tempo

existir (...) Para o índio, toda palavra possui espírito. Um nome é uma alma

provida de um assento (...) Cada coisa que vemos é uma imagem da imagem da

imagem do que verdadeiramente é. Nossa memória sabe que o Coração tem o

mesmo pulsar das estrelas.

Existe uma relação muito estreita entre Coração e Memória. Recordar

significa lembrar com o Coração. Da mesma forma, a Memória e a Imaginação

também são vizinhas; a Imaginação emerge da mesma parte da Alma de onde

emerge também a Memória (...) as palavras são coisas aladas, como já diziam os

Gregos na Antiguidade. E Câmara Cascudo, grande pesquisador da Cultura

Popular Brasileira, também falou uma vez que a Memória é a Imaginação do

povo.

No processo da antiga Alquimia havia um momento chamado Lida de

mulheres e Brincadeiras de criança. Era a hora em que o alquimista acendia o

forno e não restava mais nada a fazer, apenas estar ali, assim como as mulheres

quarando roupa no fluxo do rio, rodeadas pelo som das crianças em volta.

Precisamos aprender com esse Tempo da Lida de mulheres e Brincadeiras de

criança, porque passamos a maior parte do nosso tempo ora na tristeza pelo que

já foi, ora na ansiedade pelo que virá e assim vamos esquecendo de viver a

Verdade do Agora, a Sabedoria do Instante.

Page 6: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Ô minha gente no balanço do mar / Coqueiro balançô, coqueiro balança

Cantiga do Batalhão das Tranças Serrinha - Bahia / Acervo: Lydia Hortélio

Esta cantiga da comunidade rural Grota Funda, trata-se de um canto de

mulheres que “trançam palha”, mulheres artesãs, mulheres do sertão que nunca

viram o mar e, de alguma forma, evocam o seu balanço; mulheres que carregam

este mar guardado em algum espaço de sua Imaginação, em algum tempo de

Memória muito antiga, em algum quarto secreto de Coração.

E é essa Verdade, esse Tempo suspenso do qual falava o pensador

português Agostinho da Silva, o mesmo Tempo do Coração, o Tempo da

Memória, da Imaginação, do Brincar (não o brinquedo pedagógico, mas a língua

Mãe, o currículo interno da criança, a Cultura da Infância), o Tempo da Tradição,

da Cultura Popular: o Tempo das Histórias. Segundo Agostinho, Alma é a

capacidade que o homem tem de lembrar a perfeita unidade do mundo antes de

as coisas existirem e é o desejo de atingir a meta onde a perfeita unidade será

novamente possível (...). Na plenitude do presente vive a criança, e porque o vive

– suspende o tempo.

Era uma vez, há muito tempo atrás... Assim se inicia a entrada em um

mundo diferente daquele do dia a dia, um mundo onde tudo é possível. Assim, o

Era uma vez anuncia a existência de um além que se encontra nos contos, nas

lendas, nos mitos, nos sonhos, na poesia, na música. Reis, rainhas, príncipes,

princesas, anões, fadas, bruxas, serpentes, dragões e outras inumeráveis

personagens fazem parte desse Tempo mágico, encantado e fascinante que

transcende a nossa racionalidade.

É nesse Tempo sem tempo que vive a criança nos primeiros anos de sua

vida, imersa no universo das imagens carregadas de significados. À medida em

que escuta uma história, uma ponte se estabelece entre palavras e imagens, de

modo que através da prática milenar de se contar histórias, presente nas diversas

tradições orais, dimensões do Ser vão sendo vivenciadas: a criança vive as

Page 7: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

palavras, a palavra para ela é imagem.

As histórias servem como referências para que as crianças se conectem

com as imagens internas correspondentes, num aprendizado auto-regulador de

integração da Consciência. Muitas vezes os contos são tratados apenas como

histórias para divertir ou distrair, mas, considerados em sua profundidade, eles se

revelam como espelhos da experiência humana, podendo ser entendidos como

uma espécie de ocupação essencial do Espírito.

Segundo Câmara Cascudo, ao lado da literatura, do pensamento

intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas, da memória

e da imaginação popular. O conto é um vértice de ângulo dessa memória e dessa

imaginação (...) é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras

cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor, ódio,

compaixão, vem com as histórias fabulosas, ouvidas na infância (...) As

características do conto popular são para mim: antiguidade, anonimato,

divulgação, persistência. É preciso que o conto seja velho na memória do povo,

anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos

repertórios orais (...) Os contos variam infinitamente mas os fios são os mesmos

(...) As centenas de milhares que conhecemos e sabemos existir são

combinações indefinidas desses motivos essenciais.

Certa vez, antes de dormir, um menino de 5 anos pediu que a mãe lhe

contasse uma história e, vendo que ela pegava um livro, ele disse: Não, mãe, eu

não quero história de livro, eu quero história de boca! Este pedido revela a

necessidade vital das crianças entrarem em contato com as próprias imagens,

essencialmente importantes na estruturação de suas psiques. A psique infantil,

animada pelo imaginário, é constantemente des-animada, bombardeada por

conceitos, conteúdos e cristalizada por imagens externas muitas vezes

caricaturais e distantes do universo infantil. Através da experiência de ouvir uma

história de boca, as histórias assumem o tamanho da criança, ela nunca vai

imaginar a bruxa, por exemplo, maior do que o seu medo poderia agüentar.

Venho observando como nas vezes em que utilizo um livro para contar

histórias uma espécie de desordem inicial se instaura. Eu quero ver ou Não estou

Page 8: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

vendo nada ou Eu sentei aqui primeiro ou Eu quero ficar no seu colo ou Não! Eu

falei primeiro ou Eu sou essa princesa ou É nada, a princesa sou eu! são falas

recorrentes. Por outro lado, as histórias de boca criam uma harmonia circular, as

crianças espontaneamente se ordenam e nesse espaço aberto as fantasias de

cada uma delas vão sendo projetadas.

Não há dúvida de que existem belas ilustrações de livros a serem

apreciadas, mas é importante, nesta primeira infância, deixar as crianças

enxergarem as suas próprias imagens ao ouvirem uma história; o que importa

verdadeiramente não é o livro, mas o que se vive através das histórias, os

processos internos que vão tecendo o imaginário das crianças.

Nas palavras de Paulo Machado, psiquiatra e terapeuta junguiano, os

rituais nas culturas tradicionais são instantes de Consagração, ou seja, de Tornar

Sagrado e exigem Iniciações. Iniciações são processos orientados de dentro para

fora que podem ser reclusão, abstinência, domínio psico-físico sobre o medo e a

dor, enfim, Sacrifícios. A questão do Sacrifício deve ser compreendida como um

Sacro Ofício, como a participação no Segredo. O que diferencia o Homem do

animal é a relação de significado, esta dimensão sagrada que procura desde

pequeno. A criança, como embrião da espécie humana, carrega esse Mistério

que deve ser acolhido. Distante de ser um processo global como nas culturas

tradicionais, a Educação carece de rituais de iniciação e formas de aquietamento.

As escolas atendem o aluno do ponto de vista técnico e a técnica nada mais é

que um conhecimento sem Iniciação. Portanto, contar histórias é importantíssimo,

elas funcionam como referências para o desenvolvimento da Consciência.

Lidando com o medo nas histórias, por exemplo, as crianças conquistam um

espaço interno. Não adianta explicar o transcendente a uma criança, ela precisa

vivenciá-lo, entrando em contato com as sensações do corpo (frio na barriga,

garganta seca, coração disparado, etc). Como ritos de passagem, as histórias

oferecem a oportunidade de Iniciação e crescimento.

Acrescentaria a este pensamento a definição do grande escritor brasileiro

Guimarães Rosa, na boca de seu personagem Riobaldo: o que o medo é, um

produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas se mexe, sacoleja, a

Page 9: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

gente pensa que é por causas, por isto ou por aquilo, coisas que só estão é

fornecendo espelho. A vida é pra esse sarro de medo se destruir.

Ao observarmos uma criança ouvindo uma história, percebemos o que é

uma atenção total; sua visão é transportada para onde a ação está ocorrendo.

Muitas vezes parecem até catatônicas, porque o exercício de conexões internas é

tão intenso que não resta energia para mais nada. Cada história requer um fluxo

novo de interações entre campos neurais e este exercício de conexões é a base

para o futuro pensamento concreto, abstrato, matemático, científico, filosófico,

enfim, para tudo o que consideramos uma Educação Superior.

Por isso, as crianças pedem mil vezes uma mesma história, a fim de que

se cumpra o ciclo de conexões a ela relacionadas. Não se trata de uma

necessidade de aprender o conto pois, desde a primeira vez, elas já têm uma

percepção integrada de todos os seus conteúdos como num cinema interno e em

nenhum instante perdem o fio da narrativa, cobrando do contador a total precisão

de detalhes: Não é assim! Quando você contou aquela vez você falou outra

coisa...

Somente quando os campos de imagem de uma história se estabilizam é

que as crianças podem partir para uma outra forma de participação. Nascem,

então, as histórias brincadas. São elas o teatro da primeira infância, onde não

existe a preocupação adulta de apresentar uma peça ensaiada, mas o puro

exercício de brincar as diversas personagens, se fantasiando, experimentando

papéis, trocando com o outro, internalizando possibilidades e lidando com os

limites que cada uma delas oferece. Antes de ser intelecto, a criança é instinto e

sensação; ela vai se conhecendo ao vivenciar com o corpo inteiro todas as ações

que sua imaginação lhe propõe como fatos reais em suas brincadeiras.

