apoio instit ii menino cachorro

10
O menino-cachorro "Nós só o descobrimos bem depois do cadastramento, porque quando fom a família não informou sobre ele. Foi por acaso, numa visita que eu de mas ... ele é como o cachorro da casa. Aora parece que melhorou, porque ele dormia do lado de fora". (fala do ACS, em reunião de equipe) o acesso a esta família foi difícil, a agente comunitária tinha r aproximaão, sempre frustradas! "e fato, fomos e voltamos al conseguir falar com um responsável pelo tal menino! $a casa, criana di#iam que a mãe não estava, ora que dormia ou que não queria falar Certa ve#, ap&s mais um recado das crianas, de que a mãe não que profissionais de sa'de (fonoaudi&loga e agente comunitária), a fonoa e pede s crianas para, ao menos, ver o menino! A deixam entrar e a garoto dormia no chão, atrás do armário da co#inha* exalava um forte muito su+o e com o corpo contraído, aparentemente pelo frio! A agente comunitária sugere ir em%ora, mas a fonoaudi&lo menino! A agente fica do lado de fora da porta, pois sa%ia que a mãe %em vindas! A fonoaudi&loga toca levemente o garoto e o chama, na tentativa perce%e o movimento na casa e sai do quarto aos %erros, v presena das profissionais! $o mesmo instante, a agente comunitária a configurar uma quase .invasão., na medida em que, apesar de terem autori#aão das crianas, sa%iam que a mãe não as queria ali! Antes de seguir com a narrativa do que se passou nesse fonoaudi&loga com a mãe, a%ro espao para tocar em algo que pode ter ra#ão) estranhamento/ a a%ordagem na casa! Como se sa%e, é comum na clínica (psicanalítica, psicol&gica, fonoau separaão entre queixa e demanda! 0squematicamente falando, a primeira refere o desconforto ou inc1modo perce%ido por meio de um sintoma ou sintomas/ o que incomoda gera uma queixa que é anunciada ao clínico! $o entanto, não se confunde, necessariamente, com a demanda, em%ora com demanda di# respeito aos processos de causaão do sintoma, a quest2e

Upload: tania-santos

Post on 07-Oct-2015

215 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Texto de Clínica Ampliada

TRANSCRIPT

O menino-cachorro

O menino-cachorro "Ns s o descobrimos bem depois do cadastramento, porque quando fomos na casa, a famlia no informou sobre ele. Foi por acaso, numa visita que eu descobri. at pecado mas ... ele como o cachorro da casa. Agora parece que melhorou, porque at pouco tempo ele dormia do lado de fora". (fala do ACS, em reunio de equipe) o acesso a esta famlia foi difcil, a agente comunitria tinha relatado tentativas de aproximao, sempre frustradas. De fato, fomos e voltamos algumas vezes antes de conseguir falar com um responsvel pelo tal menino. Na casa, crianas nos recebiam, ora diziam que a me no estava, ora que dormia ou que no queria falar conosco. Certa vez, aps mais um recado das crianas, de que a me no queria falar com os profissionais de sade (fonoaudiloga e agente comunitria), a fonoaudiloga decide insistir e pede s crianas para, ao menos, ver o menino. A deixam entrar e a levam at ele. O garoto dormia no cho, atrs do armrio da cozinha; exalava um forte cheiro de urina, estava muito sujo e com o corpo contrado, aparentemente pelo frio. A agente comunitria sugere ir embora, mas a fonoaudiloga resolve observar o menino. A agente fica do lado de fora da porta, pois sabia que a me no as considerava bem-vindas. A fonoaudiloga toca levemente o garoto e o chama, na tentativa de despert-Io. A me percebe o movimento na casa e sai do quarto aos berros, visivelmente irritada com a presena das profissionais. No mesmo instante, a agente comunitria se retira; o que ajudou a configurar uma quase "invaso", na medida em que, apesar de terem entrado com a autorizao das crianas, sabiam que a me no as queria ali. Antes de seguir com a narrativa do que se passou nesse primeiro encontro da fonoaudiloga com a me, abro espao para tocar em algo que pode ter gerado (e com razo) estranhamento: a abordagem na casa. Como se sabe, comum na clnica (psicanaltica, psicolgica, fonoaudiolgica)a separao entre queixa e demanda. Esquematicamente falando, a primeira refere o desconforto ou incmodo percebido por meio de um sintoma ou por