apostila 02 politicas publicas e adminsitração pública participativa

54
1 MÓDULO 2 Políticas Públicas da cultura e administração ParticiPativa Políticas Públicas da Cultura e Administração Participativa 2

Upload: manohead-caricaturas

Post on 16-Dec-2015

7 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Apostila 02 POLITICAS PUBLICAS E ADMINSITRAÇÃO PÚBLICA PARTICIPATIVA Diagramada

TRANSCRIPT

  • 1MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    Polticas Pblicas da Cultura e Administrao Participativa

    2

  • EXPEDIENTE

    Governo Federal

    Presidente da Repblica Federativa do Brasil | Dilma Vana Rousse

    Vice-Presidente da Repblica Federativa do Brasil | Michel Temer

    Ministra da Cultura | Marta Suplicy

    Secretria Executiva | Ana Cristina da Cunha Wanzeler

    Secretrio de Articulao Institucional (substituto) | Bernardo da Mata

    Machado

    Universidade do Rio Grande do Sul

    Reitor | Carlos Alexandre Netto

    Vice-Reitor | Rui Vicente Oppermann

    Pr-Reitora de Extenso | Sandra de Deus

    Diretor da Escola de Administrao | Hugo Fridolino Mller Neto

    Chefe do Departamento de Cincias da Administrao | Takeyoshi Imasato

    CONTEDO E EXECUO

    Equipe Tcnica

    Coordenao | Rosimeri Carvalho da Silva

    Vice-Coordenao | Sueli Goulart

    Analista Tcnica | Eloise Helena Livramento

    Dellagnelo

    Corpo Docente | Cristina Amlia Pereira de

    Carvalho, Diogo Demarco, Eloise Helena Livramento

    Dellagnelo, Fernando Lopes, Jos Marcio Barros, Maria

    Ceci Misoczky, Mariana Baldi, Rogrio Fae, Sueli Goulart.

    Equipe de apoio | Felipe Borges Amaral, Fernanda

    Acosta, Guillermo Cruz, Maria do Carmo Dambroz, Patrcia

    Tometich, Willian Ansolin.

    Diagramao | Mrcia Mylius

    C331 CARVALHO, Cristina Amlia Pereira de.

    Polticas pblicas da cultura e administrao participativa / Cristina Amlia Pereira de. - Porto Alegre: Ministrio da Cultura/UFRGS/EA, 2014. 54 p. - (Mdulo 2. Apostila do Curso de Extenso em Administrao Pblica da Cultura).

    1.Polticas pblicas. 2. Polticas culturais. 3. Gesto cultural. 4. Administrao pblica. I. Ttulo

    CDU 351

    Catalogao na publicao: Tnia Fraga CRB 10/765

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

    Escola de Administrao

    Rua Washington Luiz, 855

    90010-470 Porto Alegre RS

    Fone: (51) 33083991

    www.ufrgs.br/escoladeadministracao

  • 3MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    Sumrio

    CULTURA, POLTICA E SOCIEDADE ............................................................................................. 5

    O que cultura? ........................................................................................................................................................................... 5

    Poltica e Sociedade ................................................................................................................................................................... 8

    POLTICA E CULTURA: O PERCURSO HISTRICO DE UMA DUALIDADE ................................ 13

    A Era Vargas, as polticas culturais na constituio do Estado Nacional ............................................................ 14

    O projeto cultural sob a ditadura civil-militar ................................................................................................................. 17

    A redemocratizao e a poltica cultural .......................................................................................................................... 19

    A mudana no fazer da poltica para a cultura .............................................................................................................. 23

    NA ARENA DA CULTURA, GERENCIALISMO X PARTICIPAO POLTICA .............................. 27

    Quando a cultura mercadoria ............................................................................................................................................ 31

    O exemplo peculiar do artesanato ...................................................................................................................................... 32

    A participao poltica na gesto da cultura .................................................................................................................. 33

    Construo e institucionalizao do Sistema Nacional de Cultura ...................................................................... 37

    O caso singular do Programa Cultura Viva ..................................................................................................................... 41

    O PCV como ponto de mutao das polticas pblicas de cultura no Brasil ................................................... 43

    Contrapondo para compreender ........................................................................................................................................ 45

    Pontos de Exclamao, Interrogao e Reticncias..................................................................................................... 48

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................................ 51

    Indicao de Leituras Complementares ........................................................................................................................... 54

    MDULO 2 POLTICAS PBLICAS DA CULTURA E ADMINISTRAO PARTICIPATIVA

    PARTE I

    PARTE II

    PARTE III

  • 5MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    MDULO2

    PARTE

    I

    Refletir sobre as especificidades e desafios da poltica e da gesto pblica para a cultura implica em compreender os conceitos que lhe servem de base, isto , compreender o que cultura ou sero culturas? , o que poltica, a quem ela serve e que matizes h no modo de gesto. Este texto apresenta alguns dos debates possveis a respeito destas questes, assumindo, no entanto, que no os nicos possveis. Por se tratarem de assuntos carregados de prticas polticas cujos contornos esto inseridos nas vises de mundo que lhe do sentido, tm inevitavelmente um vis ideolgico, como qualquer outra possibilidade de debate teria.

    Reconhecer estes vieses no fragiliza a discusso, nem abdica do desafio de enfrentar as questes importantes da gesto pblica do nosso tempo, mas identifica de onde parte o discurso e o propsito do debate, neste caso para o fortalecimento e radicalizao da democracia.

    o que cultura?Uma das razes que nos obrigam a tentar entender o

    que significa cultura que o significado que viermos a atribuir ao conceito vai delimitar o alcance das polticas culturais das administraes pblicas. Estas se orientam pelo princpio da finalidade e, portanto, devem estar claramente delimitadas pelo escopo de seu fim nos limites do que compreendido na lei. Isto significa que as polticas pblicas da cultura no podem operar sobre questes educacionais ou assistenciais, e vice versa. Por essa razo, importante esclarecer em que consiste o campo de abrangncia das polticas culturais, j que nele devero se enquadrar as aes propostas.

    Cultura, PoltiCa e SoCiedade

    manohead

    manohead

  • 6 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    Albino Rubim, professor da Universidade Federal da Bahia e atual Secretrio de Cultura do Estado, afirma que, ao adotar a concepo antropolgica de cultura, o governo central ampliou a abrangncia da interveno das polticas culturais para o mbito das culturas populares, afro-brasileiras, indgenas, das periferias, etc.

    Para qualificar esta discusso, decidimos recuperar as origens do termo cultura. Como muitos na nossa lngua, remonta ao Latim, significando o cultivo e cuidado com plantas e animais. O antroplogo francs Denys Cuche (1999), ao escrever sobre a evoluo do termo, afirma que ele adquire um sentido figurado no qual representa uma ao que serve para desenvolver uma faculdade ou a realizao de potencialidades. Desta maneira aproxima-se do significado que ir adquirir no sculo XVIII, o Sculo das Luzes da revoluo iluminista, quando se associa francamente com as ideias de progresso e razo.

    A filsofa Marilena Chau (2008), seguindo o mesmo raciocnio, defende que cultura se assemelha agora a civilizao e progresso. As sociedades passam a ser medidas e comparadas pelo seu grau de civilizao, que determinado pelas suas prticas culturais. A cultura torna-se medida e critrio para hierarquizar as sociedades, afirma ainda Chau (2008), e a referncia padro o modelo ocidental capitalista. O padro dominante formado pelo seu modo de organizar a economia por meio da supremacia dos mercados, das relaes salariais e das trocas mercantis e pelo modelo estruturador do conhecimento adotado pelas sociedades ocidentais; s demais, restou a denominao de sociedades primitivas.

    Esta uma clara construo etnocntrica das ideias, na qual se forma uma hierarquia das naes e dos povos, classificados em estgios avanados e primitivos. Estes ltimos estariam fadados a desenvolver esforos para alcanar aqueles. Neste ponto, diz Cuche (1999), o termo cultura empregado no singular para indicar o carter universalista da

    ideologia iluminista, que o aproxima de civilizao.

    Marilena Chau Filsofa brasileira (1941).Professora de Filosofia da Universidade de So Paulo, escritora, foi Secretria de Cultura da cidade de So Paulo de 1989 a 1992. Tem dedicado sua obra a escritos filosficos ( especialista em Espinosa) e escritos sobre filosofia para os no filsofos. Atuante e militante poltica, oferece um arcabouo terico importante para se pensar a poltica brasileira como um todo e, em especial, a sua relao com a cultura. Dentre as suas principais obras esto: Da Realidade sem Mistrios ao Mistrio do Mundo; Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritria, Introduo Histria da Filosofia, O que Ideologia, Poltica em Espinosa, Cidadania Cultural, Simulacro e poder.

  • 7MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    I

    2MDULO

    Percebe-se nestes pargrafos o quanto cultura arena de disputa de significados. Tanto a sua apropriao por diferentes reas das cincias como a popularizao de seu uso resultam em diferentes propsitos. No Brasil, nos ltimos anos, tm sido bastante disseminados o debate e o enfrentamento entre as dimenses sociolgica e antropolgica da cultura, depois de o ministro Gilberto Gil ter amplamente reverberado que o Ministrio da Cultura passaria a orientar-se pelo conceito antropolgico. Nunca um debate entre a sociologia e a antropologia foi to amplamente popularizado como neste caso.

    Dimenso sociolgica. [...] no se constitui no plano do cotidiano do indivduo, mas sim em mbito especializado: uma produo elaborada com a inteno explcita de construir determinados sentidos e de alcanar algum tipo de pblico, atravs de meios especficos de expresso. Para que essa inteno se realize, ela depende de um conjunto de fatores que propiciem, ao indivduo, condies de desenvolvimento e de aperfeioamento de seus talentos, da mesma forma que depende de canais que lhe permitam express-los. Em outras palavras, a dimenso sociolgica da cultura refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, polticas e econmicas, tendo, portanto, visibilidade em si prpria. Ela compe um universo que gere (ou interfere em) um circuito organizacional, cuja complexidade faz dela, geralmente, o foco de ateno das polticas culturais, deixando o plano antropolgico relegado simplesmente ao discurso. (BOTELHO, 2001, p.74).

    Na dimenso antropolgica, a cultura se produz atravs da interao social dos indivduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenas e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivduo ergue sua volta, e em funo de determinaes de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade. Desse modo, a cultura fornece aos indivduos aquilo que chamado por Michel de Certeau, de equilbrios simblicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporrios (BOTELHO, 2001, p.74).