Para as crianças a hora é sempre AGORA, o lugar é AQUI e a ação é o

EU. O verdadeiro Brincar une. Enquanto brincam, uma realidade mais profunda

vai sendo revelada em um tempo/espaço com leis distintas daquelas que regem o

mundo adulto. Como escreveu o educador inglês Peter Slade: Ao pensarmos a

forma de arte do Jogo Dramático Infantil é preciso que nós, como adultos,

tomemos em consideração a diferença entre o que a criança faz na realidade e o

Page 10: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

que nós sabemos e entendemos por teatro (...). O jogo é na verdade a vida (...), a

maneira da criança pensar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, criar (...). Cada

criança é tanto ator como auditório (...), a ação tem lugar por toda parte e não

existe a questão de quem deve representar para quem e quem deve ficar sentado

vendo quem fazendo o quê (...). É uma forma de arte por direito próprio, a qual

deveria ser reconhecida, respeitada, alimentada e desenvolvida.

Segundo o terapeuta e teólogo francês Jean-Yves Leloup, a etimologia da

palavra esqueleto em grego é a mesma das palavras escola e escada. Ora, a

finalidade da escola é justamente devolver a alguém a sua coluna vertebral, o seu

eixo no mundo, não através da lei castradora do “você deve” e sim através da lei

estruturante do “você pode”.

Se esse processo for nutrido, isto é, se as crianças forem favorecidas

naquilo que são, personagens poderão desfilar como num conto de fadas:

bailarinas, palhaços, princesas, bruxas, animais, índios, cavaleiros poderão se

integrar, ora harmoniosamente, ora em pequenos conflitos nos enredos criados e

recriados por elas. Entre danças, desmaios e despertares, em meio ao mistério e

à alegria, contagiadas pela coragem e pelo medo, seguirão elas a caminhada

rumo ao ato heróico de enfrentar o perigo. A cada conquista novos desafios serão

projetados na eterna jornada humana: a Aventura da Consciência. Como

escreveu o poeta alemão Rainer Maria Rilke: Nós nascemos por assim dizer

provisoriamente em algum lugar; pouco a pouco é que compomos em nós o lugar

de nossa origem, para lá nascer mais tarde e, a cada dia, mais definitivamente.

Nascendo e morrendo nas brincadeiras, as crianças podem vivenciar suas

passagens, refazer caminhos internos e saltar; a cada nova vez é como se

crescessem um pouco mais. Da mesma forma, projetam em nós figuras como a

bruxa, a madrasta, justamente para confronta-las, destruí-las, transformá-las. Por

muitas e muitas vezes já morri madrasta para nascer mãe, já desmaiei bruxa para

despertar princesa...

A Natureza é o grande cenário onde a imaginação cria castelos, torres,

esconderijos, labirintos e armadilhas. O dinamismo é sempre ultrapassar o

conhecido, em direção ao desconhecido, explorar o NOVO, fazendo uso da

Page 11: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

capacidade de imaginação como agente determinante do processo criador.

Imersas no universo das imagens, é como se as crianças enxergassem o

mundo através de um caleidoscópio, mergulhadas na UNIDADE. A ruptura desta

Unidade pode comprometer o seu desenvolvimento harmonioso. O culto à

informação e a alfabetização precoce, por exemplo, antecipam a entrada da

criança em um tempo que não é o dela, sem que haja um amadurecimento real

para isso.

Acreditamos que como um embrião da espécie humana, a criança deve ser

respeitada em sua oralidade, pois irá, nestes primeiros anos de vida, refazer o

trajeto percorrido pelo Homem da linguagem oral para a escrita. E quando este

tempo se cumprir naturalmente, ela terá muito mais autonomia e criatividade no

contato com o texto escrito. Ela saberá como caminhar dentro dele porque a

história já foi brincada dentro dela. Apresentará, inclusive, grande riqueza de

vocabulário, pois ouvindo histórias, as crianças estão sempre aprendendo

palavras novas, contextualizadas em um SENTIDO. O livro então ganhará outro

significado: a descoberta da leitura.

Assim como as brincadeiras próprias de um povo, segundo Mário de

Andrade, falam das características de sua Alma, os contos originais apresentam

aspectos importantes da Alma Humana. Há contos de heróis masculinos e

femininos, contos de animais, contos inverossímeis e outros mais próximos da

vida comum. Podem estar presentes em qualquer parte do mundo, com

características culturais, históricas e geográficas do seu lugar, mas irão sempre

mobilizar o universo interno de cada um de nós, promovendo identificações,

confrontos e transformações.

Eros e Psiquê

Conta a lenda que dormia

uma princesa encantada

a quem só despertaria

um infante que viria

Page 12: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

do além do muro da estrada.

Ele tinha tentado,

vencer o mal e o bem

antes que, já libertado

deixasse o caminho errado

por o que à princesa vem

A princesa adormecida

se espera, dormindo espera;

sonha em morte a sua vida

e orna-lhe a fronte, esquecida,

verde, uma grinalda de hera.

Longe o infante esforçado,

sem saber que intuito tem

rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado

Ela, pra ele, é ninguém.

Mas cada um cumpre o destino:

ela, dormindo encantada;

ele, buscando-a sem tino

pelo processo divino

que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

tudo pela estrada afora,

e falso, ele vem seguro,

e, vencendo estrada e muro,

chega onde em sono ela mora.

Page 13: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Inda tonto do que houvera,

a cabeça em maresia,

ergue a mão, encontra a hera

e vê que ele mesmo era

a princesa que dormia

Fernando Pessoa

No espaço da história, a busca de uma saída é o que movimenta o herói e,

como escreveu o estudioso Joseph Campbell, o que rege o seu caminho é a

capacidade de seguir o próprio Coração. As crianças relacionam-se com o mundo

através desta consciência cardíaca e, em suas brincadeiras, compartilham a

mesma busca, uma vez que no mundo mágico da imaginação, elas têm total

maestria. Um dia, uma menina de seis anos me disse: Eu adivinho tudo o que vai

acontecer. Eu ‘previo’ o destino, só nas histórias, né? Nas histórias, eu sei. Uma

vez que você conta uma história pra mim é igual a mil vezes! Deus criou as

histórias pra todo mundo ouvir, sabia? Isto me lembrou outra história, um conto

tradicional judaico reescrito pela terapeuta junguiana e cantadeira Clarissa

Pinkola Estes:

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos:

Sempre fui o intermediário de vocês e agora, quando eu me for, vocês terão de

fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar na floresta onde eu invoco a Deus?

Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a

fogueira e sabem dizer a oração? Façam tudo isso, e Deus virá.

Depois que o Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu

exatamente às suas instruções, e Deus sempre veio. Na Segunda geração,

porém, as pessoas já se haviam esquecido de como se acendia a fogueira do

jeito que o Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficaram paradas no

local especial da floresta, diziam a oração, e Deus vinha.

Page 14: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a

fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo, e Deus

ainda vinha.

Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira,

ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deveriam ficar e,

finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa

ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo e a relatou em voz alta. E Deus

ainda veio.

Desde cedo, as crianças reconhecem as estruturas essenciais de uma

história, as combinações de personagens (exemplo: três filhos, duas irmãs, etc),

os obstáculos, as tarefas do herói e estabelecem relações: Olha, esta história é

igualzinha àquela, mas nessa é a moça que sai procurando e na outra é o moço!

Muitas vezes, enquanto conto uma história, alguém já me pede: Depois

você conta aquela? Então percebo que a associação de uma com a outra se deu,

seja pela estrutura próxima, ou por uma imagem parecida, ou uma palavra

marcante, alguma nuance de clima comum, etc. A relação é direta. Desta forma

também, as crianças vão se apropriando de imagens e pedaços de contos

tradicionais para inventarem as suas próprias histórias. Eu inventei

imediatamente, agora. Toda vez que eu falo uma palavra eu invento outra, contou

uma menina de 4 anos. Aí se encontra a maravilha da oralidade, onde uma

história pode virar brinquedo que pode virar cantiga, que pode virar ... E é este o

mesmo universo da Cultura Popular. O modo como um homem ou uma mulher do

povo contam suas histórias de boca é muito próximo da maneira das crianças, as

histórias vão se encadeando através desta colagem, da justaposição de imagens

com um Sentido.

Não existe uma hora para se contar histórias. As histórias permeiam toda a

vida das crianças, elas acontecem em qualquer lugar, no instante de um pedido:

Eu quero uma que você nunca contou, inventada e comprida.

Certo dia, enquanto lanchavam, eu contava uma história e um menino de 4

Page 15: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

anos levantou para repetir o lanche e me disse: Espera aí, bota um marcador na

sua boca que eu já volto! Eu me senti um livro ambulante. Dois anos mais tarde,

em situação parecida, uma outra criança me disse: Pause na sua boca que eu já

volto. Isso me fez lembrar uma história narrada pelo contador de histórias

canadense Dan Yashinsky, um fato ocorrido em uma aldeia africana quando lá

chegou o primeiro aparelho de televisão. Durante duas semanas um antropólogo

que estava nesta aldeia observou que todas as pessoas não fizeram outra coisa a

não ser olhar a tela luminosa, fascinadas. Então, gradualmente foram perdendo o

interesse e voltaram a ouvir o contador de histórias do vilarejo. Quando o

antropólogo perguntou por que tinham parado de assistir à TV se ela conhecia

muito mais histórias que o velho contador, um aldeão respondeu: A televisão

conhece mais histórias, mas o contador Me conhece.

As seguintes palavras de Paulo Machado vem de encontro a essa história:

Hoje vivemos a celebração da informação. Quando o computador substituir a

Escola Primária, com certeza a Educação do Futuro será contar histórias...

Outro dia também ouvi uma babá dizer algo relacionado a essa questão.

Ela estava preocupada porque a mãe da criança que ela cuidava no período da

noite havia acostumado o filho a dormir com a TV ligada desde recém nascido.

Naquela semana a televisão tinha quebrado e a babá não estava conseguindo de

forma alguma fazer a criança dormir. Indignada ela disse: Eu acho que se

televisão fosse mãe, nascia um monte de televisãozinha! Esta mesma babá

assistiu assustada à criança reproduzir agitados sons de televisão na cama em

uma tentativa de se auto-embalar, até finalmente cair no sono. Fiquei chocada

com este relato...

