apontamentos suely rolnik

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Page 1: Apontamentos Suely Rolnik

Não é exagero supor que lutamos para deixar de ser o dia de ontem. Muita velocidade para experimentar a vida. Não dá tempo. Re-experimentar permita saber melhor. Não há tempo. É isso que se vive. Não dá tempo.

Podemos comparar a vida de hoje como um passeio no loop de uma montanha russa. Pois num passeio deste sequer nos damos conta como experiência.

As subjetividades se produzem em meio a afetos que mudam o tempo todo, intoxicados pela aceleração das coisas que são jogadas no ar, coisas líquidas como diria o Bauman (2004). Qualquer coisa, hoje, parece estar na condição líquida. No lado oposto dessa liquidez nos modos de existir, persiste nas pessoas a vocação moderna de constituição de uma “referência identitária”. Uma crise que se intensifica. Pois: Como SER, onde pelas condições de vida, já não se permite a estabilidade da experiência de ser?

A impossibilidade de ser moderno cria uma tensão nas pessoas que se vêem frente a este mundo de SER. Portanto, alguns se enchem com algumas “drogas”.

Surgem os toxicômanos da identidade, onde tudo vale para SER, mesmo que este ser seja ilusório ou líquido.

Psicotrópicos, maconha, cocaína, álcool, TV, internet, literatura de auto-ajuda, esportes radicais, igrejas-show, dietas, definição corporal, cirurgias estéticas, etc.

Tudo isso e mais outros tantos dispositivos que vendem a ilusão de ser, se apresentam à experiência humana contemporânea. Estes dispositivos são recursos à disposição de um sujeito com medo, que anseia por ser – a chamada Ditadura da Beleza.

O consumo que se intensifica para produzir uma identidade ou representação de si. Diante do terror desse modo de existência que se generaliza, há o temor pela ética na vida.

Questionamentos: o Como um sujeito tomado pela carência pode por em questão sua vontade? o Resistir é preciso, mas como? o Como resistir sem uma verdade dura? o O que dizem as pessoas da amizade que mantém, da necessidade de identidade para ser

reconhecido e de consumo para se sentir inseridos na vida?

Há uma subjetividade plástica que é agenciada por uma poderosa operação de marketing, que faz o indivíduo acreditar que para “ser” é preciso pertencer e consumir, se reconfigurando aos diversos espaços/territórios percorridos à busca de uma aceitação circunstancial.

Ao lado do poder de processamento do instrumental digital, o novo capitalismo metaboliza as forças vitais com uma grande voracidade, lançando e relançando ao mercado, constantemente, novas formas de subjetividade que serão adquiridas e de imediato descartadas pelos alvos aos quais são dirigidas, alimentando uma espiral de consumo de modos de ser em aceleração crescente.

Assim, a ilusão de uma identidade fixa e estável, característica da sociedade moderna e industrial, vai cedendo terreno aos “kits de perfis padrão” ou identidades prêt-à-porter”. Trata-se de modelos identitários efêmeros, descartáveis, e sempre vinculados às propostas e aos interesses do mercado.

A autora assinala que estas subjetividades são reconfiguradas pelas lógicas do mercado e do consumo global.

Na sociedade consumida pelas marcas comerciais, o consumidor é uma subjetividade produzida como um objeto de consumo, através de uma estratégia de pseudo-singularidade. O que lhe resta é portar uma identidade transitória líquida, revogável e coletiva à busca frenética pelo consumo, sendo gravada na sua mente a idéia de que para “ser” é preciso ter; uma servidão voluntária consumista pós-moderna, que sublima a marca à condição de “sujeito” e senha virtualmente onipotente.

Só que andam dizendo por aí que não somos o que pensamos ser, que não somos tão autônomos assim... Será? Será que não sou eu quem decide e escolhe? Quem será então? Há um ser maior que define quem somos nós? Serão os poderes difusos e confusos que estão nos fazendo ser quem somos ou, ao menos, estão nos fazendo acreditar que somos isso e não aquilo?

Page 2: Apontamentos Suely Rolnik

Não sou dona do meu nariz, das minhas escolhas e das roupas que visto? Mas fui eu quem as comprei... Ah! Identidades não estão à venda? Nem por encomenda?

A autora enfatiza alguns efeitos da globalização e da invenção de novas tecnologias nos processos de subjetivação tais como: “a pulverização das identidades locais relativamente estáveis, acompanhada de uma tendência a conformar as subjetividades assim desparametradas segundo “identidades globalizadas flexíveis”.” (p. 24) A autora argumenta que “a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades, implica também na produção de kits perfis-padrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas subjetividades independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc.” (p.19) Se de um lado temos o enrijecimento de identidades locais (e as “minorias” a que estas costumam se referir), de outro lado temos a “ameaça de pulverização total de toda e qualquer identidade”(p.21).

Essas identidades globalizadas que devem se adequar, em alta velocidade, às leis do mercado e aos desejos produzidos nesta lógica consumista seriam as chamadas “identidades prê-à-porter”. Em outro artigo[3], Suely Rolnik (2002) afirma que “o neocapitalismo convoca e sustenta modos de subjetivação singulares, mas para serem reproduzidos, separados de sua relação com a vida, reificados e transformados em mercadoria: clones fabricados em massa, comercializados como “identidades prê-à-porter”.” Complementa ainda que imagens dessas identidades/mercadorias serão consumidas inclusive por quem de algum modo alimentou sua produção; deste modo, “o próprio consumidor torna-se a “matéria-prima” e o produto de sua maquinação”. (p. 309-310)

O conceito de “identidades prê-à-porter” de Suely Rolnik (1997, 2002) pode ser relacionado às proposições de Zigmunt Bauman (2005, 2008) que também se debruçou no estudo dos efeitos da globalização na produção/invenção de identidades.[4]

Algumas questões podem ser levantadas a partir dessas leituras: Estaríamos diante de uma fábrica de identidades - prontas para vestir - na qual cada sujeito deveria necessariamente e urgentemente encontrar ao menos uma que lhe agrade? Seria como um livre mercado de identidades aprisionadas a padrões pré-estabelecidos de satisfação e felicidade? Estaríamos todos/as viciados/as em identidades?

Segundo Bauman (2005) o conceito de identidade é altamente contestado e está naturalmente ligado a um campo de batalha. O autor destaca que esta “busca frenética por identidade não é um resíduo dos tempos pré-globalização”, mas é justamente um efeito das pressões globalizantes e individualizadoras. (BAUMAN, 2008, p. 193) Aproximando-se dos conceitos de pulverização, desestabilização exacerbada e proliferação de forças a que se refere Suely Rolnik (1997), Bauman (2005) argumenta que: “A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; é uma invenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado...” (p. 84)

Bauman (2008) nos fala ainda sobre escolhas[5] em torno das identidades, citando Christopher Lasch quando define as identidades de hoje como podendo ser “adotadas e descartadas como uma roupa” (p. 188-189) – seriam as “identidades “prê-à-porter”? Outros autores problematizam esta idéia de liberdade de escolha dos sujeitos nesses processos de identificação/subjetivação. Nikolas Rose (1998, 2001), por exemplo, faz uma crítica relativa às disciplinas psi que produziram e produzem uma idéia de sujeito livre ao mesmo tempo em que capturam esse mesmo “sujeito livre” para que viva ‘sua’ liberdade dentro de normas de conduta pré-estabelecidas, dentro de classificações do que é apropriado e do que não é.[6] Talvez nosso vício maior esteja mais ligado a esta idéia de liberdade-felicidade do que propriamente à construção de uma identidade.