    Gilberto Gil Msico brasileiro e ministro (1942). Conhecido pela sua atuao como cantor-compositor no desempenho da qual figurou nos principais movimentos culturais brasileiros como o Tropicalismo e Doces Brbaros, Gilberto Gil entrou para a histria do pas, tambm, na qualidade de Ministro da Cultura do Governo Lula, protagonizando uma nova proposta poltica para a cultura, entendida agora como um elemento central para a incluso social e o desenvolvimento humano.

    Como j afirmamos antes, o significado atribudo aos conceitos vai delimitar o alcance das polticas e a ao das administraes pblicas; por isso, a distino entre as duas dimenses da cultura representa no um exerccio diletante mas, ao contrrio, a luta para determinar o tipo e o carter da

  • 8 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    ao governamental. Esta pode ter como objeto de sua atuao um universo abrangente de cultura ou um universo especfico das artes. Tudo vai depender do que ser considerado cultura.

    Dimenso fundamental para a transformao social, a cultura encerra um sentido que a faz permear a tessitura da sociedade e as polticas pblicas. Numa sociedade desigual como a nossa, a produo, a disseminao e a fruio da cultura sero o resultado dessa desigualdade, e, certamente, refletiro a hierarquia social existente. com essa preocupao que Chau (2008) relacionou as variaes da ideia de cultura popular desde uma perspectiva romntica (que v a cultura como a expresso do esprito do povo), at perspectiva iluminista (que a identifica como superstio e ignorncia, passvel de ser corrigida pela educao) todas partindo de diferentes projetos polticos.

    Poltica e SociedadeA poltica inerente ao nosso cotidiano. a poltica que

    d a forma e a maneira de conviver com as diferenas e os conflitos sem que seja necessrio recorrer ao uso da fora. Esse convvio se intensificou quando as sociedades comearam a se organizar formando cidades. A conformao das cidades, cuja origem sempre apontada na polis da Grcia antiga, provocou a criao de espaos pblicos de convivncia e debate entre os habitantes, que se contrapunham aos espaos privados restritos aos domnios familiares das residncias. Esses espaos pblicos tornaram-se locais de mediao e negociao entre os habitantes que ali expunham e debatiam seus diferentes interesses.

    Foi o exerccio da poltica que permitiu a convivncia nos espaos comuns da Polis, pois ele que facilita uma forma de organizao das relaes de poder na sociedade. Apesar de o exerccio de poder e a autoridade j existirem antes da emergncia da polis, eles no existiam na forma poltica, explica Chau (2004a), mas to somente na sua forma desptica

    Plis ou Cidade-Estado uma experincia de organizao social e poltica surgida na Grcia no sculo XII a.C., aproximadamente, consistindo em cidades independentes cujas decises polticas eram tomadas por cidados na gora, espao de discusso e deliberaes. Ser cidado, na Grcia antiga, era um privilgio dos bem-nascidos, ou seja, dos proprietrios de terras. Cabia a eles a deliberao, conseguida atravs de processo de votao, sobre os destinos polticos das Cidades-Estados. Essa experincia tornou-se o modelo inspirador para novos modelos de exerccio do poder para as sociedades ocidentais, tornados realidade pela Revoluo Francesa em 1879.

  • 9MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    I

    2MDULO

    ou patriarcal. Em um sentido geral, a poltica pode significar todo o modo de direo de grupos sociais que envolva poder, administrao e organizao.

    Para Hannah Arendt (2004) a poltica funda-se na pluralidade da sociedade humana, na convivncia entre os diferentes e na possibilidade da igualdade dos direitos. Em sua definio, a poltica um meio de respeito s diferenas e pluralidade e de estabelecimento da liberdade.

    Pela constante negociao entre ticas e interesses conflitantes, a poltica possibilita o convvio, mas, como afirma Chau (2004a, p. 353), apesar de ter inventado a poltica como soluo e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenas, conflitos e suas contradies, sem escond-los sob a sacralizao do poder e do governante e sem fechar-se temporalidade e s mudanas, a sociedade tambm inventou o Estado, como um modo de ordenar as relaes polticas.

    Para compreendermos o funcionamento e os modos de insero ou interveno na gesto das polticas pblicas, condio necessria compreender as concepes tericas sobre o Estado que esto, cada uma, atreladas a suas respectivas vises de mundo.

    Nas democracias capitalistas, a ideia do bem comum est implcita nas teorias clssicas do Estado que predominam. Segundo Martin Carnoy (1986), o pensamento vigente de que o Estado o resultado de uma concepo consciente produzida por um contrato social. Na maioria das constituies das democracias capitalistas ocidentais, o Estado corporifica o bem comum em substituio lei divina que regia as relaes entre os indivduos e entre os governantes e os governados.

    Um dos representantes da doutrina clssica do Estado, John Locke, defendia que a proteo da propriedade privada que justifica a existncia do Estado e, portanto, que o contrato social poderia ser desfeito sempre que ela no fosse respeitada. Para o filsofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, o contrato

    Hannah Arendt Filsofa alem (1906-1975).Sua obra transitou pela teoria poltica e pela filosofia e imprescindvel para refletir sobre as principais questes do sculo XX. Dedicou-se a entender a condio humana e o exerccio do poder. Esto entre as suas principais obras os livros Origens do totalitarismo, A condio humana, Crises da Repblica e O que Poltica.Recentemente, sua vida foi tema de filme: Hannah Arendt. Dir.: Margarethe Von Trota. 2013.No link aqui indicado, voc poder conhecer a extenso de sua vida e obra e entender o alcance de seu trabalho:Fonte: http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/28/artigo210008-1.asp.

  • 10 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    social seria capaz de estabelecer um Estado garantidor da liberdade e da igualdade, de acordo com a vontade geral do povo, mas desde que a propriedade privada fosse preservada como o mais sagrado dos direitos.

    Por sua vez, representante da doutrina liberal, Adam Smith defendia que os homens so essencialmente movidos por interesses individuais e motivaes econmicas e que, orientada desta forma, a ao humana maximizaria o bem-estar coletivo. Para ele, a funo do Estado seria, ento, instituir um sistema legal capaz de fazer funcionar livremente o mercado e, por conseguinte, maximizar os benefcios (CARNOY, 1986).

    Em suma, apesar de suas diferenas, para estas tendncias tericas o papel do Estado otimizar o funcionamento livre do mercado e, por conseguinte, maximizar os benefcios dos estamentos dominantes.

    A perspectiva marxista de Estado veio provocar uma ruptura com o pensamento conservador ao defender que o Estado no o defensor do bem-comum, mas o representante dos interesses de uma parte da sociedade. Marx apontou que o Estado era no uma entidade abstrata e universal, mas, sim, a expresso do conflito de classes e um meio de manter as relaes entre elas, ou seja, manter a dominao. neste preciso sentido que Viana (2003, p. 9) escreve que o Estado uma relao de dominao de classe mediada pela burocracia com o objetivo de manter e reproduzir as relaes de produo s quais ele est submetido.

    Por isso o Estado no um elemento neutro e igualitrio que molda a sociedade no sentido da harmonia entre os indivduos; ao contrrio, ele moldado pela sociedade desigual e excludente e, por isso, no est acima dos conflitos de classe, precisamente porque a expresso poltica da estrutura inerente produo capitalista, defende Carnoy (1986). O que a teoria marxista de Estado desconstri a ideia de um interesse comum universal, fundador e justificador do Estado; ao faz-lo, tambm afirma que ele instrumento de dominao de uma classe.

    Karl Marx Filsofo, economista e cientista poltico alemo (1818-1883)A contribuio do pensamento de Marx para a compreenso da sociedade moderna e o desenvolvimento do capitalismo enorme. Dedicou-se a compreender no s os mecanismos de funcionamento de um modo de produo especfico (o capitalismo), mas tambm a desvendar as vrias formas de obscurecer a explorao do trabalho, propondo aes de superao. Alm dos estudos de economia, desenvolveu conceitos-chave para entender as relaes sociais, tais como ideologia, classes sociais, luta de classes, materialismo histrico. Dentre as suas principais obras figuram O Capital, Ideologia Alem, 18 Brumrio, Manifesto Comunista.

  • 11MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    I

    2MDULO

    Para o pensador italiano marxista Antonio Gramsci (1999), o Estado compreende, dialeticamente, dois segmentos distintos e vinculados que so, por um lado, a sociedade poltica, responsvel pela gesto do espao pblico, que compreende os aparelhos de coero, como o exrcito e a polcia mas tambm a administrao, os tribunais e a burocracia, e, por outro lado, a sociedade civil, que engloba o conjunto de organizaes responsveis pela construo da direo moral e intelectual da sociedade, tais como o sistema escolar, as igrejas, os partidos polticos, os sindicatos, os meios de comunicao, as editoras, etc. A dominao, mediante a coero, exercida pela sociedade poltica, enquanto que, no seio da sociedade civil, as classes dominantes buscam aliados para conquistar e manter o consenso social e poltico. Por isto, incorreta, ainda que muito disseminada, a ideia de que a sociedade civil um campo pacfico, no qual se constri o consenso de forma harmoniosa. Esse modo distorcido de compreender o que a sociedade civil e o que nela acontece, muito difundido no campo das aes da cultura, gera, segundo Liguori (2006), uma noo equivocada de autonomia em relao ao Estado.

    Recorrendo a uma analogia com a guerra, Gramsci diz que

    na guerra de posio que, na sociedade civil, so construdos o consenso e a direo moral e intelectual da sociedade mas, tambm, que se desenrolam o conflito e a competio entre os movimentos de dominao e de emancipao.

    Atualmente, afirma Norberto Bobbio (2004, p. 51), a sociedade se reapropria do Estado, e houve um processo no apenas de estatizao da sociedade, mas tambm

    [...] de socializao do Estado atravs do

    desenvolvimento das vrias formas de participao

    nas opes polticas, do crescimento das organizaes

    de massa que exercem direta ou indiretamente

    algum poder poltico, donde a expresso Estado

    social poder ser entendida no s no sentido de

    Estado que permeou a sociedade mas tambm no

    sentido de Estado permeado pela sociedade.