Sabemos que nada substitui o contato vivo entre o mistério de quem conta

uma história e o mistério de quem escuta. Mas o contador só será um bom

irradiador se estiver conectado com a sua verdade, se ao contar também estiver

vivendo aquela história: Eu ‘tava lá, tinha até trazido um prato de doces pra

vocês, mas na ladeira do escorrega, eu dei um tropeção e caiu tudo no chão!

Torna-se cada vez mais necessário dar espaço para esta troca, encontrar

maneiras de abrir os portais para que as histórias entrem. Nas palavras do

Page 16: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

contador de histórias espanhol Andrzej: Não quero impressionar as pessoas com

efeitos especiais, quero que elas voltem a escutar e contemplar. Quero encontrar

as proximidades, falar das coisas elementares, com sutileza. Despertar o silêncio,

a admiração, a abertura do coração de maneira mágica.

Deve haver um momento mágico para começar e terminar uma história, é

como se fosse uma reza, o início e o fim de uma cerimônia sagrada, disse uma

vez a contadora de histórias de Santa Catarina, Gilca Girardello. A nossa cultura

popular oferece inúmeros exemplos de formas de iniciar ou encerrar histórias

que, segundo Lydia Hortélio, devem ser usadas de acordo com a atmosfera do

conto:

Entrou por uma porta

Saiu pela outra

Rei meu senhor

Que lhe conte outra

Entrou pela porta

Saiu pela fechadura

E quem gostou da minha história

que me dê uma rapadura!

Entrou pela perna do pato

Saiu pela perna do pinto

E quem quiser

Que me conte cinco

Entrou pelo bico do pinto

Saiu pelo bico do pato

E quem quiser

Page 17: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Que me conte quatro

Diz que era uma velha

Chamada Vitória

Morreu a velha

E acabou-se a história

Diz que era uma Velha

Escondida na moita

Esticava uma perna

Encolhia a outra

E outras tantas inventadas pelas próprias crianças:

Entrou pela perna da Marina

Saiu pela perna do João

E quem gostou da minha história

Me dê um pedaço de pão

Entrou pela perna do João

Saiu pela perna da Marina

E quem gostou da minha história

Me dê uma gelatina

Ou pelos professores:

E uma estrela no céu brilhou

E a nossa história se acabou

Do céu caiu fulô

Um pássaro avoou

Page 18: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

E a nossa história começou

Entrou pela perna do pato

Saiu pela casca do ovo

Quem gostou da minha história

Que conte tudo de novo

Antes de contar uma história para ensinar alguma coisa, devemos

aprender com ela. As crianças sabem exatamente quando contamos e quando

fingimos que contamos. Elas sabem com clareza se estivemos lá mesmo... E é

por isso que também adoram aquelas histórias que aconteceram com os adultos,

algum episódio da nossa infância, do nosso dia-a-dia. Eu quero uma que

aconteceu na vida com você, me pediu um dia um menino de 4 anos.

Inevitavelmente estas histórias vêm carregadas de memórias e as contamos

impregnados de verdade:

Somente o vivido no mais profundo de nossas células nos faz evoluir. Só o

vivido é transmissível. É por este vivido, apenas, que nós podemos agir sobre o

que nos rodeia. Um anjo me perguntou um dia:

Tu compreendes a minha palavra?

Não a entendas, não a compreendas. Mas vive-as

(Diálogos com o Anjo, Gita Mallasz)

É esta a nossa Responsabilidade. Responsabilidade como a capacidade

de responder à Vida, a Grande Pergunta, a nossa Tarefa. Respostas que no

fundo já existem em alguma camada adormecida, encantada, escondida pelo

Page 19: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

mato que cresceu ao redor e vem apagando aquela luzinha que tem dentro...

A Linda Rosa juvenil, juvenil, juvenil

A Linda Rosa juvenil, juvenil

Vivia alegre no seu lar, no seu lar, no seu lar

Vivia alegre no seu lar, no seu lar

Mas uma Feiticeira má, muito má, muito má

Mas uma Feiticeira má, muito má

Adormeceu a Rosa assim, bem assim, bem assim

Adormeceu a Rosa assim, bem assim

Não há de acordar jamais, nunca mais, nunca mais

Não há de acordar jamais, nunca mais

E o Tempo passou a correr, a correr, a correr

E o Tempo passou a correr, a correr

E o Mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor

E o Mato cresceu ao redor, ao redor

Um dia veio um belo Rei, belo Rei, belo Rei

Um dia veio um belo Rei, belo Rei

Que despertou a Rosa assim, bem assim, bem assim

Que despertou a Rosa assim, bem assim

E os dois puseram-se a dançar, a dançar a dançar

E os dois puseram-se a dançar, a dançar

E batam palmas para o Rei, para o Rei, para o Rei

E batam palmas para o Rei, para o Rei

La ia la ia la ia la ia, la la ia, la la ia

La ia la ia la ia la ia, la la ia

História que virou brinquedo Acervo: Lydia Hortélio

Era uma vez uma Linda Rosa que tava cantando no rio. Aí ela viu uma

Page 20: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Bruxa muito má. Aí ela fez toc toc toc, aí a Bruxa fez assim pode entrar, aí ela

entrou. Aí ela falou assim eu posso aprender a fazer fuso, a fazer roca?. Aí ela

falou sim e aí ela pôs o dedo na roca e ela desmaiou. Aí a Rainha e o Rei abriu lá

na porta e ai, minha filha, coitada, eu acho que eu vou ligar pra um Príncipe! Aí

ele chegou e beijou ela e ela despertou ela. Aí eles foi pro casamento e ficaram

felizes para sempre. Fim

História contada por criança de 6 anos

Onde está a Margarida, olê olê olá/ Onde está a Margarida, olê seus

cavaleiros

Margarida tá no castelo, olê olê olá/ Margarida tá no castelo, olê seus

cavaleiros

Quero ver a Margarida, olê olê olá/ Quero ver a Margarida, olê seus

cavaleiros

Mas o muro é muito alto, olê olê olá/ Mas o muro é muito alto, olê seus

cavaleiros

Vou tirando uma pedra, olê olê olá/ Vou tirando uma pedra, olê seus

cavaleiros

Uma pedra não faz falta, olê olê olá/ Uma pedra não faz falta, olê seus

cavaleiros

Vou tirando duas pedras (...)

Apareceu a Margarida, olê olê olá/ Apareceu a Margarida, olê seus

cavaleiros!

História que virou Brinquedo Acervo: Lydia Hortélio

Linda Rosa e Margarida podem ser compreendidas como histórias da Alma

Page 21: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

adormecida, escondida, Alma que só será revelada se contarmos a nossa própria

história, de forma criadora, a cada dia. A contadora africana Inno Sorsy contou

certa vez: Aprendi o grande poder que as histórias têm de mudar a vida das

pessoas... Na mesma ocasião, sabiamente falou também o índio Daniel, da

nação Munduruku: Se tivesse que escolher somente uma história, uma história

para me casar, uma história predileta, eu me casaria comigo mesmo; com a

história que temos que contar todo dia, porque se não a gente fica um pouco

triste e não dá sentido à vida (...). É preciso ouvir com o coração. Se as palavras

conseguirem adormecer dentro do coração, quando acordarem, sairão histórias

novas, contadas a partir do sonho do contador...

Ô ma má do o ô (2x)

(Venham todos ao centro da Aldeia)

O o ô ié ié pe de mo ié (2x)

Ô ié ié pe de mo ié (2x)

O o ô ié ié pe de mo ié (2x)

(Vamos nos reunir para Brincar)

Dança da Nação Munduruku / Pará Informante: Daniel Munduruku

Assim como os contadores populares, os contadores da Tradição, assim

como as crianças, aprendamos a olhar para dentro, a saborear os climas das

histórias, a riqueza de suas nuances. É impossível, por exemplo, cantar o mato

cresceu ao redor como se canta o tempo passou a correr ; o tempo corre veloz, o

mato vai lentamente se entranhando nas ruínas do castelo. Da mesma forma, não

se pode cantar o instante em que a feiticeira adormece a Rosa do mesmo modo

como se canta o despertar da Princesa pelo Príncipe; há uma delicadeza nesta

hora, muito distinta da vibração enérgica daquela outra.

Aprendamos a preservar aquilo que seria o esqueleto da história, sua

estrutura fundamental e a entrar em contato com as nossas próprias personagens

Page 22: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

internas. Hoje em dia muitos acabam transformando enredos essenciais em

histórias “politicamente corretas”, nas quais de repente o lobo pode ficar bonzinho

e todo mal vai sendo varrido para debaixo do tapete...

O diretor e cineasta brasileiro Luis Fernando Carvalho pontuou com

clareza a necessidade de reaproximação desses padrões fundamentais: Acredito

em um patrimônio genético do Brasil, suas histórias, suas línguas, suas raças,

seus sons; tudo ainda vive, tudo me dá a sensação de que como arquétipos estão

à espera de reencarnar para continuarem suas missões éticas e estéticas (...). Se

tivesse que resumir tudo em uma só palavra, seria Ancestralidade. A

Ancestralidade é algo que nos permite imaginar mais que copiar. Sentir mais do

que descrever e explicar (...). A Ancestralidade transpassa fronteiras e,

inexplicavelmente, como Ela só, uniu João Cabral à Sevilha, Ariano Suassuna a

Cervantes. A Ancestralidade é o que há de mais moderno e ao mesmo tempo

mais arcaico (...). Tudo se reflete na Ancestralidade, seja Ela biológica ou

espiritual (...). Estamos todos trabalhando para devolver ao Brasil o fruto que o

próprio povo semeou. Os contos populares são essa semente. Aos olhos do

mundo globalizado de hoje, sinto ser este um trabalho de responsabilidade

imensa.