um conjunto de sintomas: o que incomoda gera uma queixa que anunciada ao clnico. No entanto, a queixa no se confunde, necessariamente, com a demanda, embora com ela se relacione. A demanda diz respeito aos processos de causao do sintoma, a questes (fsicas e/ou psquicas) que no encontram resoluo e que produzem os sintomas como tentativas parcais e, com alguma freqncia, precras de resposta. Assim, as queixas do notcias de contedos manfestos, enquanto as demandas referem-se a contedos latentes. Alm disso, a apresentao da queixa e a solicitao de ajuda por parte do paciente so expresso de seu desejo em ser cuidado, como tambm o consentimento para que o clnico entre em contato com questes ntimas e pessoais. Ora, a abordagem do caso parece invasiva, pois ningum foi convidado a entrar na vida daquela famlia. No entanto, preciso considerar alguns aspectos da interveno no PSF, em particular no mbito de sua verso no Qualis II.Um ramo do trabalho das equipes de sade no PSF acontece na rua, onde vo para observaras condies de vida e de sade daquela comunidade; para levantar problemas de sade que, por motivos diversos: dificuldade de locomoo, desinformao, etc., no chegam s unidades de sade; para se apresentar e, sobretudo, para ofertar s pessoas e comunidade as aes que a equipe est em condies de realizar. Nesse sentido, antes de qualquer contrato clnico e teraputico h uma espcie de demanda (no em sentido clnico) das equipes para a populao. Demanda essa que, naturalmente, pode ou no ser acolhida. Quando no , esta deciso deve ser acatada pela equipe, afinal as pessoas tm direito de recusar esse tipo de ao institucional/governamental. Porm, e dentro de certos limites, necessrio ter persistncia para, de fato, demonstrar o interesse e o compromisso com o trabalho ofertado. No caso em questo, embora um tanto abusada, a abordagem gerou acolhimento e possibilidade de trabalho com aquela famlia (como se ver a seguir), mas ela requer que se pondere tambm um outro risco, ainda mais grave: risco de fazer das aes de sade dispositivos de controle, para alm do que j respondem a mecanismos desta ordem, na medida em que estes permeiam as instituies, como de resto as sociedades contemporneas[endnoteRef:1] [1: 1 Sobre sociedades disciplinares e de controle ver Foucaut, 1988 e 1989; e Deleuze, 1992]

No difcil imaginar que se est, no mnimo, sempre a um passo de despencar para julgamentos de hbitos, de formas de relacionamentos, etc., e de prescrever e estimular comportamentos e atitudes, supostamente educativas, preventivas ou capazes de promover sade. Se for assim, reeditamos sob roupagens apenas aparentemente democrticas outras verses da "polcia mdica" dos tempos de preventivismo. Tambm sabemos que no h garantias para evitar totalmente esse risco, ao contrrio, estamos sujeitos, o tempo todo, a cair em suas malhas, pois alm de ser uma tendncia dominante, tambm encontra amparo e amplificao em formas corriqueiras de pensar e de agir na rea da sade. o qu restaria fazer? Como diz Kastrup[endnoteRef:2]2 (1999, pp. 204 e 205) a chave da poltica inventiva a manuteno de uma tenso permanente entre ao e a problematizao Trata-se de seguir sempre um caminho de vaivm, inventar problemas e produzir solues, sem abandonar a experimentao. A opo por esse caminho implica ter a coragem de correr os riscos do exerccio de uma prtica, mas tambm de suspender a ao e pensar. o. exerccio de uma coragem prudente. desconfiar das prprias certezas, de todas as formas prontas e supostamente eternas, e portanto inquestionveis, mas tambm buscar sadas, linhas de fuga, novas formas de ao, ou seja, novas prticas cujos efeitos devem ser permanentemente observados, avaliados e reavaliados. Acolher a incerteza ser sua fora, e no sua fragilidade. Enfim, tal poltica inventiva tem de lutar permanentemente contra as foras, em ns e fora de ns, que obstruem o movimento criador do pensamento, o que pode redundar em novas prticas ( ... ), com base na problematizao daquelas existentes. [2: 2 A autora se refere a um outro contexto, no diretamente relacionado Sade Pblica, mas sua formulao diz perfeitamente do tipo de empenho que me parece necessrio tambm aqui.]