    Antonio Gramsci Filsofo e cientista poltico italiano (1981-1937)Militante e um dos principais intelectuais marxistas do sculo XX. Preso pelo fascismo italiano por 8 anos, aproximadamente, foi na priso que escreveu seus cadernos do crcere uma coletnea de escritos analticos sobre poltica e sociedade. So de Gramsci as principais contribuies para as teorias sobre hegemonia, Estado, sociedade civil.

  • 12 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    O discurso de participao da sociedade civil toma vulto, sobretudo, pelo seu papel nos processos de redemocratizao vividos no final do sculo passado, no desmantelamento das experincias socialistas ou na crtica aos Estados de bem-estar social e seu desrespeito autonomia de setores sociais.

    Numa leitura contempornea sobre sociedade civil, como tambm dos espaos pblicos no-estatais, o pensador alemo Jurgen Habermas confere ao direito um papel central na estruturao da vida democrtica, na elaborao e na regulao de normas que possibilitaro a busca do consenso na ao comunicativa. Para o autor, a sociedade considerada concomitantemente nas esferas poltica e pblica. As estruturas sistmicas do Estado e da Economia so separadas das estruturas comunicativas do mundo da vida, onde se localizam a participao, a opinio pblica e a famlia, e ambas so cruzadas pelas esferas pblica e privada. No h viso dualista na distino entre Estado e Sociedade, mas a esfera pblica, constituindo-se como local de disputa entre princpios divergentes quanto sociabilidade, tem por essa razo uma posio central na formao da vontade coletiva. nela que a sociedade civil se torna uma instncia de deliberao e legitimao dos poderes polticos e que os cidados podem exercer os seus direitos subjetivos pblicos (VIEIRA, 1999).

    Em Habermas a autonomia do espao pblico uma forma de revalorizar a primazia da comunidade e da solidariedade afirma Vieira (1999) e ainda possibilitar a libertao da sociedade civil, tanto dos controles burocrticos do Estado como das imposies econmicas do mercado, sendo ambos considerados como esferas isoladas das relaes sociais. Acrescentando-se ainda o carter indispensvel da consolidao das formas de assegurar a participao de todos, sobretudo de grupos minoritrios, pelo discurso, sem considerao do contedo, tem-se que a esfera pblica a instncia geradora de decises coletivas e legitimadoras da democracia (VIEIRA, 1999, p. 229).

  • 13MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    MDULO2

    PARTE

    II

    Para compreendermos as razes da relao Estado-Sociedade no Brasil, temos que retroceder a um tempo anterior ao estabelecimento de um Estado Administrativo nos anos 30.

    Chau (2004b) aponta uma origem teolgica nas nossas razes populistas, por estabelecerem a teocracia dos dominantes e o messianismo dos dominados. Ela explica que o populismo um poder que busca realizar-se sem uma mediao poltica, uma vez que opera numa relao direta entre governantes e governados, estabelecendo uma tutela baseada numa relao de favor e clientelismos. Ele se assume transcendente ao social, ao mesmo tempo em que faz parte dele, mas tambm se caracteriza como poder desptico que encarnado e incorporado na figura do governante populista, cujo poder ilimitado e absoluto. Em sntese. Chau (2004b, p. 21) nos diz que sendo desptico, teolgico e autocrtico, o poder populista uma forma paradigmtica de autoritarismo poltico.

    Assim foi a base sobre a qual se estabeleceu a relao poltica entre o Estado e a sociedade no Brasil. A tradio autoritria perdurava mesmo aps o estabelecimento de um Estado administrativo, aspecto que, junto com o intervencionismo, marcou a era Vargas. Nesse perodo, os anos 30, instala-se um governo autoritrio, mas tambm predominantemente populista, que faz das massas urbanas a sua base de sustentao, enquanto se estabelece um corporativismo de Estado classista, em cujos conselhos de deciso poltica apenas os empresrios tinham assento.

    PoltiCa e Cultura: o PerCurSo hiStriCo de uma dualidade

  • 14 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    Entre 1946 e 1964 a relao do controle estatal explcito bafejada pelos ventos democratizantes do ps-guerra, e o governo populista estabelece alianas e realiza cooptaes de lderes sindicais (TAPIA, 2004). Com a ditadura civil-militar (1964-1985), o Estado assume, novamente, postura autoritria e repressora na relao com a sociedade, reforando seu desenho tecnocrtico-corporativista e levando, por um lado, ao esvaziamento da elite poltica e, por outro, ao controle e submisso da classe trabalhadora.

    As mudanas sofridas pelas polticas culturais podem ser compreendidas melhor por meio destes elementos fundantes de alguns dos perodos significativos da histria republicana brasileira, a saber: o perodo ditatorial do Estado Novo, que vai do golpe de estado de 1937 at deposio de Getlio em 1945; a ditadura civil-militar, de 1964 at metade da dcada de 80; a partir da, o perodo do restabelecimento da democracia, cujos pontos altos foram a criao do Ministrio da Cultura (MINC) em 1985 e a promulgao da Constituio em 1988; e, desde 2003, o governo progressista, que promove a ampliao do conceito de cultura.

    a era Vargas, as polticas culturais na constituio do estado Nacional

    O Estado Novo instalado no Brasil quatro anos depois de Salazar implantar, em Portugal, em 1933, uma ditadura que inspira mais do que apenas a denominao do regime brasileiro. Em 1937, portanto, o governo, aproveitando o temor provocado pelo Plano Cohen , fraude produzida pelos integralistas, impede a realizao das eleies j marcadas e instala um poder ditatorial.

    Getlio Vargas assume a presidncia sob a marca do autoritarismo e do populismo. Embora a combinao possa parecer estranha, mostra-se eficaz para conduzir um projeto poltico assente no repdio ao comunismo, nas suas origens, e, imediatamente na sequncia, tambm ao liberalismo. No texto

    Estado Novo Nome atribudo ao perodo histrico que se seguiu golpe de Estado planejado e executado por Getlio Vargas e seus aliados, em 1937. Depois de sua ascenso ao poder pelo movimento de sublevao de 1930, permaneceu como chefe do Governo Provisrio; contudo, novas eleies democrticas foram marcadas para 1937. Utilizando-se de um documento falso o Plano Cohen Getlio Vargas e seus aliados deflagraram um golpe de Estado caracterizado por centralismo, nacionalismo, anticomunismo e autoritarismo, uma ditadura que vigorou at 1945.

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil Promulgada em 1988 por uma Assembleia Constituinte aps 25 anos de ditadura civil-militar, assegura diversas garantias constitucionais com o objetivo de proteger os direitos fundamentais dos cidados brasileiros no combate a diversos tipos de abuso de poder. Est em seu texto, por exemplo, a obrigatoriedade para realizao de eleies diretas, a responsabilidade fiscal de governantes, a definio de tortura como crime e o entendimento de serem a educao, a sade e a cultura direitos de todo cidado, e assegur-los, obrigao do Estado. A Constituio de 1988 j teve 77 emendas constitucionais e 6 emendas de reviso.

    Plano Cohen Documento forjado pelo ento capito do Exrcito Olimpio Mouro Filho, com o objetivo de atribuir ao Partido Comunista brasileiro um plano de golpe de Estado e assim justificar o golpe de Estado dado por Getlio Vargas e seus aliados, em 1937. Surgiu assim o Estado Novo, uma ditadura de Estado que durou 15 anos.

  • 15MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    da Constituio de 1934, o voto direto e secreto, a alternncia no poder, a garantia dos direitos civis e da liberdade de expresso asseguravam uma nova ordem jurdico-poltica.

    O golpe de estado surge, no discurso oficial amplamente veiculado, para sustar a desagregao da sociedade brasileira e o desrespeito autoridade. O Congresso Nacional fechado, e os partidos polticos so proibidos; os estados da federao so submetidos ao poder central ao mesmo tempo que, em nome da eficincia e da racionalidade administrativa, modernizado o aparato estatal. A forte represso que se seguiu andou, porm, de mos dadas com a modernizao gerencial, ilustrada pela criao do Departamento Administrativo do Servio Pblico (DASP) ou do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). A meritocracia na administrao pblica e o desenvolvimento do pas coexistiam com a eliminao dos opositores ao governo e a reduo das disputas polticas. A eficincia tcnica imps sua fora ao exerccio das diferenas.

    No mbito da cultura, assiste-se a um investimento significativo no plano simblico/ideolgico, com o objetivo de legitimar o projeto nacional do regime. E a cultura foi um campo poltico importante na construo da estratgia de estado. Dria (2007) afirma que quando se trata da administrao cultural, o perodo Vargas visto como o ponto alto da trajetria do Estado brasileiro. Forma-se uma estrutura institucional de promoo de polticas pblicas para a cultura. So criados o Ministrio dos Negcios da Educao e Sade Pblica, o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e diversos institutos nacionais para as artes. Pertencem a esse perodo tambm, afirma Moiss (1998), as iniciativas de criao e consolidao dos principais museus pblicos do Brasil.

    A formulao das polticas de carter preservacionista direcionada ao patrimnio histrico. Preservao e glorificao dos heris so o mote, e as palavras do ento diretor do Museu Histrico Nacional, recolhidas por Dria (2007), so elucidativas: O Brasil precisa de um museu onde se guardem objetos valiosos espadas, canhes, lanas.

  • 16 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    Os bens culturais classificados como patrimnio

    deveriam fazer a mediao entre os heris nacionais,

    os personagens histricos, os brasileiros de ontem

    e os de hoje. Essa apropriao do passado era

    concebida como um instrumento para educar a

    populao a respeito da unidade e permanncia da

    nao (CPDOC, 1997).

    A cultura nunca havia sido um instrumento poltico to

    importante. Nessa altura ela j era uma pea fundamental na

    construo ideolgica do regime. Para esse fim concorreu o

    Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), utilizando-

    se amplamente do cinema. Foram produzidas obras que

    apelavam imagem da identidade nacional, ajustada ao gosto

    do Estado centralizador, que era responsvel por definir os

    valores culturais que deviam ser preservados pela sociedade,

    associando cultura e poltica como condio para o progresso

    social. As instituies culturais obtiveram autonomia, mas,

    em contrapartida, em razo do isolamento tcnico a que

    foram reduzidas, no ofereciam nenhuma ameaa ao regime

    (Cury, 2002). Era total seu descolamento das necessidades da

    sociedade e da maioria da populao.