Assim como o povo conta suas histórias e as crianças brincam seus

contos, vivenciando cada personagem com o corpo inteiro, participando de cada

segredo, enfrentando diariamente seus medos, assim devemos atravessar o

portal das histórias.

Assim como as crianças enxergam o mundo com o olho do Coração e em

nenhum momento perdem o fio da narrativa porque suas imagens internas são

muito precisas, assim devemos olhar as histórias.

Assim como as crianças são capazes de saltar o medo e crescer depois de

uma história brincada - a ponto de um menino de 6 anos me dizer: Sabe, eu não

tenho mais aquele pesadelo porque agora eu sonho com essa história - assim

devemos aprender com as histórias.

Page 23: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Assim como as crianças mil e uma vezes pedem para repetir aquela parte

em que o monstro engoliu o herói – e mil e uma vezes perguntam: Mas não

mastigou, né? como garantia de que, mais cedo ou mais tarde, ele retornará,

Inteiro – assim devemos confiar nas histórias.

É por isso que não há receitas para a arte de contar histórias. Regina

Machado, contadora e escritora brasileira, costuma dizer: Não há técnica sem

Presença (...) É a história que me conta como quer ser contada. Sugestões e

planejamentos muitas vezes limitam e reduzem a experiência viva de um

professor em contato verdadeiro com seus alunos. Nas palavras da grande

dançarina Isadora Duncan: Nunca ensinei passos aos meus alunos. Eu lhes disse

que apelassem ao seu Espírito, como eu apelei ao meu. Arte é apenas isso.

Que possamos aprender com as crianças, pois como me contou um

menino durante uma brincadeira: Você não engravidou de mim não, tá? Eu é que

criei Eu. E como nos ensinou, mais uma vez, o contador de histórias Guimarães

Rosa: Mestre não é quem sempre ensina mas quem de repente aprende. E

ainda: Cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido.

Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste

em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Segundo ele:

Coragem é o que o coração bate; se não, bate falso.

Que o candeeiro das histórias permaneça sempre aceso.

Anda roda Candeeiro, anda roda sem parar (2x)

Todo aquele que errar, com Candeeiro há de ficar (2x)

Candeeiro – oi, ta na mão de iô iô, Candeeiro – á, tá na mão de iá ia

Coco de roda / Alagoas Grupo: Pagode – Mestra Hilda / Pesquisa: Elizabeth Menezes

Candeeiro anda à roda, anda à roda sem parar

Todo aquele que errar, Candeeiro há de ficar

Paspatu, paspará, Candeeiro Sinhá

Eu não sou de ninguém, Eu só sou de meu bem

Page 24: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Paspatu, paspará, Candeeiro Sinhá! Serrinha / Bahia

Informante: Alice Hortélio da Silva / Acervo: Lydia Hortélio

Este texto foi elaborado a partir de reflexões junto à equipe da Casa Redonda Centro de

Estudos.

www.casaredondacentrodeestudos.com.br

www.institutobrincante.org.br

www.cristianevelasco.blogspot.com

Uma pequena bibliografia para quem gosta de histórias: contos recolhidos da cultura

brasileira, contos de outros povos, recriações autorais de histórias da tradição oral e

também reflexões teóricas a partir do tema.

Page 25: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

ADELSIN. Barangandão Arco-Íris: 36 brinquedos inventados por meninos. 2.ª ed.

São Paulo: Peirópoles, 2008.

ALCOFORADO, Doralice F. Xavier; SUAREZ Alban, Maria del Rosario (Coords.).

Contos populares: Bahia. Recife : Fundaj, Ed. Massangana, 2001.

ANDERSEN, Hans Christian. Histórias maravilhosas de Andersen. São Paulo:

Companhia das Letrinhas, 1995.

AUBERT, Francis Henrik. Askeladen e outras aventuras. São Paulo: Edusp, 1995.

AZEVEDO, Ricardo. No meio da noite escura tem um pé de maravilha. São Paulo: Ática.

2002. ____. Armazém do folclore. São Paulo: Ática, 2000.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.

BELINKY, Tatiana. O Caso do Bolinho. São Paulo: Moderna, 1990.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Brasiliense. São Paulo: Brasiliense,

1994.

BOFF, Leonardo. O Casamento entre o Céu e a Terra. Rio de Janeiro: Salamandra,

2001

BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulus, 1992.

CALVINO, Ítalo. Fábulas Italianas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de mil faces. São Paulo: Cultix, 2002.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro,

1998.

____. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Editora Global, 2000.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

CHINEN, Allan B. ...E foram felizes para sempre. São Paulo: Cultrix, 1995.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. Lisboa: Editorial Caminho. 1994.

ESTÉS, Clarissa Pínkola. O Dom da História: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio

de Janeiro: Rocco, 1998.

____. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher

selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

FRANZ, Marie-Louise von. A individuação nos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1984.

____. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1990. ____. A sombra e o

mal nos contos de fada São Paulo: Paulus,1999.

GRENIER, Christian. Contos e Lendas: Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo:

Page 26: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Companhia das Letras, 2003.

GRILLO, Nícia de Queiróz (Org.) Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro: Dervish,

1993.

GRILLO, Nícia de Queiróz (Coords.). Três Histórias do Destino. Rio de Janeiro: Dervish,

1998.

GRIMM, Jakob. Os Contos de Grimm. São Paulo: Paulus, 1989.

JECUPÉ, Kaká Werá. A Terra dos Mil Povos. São Paulo: Peirópolis, 1998.

JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1981.

____. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

KERVEN, Rosalind. O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo:

Companhia das Letrinhas, 2000.

LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos - Uma antropologia essencial.

São Paulo: Vozes, 2004.

____. Uma arte de cuidar. São Paulo: Vozes, 2007.

LIMA, Francisco Assis de Souza. Conto popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro:

Funarte/ Instituto Nacional do Folclore, 1985.

MACHADO, Regina. O violino cigano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

____. Acordais: fundamentos teórico poéticos da arte de contar histórias. São Paulo:

Difusão Cultural, 2004.

MUNDURUKU, Daniel. As Serpentes que roubaram a noite e outros mitos. São Paulo:

Peirópoles, 2001.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

PEARCE, Joseph C. O fim da evolução. São Paulo: Cultrix, 1992.

____. A Criança Mágica. São Paulo: Francisco Alves, 1989.

PEREIRA, Maria Amélia Pinho. Casa Redonda: uma experiência em educação.

São Paulo: Livre, 2013.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

READ, Herbert. A redenção do robô: meu encontro com a educação através da arte.

São Paulo: Summus, 1986.

RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

ROMERO, Sílvio. Contos Populares do Brasil. São Paulo: Landy, 2000.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SARAMAGO, José. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras,

1998.

Page 27: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

SHAH, Amina. Contos da Arábia. São Paulo: Kadyc, 1999.

SILVA, Agostinho da. Textos Pedagógicos. Âncora.

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.

WALDE-MAR. Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros. São Paulo: FTD, 1999.

mídias Dvds, cds com histórias, cantigas e brincadeiras.

Brincadeiras de Roda, Estórias e Canções de Ninar. Gravadora Eldorado.

Brincando de Roda. Gravadora Eldorado.

O Pavão Misteriosos. Gravadora Eldorado.

HORTÉLIO, Lydia (pesquisa e direção dos cds)

Abra a Roda Tin Dô Lê Lê.

Ô, Bela Alice...

OCELOT, Michel (direção dos dvds):

Kirikú e a Feiticeira. Paulinas Multimídea.

Príncipes e Princesas. Mais Filmes.

As Aventuras de Azur e Azmar. Vídeo Filmes.

Algumas histórias contadas em nossos encontros:

Page 28: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

O PAPAGAIO REAL

Duas moças moravam juntas e eram irmãs, uma muito boa e outra

maldizente e preguiçosa. Cada uma tinha seu quarto. A mais velha começou a

notar um barulho de asa e depois fala de homem no quarto da irmã. Ficou

desconfiada e foi olhar pelo buraco da fechadura. Viu uma bacia cheia d'água no

meio do quarto. Quando deu meia-noite chegou na janela um papagaio enorme,

muito bonito e voou para dentro, metendo-se na bacia, sacudindo-se todo,

espalhando água para todos os lados. Cada gota d'água virava ouro e o

papagaio, quando saiu do banho, foi um príncipe mais formoso do mundo.

Sentou-se ao lado da irmã e pegaram a conversar animados como noivos. A irmã

ficou roxa de inveja. No outro dia, de tarde, encheu o peitoril da janela de cacos

de vidro, assim como a bacia. Nas horas da noite o papagaio chegou e batendo

no peitoril cortou-se todo. Voou para a bacia e cortou-se ainda mais. Arrastando-

se, o papagaio não virou príncipe, mas chegou até a janela e disse para a moça,

que estava assombrada com o que sucedera:

- Ai ingrata! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver, só no reino de

Acelóis.

E batendo asas desapareceu. A moça quase se acaba de chorar e de se

lastimar. Brigou muito com a irmã e deixou a casa, procurando o noivo pelo

mundo. Ia andando, empregando-se como criada nas casas só para perguntar

onde ficava o reino de Acelóis. Ninguém sabia ensinar e a moça ia ficando

desanimada.

Uma noite, depois de muito viajar, já cansada, ficou com medo dos animais

ferozes e subiu para uma árvore, escondendo-se bem nas folhas. Estava

amoquecada quando diversos bichos esquisitos chegaram para baixo do pé de

pau e pegaram a conversar.

- De onde chegou você?

- Do reino da Lua!

Page 29: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

- E você?

- Do reino do Sol!

- E você?

- Do reino dos Ventos!

A moça prestou atenção. No primeiro cantar dos galos sumiram-se todos e

ela desceu e continuou a marcha. Andou, andou, até que chegou noutra mata e

para não ser devorada, trepou-se numa árvore. Lá em cima, quando a noite ficou

bem fechada, chegaram umas vozes no pé do pau.