Talvez a fonoaudiloga/estagiria, apoiada no tipo de trabalho e de discusses que se faziam na equipe, tenha se sentido segura o suficiente para correr o risco e sustentar a situao. Permaneceu na casa apesar da bronca que a me lhe dirigia e assim que pde se desculpou, passando a explicar a situao, tentando argumentar a favor da importncia do atendimento de seu filho pela equipe de sade. Segundo a terapeuta, nenhum argumento sensibilizava a me, por isso, fez um ltimo apelo: " uma questo de humanidade, no d para o seu filho viver assim, que nem um cachorro! A gente pode ajudar". A me hesita e pergunta terapeuta: "Voc evanglica?" A terapeuta que, coincidentemente , responde afirmativamente. A me, que olhava firme para a terapeuta, desvia o olhar e, aps pequena pausa, volta a falar j em outro tom, dizendo de seu esconforto em face da insistncia do pessoal do posto em entrar em sua casa. Ela conta que "eles" s iam a casa ver as coisas erradas, para depois mandar nela e lhe dizer como tomar conta de sua vida. Comenta sobre um profissional da unidade, que teria dito que ela estava deprimida e, por isso, no conseguia cuidar da casa e dos filhos. "Elas no me viram deprimida, eu j tive isso, no ligava pra nada, no conseguia nem levantar. Agora que estou bem e posso tomar conta da minha casa, elas vm aqui dizer que no?!". Sei das dificuldades diante de situaes como estas, no fcil agir sob o impacto do que se v, pois tais circunstncias, muitas vezes, chocam com nossos mundos, com os universos de referncia de que se dispe para pensar e se relacionar com o outro, o que foi o caso naquele atendimento. Ali, a fonoaudiloga, intuitivamente, insistiu no atendimento sem questionar a me em relao s condies nas quais se encontrava seu filho. A cena no interferiu na disponibilidade da terapeuta, no a ponto de impedir o contato; tal aposta abriu caminho para a constituio de um territrio favorvel interveno da equipe. Em outras palavras, ela persistiu no enfrentamento, e a coincidncia da crena religiosa funcionou como elemento de enlace. A partir da, a me autorizou a entrada dos profissionais para o atendimento do menino. o garoto tem quatorze anos e apresenta um quadro de paralisia cerebral e de alteraes respiratrias. Mora com a famlia em dois cmodos - quarto e cozinha. Ao todo so nove pessoas: pai, me e sete filhos. Alm deles, durante o dia, mais trs primos freqentam a casa. A me fica em casa a maior parte do tempo, assistindo televiso no quarto, que onde dormem todos, numa nica cama - exceo de nosso paciente. Ele no tem permisso para entrar no quarto, seu lugar na cozinha. Dorme, come, bebe e faz suas necessidades no cho, atrs de um armrio. O lugar bastante mido e frio; o que pode ter causado ou agravado seus problemas respiratrios. O menino quase no limpo, no lhe do banho e raramente o vestem da cintura para baixo. A imagem, que mais se assemelha a esse menino, parece ser mesmo a de um "cachorro". Nunca recebeu tratamento mdico ou teraputico, no consegue sentar ou andar sem apoio, se arrasta e tem um comprometimento msculo/esqueltico severo. Compreende o que lhe dito e emite apenas as palavras "balo", "po" E: "rato". Vale ressaltar que no uso dessas poucas palavras que se percebia reverberar algum trao humano. Ele no as repete indiscriminadamente, e curiosa a preciso e a fora com que as emite em face dos contextos nos quais so empregadas. Diz "po" somente quando tem fome ou sede; "rato" quando tocado nas feridas, conseqncias das mordidas de rato que leva enquanto dorme; "balo" quando quer se referir a algo que est fora do espao confinado em que sempre