    Se o Estado Novo se imps em 1937, levado pelos

    ventos da ascenso nazista na Alemanha, foi tambm a vitria

    da democracia ao final da Segunda Guerra que acelerou seu

    declnio. Embora os espaos criados e administrados por

    uma viso extremamente tcnica sofressem presso para a

    politizao de sua ao, a matriz administrativa formada nessas

    duas dcadas havia consolidado a base e o desenvolvimento

    institucional da administrao pblica da rea cultural,

    marcando-a pelo isolamento e a imunidade. Os rgos

    pblicos, confinados ao insulamento burocrtico e isolados da

    sociedade, tinham dificuldades em justificar suas polticas, o

    que gerava resistncias no apoio e na execuo (Moiss, 1998).

  • 17MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    O quadro mostrava polticas excludentes, uma burocracia

    insensvel e descolada da realidade social, caracterizada por um

    pas com altos ndices de analfabetismo, entre outros desnveis

    gritantes, e represso poltica que desencorajava reaes dos

    setores populares.

    o projeto cultural sob a ditadura civil-militar

    O que se seguiu ao Estado Novo no foi, entretanto,

    uma fase de pujana democrtica. A alternncia ocorreu pelas

    mos de setores conservadores que implantaram uma poltica

    econmica liberal de nefastas consequncias para a imensa

    maioria da populao. No plano poltico comeou neste perodo

    a forte influncia estadunidense sobre o pas. No governo de

    Juscelino Kubitschek, uma fase desenvolvimentista porm

    de marcado cunho econmico impulsiona o Brasil, mas o

    perodo da ditadura militar que marca elementos diferenciais

    para as polticas culturais.

    Este perodo, que se inicia com o golpe militar de maro de 1964 e vai at o inicio da dcada de 1980, sucede ao nacional-desenvolvimentismo do governo Kubitschek e ao perodo democrtico de Joo Goulart , o presidente deposto. Instala-se um regime ditatorial marcado pelo autoritarismo, a represso e, novamente, a eliminao fsica dos opositores. No Estado reforado o desenho tecnoburocrtico e o esvaziamento da poltica. Mantm-se a dominao burocrtica pela gesto pblica que estrutura uma relao autoritria do Estado com a sociedade e reprime as iniciativas de participao crtica. Apesar disso, ou por isso, muitas formas e atos de resistncia se estruturam e questionam o regime: partidos polticos, grupos armados e, no mbito da cultura, os Centros Populares de Cultura.

    Diversas estruturas pblicas so criadas no perodo; o recm formado Departamento de Assuntos Culturais do Ministrio da Educao (MEC) centraliza os assuntos culturais e artsticos, aumentando-lhes a importncia no conjunto das

    Nacional-desenvolvimentismo Assim ficou popularmente conhecido o Plano de Metas, um programa de desenvolvimento posto em ao pelo ento presidente Juscelino Kubitschek, eleito democraticamente em 1955. O programa props o desenvolvimento econmico do pas pelo crescimento da industrializao e da infraestrutura.

    Perodo democrtico de Joo Goulart Joo Goulart foi o ltimo presidente brasileiro eleito democraticamente antes da ditadura civil-militar que dominou o pas de 1964 a 1985. Eleito como vice-presidente de Jnio Quadros em 1960, aps a renncia deste (1961) assumiu a presidncia do pas em meio a uma presso avassaladora das foras polticas conservadoras, que no o apoiavam. Durante seu curto tempo de governo (1961-1964), procurou implementar polticas de avano social, com reformas de base. A proposta ficou conhecida como Plano Trienal e previa reformas importantes para o avano social e econmico do pas, como a reforma agrria, reforma poltica, reforma educacional, reforma fiscal, reforma eleitoral e reforma urbana.

  • 18 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    polticas do governo. Em 1978, j na fase final do regime militar, uma nova estrutura de coordenao dos assuntos culturais do MEC formada: a Secretaria de Assuntos Culturais que, em 1981, transformada em Secretaria da Cultura da presidncia da Repblica, adquirindo importncia, prestgio e recursos para atuar (Moiss, 1998).

    Mesmo assim, no se verifica o acesso da sociedade cultura. A maioria da populao continua alijada das atividades culturais e apenas uma parte da intelectualidade tem algum acesso s decises dos rgos pblicos. Moiss (1998: 31-32) acrescenta:

    a ao dos governos militares na rea da cultura,

    se foi acompanhada da criao e da reordenao

    de instituies, revelando interesse de se ampliar o

    papel do Estado, teve tambm sua face repressiva ao

    censurar filmes, peas de teatro, publicaes e outras

    formas de expresso cultural; ao mesmo tempo em

    que se criavam estruturas de apoio e de expanso

    das atividades culturais, restringiam-se meios de

    expresso artstica e cultural, repetindo, de certa

    forma, o que havia ocorrido nos anos 30. Por isso,

    tambm no perodo dos governos militares, a cultura

    voltaria a ser objeto da ao dos tcnicos da rea.

    Apesar da represso do regime, forma-se um amplo movimento cultural de resistncia e, para Albuquerque (2004, p.19), uma emergente contracultura que se alastra pelo pas e fora dele; os novos movimentos tornaram-se espaos de rompimento de subordinaes [...] de recusa de um lugar e de uma cidadania regulados e restritos [...] fez desses movimentos sociais construtores de uma nova esfera pblica no Brasil.

    Em 1975, o Centro Nacional de Referncia Cultural, ligado ao Ministrio da Indstria e Comrcio, inaugura uma atuao na qual se separam as reas da cultura e da educao. Apesar de mantida uma viso protecionista do Estado sobre a cultura, inaugurada uma nova prtica no setor cultural: realizao

  • 19MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    de seminrios, com tcnicos de vrias reas que atuam junto sociedade civil, rearticulando os canais de reivindicao do setor. a politizao das aes do poder pblico h tanto reivindicada, mas na qual se percebe uma incluso controlada de novos atores sociais por meio de estratgias de participao concedidas pelas administraes pblicas.

    A Poltica Nacional de Cultura, instaurada em 1975 e sucednea do Plano de Ao Cultural, marca a histria das polticas culturais do pas por ser a primeira vez que um governo coloca em pauta uma poltica nacional na rea. Neste aspecto a marca est na ampliao do alcance das polticas, no tempo e no espao, que suplantam as aes imediatas e pontuais mas que, entretanto, no abandonam o carter centralizado de sua formulao.

    a redemocratizao e a poltica cultural

    O modelo corporativista entra em colapso com a crise

    do regime militar, associada a dois processos que marcaram a

    dcada de 80: a luta pela democratizao e a crise econmica.

    Com o fim do perodo militar, a dcada marcada por uma

    forte movimentao da sociedade civil, que abre espao para

    a nova experincia democrtica no Brasil, notadamente na

    gesto pblica da cultura.

    O processo de reconquista da democracia tem o ponto

    alto na elaborao daquela que veio a ser conhecida como a

    Constituio Cidad. O texto constitucional de 1988 reorienta

    as noes de cultura e de patrimnio, que abandonam a

    estreita vinculao com fatos memorveis da Histria do Brasil

    (noo atrelada firmemente ao passado), e insere o sentido do

    patrimnio cultural e a memria dos grupos sociais.

    Celso Furtado, destacado intelectual e personalidade da esquerda brasileira, torna-se ministro da cultura. As polticas pblicas mostram arejamento democrtico e reorientao

    Celso Furtado Economista brasileiro (1920-2004)Dedicou seu trabalho a pensar o Brasil e sua condio de economia perifrica na ordem da economia global. Foi pesquisador da CEPAL (Comisso Econmica para a Amrica Latina), tendo colaborado na formulao da Teoria do Subdesenvolvimento. No Brasil, foi responsvel pela elaborao e implementao de vrios projetos e programas voltados ao desenvolvimento. Foi Ministro do Planejamento do governo Joo Goulart e Ministro da Cultura do governo Jos Sarney. Dentre suas principais obras figuram Formao econmica do Brasil; Razes do subdesenvolvimento e Cultura e desenvolvimento em poca de crise.Para saber mais visite o Centro Internacional Celso Furtado de Polticas para o Desenvolvimento: http://www.centrocelsofurtado.org.br/index.php

  • 20 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    conceitual. promulgada a primeira lei federal de incentivo fiscal cultura, marco na relao do Estado com a comunidade artstica, conhecida como Lei Sarney, em homenagem ao presidente da Repblica. A nova lei, que buscava atrair investimentos privados para o financiamento da cultura mediante iseno fiscal, abre ao mercado as decises sobre a cultura. Foi a forma escolhida para atender crescente presso da sociedade para um maior financiamento cultura: estimular a relao entre produtores e artistas com empresrios, o que, claro, fortaleceu a concepo liberal da gesto de cultura ao deixar a conduo das aes a cargo do mercado.

    A Constituio Federal de 1988 foi igualmente um marco nas estruturas de representao ao diversificar e pluralizar a representao dos interesses e garantir a participao direta dos cidados (Tapia, 2004; Almeida, 2004). Um novo arcabouo legal obrigou a repartio das receitas entre governo federal, estados e municpios gerando um aumento dos investimentos culturais e criando mecanismos para concretizar as transferncias constitucionais de recursos e garantir a autonomia poltica e fiscal das administraes estaduais e municipais.

    O governo do presidente Fernando Collor, eleito em 1990, realizou uma imploso do sistema de cultura, lenta e penosamente criado no pas. Foram extintos mecanismos, experincias e instituies culturais (como o recm-criado Ministrio da Cultura) e dispensados milhares de servidores pblicos. O objetivo declarado era a conteno dos gastos pblicos, num quadro econmico instvel, o que de fato aconteceu ao ser reduzido o oramento federal para a cultura em mais de 50% em relao ao perodo anterior, fato que foi agravado pela desativao de Lei Sarney.

    A sociedade civil no foi consultada em toda esta convulso, mas resistiu ao desmonte institucional exigindo, de mltiplas formas, a recomposio dos instrumentos polticos obtidos nos anos anteriores, o que levou formulao, em 1991,

  • 21MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    de um projeto substitutivo da lei Sarney, em vigor at hoje. A destituio do presidente Collor pelo Congresso Nacional, em um complexo processo de impeachment, permitiu o incio da reconstruo da estrutura institucional que existira.

    Embora a marca dos discursos dos governos social-democratas desse perodo fosse a democratizao da administrao da cultura e o acesso aos bens culturais, o que ocorreu foi a maximizao da efetividade e a ampliao dos mecanismos de fomento privado cultura atravs das leis de incentivo.