- De onde veio?

- Do reino da Estrela!

- De onde veio?

- Do reino de Acelóis!

- Que novidades me traz?

- 0 príncipe está doente e ninguém sabe como tratar dele...

A moça botou reparo e na madrugada seguiu no mesmo rumo pois as

vozes já tratavam do Reino de Acelóis. Andou, andou, andou, finalmente, quando

anoiteceu, estava dentro de uma floresta. Subiu para um pau e ficou quieta, lá em

cima. Mais tarde as vozes começaram na falaria:

- De onde vem você?

- Do reino de Acelóis!

- Como vai o príncipe?

- Vai mal, coitado, não tem remédio!

- Ora não tem! tem! O remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo

mindinho de uma moça donzela que queria morrer por ele!

Quando amanheceu o dia, a moça tocou-se na estrada. Ia o sol se

sumindo quando ela avistou o reinado de Acelóis. Entrou no reinado e pediu

agasalho numa casa. Na hora da ceia perguntou o que havia e disseram que o

assunto da terra era a doença do príncipe. A moça, no outro dia, mudou os trajes,

foi ao palácio e pediu para falar com o rei.

- Rei Senhor! Atrevo-me a dizer que ponho o príncipe bonzinho se rei

senhor me der, de tinta e papel, a metade do reinado e de tudo quanto lhe

Page 30: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

pertencer.

O rei deu, de tinta e papel, a metade de tudo quanto possuía. A moça foi

para o quarto, meou um copo d'água, furou o dedo mindinho, botou três gotas de

sangue dentro, misturou e mandou ele beber. Assim que o príncipe engoliu, foi

abrindo os olhos, levantando-se da cama e abraçando a moça, numa alegria por

demais.

O rei ficou muito satisfeito e quando o príncipe disse que aquela era a sua

verdadeira noiva desde o tempo em que ele estava encantado em um papagaio

real, o rei não quis dar consentimento porque a moça não era princesa. A moça

então falou:

- Rei Senhor! Tenho por tinta e papel a metade de tudo quanto é do rei

senhor neste reinado. O príncipe é do rei senhor e eu tenho por minha a metade

dele. Se rei senhor não quiser que eu case com ele, inteiro, levarei para casa

uma banda.

Ao ouvir falar em cortar o príncipe pelo meio, como a um porco, o rei

chegou-se às boas e deu o consentimento. Foram três dias de festas e danças e

até eu me meti no meio, trazendo uma latinha de doce mas na ladeira do

Encontrão, dei uma queda e ela, pafo! - no chão! ...

Benvenuta de Araújo.

(Natal. Rio G. do Norte)

Contos Tradicionais do Brasil / Câmara Cascudo

Page 31: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

A VÉIA DA GUDÉIA

Diz que era uma Véia escondida na moita,

Esticava uma perna, encolhia a outra.

Ela tinha uma boca larga, mole, com milhares de dentinhos muito agudos

(parecia boca de tubarão), um nariz cheio de curvas, as orelhonas

desmilinguidas, os olhos esbugalhados e o cabelo todo espetado feito porco

espinho. Era ela: a Véia da Gudéia.

Ela vivia numa gruta que fedia a podre, onde havia um tapete de cobras

vivas trançadas (era a caminha da Véia) e uma cortina feita de morcegos

pendurados de ponta cabeça, as portas eram teias de aranha e todo dia a tal Véia

acordava pronta pra fazer malvadezas (dizem até que uma vez ela chegou a

encantar um príncipe em Papagaio Real...é, minha gente, foi ela, a Véia da

Gudéia!). E no dia em que esta história começou, a Véia escancarou aquele

bocão num bocejo matinal e ela tinha um bafo, mas era um bafo tão forte que na

mesma hora ela fez desmaiar uma família inteira de baratas! Depois ela ajeitou

sua feiúra e saiu pelo mato afora:

EEEEEEEU sou a Véia da Gudéia/ Eu sou a Véia da Gudéia

Eu vou fazer uma malvadeza/ Vou fazer uma malvadeza

Eu sou a Véia da Gudéia!

Até que ela encontrou um palácio numa clareira e, no que a Véia entrou no

salão, olhou pro rei que vinha descendo as escadarias e ele virou uma estátua de

pedra. A rainha que vinha logo atrás segurando a saia com toda delicadeza para

o seu desjejum, virou foi uma estátua-de-pedra-de-rainha-segurando-a-saia-com-

toda-delicadeza-para-o-seu-desjejum. A princesa que brincava no jardim virou

Page 32: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

uma rosa triste que chorava gotas de orvalho. Mas o príncipe, muito rápido, muito

esperto, escapuliu pela janela e fugiu correndo dali, sem nem ao menos olhar pra

trás. Ele correu, correu e foi parando de reino em reino pra perguntar se alguém

sabia como é que se matava a Véia da Gudéia:

Por favor, vocês têm alguma idéia de como é que se acaba com a Véia da

Gudéia? (quem quiser pode imaginar...)

Mostrando um espelho pra ela? Colocando o narigão dela dentro da bocona pra

ela ficar entupida? Espetando o coração dela com os espinhos do seu cabelo?

Dando um bom banho na Véia? Escovando os dentes dela?

E como cada um falava uma coisa diferente, o príncipe foi ficando confuso,

porque se ele matasse a Véia do jeito errado, era capaz dela ficar ainda mais

perigosa. Então ele resolveu sentar debaixo de uma árvore pra ver se clareava as

idéias...

Só que o que ele não sabia, é que estava muito perto da gruta da Véia da

Gudéia. De repente ele começou a ouvir um barulho de passos, folhas secas se

partindo, era alguém que chegava, quem era? Quem era, gente? Não é que era

um Véio? E ele vinha cantando:

Óia, algodão doce/ Meniiiiiiino, tu quer comprar

Óooi, algodão doce/ Meniiiiiiino, tu quer comprar

Era um Véio magrela, que há dias não comia nada (ele vendia sim algodão

doce, mas fazia muito tempo que o algodão tinha acabado e o coitado continuava

cantando feito um maluco), então ele caiu despencado na bota do príncipe,

parecia um amontoado de ossos. O jovem que tinha um bom coração tirou o seu

próprio manto e cobriu o Véio, depois ofereceu a ele um punhado de frutas que

havia colhido. Devagar o Veio foi bicando as frutas, bicando (assim, de olhos

fechados, parecia um filhote de passarinho) e, já sentado, mais animadinho, disse

que faria qualquer coisa em troca da boa ajuda que o príncipe havia lhe dado. O

príncipe falou:

Ah, meu Véio, eu não preciso de nada não, a única coisa que eu queria era

Page 33: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

saber como é que se acaba com aquela Véia da Gudéia!

A Véia da Gudéia?!! (o Véio começou a pular, arrepiando a barbicha). Mas

ela é minha priiiiiiima! Desgraçada, desalmada de uma égua, desde menina a

peste só fazia malvadezas. Botava rabo de porco nos meninos, enfeitava o

bigode dos homens com pena de galinha e soltava muita perereca na saia das

mocinhas. Ela soltava, tirava, botava, soltava, tirava, botava, era uma agonia tão

grande mas tão grande que eu, o Véio, tinha que ir lá desamarrar os feitiços

daquela danada...Bem, o menino ajudou o Véio, o Véio vai ajudar o menino,

assim é a vida! Vou ensinar como é que se mata a Véia da Gudéia. Preste

atenção, você vai ter que ir até a gruta dela e chegando lá, não pode esquecer de

tapar o nariz que aquilo fede feito bacalhau podre!! Então, você vai procurar o

caldeirão da Véia, tem que ser o caldeirão da Véia pra funcionar e vai colocar

água pra ferver. Quando estiver borbulhando, você vai se esconder. Assim que

ouvir a Véia chegando, você vai por trás dela, cuidado que ela não pode te ver,

vai agarrar a Véia pelos calcanhares revirando a danada de ponta cabeça e vai

jogar aquela monstrenga no caldeirão. E era uma vez uma Véia da Gudéia! Ou eu

não me chamo Véio...

Óia, algodão doce! Meniiiiiiino, tu quer comprar ...

E foi exatamente isso que fez o príncipe. Primeiro ele espiou pra ver se a

Véia estava lá, não estava; entrou e logo num canto ele viu o caldeirão dela todo

descascado. Colocou água pra ferver e se escondeu. Dali a pouco ele começou a

ouvir a Véia que vinha chegando:

Eeeeeeeu sou a Véia da Gudéia/ Eu sou a Véia da Gudéia

Eu fui fazer uma malvadeza/ Eu fui fazer uma malvadeza

Eu sou a Véia da Gudéia!

E eu voltei muito louca/ E eu voltei muito louca

Agora eu vou tomar uma sopa/ Eu vou tomar uma sopa

Agora eu vou tomar uma sopa!

Page 34: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Quando a Véia viu seu próprio caldeirão já com água fervendo, ficou ainda

mais louca. Num piscar de olhos, o príncipe passou por trás dela, agarrou a Véia

pelos calcanhares, revirou a danada, jogou a peste no caldeirão e ela explodiu!