viveu, talvez por ter ouvido a palavra dos irmos, aludindo algo que ficava solto no cu, fora da casa. Em geral, ele no verbaliza, mas s vezes se vale de expresses faciais e gestos indicativos. As condies nas quais se encontra no podem ser justificadas somente pelas seqelas da paralisia cerebral. possvel supor que, se se considerar apenas sua leso cerebral, as possibilidades de um melhor desenvolvimento fsico e psquico no seriam negligenciveis. A leso est sobredeterminada pelos modos como puderam lidar com ele. A conta aquilo que fizeram e que no fizeram em seu convvio. O "menino-cachorro" teve poucas chances de se fazer gente. Esta , sem dvida, a questo primeira em seu atendimento: olh-Io como gente, supor ali um sujeito. Ento, no se tratava de encarnar a figura do especialista, realizando uma avaliao diagnstica especfica capaz de, no caso da fonoaudiologia, detalhar as alteraes do sistema sensrio motor oral, os dficits cognitivos, as limitaes discursivas ou outras alteraes de linguagem. Ao contrrio, era preciso suspender este "lugar" (de especialista), assumindo que o trabalho tcnico s se faria em funo das possibilidades de elaborao, por parte dele e da famlia, de sua condio pessoal e social. Todavia, para que isso pudesse acontecer, foi necessrio o investimento na construo de um territrio mnimo de acolhimento e de existencializao, que pudesse desestabilizar a condio de um quase "animal domstico", como destino inelutvel. Nos primeiros contatos da terapeuta com o menino, busca-se provocar uma circulao em outros espaos da casa. A terapeuta o trazia pela mo at a cadeira, realizava manobras para que ele se sustentasse sentado e manuseasse alguns materiais colocados sobre a mesa. A terapeuta conta da sensao de estranhamento que isso provocava nos irmos e primos; eles se aproximavam para ver e tambm pela seduo causada pelos brinquedos, papis, canetas e tintas trazidas para o atendimento. Era como se eles se perguntassem: O que ele est fazendo sentando a? Por que algum viria at aqui para lhe dar ateno? A me nada dizia ou fazia, apenas observava, de longe. Certa vez, uma das crianas pergunta diretamente o porqu da terapeuta ir ver o irmo, ao que ela responde: - Gosto de brincar com ele!! Em seguida indaga s crianas: - Vocs costumam brincar ou conversar com ele? Silncio e olhares entre eles. A terapeuta insiste: -"Mais ou menos?!" Um dos meninos responde: - "Mais menos do que mais" Na medida em que foram ocorrendo as intervenes, aos poucos se dissipa a naturalizao dos modos como tratavam o menino e de como ele reagia, comeam a ocorrer sutis e importantes mudanas. Um dos primeiros efeitos visveis foi o envolvimento e o empenho da famlia na construo, com o auxlio da equipe da associao pau-pau21, de uma cama para o garoto. Embora a cama tenha sido colocada na cozinha, atrs do armrio, sua instalao representou um gesto concreto de afeto e de cuidado da famlia para com ele. O colcho e os lenis foram junto com a cama, mas o primeiro cobertor enviado no chegou ao menino, foi usado por outros membros da famlia. Na verdade, apenas o quarto cobertor doado chegou ao paciente; o que avaliamos como um avano, j que havia nove moradores na casa. Num outro dia, a terapeuta comunica me que ia dar um banho no menino, para poder fazer uma massagem de alongamento da musculatura e alvio de dores que ele sentia. A me fica surpresa e, sem saber o que dizer, comea a se desculpar porque o banheiro podia estar sujo, j que 21 Esta associao, na poca, desenvolvia um trabalho de parceria com as unidades de sade do Qualis/Zerbini, na qual eram realizadas oficinas e atividades que