    Esse sistema tinha uma bvia predominncia de critrios mercantis na sua aplicao, e por isso v-se, a partir de 1995, a proliferao de institutos e fundaes culturais de bancos e outras grandes empresas, que ali desguam parte de seus impostos devidos, ao quais o Estado renunciou, e decidem sobre a alocao desses recursos. Define-se assim o rumo das aes culturais que se dirige priorizao dos eventos e aes para o grande pblico, pois so eles que trazem maior retorno de marketing para as empresas investidoras.

    A redemocratizao de cunho neoliberal, iniciada nos anos 80, continuou o que j se podia perceber na fase descendente do regime ditatorial: uma participao concedida que abria espao a novas experincias na gesto pblica da cultura. No obstante, sob forte tutela estatal, espaos e formas de participao no abrangiam os efetivos palcos de deciso. Foi fortalecida, neste perodo, uma concepo liberal da gesto de cultura, deixada a cargo do mercado por intermdio dos mecanismos de fomento privado facilitados pelas leis de incentivo fiscal.

    Embora os novos atores sociais tenham emergido no palco das polticas culturais, s aos detentores do capital econmico estava franqueada a possibilidade de conquistar posies de poder no campo da cultura.

    Impeachment de Fernando Collor de Mello Em 1992, diante de uma sria acusao de forte esquema de corrupo, que envolvia a si e a seu tesoureiro de campanha, Paulo Csar Farias, o presidente Fernando Collor de Mello submetido a um processo de impeachment (impugnao de mandato). Foi o primeiro ato de impeachment ocorrido na Amrica Latina. No Brasil, a impugnao de mandato prevista pela Constituio Federal e regulada pela Lei 1079/50.

  • 22 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    Este formato legal acaba por no mudar a dependncia em relao aos recursos pblicos, pois o mecanismo do mecenato tornou-se um mero repasse de verbas pblicas. O poder de fato exercido pelas empresas, que deliberam sobre o uso dos recursos como se fossem seus. aos detentores do capital econmico que vai caber definir as regras do jogo e apontar a conduo da poltica para a cultura no Brasil.

    Os sistemas de incentivo so permeados pela lgica do mundo dos negcios, da eficincia, dos relatrios e prestaes de conta, da concorrncia por recursos escassos, e passam a constituir a realidade das organizaes culturais. Pressionadas, elas despendem grande parte de seus esforos na tentativa de padronizar seus produtos e resultados e de homogeneizar seus formatos organizacionais para se adequar s exigncias dos financiadores.

    A invaso de critrios de eficincia e eficcia (e a cristalizao dessa lgica, estranha ao campo das organizaes culturais) teve o Estado como principal instrumento, atravs das polticas implementadas. Mesmo que indiretamente, o Estado pressionava para a ocorrncia de uma homogeneidade de estruturas e aes das organizaes e das manifestaes culturais. O poder pblico proveu apoio gerencial s organizaes culturais oferecendo-lhes, por exemplo, modelos de regulamentos capazes de nortear suas aes nos seus aspectos formais/legais.

    Em alguns casos, o Estado fez-se presente por intermdio de agncias reguladoras, cuja funo era orientar as prticas de gesto, e incentivou a formao de redes de organizaes representativas, tais como federaes, sindicatos, associaes e institutos, cujas aes influenciaram a estruturao e a profissionalizao das organizaes, bem como sua capacidade de captao de recursos. Por meio destas aes, o poder pblico tentava diminuir o seu papel de financiador direto e incentivava as organizaes culturais a obterem habilidades para captar recursos das empresas privadas.

  • 23MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    S em 1993, com a realizao da Conferncia Nacional de Cultura, foi retomado o dilogo entre o governo e a sociedade. Refundou-se o Conselho Nacional de Poltica Cultural e resgataram-se as atuaes do Estado na cultura.

    a mudana no fazer da poltica para a cultura

    Em 2002, a Coligao Lula Presidente apresenta um documento intitulado A imaginao a servio do Brasil, no qual reunia propostas e diretrizes para gesto da rea da cultura. Nele estavam os elementos conceituais da construo do Sistema Nacional de Cultura, que comeou a ser discutido e construdo em 2003. Nesse documento propunham-se elementos novos frente tradio das polticas culturais no Brasil. Por um lado, adotava-se uma viso ampliada de cultura, capaz de declarar o respeito diversidade das culturas como a principal marca da identidade nacional; por outro lado, registrava-se o compromisso com a ampliao da abrangncia das polticas culturais e a sua formulao em bases democrticas e participativas:

    [...] essencial, nessas condies, realizar um amplo

    processo de incluso cultural, garantindo, de forma

    progressiva, o acesso de toda a cidadania produo e

    fruio cultural, bem como a livre circulao de ideias e de

    formas de expresso artstica. [...]

    A lgica da homogeneizao nos oprime. [...] Como formular um projeto de Polticas Pblicas de Cultura que contemple esse mosaico imperfeito? (COLIGAO..., 2002, p.8.)

    Assinalando a abrangncia que a ao poltica na cultura deveria passar a assumir, Cultura como poltica de Estado, a Economia da cultura, a Gesto democrtica, o Direito memria, a Cultura e comunicao, bem como as Transversalidades das polticas pblicas de cultura so definidos como os eixos condutores da ao pblica.

    Coligao vencedora das eleies em 2002 Coligao o termo usado para indicar a unio entre partidos diferentes em torno de um nico candidato. Nesse caso, trata-se da Coligao partidria que resultou na eleio de Lus Incio Lula da Silva presidncia do Brasil, em 2002. Participaram dessa coligao os partidos PT, PL, PCdoB, PMN e PCB.

    Sistema Nacional de Cultura Concebido pelo Ministrio da Cultura durante a vigncia do primeiro governo de Lula, o Sistema Nacional de Cultura tem por objetivo viabilizar polticas culturais de forma descentralizada e desvinculada de governos, isto , como um sistema do Estado nacional, com mecanismos de gesto e de investimento em cultura que sejam transparentes, democrticos e inclusivos.

  • 24 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    A atuao no universo da cultura se erige como um instrumento transversal da poltica para o combate excluso social por meio da [...] abertura democrtica dos espaos pblicos aos nossos criadores populares e pela incluso da Cultura na cesta bsica dos brasileiros (COLIGAO..., 2002, p.10). A caracterstica predominante da proposta est no carter indutor de uma gesto democrtica apoiada por forte atuao do Estado na rea. Percebe-se aqui a marca da experincia adquirida nas prefeituras antes conquistadas e, tambm, na construo das polticas para a sade, assistncia social e educao das quais os quadros do PT j haviam participado.

    A lgica desenvolvimentista est presente como fio condutor da ao poltica na cultura, na indicao, por exemplo, da inter-relao entre a cultura, o turismo e o desenvolvimento tecnolgico, nomeadamente para a gerao de emprego e renda. Entretanto, ao faz-lo, atrela as aes poltica, por intermdio de um sistema articulado nacionalmente, que se distancia tanto do assistencialismo como da conduo dos rumos da ao pelo mercado:

    Qualquer poltica de cultura a ser adotada pelo pas deve

    garantir a abertura dos canais institucionais e financeiros,

    por meio da constituio do Sistema Nacional de Poltica

    Cultural, a amplos setores tradicionalmente atendidos

    pelas polticas de recorte social ou assistencialista.

    (COLIGAO..., 2002, p.16)

    O Sistema Nacional de Cultura , uma das principais polticas do Ministrio da Cultura, foi concebido a partir de debates com os secretrios de cultura dos estados e municpios para definio de uma agenda de planos e aes pblicas da cultura capaz de integrar os trs nveis da federao, respeitando, entretanto, a autonomia poltico-administrativa. Mas a construo do SNC depende tambm da participao da sociedade civil para a definio das prioridades e para o controle e o acompanhamento das metas. sociedade civil cabe

  • 25MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    II

    2MDULO

    um papel fundamental na construo dos sistemas pblicos para a cultura num estado de direito democrtico, de forma

    a ser gerado um sistema de articulao, gesto, informao e

    promoo de polticas pblicas de cultura, pactuado entre os

    entes federados, com participao social (MINC, 2005).

    Alm dos sistemas dos entes federados, compem o SNC

    os subsistemas ou polticas setoriais (bibliotecas, museus, artes,

    patrimnio, etc.), com fruns para cada segmento cultural. As

    proposies dos entes federados e de todos os setores culturais

    contriburam para a formulao do Plano Nacional de Cultura,

    debatido pelos representantes da sociedade nas Conferncias

    municipais, estaduais e nacional; posteriormente, as propostas

    do plano foram sistematizadas e aplicadas pelos conselhos de

    polticas culturais e colegiados setoriais.

    Momentos representativos deste novo dilogo com

    a sociedade, as Conferncias Nacionais de Cultura foram

    palco da ampla participao dos delegados eleitos em todos

    os estados da federao e em milhares de municpios, nas

    conferncias estaduais e municipais. Nelas, foram estabelecidas

    as diretrizes do Plano e um canal de comunicao para

    ampliar a transversalidade da poltica, dando voz ao cidado,

    s entidades e aos movimentos sociais. Em agosto de

    2005, institucionalizaram-se as principais aes do MinC,

    com a promulgao da emenda constitucional do PNC e a

    reestruturao do Conselho Nacional de Poltica Cultural. O

    ento ministro Gilberto Gil afirmava que era a primeira vez que

    o Brasil teria um sistema integrado nacionalmente de polticas

    para a cultura, e manifestava o compromisso de que esta

    construo fosse democrtica e participativa.

  • 27MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    MDULO2

    PARTE

    III

    O sucesso econmico dos Estados Unidos nas dcadas que sucederam a Segunda Guerra Mundial provocou a crena da superioridade do modo norte-americano de gesto, conhecido como management. Apoiado pelas escolas de administrao, as empresas de consultoria e a mdia de negcios, o management, tambm conhecido no Brasil como gerencialismo, apresenta-se como verdade universal. Este modelo de gesto traduz as atividades humanas em indicadores de desempenho sobre as quais se calculam custos e benefcios. Como denuncia o pensador francs Gaujelac (2007) o gerenciamento legitima um pensamento utilitarista e constri uma representao do indivduo como um recurso a servio da empresa, que pode e deve us-lo para atingir seus objetivos.