Pronto acabou. Assim foi, quem não tem cavalo monta no boi. (Vocês devem

estar aí parados, se perguntando o que aconteceu depois, não é? Está bem, eu

vou contar...) Tem gente que fala que a Véia virou um trovão. Outros já dizem que

ela virou a própria tempestade. Agora, um menino me contou que a Véia virou um

pum! Logo depois veio outro, amigo daquele e disse que não, que a Véia virou

tudo isso, e ao mesmo tempo: um pum que subiu e virou trovão que desceu como

tempestade e ali, onde a chuva caiu, aconteceu um mistério, um milagre daqueles

verdadeiros (foi o menino que me disse); ficou uma pocinha dágua (perfumada,

por incrível que pareça!), o perfume foi subindo, subindo e no meio do

rodamoinho nasceu uma moça toda iluminada:

Era luz o seu vestido/ Com mil estrelas do céu

Os cabelos bem mexidos/ Escorrendo para o chão

Olhos de um verde profundo/ Cor do mar em tempestade

A boca vermelha e doce/ Lambuzada de saudade

Avoou, avoou/ Avoou, deixa voar (2x)

No galho da imbaúba, gavião totoriá (2x)

Quando o príncipe viu aquela moça a sua frente ele disse: Véia da

Gudéia? A moça dançou cheia de graça: eu sou a princesa Gudeinha!! E é claro

que viraram namorados e sairam correndo de mãos dadas. Na mesma hora o

tapete de cobras vivas virou um tapete de flores do campo. A cortina de

morcegos, uma cortina de borboletas. E as portas de teias de aranha? (podem

imaginar, porque esse pedaço eu esqueci...). Só sei que conforme a princesa

corria, as estrelas foram se desprendendo das saias do seu vestido e virando

vaga-lumes na noite escura. Na verdade, não eram apenas mil estrelas, eram mil

e uma, mas aquela uma foi insistente e acabou ficando pousada bem na fita do

Page 35: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

decote da moça.

Quando os dois entraram no salão do palácio, o rei, a rainha, foram todos

se desencantando. A rosa triste no jardim se espichou toda e voltou a ser a

princesa, irmã do príncipe, que agora tinha perfume de rosa. E eles

comemoraram com alegria, e quem é que apareceu pra festejar? O Véio, que

mostrou que de Véio não tinha nada porque sacudiu o esqueleto até o sol raiar! E

eu estava lá (já vou logo avisando que não perco uma dessas festas!), dancei

com o Véio que quase me acabei. Sei que lá pelas três da madrugada eu escutei

quando bateram na porta, fui eu mesma que abri e, vocês não sabem, dei de cara

com uma Véia! Eu olhei pra ela, ela olhou pra mim e a Véia tombou seca,

estorricada no chão:

Diz que era uma Véia chamada História,

Morreu a tal Véia e ficou a Memória.

Conto criado em 2001, em meio às brincadeiras da Casa Redonda, por Cristiane

e pelas crianças, a partir do pesadelo de um menino de 5 anos e de alguns

trechos de histórias tradicionais escolhidos espontaneamente por todos. O nome

da personagem foi emprestado de lenda da Pedra do Baú em São bento Sapucaí.

A história foi re-elaborada para o projeto Dançando Histórias por Cristiane e pelo

músico Moxé Ribeiro que inseriu a cantiga do Veio, inspirando-se na figura de um

vendedor ambulante de sua infância em Recife.

Page 36: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

A PRINCESA QUE SEMPRE TINHA DE TER A ÚLTIMA PALAVRA

Era uma vez um rei que tinha uma filha tão geniosa e obstinada em falar

que sempre tinha de ter a última palavra; por isso, o rei prometeu àquele que

conseguisse deter sua língua a mão da princesa e metade do reino.

Eram muitos os que queriam tentar, pode apostar, pois não é todo dia que

se consegue a mão de uma princesa e a metade do rei só na conversa. O portão

do solar do rei não parava de se abrir e fechar um momento sequer; os

pretendentes chegavam aos bandos, em multidão, do leste e do oeste, a cavalo e

a pé. Mas não apareceu um só que conseguisse fazer a princesa se calar. Por

fim, o rei mandou proclamar que aquele que tentasse, mas não conseguisse, teria

as duas orelhas marcadas a ferro em brasa com aquele ferrete que ele tinha - ele

não ia tolerar aquela bagunça toda em seu solar a troco de nada.

Bem, havia três irmãos que também tinham ouvido falar da princesa e,

como as coisas não estavam indo às mil maravilhas em casa, resolveram partir e

tentar a sorte, quem sabe se não conquistariam a filha do rei e metade do reino?

Eles se entendiam e se davam muito bem uns com os outros e, assim, lá foram

eles, todos os três.

Depois de viajar durante algum tempo, o caçula, a quem chamavam de

Page 37: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Moço das Cinzas, encontrou uma gralha morta.

“Olhem só o que encontrei!”, gritou ele.

“O que foi?”, perguntaram os irmãos.

“Uma gralha morta”, respondeu ele.

“Credo! Joga fora! O que vai fazer com uma coisa destas?”, disseram os outros

dois, que sempre se achavam mais espertos.

“Ora, não tenho nada melhor para fazer, e nada melhor para carregar, de modo

que simplesmente vou levá-la comigo”, disse o Moço das Cinzas.

Depois de viajarem um pouco mais, o Moço das Cinzas encontrou uma

casca seca de salgueiro, e pegou-a do chão.

“Olhem só o que encontrei!”, gritou ele.

“O que foi que você encontrou agora?”, perguntaram os irmãos.

“Uma casca de salgueiro”, respondeu ele.

“Ora! O que vai fazer com isso? Joga fora!”, disseram os dois irmãos.

“Não tenho nada melhor para fazer, e nada melhor para carregar, de modo que

simplesmente vou levá-lo comigo”, disse o Moço das Cinzas.

Depois de andarem mais um pouco, o rapaz encontrou um pedaço de pires

quebrado, que também pegou.

“Rapazes! Olhem só o que encontrei! Olhem!” , gritou ele.

“Bem, o que foi desta vez?”, perguntaram os irmãos.

“Um pedaço de pires quebrado!”, respondeu ele.

“Ah! Não diga que vai levar isso aí também? Joga fora!”, disseram eles.

“Ora, não tenho nada melhor para fazer, e nada melhor para carregar, de modo

que simplesmente vou levá-lo comigo”, disse o Moço das Cinzas.

Depois de viajarem um pouco mais, ele encontrou um chifre torto de carneiro, e

logo depois, encontrou o seu par.

“Vejam só o que encontrei!”, gritou ele.

“O que foi desta vez?”, perguntaram os outros.

“Dois chifres de carneiro”, replicou o Moço das Cinzas.

“Ai! joga fora! O que vai fazer com eles?”, perguntaram.

“Ora, não tenho nada melhor para fazer e nada melhor para carregar, de modo

Page 38: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

que simplesmente, vou levá-los comigo”, disse o Moço das Cinzas.

E pouco depois ele encontrou uma cunha.

“Mas rapazes, olhem só o que encontrei?”, disse ele.

“Que belo monte de coisas você tem encontrado! O que foi desta vez?”,

perguntaram os dois mais velhos.

“Uma cunha”, respondeu ele.

“Ora, joga isso fora”, disseram.

“Ora, não tenho nada melhor para fazer e nada melhor para carregar, de modo

que simplesmente vou levá-la comigo”, disse o Moço das Cinzas.

E, enquanto caminhavam pelos campos em direção ao solar do rei - nos

quais tinham espalhado esterco recentemente – o Moço das Cinzas abaixou e

pegou uma sola gasta de sapato.

“Olhem só rapazes, vejam o que encontrei!”, disse ele.

“Se você pusesse um pingo de juízo na cabeça até chegarmos lá, o que foi desta

vez?”, disseram os dois.

“Uma sola gasta de sapato”, replicou ele.

“Aaai! E isso é lá alguma coisa que se pegue do chão? Joga fora! O que vai fazer

com isso?”, perguntaram os irmãos.

“Ora, não tenho nada melhor para fazer e nada melhor para carregar, de modo

que simplesmente vou levá-la comigo, se quiser ganhar a mão da princesa e

metade do reino”, disse o Moço das Cinzas.

“Sim, é bem capaz de você conseguir, bem capaz!”, zombaram os irmãos.

E então chegaram e forma apresentados à princesa – primeiro o mais

velho.

“Bom dia”, disse ele.

“Bom dia o seu nariz”, disse ela virando-lhe as costas.

“Está terrivelmente quente aqui”, disse ele.

“No meio do carvão está mais quente ainda”, replicou a princesa.

E lá estava o ferrete prontinho para ser usado. Ao ver aquilo, sua coragem fugiu-

lhe e não houve salvação.

O irmão do meio não se saiu melhor.

Page 39: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

“Bom dia”, disse ele.

“Bom dia, o seu nariz”, disse ela começando a lhe virar as costas.

“Está terrivelmente quente aqui”, disse ele.

“No meio do carvão está mais quente ainda”, disse ela.

Ao ouvir aquilo ele também perdeu a voz e a fala, o ferrete saiu do meio dos

carvões e foi usado novamente.

E então chegou o Moço das Cinzas.

“Bom dia”, disse ele.

“Bom dia o seu nariz”, disse a princesa dando-lhe as costas.

“Aqui dentro está agradável e quente”, disse o Moço das Cinzas.

“No meio do carvão está mais quente”, replicou a princesa. Um terceiro candidato

não melhorava em nada o seu humor.

“Será que posso assar a minha gralha ali?”, perguntou ele.

“Receio que ela vá queimar”, disse a princesa.

“Ah, isso não é problema! Vou por esta casca de salgueiro em volta”, replicou o

moço.

“É grande demais!”.

“Vou por uma cunha!”, disse o rapaz, e tirou a cunha da mochila.

“A gordura vai escorrer!”, disse a princesa.

“Vou pegá-la com isso!”, respondeu o rapaz e mostrou o pedaço de pires

quebrado.

“Você está torcendo as minhas palavras!”, disse a princesa.

“Não! Suas palavras não estão torcidas, mas isso aqui, sim!”, replicou o moço, e

tirou um dos chifres de carneiro.

“Ora, nunca vi uma coisa dessas!”, gritou a princesa.

“Aqui está outro igualzinho!”, disse o moço tirando o outro chifre da mochila.

“Você está resolvido a acabar comigo, não está?”, perguntou ela.

“Não, acabado está isso aqui”, respondeu o moço tirando a sola de sapato gasta

da mochila.

Ali a princesa ficou sem saber o que dizer.