envolviam desde eventos culturais, artsticos e trabalhos manuais, entre as quais a oficina de marcenaria, alis, muito til para conseguirmos a cama. servia vrias casas. A terapeuta, sem interromper sua trajetria em direo ao banheiro, responde que no teria problema, para a me no se preocupar com isso. A me observa atenta o semblante de alvio e conforto do garoto aps o banho, senta-se na cama do menino, do lado oposto ao da terapeuta, observa por poucos instantes a massagem que ela faz em uma das pernas e comea a fazer o mesmo na outra. A partir da, passa a dar banho no filho, ao menos nos dias de atendimento. Orgulhosa, diz terapeuta logo no primeiro encontro aps o "primeiro banho": "Hoje j preparei ele". importante mencionar que, alm do banho, o garoto estava vestido e com leo nos cabelos; o que bastante relevante, uma vez que esta uma prtica muito comum na regio, associada imagem de me zelosa com o asseio dos filhos. Durante um atendimento no "quintal" - junto com todas as crianas -, sentados num pano estendido no cho, uma das crianas lembrou que o irmo fez aniversrio por aqueles dias, que sabia disso porque ouviu a me dizer. Enquanto cantavam parabns, nosso menino sorria muito, expressando estar feliz com o gesto dos irmos, independentemente dele ter ou no o sentido exato do significado de aniversrio. Algo, nitidamente, comea a se passar entre eles. Alm disso, quando iniciamos o atendimento, a me no concebia a possibilidade de seus filhos menores ingressarem na escola. Tal resistncia adivinha do fato de seu filho mais velho ser usurio de drogas e atualmente trabalhar para o trfico. Ela acredita que isso s aconteceu porque ele estava na escola. Em seu clculo, a escola faz muito mal s crianas. Ela diz: "Melhor no estudar. No ajuda, s atrapalha. estratgia governamental. L s tem contaminao com sexo, drogas, linguagem baixa ... Melhor no fazer nada. Pelo menos evita a contaminao pelo mal". O tipo de interveno efetuada pela equipe de sade promoveu efeitos tambm a. Hoje, os filhos menores freqentam a escola e tambm conseguimos uma vaga para nosso paciente numa escola especializada, que s no freqentou porque no arranjamos o transporte escolar. No entanto, embora tenha havido ganhos no tratamento do menino e na dinmica da casa, a precariedade da situao e as chances desses deslocamentos ganharem consistncia e se consolidarem no so muito alentadoras. Ao contrrio, o grau de misria e de instabilidade a que esto submetidos vrios contingentes populacionais, faz com que as conquistas, em termos materiais, como tambm de estruturao psquica, estejam sempre por um fio, fiquem ao sabor da mngua em que a vida (em todos os nveis) est metida. o atendimento j durava dois anos e sempre foi conduzido com mUita angstia pelos membros da equipe responsvel. A despeito de possveis avanos, no era incomum a equipe se ver s voltas com a discuss? sobre a possibilidade de denunciar o caso ao Conselho Tutelar, para que o garoto fosse levado a uma instituio especializada naquele tipo de encefalopatia e, ao menos supostamente, pudesse receber um tratamento mais sistemtico e com maior quantidade de recursos para seu caso. Pode at parecer estranho que tal questo seja colocada pelos profissionais, mas se se pensar no tanto de conflitos que o atendimento suscita e nos deslocamentos subjetivos que exige, para sustentao dessa forma de interveno, possvel considerar uma outra face da questo, relativa aos sentidos implicados nesse tipo de proposta em sade. A idia de denncia ao Conselho Tutelar, com possvel perda da guarda da criana pelos pais, pode parecer absurda ao tomarmos como