    Sob a aparncia de inquestionvel objetividade e eficincia, o modelo gerencial um sistema de organizao da relao entre o capital e o trabalho cujo propsito realizar a adeso dos trabalhadores s exigncias da empresa e de seus acionistas. Por isso, nem objetivo nem neutro, este modelo gerencial uma ideologia que sustenta e legitima a sociedade capitalista. Por realizar este papel, o modelo dominante de gesto de empresas usurpou a condio de melhor maneira de organizar para qualquer contexto, propsito ou tipo de organizao, disseminando indiscriminadamente suas prticas em diversos contextos socioculturais.

    Ao transplantar os mtodos e procedimentos de gesto empresarial de forma acrtica para o mbito de organizaes que cultivam objetivos alheios lgica do mercado, provoca-se o perigo potencial de gerar distores na natureza das organizaes substantivas, nos movimentos sociais ou nos coletivos.

    Na areNa da Cultura, GereNCialiSmo X PartiCiPao PoltiCa

  • 28 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    A impessoalizao que se materializa na descrio das tarefas que podem ser realizadas por qualquer trabalhador disciplinado, e a alienao do sujeito encapsulado na sua tarefa rotineira, descolado do sentido do seu trabalho e restrito a papis segmentados compe o modelo burocrtico que se desenha e se hegemoniza na configurao do mundo do trabalho.

    Se o modo de produo segue contrapondo os detentores dos meios de produo, que auferem mais valia sobre o valor criado, aos que vendem sua fora de trabalho em troca de salrio, de pensar que no haveria razo alguma para que a funo ideolgica das teorias de gesto dominantes no se tenha alterado, no seu propsito geral.

    claro que o cenrio do universo do trabalho no o mesmo desde os primrdios do monoplio da produo fabril. A sociedade e suas formas de organizao diversificaram-se em seu modus operandi, a liderana do processo de acumulao transferiu-se para o capital financeiro, e novas tecnologias conferiram a liderana produo de servios. Entretanto, as contradies no modo de produo, os conflitos de interesses irreconciliveis, a explorao do trabalho, a apropriao desigual da riqueza produzida e as estruturas organizativas de dominao permanecem, ainda que maquiadas.

    Diante deste cenrio, o que podemos dizer sobre a gesto da cultural? Como gerir prticas culturais a partir de conceitos de gesto que no se desvincularam das suas origens, que continuam orientados pela busca da eficincia, da eficcia, da competitividade e da produtividade, a partir da centralidade da economia que deslocou o Homem como medida das coisas? Como usar conceitos e teorias adequados s formas institucionalizadas pelos sistemas estabelecidos e estruturas formalizadas em formatos hierrquicos, para organizar indivduos que se relacionam de maneira informal, respeitando

  • 29MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    o mosaico de suas especificidades ainda no homogeneizadas pelo conhecimento formal? Como se contrapor ao modelo dominante de gesto, que tudo transforma em mercadoria, e ainda assim viver e sobreviver nele? Como construir uma outra forma de ao organizativa, se as teorias disponveis apenas do suporte a formas alienantes do trabalho?

    Nas organizaes de cultura popular, os saberes positivos de gesto no so legtimos, embora se imponham cada vez mais. H duas dcadas, o termo gesto e seus conceitos derivados eram praticamente inexistentes no mbito dos coletivos de cultura popular.

    A associao entre a ao de gerir e a de fazer cultura gera um embate que acende os alertas para a possvel intromisso da dimenso econmica e do mercado no universo da cultura. Organizar no poderia significar interveno na liberdade de expresso individual ou de grupos artsticos. A transposio acrtica de conceitos, tcnicas e ferramentas dos modelos de gesto empresarial para organizaes culturais pode comprometer a sociabilidade entre os participantes, levar perda de identidade, mercantilizao da cultura e deturpao da misso dos coletivos da cultura popular na sociedade.

    Embora os coletivos de cultura popular sejam pressionados a adotar um modelo empresarial de gesto, o exerccio da poltica aprendizagem da participao democrtica pode levar os sujeitos a no reproduzir prticas empresariais de forma acrtica, e sim dar a elas outros significados que melhor atendam a seus anseios, que no so os mesmos dos interesses dominantes que produzem o modelo empresarial de gesto.

    Historicamente, o esforo em naturalizar a ideologia de mercado por meio do modelo gerencialista, como referncia para as mais variadas formas de organizao social, ganhou significativa fora na dcada de 80, perodo ureo do

  • 30 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    neoliberalismo. Os efeitos dessa difuso fizeram-se sentir no Brasil no mbito das organizaes culturais, nomeadamente, que passaram a adotar formas de gesto apropriadas ao mundo dos negcios.

    A incorporao da lgica do gerencialismo alcanaria a administrao pblica por meio da proposta de reforma do Estado, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. A Reforma Gerencial ganhou fora nos anos 1990 e favoreceu a emergncia de uma articulao poltica de carter neoliberal, cujas bases estratgicas se assentavam num desenvolvimento dependente e associado e na estabilizao econmica com a reduo dos gastos pblicos como forma de resolver a crise fiscal e inflacionria. No mbito da gesto, a Administrao Pblica Gerencial baseou e, ao mesmo tempo, caracterizou as aes pblicas sob a tica do gerencialismo tipicamente privado. A lgica do mercado tornou-se, ento, o modo de orientao das aes pblicas na gesto da cultura, que teve como principal estratgia poltica de governo as leis de incentivo.

    abertura poltica somou-se o discurso da reduo dos gastos pblicos como forma de resolver a crise fiscal e inflacionria, proporcionando uma justificativa econmica e financeira para as reivindicaes sociais no serem priorizadas. O modelo da Administrao Pblica Gerencial transferiu responsabilidades para a sociedade sem fortalecer a cidadania, pois os espaos de participao foram usados apenas para respaldar decises polticas j tomadas. A cidadania adquiriu um significado neoliberal, de forma que as pessoas so consumidores e enfraquecida a essncia instituinte e poltica em construo nos anos de luta pela democracia.

    Com a ascenso ao poder de governos progressistas a partir de 2003, com discurso e aes mais fortes de participao na rea de cultura, ficou evidente que outras formas de gesto pblica eram possveis para alm dos enclaves sociais de mercado. Tal fato pode ser evidenciado, por exemplo, nas

  • 31MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    experincias das administraes pblico-participativas e nas tentativas de ampliao dessa participao esfera federal, com a proposta de implementao do Sistema Nacional de Cultura.

    Quando a cultura mercadoria

    A indstria cultural a promoo da diverso banal, e divertir-se significa no ter que pensar e poder fugir de uma realidade ruim. Para Adorno (1977, p.293), o imperativo categrico da indstria cultural nada tem em comum com a liberdade; ele enuncia: tu deves submeter-te, mas sem indicar a qu. Para o autor, por intermdio dessa lgica, a conscincia cede lugar ao conformismo, o consenso ainda que velado em torno dos interesses dos poderosos.

    Na lgica da indstria cultural, a cultura se conforma como uma mercadoria completa, to somente um produto, mas no um produto das aes ou vontades genunas das massas (Adorno, 1977). Estas deixaram de ser o elemento principal, so um acessrio, um simples fator de clculo nessa estrutura; o consumidor, portanto, no passa de um objeto. As mercadorias culturais no se orientam segundo contedos prprios mas segundo o princpio de sua comercializao. A praxis da indstria cultural se transfere para as criaes simblicas, que se tornam mercadorias, e, quando essas mercadorias conseguem assegurar a sobrevivncia de seus produtores no mercado, elas so contaminadas por esse poder. A indstria cultural bloqueia o desenvolvimento de indivduos autnomos, independentes, dotados da capacidade de julgar e de discernir e, por conseguinte, de decidir conscientemente.

    A indstria cultural, afirma Chau (2008), deseja vender e, para isso, seduz o consumidor oferecendo-lhe produtos sem verdadeira criatividade, que ela j consumiu antes e agora traz com nova roupagem que, at por isso, no provocam nem chocam o consumidor mdio.

  • 32 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    o exemplo peculiar do artesanato

    As produes artesanais caseiras de bens de uso e consumo cotidiano, como vesturio e utenslios de uso quotidiano, embora j escassas, ainda existem e so mesmo comuns em muitas regies rurais. A diferena fundamental dessas formas de produo para a que ns conhecemos nas cidades reside no seu exclusivo valor de uso. Alm de satisfazer a subsistncia, aquele artesanato garantia o funcionamento das indstrias coloniais, como a do beneficiamento de acar e as que o sucederam.

    Ao contrrio da Europa dos idos de 1750, o Brasil do sculo XX no enfrentou a substituio de uma indstria artesanal por uma fabril, o que no anula o fato de que em meados dos anos 1960 ainda estivesse se consolidando a migrao de um tipo de produo essencialmente domstico dos bens de primeira necessidade para outro de carter industrial-comercial, em grande parte reforada pelo xodo rural que explodiu naquele perodo. A indstria nacional voltou-se, ento, ao atendimento de um mercado em expanso, oriundo das classes subalternas, que nos grandes centros urbanos, principalmente, comeava a se acostumar a consumir, a pautar sua organizao social com base no valor de troca dos bens e servios.

    Na apreciao da produo artesanal contempornea, chama a ateno seu ajuste dissimulao de conflitos sociais como o que se identifica no Programa do Artesanato Brasileiro, cuja misso envolve a formao de uma mentalidade empreendedora por meio da preparao das organizaes e de seus artesos para o mercado competitivo. Ou seja, o Ministrio de Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior incentiva a formao de empreendedores que aproveitem as oportunidades do mercado, assumindo e incutindo nos artesos uma perspectiva mercadolgica de sua atividade, sem nenhuma preocupao com o aspecto cultural da atividade.

    Para Seraine (2009), a atuao do PAB converte a oficina

    artesanal em empresa, e o arteso, em empreendedor, ressignificando o artesanato ao incorporar de forma gradual

  • 33MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    [...] como fazer com que a perspectiva poltica prevalea

    e consiga assim comprometer atores e protagonistas com

    a agenda do novo sculo que se avizinha se o silncio

    reformador, as dificuldades da representao e a estrutura

    mesma da sociedade no param de esvaziar a poltica?

    a ideologia do empreendedorismo, que se consolida atravs da veiculao de um discurso legitimador de um modelo consensual pr-determinado de sociedade e de desenvolvimento socioeconmico.