“Agora você é minha!”, disse o Moço das Cinzas, e ficou com ela, e mais a

Page 40: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

metade do reino.

Conto Popular Norueguês, retirado do livro Askeladen e outras aventuras, de

Francis Henrik Aubert, e transformado na história brincada Maria Sabida e João do Uia.

A CABRINHA E A ONÇA

Era uma vez que tinha uma cabra que tinha um bocado de filho. (É curta

essa, viu?). Todo dia, ela saia pra mode comer e depois vinha dar leite aos filho.

Depois andou dizendo no mato que a Onça tava pegando os bicho pra

comer. Ela aí chegou em casa, disse:

-Olhe, meus filho, eu vou pro mato caçar. Quando vocês ver bater na

porta, vocês não abra, que quando eu chegar, eu canto pra vocês.

-Tá, mãe.

Aí ela saiu, foi pro mato. Ela aí comeu, comeu, comeu... Quando chegou,

ela aí bateu na porta (doce):

Abra a porta, meus filhinho

Page 41: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Água na boca, lenha nos chifre

Sal nas orelha, peitinho tá cheio

Aí os cabritinho abriu a porta, ela deitou e aí pegou a mamar. Mamou,

mamou, mamou. Ela tornou a dizer aos filhos:

-Quando bater na porta, não abra.

-Tá.

Aí a Onça veio, no outro dia a Onça veio (sombrio):

Abra a porta, meus filhinho

Água na boca, lenha nos chifre

Sal nas orelha, peitinho ta cheio

-É, bote os chifres aí debaixo da porta, pra eu ver se é minha mãe, não é

minha mãe não!

Aí não abriu a porta. Quando a Cabra veio, cantou pra eles:

Abra a porta, meus filhinho

Água na boca, lenha nos chifre

Sal nas orelha, peitinho ta cheio

Eles abriram a porta. Aí mamou. Quando acabou, disse pra mãe:

-Ô mãe, a Onça teve aqui.

Não abra a porta!

-Tá.

Quando foi no outro dia, a Onça foi, ficou escutando como é que a mãe

cantava. Quando ela saiu, aí a Onça veio (imitando a cabra):

Abra a porta, meus filhinho

Água na boca, lenha nos chifre

Page 42: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

Sal nas orelha, peitinho ta cheio

Eles abriram a porta pensando que era a Cabra. A Onça aí comeu. Comeu

e foi embora. Daqui a pouco chegou a Cabra. Toca a cantar(doce):

Abra a porta, meus filhinho

Água na boca, lenha nos chifre

Sal nas orelha, peitinho ta cheio

Nada. Ela tornou a cantar (aflita):

Abra a porta, meus filhinho

Água na boca, lenha nos chifre

Sal nas orelha, peitinho ta cheio

Nada. Ela aí se deitou, ficou deitada no chão e chorando. Aí ela chamou:

-Oh, compadre calango!

Aí o Compadre responde:

-Senhora!

-Vá dizer à Onça pra mandar meus filho!

-Sim, senhora!

E saiu. Chegou lá adiante, bateu na porta. Aí a Onça:

- Quem é?

A Onça ta lá, deitada como barrigão.

-Eu vim aqui que a Comadre Cabra mandou dizer que é pra mandar os

filho dela.

-Diga a ela que não tem filho dela nenhum aqui.

Aí ele saiu correndo. Aí chegou lá... chegou e disse pra comadre:

-Comadre, ela disse que não tem filho nenhum da senhora lá.

-E ela ta com a barriga grande?

-Tá.

Page 43: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

-Então meus filho ta é lá mesmo. Ô comadre Lagartixa!

Aí a Lagartixa disse:

-Senhora!

-Vá dizer à Onça pra mandar meus filho!

-Sim, senhora!

A Lagartixa foi. Chegou lá a mesma coisa. A Onça disse:

-Não tem filho dela nenhum aqui não.

A Lagartixa saiu. A Cabra chamou:

-Ô, comadre Formiguinha!

Aí a Formiguinha disse (aquela bem pequenininha):

-Senhora!

-Vá dizer à Onça pra mandar meus filho!

-Sim, senhora.

Quando chegou lá, tá a Onça lá deitada. Bateu na porta: toc toc toc! A

Onça tava deitada.

-O que é?

-Eu vim aqui que a comadre Cabra mandou dizer que é pra mandar os filho

dela.

-Eu já disse que não tem filho dela nenhum aqui.

Mas aí com a formiguinha já falou mais manso. Aí a formiga voltou e disse pra

comadre:

-Comadre, ela disse que não tem filho nenhum lá não.

Aí ficou espiando a Onça dormir. Quando a Onça tava dormindo, ela disse:

-A senhora tem uma faca aí amolada?

A Cabra disse:

-Tenho.

Amolou mais a faca. Amolou, amolou... Disse:

- Não se incomode não, que eu vou dar um jeito.

Aí picou a mão pelo buraco da fechadura. A Onça dormindo. Quando a Onça

estava roncando, ela foi lá, chegou lá, cortou-lhe a barriga da Onça e pegou os

Page 44: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

três filho da Cabra e trouxe.

Entrou por uma porta

Saiu pela outra

Rei, meu Senhor

Que me conte outra

Zildete Benedita Souza Santos (Detinha). Salvador, 06.05.84.

Recolhido por: Doralice Fernandes Xavier Alcoforado.

MARIA E O PEIXE ENCANTADO (uma Cinderela baiana)

Olhe, era uma que tinham duas comadres. Uma era rica e a outra era

pobre. Cada uma tinha uma filhinha. Todas duas, as menina se chamavam Maria.

A mulher pobre vivia sempre lá na casa da comadre rica trabalhando e levava

alguma coisa pra menina e tudo. Vivia sempre lá. A madrinha da menina tinha

vontade que ela desse ela pra trabalhar desde casa. Naquele tempo, não se

usava esse negócio de ter empregada. Então ela queria uma pessoa pra ajudar

em casa. Todo dia ela dizia:

Page 45: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

- Minha comadre, me dê a minha afilhada pr'eu criar. Dextá que eu cuido

dela direitinho. Me dê ela pra mim.

Mas ela sempre dizia:

- Não, minha comadre, eu não dou não. Eu só tenho essa. Não dou não.

Quando é um certo dia, ela convidou a comadre pra irem tomar um banho

no rio com a intenção de matar a comadre pobre pra ficar com a menina. A

menina já era sabidinha, tinha uns quatro ou cinco ano, era boba ainda. Ela

deixou ela em casa, e foram tomar banho. Que quando ela chegou no rio,

empurrou a mulher lá no poço e, naquele tempo, as pessoa não sabiam nadar,

não tinha negócio de nadar. Eu sei que a mulher morreu. Mas encantou, virou um

peixe, aquele peixe enorme! Ficou lá no poço. Quando ela chegou em casa:

- Minha madrinha, cadê minha mãe? Cadê minha mãe?

- Sua mãe ficou ali, minha filha, ela já vem. Ela ficou ali, não sei o quê, ela

já vem.

Ela brincando com a outra, a filha dela, distraiu e ali ficou e ali dormiu. De

noite, ela enganou ela, deu um cafezinho e tudo e ela esqueceu a mãe. Era

pequena, esqueceu. Daí, ela foi crescendo. Quando ela foi crescendo, ela tava

meninazinha de sete, oito anos, aí a madrinha já ajuntava aquelas trouxa de

roupa da casa toda, aquela rouparia enorme e mandava pela ir pro rio lavar. Ela

chegava no rio, botava a roupa no chão e aí ficava chorando. Daqui a pouco,

evém a água abrindo, evém aquele peixão, aquele peixe bonito! Chegava, botava

a cabeça fora, dizia assim:

- Maria, o que é que você tem, Maria, que tá chorando? Ela dizia assim:

- Ah, foi minha madrinha que mandou pr'eu lavar esta roupa e eu não sei

lavar.

- O peixe dizia assim:

- Me dá, Maria, a roupa que eu lavo.

Aí ela entregava a roupa e o sabão. O peixe engolia aquela roupa toda,

aquele sabão e tomava a cair lá no poço. Ela ficava por ali, brincando, subindo

nos paus, se balançando naqueles cipós que tem em beira de rio, ficava

brincando por ali. Quando era daí a pouco, não demorava muito não, meio-dia,

Page 46: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

antes de meio-dia, o peixe veio com a roupa toda lavada e seca já. Chegava de

fora assim, tirava a roupa toda da boca assim, puxando a roupa da boca e botava

toda fora, já lavada e seca. Ela, só era juntar a roupa, dobrava, fazia trouxa e veio

embora. Chegava em casa, a madrinha dizia assim:

- Maria, não foi você que lavou esta roupa. Maria! Como é que você já

lavou esta roupa bem lavada assim tão ligeiro?!

- Foi, minha madrinha, fui eu que lavei.

Mas ela, sabendo o que tinha feito, né, ela pensava que realmente podia

ter sido a mãe dela que tinha aparecido, mas não sabia que tinha sido

transformada num peixe. Aí na outra semana, ela mandou de novo a menina. O

peixe tornou a tomar a roupa pra lavar. Na terceira vez, ela mandou a menina

dela. Disse:

- Você vá pra ver quem é que lava esta roupa de Maria, porque ela não

sabe lavar esta roupa assim tão bem lavada.

A menina foi atrás dela. Ficou escondida por detrás, dentro do mato.

Quando, aí a pouco, Maria chegou na beira do rio – ela já não chorava mais que

ela sabia que o peixe vinha tomar a roupa –, ela já chegou e não ficou nem

chorando. Daí a pouco, o peixe chegou:

- Me dá, Maria, a roupa.

Maria entregou a roupa, o sabão, ele engoliu aquela roupa toda. Ela ficou

por ali brincando. Quando ele trouxe a roupa, ela foi embora. A menina, a filha da

mulher, voltou correndo, chegou em casa, disse:

- Minha mãe, é um peixe, mas é uma coisa linda, que toma a roupa de

Maria e lava!