referncia o que ela poderia representar para o menino e sua famlia, aps os investimentos que efetuaram nesses dois anos. No entanto, ela ganha alguma legitimidade se a pensarmos como ndice de (in)suportabilidade da prpria equipe de sade, ou seja, como uma espcie de indicador sobre o que ela agenta enfrentar e sobre aquilo que bate nos limites de suas condies de formao e de disponibilidade. Os profissionais sentem-se trabalhando num limite tico, poltico e Tcnico extremos respectivamente porque desejam promover deslocamentos e melhoras nas condies do paCiente, como tambm que elas se expressem pela fortificao dos processos subjetivos dos pacientes e de suas possibilidades de circulao e relacionamento no seu meio; porque precisam buscar posies de resistncia e de enfrentamento aos obstculos que dificultam a interveno; tambm porque os saberes, os conhecimentos e o instrumental tcnico de que dispem, por melhor que sejam, por si s no do conta - e nem poderiam - da imprevisibilidade do que acontece neste tipo de prtica clnica. Em circunstncias to limiares, como estar a beira de um abismo: sensao de vertigem permanente. Da ser compreensvel - porque humano - tender a retroceder diante da iminncia da queda. Medo de perder o p, sentimento agudo de responsabilidade e at de culpa se a situao degringolar de vez. Porm, se ter sade tambm poder arrisc-Ia, abusar dela, uma vez que s quem est doente se poupa, se resguarda (Canguilhem, 1982), isso talvez possa valer como uma espcie de princpio para uma poltica de sade cujo sentido viria justamente de se arriscar na corda bamba de nossas condies sociais e sanitrias. Se for assim, um bom caminho parece estar na dsponibilidade emincidir sobre estes outros mundos, tentando suportar - tanto quanto possvel - as derivas que isso gera. como se, sendo da "Terra", estivssemos em "Marte" e soubssemos que "Marte" aqui, tambm a "Terra". Significa dizer que essa absoluta "estrangeirice" tambm o que somos, problema nosso. Tratar~se-ia de um sim deriva desse encontro, para nela produzir territrios de existencializao e, por meio deles, possibilidades de vida saudvel - por pequenas e transitrias que fossem. Em meio a tudo isso nosso garoto, com dezesseis anos, falece por complicaes cardio-respiratrias. A me, que o havia levado ao hospital na noite anterior morte, volta pela manh com a notcia e, ao invs de ir para casa, passa na unidade de sade e vai para a sala onde a equipe est reunida. Seu choro to intenso quanto a partilha de sua dor conosco. Tal gesto reafirma o vnculo e a parceria que fizemos, os laos profundos entre os profissionais da unidade e esta famlia, constitudos ao longo do tempo em que ajudamos a cuidar e a inventar possveis l onde apenas o bomsenso e o instrumental tcnico/especializado da rea da sade nada ou quase nada poderiam vislumbrar. Ajudamos e estivemos juntos no velrio e no enterro. Naturalmente, isso no era uma imposio, nem uma premissa do trabalho no Qualis 11, era um desejo da equipe e de cada um de seus membros. Naquele momento, tive uma sensao ntida de que nenhum de ns permanecia o mesmo, de que aquilo que construamos, neste e em outros casos, produzia diferenas irreversves no como vamos a sade pblica, a clnica, a relao com o outro3. Lembro de pensar essas coisas enquanto olhava um membro da equipe colocar um punhado de flores no tmulo de Toms. 3 Acho importante expressar aqui meu reconhecimento ao trabalho da coordenao do Qualis II poca: David Capistrano Filho (em memria). Ldia Tobias e Socorro Matos. Mais do que uma gesto competente. eles abriram a bancaram espaos para que as coisas acontecessem.