    Percebe-se a reproduo do discurso neoliberal de incentivo ao empreendedorismo na esfera da formao das polticas pblicas para setores como o artesanato, desvinculando-o de suas razes simblicas. A servio deste propsito est, no Brasil, o Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que apresenta grande dedicao poltico-ideolgica nessa estratgia de converso sociocultural (Seraine, 2009).

    a participao poltica na gesto da cultura

    Pela perspectiva poltica da gesto da cultura, podemos refletir sobre o processo de construo das polticas pblicas, a influncia que nele exercem diferentes grupos de interesse, as estratgias que estes adotam na disputa pela definio das pautas para o debate ou, de forma geral, na luta pelas posies de poder no campo social da formao das polticas culturais. Pela perspectiva da poltica possvel pensar nas pautas que interessam aos novos agentes no campo, aqueles que, ainda que presentes, ocuparam sempre no pas posies subordinadas, tanto na definio das polticas como na expresso de suas representaes simblicas. Deste modo, pode-se alijar como racionalidade orientadora um pretenso cientificismo um exemplo ser o de apresentar a cultura como una em uma sociedade dividida em classes e o domnio da tcnica como elemento imprescindvel para a atuao que em alguns ope a cultura formal ou erudita cultura popular.

  • 34 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    Marco Aurlio Nogueira (1998, p.17), ao tratar de democracia e da reforma do Estado, faz um alerta muito atual para o momento do campo da cultura:

    preocupada com as relaes entre Estado, cultura e democracia que Marilena Chaui (2006), provocada pela sua prpria experincia frente da Secretaria da Cultura do municpio de So Paulo, identifica e descreve trs formas de relao predominantes em diferentes perodos na histria recente do Brasil. A primeira, que a autora localiza inicialmente no governo Vargas, mas que marca os governos antidemocrticos, o Estado como produtor de cultura, que retira do antagonismo de classe e dos conflitos sociais o locus de realizao da cultura. Desta forma, o Estado no s nega a diversidade como impe a cultura de uma classe como representante da nao e, portanto, de todas as classes.

    A segunda forma o tratamento moderno da cultura, no qual o Estado age no campo da cultura a partir da lgica da indstria cultural posta em prtica pelas instituies governamentais de cultura. Neste modelo, que se estabeleceu como poltica de Estado exclusiva na onda neoliberal que assolou o pas, o mercado (eufemismo moderno que representa os interesses privados das corporaes) conduz a poltica para a cultura, ainda que, como aconteceu no Brasil, o faa custa da iseno fiscal e, portanto, dos recursos pblicos devidos. A terceira forma de ao do Estado representada pela idia da cultura como direito do cidado, de acordo com a qual o sujeito teria assegurado

    [...] o direito de acesso s obras culturais produzidas,

    particularmente o direito de fru-las, o direito de criar

    as obras, isto , produzi-las, e o direito de participar das

    decises sobre polticas culturais (CHAUI, 2006, p. 136).

    Para que nessa produo ocorra criao e registro da memria social, o conceito de cultura deve ser ampliado para alm das belas artes, incluindo preferencialmente a produo do simblico das vivncias e realidades de cada sujeito em sua

  • 35MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    disposio social. Chau explicita o que compe a mencionada participao nas decises como o direito dos cidados de intervir na definio de diretrizes culturais e dos oramentos pblicos, a fim de garantir tanto o acesso como a produo de cultura pelos cidados (CHAU, 2006, p. 138).

    Quando age como produtor da cultura, orientado pela ideia da elite que de fato representa, e cujo o plano ilustrar um povo inculto ou, quando se orienta pelo tratamento moderno da cultura, segundo regras ditadas pelo mercado que prope estratgias que excluem os que no podem consumir, o Estado, sem prejuzo dos grupos que atende, pode encapsular a tomada de decises nos nveis tecnoburocrticos da administrao pblica, por meio da centralizao de poder e de processos de gesto complexificados e s acessveis aos especialistas.

    Ao considerar a cultura como a construo da cidadania, inevitvel o pressuposto do envolvimento participativo das classes subalternas, no para o fortalecimento do mercado, do desenvolvimento estritamente econmico ou de processos gerenciais, mas para o aprofundamento radical da democracia a partir da poltica, enquanto articulao da pluralidade das demandas e representaes da sociedade civil.

    Ao se apontar a participao como recurso de poder, deixa-se implcita a necessidade de compreender como um campo de disputa a construo das polticas pblicas, a definio do carter dessas polticas e a participao social. O problema consiste em construir estas possibilidades a partir de uma tradio autoritria de relao entre o Estado e a sociedade plural que s muito recentemente inclui a democracia em sua agenda.

    O Estado est preparado para interagir e estabelecer dilogo com os setores social e economicamente dominantes, at mesmo com setores intelectualizados, mas como dialogar com aqueles que nunca foram interlocutores? Como, num quadro de crnica excluso social, em que as classes subalternas tm necessidades primrias nunca atendidas, pode ser construdo um processo de participao popular? Como

  • 36 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    pensar em poltica e cultura quando h que lutar diariamente pela sobrevivncia?

    A transformao vivida pelo campo da cultura, conduzida pela construo do Sistema Nacional de Cultura, tem sido a possibilidade de observar criticamente e avaliar como se afirma a participao, em especial no que tange qualidade dessa participao.

    Ao tratar dos tipos e do carter da participao, Nogueira (2005) escreve que por meio da participao poltica que os diferentes indivduos e grupos se expressam, num espao institucional, de modo a democratizar a ao e compartilhar poder nas decises. Ele ainda refora que essa participao, em suma, que consolida, protege e dinamiza a cidadania e todos os vrios direitos humanos (NOGUEIRA, 2005, p. 143).

    Mas o foco da discusso est centrada no carter da participao que, no caso da participao cidad, est na ao coletiva que no implica necessariamente o questionamento das relaes de dominao e se justifica na conquista de direitos imediatos para garantir, por exemplo, sustentabilidade, ou que garante o compartilhamento de decises governamentais sem interferir nas definies do que deve ser compartilhado. Este tipo de participao se orienta pela obteno de vantagens e no pela inverso ou mesmo alterao das relaes de fora.

    Na tipologia de Nogueira (2005), surge por ltimo o que ele denomina de participao gerencial, na qual, ainda que emerjam novas formas de dilogo e interao entre o Estado e a sociedade, e que ocorra uma maior definio de espaos de deciso que, em ltima instncia, possam favorecer a expanso da cidadania. Todavia, ao serem institucionalizados, esses espaos facilitam a domesticao da participao, impedindo a efetiva participao nas questes nucleares da poltica. o caso, por exemplo, da discusso ampla e participativa de uma pauta de questes previamente definida exclusivamente nos nveis governamentais. O essencial fica de fora. Pode-se discutir se devem ser produzidas metralhadoras ou canhes mas no passvel discutir se se deve produzir armas.

  • 37MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    Construo e institucionalizao do Sistema Nacional de Cultura

    Respeitar a pluralidade e a disperso espacial da cultura brasileira o projeto de um sistema de cultura de amplitude nacional, que se quer herdeiro de um processo histrico de luta pela preservao das variadas formas de expresso artstico-cultural que constituem a dvida sociocultural do Brasil e que nunca foram protagonistas das polticas governamentais (CARVALHO; SILVA; GUIMARES, 2009).

    Esse foi o processo histrico que gestou o Sistema Nacional de Cultura, onde so enfrentadas e combatidas a centralizao das decises polticas, a desvalorizao das culturas locais e perifricas, e o desconhecimento da diversidade de expresses que povoa o pas. Essa gestao foi tambm alimentada pela experincia acumulada na luta pela construo do Sistema Nacional de Sade e, posteriormente, do Sistema unificado de Sade, e que foi expressa, pela primeira vez, no documento programtico para a rea, A Imaginao a Servio do Brasil (COLIGAO..., 2002).

    O documento trata, em primeiro lugar, de delimitar o papel do Estado na gesto pblica da cultura e na formulao de estratgias e polticas para a construo da Poltica Nacional de Cultura. A cultura, enquanto rea de atuao pblica, distingue-se dos setores da sade, da assistncia social e da educao formal por ser produzida por uma infinidade de pessoas, espalhadas pelos lugares onde vivem e por meio das mais variadas linguagens, no padronizadas pelo conhecimento formal. Todas estas linguagens representam as formas de expresso da identidade de cada um e de cada grupo, em cada lugar e, por isso, so legtimas. Ao Estado, portanto, no pode caber a atuao como produtor da cultura, mas, to s, o papel de garantidor da preservao do patrimnio cultural e do

  • 38 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    acesso universal aos bens e servios culturais. Para alm disso, a proposta programtica preconiza que caber tambm ao Estado proteger e promover a sobrevivncia e desenvolvimento de expresses culturais tradicionais, que no tm a proteo do setor privado (COLIGAO..., 2002).

    A priorizao dada, pela primeira vez na histria, preservao e divulgao da diversidade das expresses culturais espalhadas pelo territrio nacional se expressa na valorizao da dimenso simblica da cultura. Entretanto, na configurao das estruturas, dos processos de deciso e na universalizao do acesso aos bens e servios culturais que ir se expressar a dimenso cidad na nova poltica. pela promoo da cultura como elemento constitutivo do desenvolvimento econmico sustentvel que se perceber sua dimenso econmica. Os trs vetores que do forma Poltica Nacional de Cultura, o simblico, a cidadania e a economia, esto igualmente inscritos na proposta do Sistema Nacional de Cultura (SNC), aprovada pelo Conselho Nacional de Poltica Cultural (CNPC).