Aí ela pensou logo: "Isto é a mãe dela". Aí ficou calada. Quando a menina

chegou:

- Maria, eu já sei quem é que está lavando esta roupa. Eu já sei que não é

você quem lava. Agora eu vou pegar este peixe pra mim comer.

Aí inventou que tava desejando e aí botou a rede no poço; não sei quantos

pescadores, cercou o poço de rede e aí pegaram o peixe. Mas no outro dia que

ela foi lavar, o peixe disse à menina:

Page 47: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

- Ói, a sua madrinha vai mandar me pegar, quando ela souber que sou eu

que tou lavando sua roupa; mas você não se incomode, não se importe. Só que

você não vai comer de mim nem um pedacinho, de jeito nenhum, nem pra ver se

tem sal. Quando terminarem de comer, você cata todas espinha, toda escama,

quem vai tratar, com certeza, é você que vai me tratar. Então você não deixa

perder nenhuma escama. Depois você embrulha num papelzinho e guarda pra

você ir enterrar na porta do reis, em horas que ninguém veja.

Assim mesmo ela fez. No outro dia, quando a mulher foi, pegou o peixe, aí

chegou em casa:

- Maria, trate este peixe.

Ela tá sabendo que é a mãe dela, né? Aí pegou o peixe, tratou o peixe,

chorando. Ela já tava... essa altura, ela tava crescida. Tratou o peixe todo,

quando cabou, aprontou. Aí sentaram, comeram. A madrinha:

- Maria, você não quer comer não? Não quer do peixe não?

- Não senhora, minha madrinha, não quero não.

Aí, quando cabaram de comer, ela catou toda espinha, toda escama, o

fato, tudo, juntou num papel e guardou. Quando foi de noite, tarde da noite, sem

ninguém ver, ela levantou, saiu, chegou na porta do reis, cavou um buraquinho no

chão, enterrou ali e voltou pra casa correndo. Quando foi de manhã, o príncipe

acordou com aquele cheiro exalando que entrava por a casa toda. Ele fez: "O que

é isso assim, que eu nunca senti este cheiro assim de manhã?" Ele levantou,

abriu a janela, tava aquele pé de flor lindo, na porta da frente, no lugar onde ela

enterrou! Tava aquele pé de flor com uma rosa em cima. Ele marchou pra tirar

aquela rosa, quem disse que ele tirou? A rosa subiu, ficou lá em cima. Aí veio

todo mundo, saiu todo mundo de dentro de casa, ninguém tirava a rosa. Ela tava

baixa. Aí, com pouco, ela subia, ficava lá em cima. Aí começou a chamar as

pessoas da cidade, todo mundo, que ele não tirou nem os de casa. Começou a

chamar as pessoas pra vim tirarem aquela rosa. Ele vendo que o negócio estava

difícil. então ele já disse que a moça... se fosse moça, que tirasse aquela rosa,

ele casaria; e se fosse homem ou uma senhora, que ele dividiria a riqueza, o

tesouro. Aí vinha todo mundo da cidade, ninguém conseguia tirar. Quando já tava

Page 48: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

sem ter mais ninguém pra mandar chamar, ele saiu assim fora, perguntou:

- Minha gente, vocês não tem mais ninguém em casa, não tem mais

criança, não tem mais pessoa nenhuma, aí? Não tem mais alguém em casa que

possa vim pra tirar esta rosa?

Aí um dizia: - Eu não tenho. Outro:- Eu não tenho. Aí a mulher disse assim:

- Ah, tem uma meninazinha lá - que era Maria, né, a madrinha dela - lá eu

tenho uma meninazinha, mas ela não pode vim não, tá muito suja, uma roupa

muito suja, não temo que calçar, nem nada.

Que dava todo maltrato à bichinha. O príncipe disse:

- Traga assim mesmo.

- Ah, mas ela tá com a roupinha muito ruim.

- Traga assim mesmo.

Aí evém Maria, descalça, que não tinha o que calçar, com o vestidinho... Aí,

quando Maria chegou, quebrou a rosa e deu ao príncipe. Aí a madrinha ficou...

- Mas Maria, podia ter sido você... - com a filha dela que também se

chamava Maria - que tivesse tirado! Mas, porque Maria foi tirar?!

Aí o príncipe botou Maria dentro de casa, pra acabar de crescer, que tava

muito nova, né? - a menina. Quando ela cresceu, ele casou com ela. E a

madrinha dela ficou só com a inveja e não arranjou nada porque a riqueza tinha

que ser de Maria.

Aí cabou.

Maria Carmelita de Almeida. Salvador, 17.07.88.

Recolhido por: Edil Silva Costa.

Page 49: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

O ESPELHO MÁGICO

O rapaz, órfão de pai e mãe, saiu pelo mundo para ganhar a vida. Ia por

um caminho quando viu uma pedra tapando a boca de um formigueiro e as

formigas lutando para arredá-la. O moço que tinha bom coração, abaixou-se e

tirou a pedra com cuidado para não matar as formigas. Quando acabou, uma

formiguinha falou:

- Se você se encontrar em dificuldades, diga: Valha-me o Rei das

Formigas.

O rapaz seguiu sua estrada e adiante encontrou um carneiro com uma

pata enganchada num arame. Soltou o bichinho. O carneiro disse:

- Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Carneiros!

Lá mais longe o rapaz viu um peixe dentro duma poça d'água rasa, quase

se acabando. O peixe estava com o lombo de fora, morrendo. O moço tirou-o da

poça e sacudiu numa lagoa perto. O peixe mergulhou, foi embaixo, veio em cima,

e falou:

- Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Peixes.

Quase avistando o reinado, o rapaz encontrou um gavião deitado no chão,

seco de sede. Levou-o, deu-lhe um banho, deixou ele beber água e soltou. O

gavião voou para um galho de pau e disse:

- Quando você tiver uma dificuldade, diga: valha-me o Rei dos Pássaros!

Chegando no reinado, o rapaz soube que a princesa tinha um espelho

mágico que mostrava todas as cousas escondidas. O espelho só tinha forças de

meia-noite até o primeiro cantar do galo. Quem se escondesse e a princesa não

descobrisse, casava com ela e se ela achasse, perdia o homem a vida. O rapaz

foi se oferecer para essa aventura.

Na primeira noite, procurou um canto fora do reinado e disse: Valha-me o Rei dos

Carneiros! O carneiro apareceu e o rapaz disse o que queria.

- Monte nas minhas costas! — O rapaz montou e o carneiro largou-se

correndo, de mato adentro, para umas brenhas fechadas onde havia uma gruta.

Deitou o rapaz na gruta e encheu os arredores de carneiros, uns por cima dos

Page 50: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

outros, que ninguém via outra cousa afora carneiro.

À meia-noite a moça puxou o espelho e procurou o rapaz, por todos os

lados. Tanto virou que deu com a gruta e o espelho mostrou o rapaz deitado no

chão, coberto de carneiros. A princesa tomou nota e foi dormir.

No outro dia o rapaz se apresentou.

- Onde eu estava escondido?

- Deitado no chão, dentro de uma gruta, rodeado de carneiros!

- Era isso mesmo!

O rapaz apelou para o peixe. Foi à beira-mar e chamou: Valha-me o Rei

dos Peixes! O peixe riscou na praia. O moço contou sua dificuldade. O Rei dos

Peixes mandou um turbarão engolir o rapaz e uma baleia engolir o tubarão e foi

para o fundo mar.

Na meia-noite, a princesa foi consultar o espelho. Caçou na terra e nos

ares e procurou nos mares, com tanto cuidado que descobriu onde o rapaz

estava dormindo. Na manhã, o moço apareceu e perguntou:

- Onde eu passei a noite?

- Dentro de um tubarão, este numa baleia, no fundo do mar!

- Era isso mesmo!

Dessa vez o rapaz chamou o gavião e contou sua agonia. O gavião levou-

o nas costas até em cima das nuvens e lá apareceu outro gavião ainda maior que

cobriu o Rei dos Pássaros com suas asas.

À meia-noite a princesa procurou o rapaz nas águas e na terra e não

achou. Procurou nos ares e não viu. Tanto olhou e olhou que enxergou um

pontinho escuro por cima das nuvens. Botou reparo e descobriu tudo. O rapaz,

quando veio ao palácio, perguntou:

- Onde dormi a noite passada?

- Em cima de um gavião, coberto por outro, em cima das nuvens!

- Era isso mesmo!

Como era o terceiro dia, o rapaz foi condenado à morte mas a princesa

ficou com pena dele e pediu ao rei para deixar o moço experimentar uma vez

mais. O rapaz ficou contente e foi valer-se do Rei das Formigas. Esse ouviu a

Page 51: Apostila do módulo de Contação de Histórias, por Cris Velasco

conversa toda e disse:

- O espelho descobriu você na terra, no mar e nos ares. Mas o espelho

não pode ver a própria princesa. Eu vou virar você numa formiga e você suba

para cima do vestido dela e esconde-se bem.

Dito e feito. O rapaz virou formiga, entrou no palácio, foi ao quarto da

princesa e subiu pelo vestido acima, bem devagar para ela não pressentir, e

escondeu-se na bainha da camisa.

À meia-noite a princesa procurou o rapaz em toda parte, virou e mexeu, e

nada de ver onde ele estava dormindo. Passou-se a hora das forças do espelho

encantado e ela não viu cousa alguma. Amanheceu o dia e o rapaz voltou a ser

gente e veio perguntar onde tinha dormido.

- Não sei onde você dormiu! Onde foi?

- Não digo enquanto não me casar com você!

Fizeram o casamento com muita festa e só depois de casado é que o

moço disse onde tinha passado a sua última noite de solteiro.

Cícero Salvino de Oliveira.

(Alexandria. Rio G. do Norte)

Contos Tradicionais do Brasil / Luis da Câmara Cascudo