    As experincias e os modelos que anteriormente no Brasil articularam outras polticas pblicas de grande complexidade foram as referncias tericas e prticas para a proposio que norteou a costura do SNC. A construo do SUS, que remonta a 1941 quando foi realizada a 1a Conferncia Nacional de Sade, a principal referncia. Desde ento, o longo caminho percorrido passou pela instalao do Sistema Nacional de Sade em 1975, pela Reforma Sanitria e o Financiamento Setorial em 1986, pela declarao da sade como direito de todos e dever do Estado inscrita na Constituio Federal em 1988 e, nesse mesmo ano, pela implantao do SUS. Em 1992, na 9a CNS, o lema foi a descentralizao e a democratizao do conhecimento e a municipalizao das aes. Em 2007, a 13a e ltima CNS reafirma a sade e a qualidade de vida como uma poltica de Estado e vetor de desenvolvimento. Poderemos perceber, nas linhas que se seguem, como a construo do SNC aproveita as experincias vividas, os acertos e as dificuldades

    CNPC rgo colegiado integrante da estrutura bsica do Ministrio da Cultura , constitudo em 2005 e instalado em 2007, que prope a formulao de polticas pblicas para a cultura e, para isso, a articulao dos diferentes nveis de governo e da sociedade civil organizada. composto por 46 titulares: 21 representantes dos poderes pblicos federal, estadual e municipal; 17 representantes dos segmentos artstico-culturais; cinco representantes de entidades acadmicas, empresariais, fundaes e institutos e por trs representantes de entidades de notrio saber da rea cultural indicados pelo ministro da Cultura.

  • 39MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    da construo da poltica nacional de sade para traar o seu prprio caminho, ajustando-o s especificidades da cultura e ao momento em que o SNC se inicia.

    O conceito de sistema est na raiz da abordagem da problemtica complexa de articular uma poltica nacional para um campo legitimamente plural e diverso na qual interajam articuladamente os entes federativos e a sociedade civil organizada; todos como agentes ativos e autnomos na formao da poltica e das estratgias de ao. A proposio do sistema envolveu, portanto, uma parte dura e de maior perenidade, constituda pelas leis e normativas que o estruturam e pelo conjunto da infraestrutura cultural, e uma parte mole e mais dinmica, onde reside o exerccio da poltica e o jogo, que lhe prprio, da negociao, dos acordos, das estratgias e dos pactos.

    A partir dessa conceituao, o Sistema proposto dever ter sua estrutura assente em rgos gestores institudos e permanentes, nos trs nveis federativos, e em instncias de articulao, de pactuao e de deliberao. Os elementos estveis do Sistema so constitudos pelos rgos gestores da cultura (MinC, secretarias estaduais e municipais de Cultura), as Conferncias de Cultura, os Conselhos de Poltica Cultural e os Sistemas Setoriais de Cultura. As instncias da poltica ou seja, da articulao, da pactuao e da deliberao so as Conferncias distritais, municipais, estaduais e nacional de Cultura; os conselhos distritais, municipais, estaduais e nacional de Poltica Cultural; os conselhos setoriais distritais, municipais, estaduais e nacional; as comisses distritais, municipais, estaduais e nacional de Fomento e Incentivo Cultura; a Comisso Intergestores Tripartite e as comisses intergestores bipartites.

    Os principais instrumentos de gesto, ferramentas organizacionais do Sistema nos trs nveis de governo, so os planos de Cultura, o Sistema Oramentrio, o Sistema de Informaes e Indicadores Culturais e o Relatrio Anual de Gesto. Por meio deles que podero ser efetivamente

  • 40 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    executadas as polticas e estratgias formadas e pactuadas na complexa rede do Sistema, com o indispensvel suporte de uma poltica de financiamento suficiente e estvel.

    Os conselhos de Poltica Cultural e as conferncias nos trs nveis federativos so os principais espaos de participao social e de interveno poltica para a formulao das polticas que devero nortear a ao dos rgos do Sistema. A I Conferncia Nacional de Cultura, ocorrida em 2005, foi orientada pelos eixos temticos: 1) Gesto pblica da cultura; 2) Economia da cultura; 3) Patrimnio cultural; 4) Cultura cidadania e democracia e 5) Comunicao cultura. Dela participaram 1.158 municpios que realizaram um total de 438 conferncias municipais e intermunicipais , 19 estados e o Distrito Federal.

    Completam a estrutura do Sistema em construo o Sistema Nacional de Informaes e Indicadores Culturais e a Poltica Nacional de Formao na rea da Cultura. O primeiro por meio das informaes coletadas, da sistematizao dos dados e da construo dos indicadores oferecer sustentao formulao das estratgias, definio de prioridades e gesto dos processos que ordenam o Sistema, nomeadamente, dos critrios de repartio dos recursos. O segundo dar suporte formao da massa crtica indispensvel a um Sistema que s poder ser uma efetiva contribuio para a reforma do Estado brasileiro, no tocante a uma gesto democrtica e a uma finalidade substantiva, se promover a compreenso crtica dos envolvidos e uma ampla participao qualificada.

    A III Conferncia Nacional de Cultura, realizada no final de 2013, de cuja construo calcula-se que tenham participado cerca de 450 mil pessoas, contou com a presena de 953 delegados vindos de todos os estados do Brasil. Eles debateram as 614 propostas extradas das Conferncias Municipais, Estaduais e Livres, e definiram 64 diretrizes para a gesto cultural de pas. O SNC envolve, desse modo, sistemas organizativos e institucionalizados nos trs nveis federativos, numa articulao institucional regulada por normativas, instrumentos, aparatos e negociaes imprescindveis.

    Para saber mais sobre a II Conferencia Nacional de Cultura, consulte o livro produzido pelo MinC: http://www.cultura.gov.br/documents/10883/0/revistacnc/dd44b1a0-02a0-4fd8-960e-e1e2f1897dc1

  • 41MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    Assim, os arranjos e as articulaes, envolvendo as trs esferas federativas e a sociedade, vo sendo costurados sombra da experincia das reas da Sade e da Assistncia Social. rea da cultura caber, nos prximos anos, organizar sistemicamente suas polticas e recursos, por meio de articulao e da pactuao das relaes intergovernamentais, mas dando privilgios inegociveis construo de instncias de participao da sociedade, de modo a dar um formato poltico-administrativo mais estvel e resistente s alternncias de poder.

    o caso singular do Programa Cultura Viva

    Uma poltica pblica de mobilizao e encantamento social. Assim foi descrito o Programa Cultura Viva (PCV), que o ministro Gilberto Gil comparou a um do-in antropolgico: um massageamento de pontos vitais, desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do Pas (MINC, 2004). Assim, pretendia o Programa potencializar as energias criadoras que emanam do povo, em sua vital necessidade de representao simblica de seus afazeres, crenas, alegrias e temores, tradies, valores e ritos, to diversos quanto variados os espaos geogrfico-culturais por onde se espalha, de Roraima ao Rio Grande do Sul, do Acre a Alagoas.

    A proposta do Programa Cultura Viva foi ousada ao pretender reconhecer, para alm do discurso formal, os excludos histricos e suas mais diversas formas de expresso artstico-cultural, aquelas que no atraem multides por serem expresses simblicas locais sem a universalidade da homogeneizao globalizada, nem apoios empresariais nem mesmo aqueles oferecidos com recursos pblicos oriundos de iseno de impostos.

    A ousadia passou tambm pelo reconhecimento da imprevisibilidade dos resultados do processo iniciado e da necessidade de a institucionalidade governamental moldar-

    Uma verso deste texto foi anteriormente publicada como captulo de um livro: CARVALHO, Cristina Amlia; HOLANDA, Luciana Arajo de; Lira, Raquel de Oliveira Santos. O Programa Cultura Viva a partir da vivncia com os Pontos de Cultura. In: Cristina Amlia Carvalho; Dbora Paschoal Dourado; Rodrigo Gameiro. (Org.). Cultura e Transformao: Polticas e Experincias Culturais. 1ed.Porto Alegre: Dacasa Editora, 2013, v. 1, p. 45-53.

  • 42 UFRGS | ESCOLA DE ADMINISTRAO | CURSO DE EXTENSO EM ADMINISTRAO PBLICA DA CULTURA

    se e ajustar-se progressivamente s necessidades desse novo pblico cujo aparato governamental apenas tinha ferramentas gerenciais e legais para uma ao assistencial. Uma atuao poltica de parceria e construo compartilhada e a interao com interlocutores de mil perfis, que se espraiam do grande urbano aos mltiplos mundos rurais, da Amaznia ao Cerrado planaltino, dos pampas do sul Zona da Mata do grande latifndio canavieiro, era um desafio para uma tecnoburocracia treinada no atendimento subserviente a um nico perfil dominante e hegemnico de um estado patrimonialista.

    A percepo deste contexto nos permite observar e analisar algumas das transformaes no campo da cultura e, em particular, nos Pontos de Cultura. Passados alguns anos do incio do programa, pretendemos iluminar aspectos do PCV a partir do ponto de vista dos espaos polticos, culturais, acadmicos onde atuamos, confrontando-os ao que foi proposto e realizado desde o MinC.

    Ao observar criticamente os passos percorridos, as aes do presente podem ser ajustadas para que o futuro seja a possibilidade de construo do que almejamos. Avaliar criticamente tambm assumir a responsabilidade de aceitar o debate das idias expostas e o desafio de assumir as responsabilidades que nos cabem.

    A avaliao das polticas pblicas no pode ser deixada para uso exclusivo dos governos, para o controle de suas metas e redirecionamento de seus programas, pois o maior interessado na efetividade do discurso programtico a sociedade. A ela interessa controlar e avaliar as polticas e os programas e exigir seus ajustes para efetividade do que foi proposto, e, para isso, h que cada vez mais dominar as tcnicas e a postura poltica que permitam esse exerccio. A pesquisa avaliativa de polticas pblicas tem importncia crucial para o processo de democratizao poltica, social e econmica e, por conseguinte, de construo da cidadania. A avaliao deve revestir-se de caractersticas prprias conforme o contexto social, poltico, cultural e educacional em que se realiza, afirma Penna Firme

  • 43MDULO 2 Polticas Pblicas da cultura e administrao ParticiPativa

    parte

    III

    2MDULO

    (2003), de tal forma que o avaliador essencialmente um historiador, que descreve, registra e interpreta a histria singular de cada cenrio.

    o PCV como ponto de mutao das polticas pblicas de cultura no Brasil

    Recuperamos em breves pargrafos o contexto social, poltico e econmico do pas at o surgimento do Programa. Do Brasil Colnia ao incio da Repblica, o Estado atuou como mecenas e construiu, com os artistas que escolhia, uma relao paternalista, poltica a que Cesnik e Beltrame (2005) chamaram de cultura do Estado balco. Dificilmente se pode falar em polticas pblicas para a cultura nesse perodo.

    A crise mundial de 1929 inaugurou o uso intensivo da cultura como ferramenta ideolgica na propaganda poltica, manteve a lgica do favor e do paternalismo, mas, paralelamente criou instituies de fomento e conduo