apocalypse agalopado (zé ramalho)

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Page 1: Apocalypse agalopado (zé ramalho)
Page 2: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Apocalypse

Zé Ramalho - Rio de Janeiro direto

APOCALYPSE AGALOPADO Foi um tempo que o tempo não esquece

Que os trovões eram roucos de se ouvir Todo um céu começou a se abrir Numa fenda de fogo que aparece O poeta inicia a sua prece

Ponteando em cordas e lamentos Escrevendo seus novos mandamentos Na fronteira de um mundo alucinado

Cavalgando em martelo agalopado E viajando com loucos pensamentos

Querubins executam nas trombetas Um acorde em todos instrumentos Violeiros cantando mandamentos Plangem cordas, violas e palhetas

Peregrinos carregam nas maletas Suas tábuas talhadas por Sumé Serpentários perdidos no sopé

Na montanha das aves carirís Periquitos, canários e com-criz Porta-voz do cacique Lucifér

Renuncio à morte e mato a vida Aterrizo no céu minha astronave Busco pedras, de fino alinhave

Solto raios, trovão não me intimida

Page 3: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Furacões nessa terra perseguida

Amolecem a fé no Criador Derrubando muralhas com furor Vem a Bêsta vingar enfurecida

Despertando em luz enegrecida E assolando vulcões em seu vigor

Pelas praias parou o movimento Das espumas gentis e flutuantes Não há barcos de velas ululantes Nem baleias na cor do pensamento

Nesse dia se fez o julgamento Dos severos castigos do Senhor Pro inferno quem vai é pecador

Grossas teias de fogo lhe acompanham Sete quedas de braço lhe apanham E estrangulam-no como um traidor

Entre os seios da Bêsta flamejante Um cavalo de fogo se escondeu Uma lua de lata apareceu

Numa aurora de luz alucinante Do cavalo desceu um ser gigante Caminhando que nem um vingador

Pareceu-me ser um gladiador Sua rede tem pregos retorcidos Arrastando cadelas e maridos

Para o reino do sonho aterrador O serrote de lajes reluzentes Obscuro ficou naquela hora

Um vaqueiro perdeu sua espora

Page 4: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Desonrado caiu entre os clementes

A beata Maria dos Parentes Começou loucamente a se despir Enforcou-se nos braços de Nair

Sua morte foi calma e tão serena Parecendo Maria Madalena Procurando um motivo prá sorrir

Sete botas pisaram no telhado Sete léguas comeram-se assim Sete quedas de larva e de marfim

Sete copos de sangue derramado Sete facas de fio amolado Sete olhos atentos encerrei

Sete vezes eu me ajoelhei Na presença de um ser iluminado Como um cego fiquei tão ofuscado

Ante o brilho dos olhos que olhei Um metal esquisito e borbulhante Como larva descia de um facão

Cujo dono montado num tufão Carregava tal arma trucidante E bramindo tal qual um elefante

Condenava a doutrina de mentir Meu cachorro danou-se prá latir Correu sangue no tronco da jurema

Vi o lombo da serra Borborema Reluzindo o calor da carirí Uma porta que abre-se rangendo

Sete gatos que pulam nos umbrais

Page 5: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Uma lua que geme por detrás

Sete bocas de gozo se mordendo Sete dentes de ouro derretendo Sete ondas gigantes sobre o mar

Sete fogos divinos de queimar Sete cobras, piolhos de serpentes Sete vidas de normas aparentes

Sete horas eu vou me levantar Minha lira se chama Amaltéia Meu cavalo se chama Mato-Grosso

Minha cama de vidro é um colosso Meu planeta foi berço de Medéia Minha asa foi feita na Coréia

Me trouxeram no bico de um condor Carro forte, blindado e sem valor Atrevido poeta e penitente

Olho fundo queimado de sol quente E contraído de ferro e de calor Não pretendo deixar dedos falarem

Nem fazer de você perda inútil Nem vestí-la de sedas de um tom fútil Nem querê-la dormente de bobagem

Meu tecido forjado de coragem Nos teares ferventes de Satã Destronado do trono desse clã

Meu juízo atirou-se na procura Desviou-se dos beijos da loucura Aquecendo o bocejo do acuã

A visão do meu olho cristalino

Page 6: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Captando cometas estrelados

Nebulosas e astros anelados Através do cabelo de um menino Seu sorriso tem ares de divino

Porque males nenhum pode sofrer São crianças que vão sobreviver Ao poder que reinou embrutecido

Pelo mundo ficou só o rugido Dos motores que o homem quis fazer Observo olhares sem destino

Perfurando ovários estrelares Entretanto vacilam se buscares Tua régua de olho cristalino

No cabelo só passa o pente fino Na retina só vejo se olhar No gameta desprendo meu colar

Na costela da perna de um Adão Nos olhares das pernas de um pavão Hipnóticos ao enfeitiçar

A revolta de toda a natureza Mediante a matança dos seus bichos Através dos grudentos carrapichos

Toda praga que vem é com certeza O silêncio que paira na probreza È capaz desse mundo acordar

Para um louco que vive a meditar No dragão que matou a mocidade Um herói que morreu pela metade E se viveu não tem fôrça prá contar

Page 7: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Mas a vida me leva pela noite

Até o vento se cala a cotovia Uma ponte até um outro dia Um cangaço que pede um açoite

Que ninguém me convide que pernoite Nos confins das crateras poluídas Tenho várias couraças destemidas

E brazões de metais incandescentes Tenho rio, riachos e correntes Tenho chamas e são embevecidas

Quem duvida do fogo que não queima Acredita na água que não lava Atormenta botecos se deprava

Associa seu ódio com a teima Portador dos bacilos e da reima Adquire doenças genitais

Nos colchões supurantes onde vais Expulsar a resina dentro dela Adormeces no peito da janela Engolfado nos gases de Alcatraz

Pode ser que ninguém me compreenda Quando digo que sou visionário

Pode a Bíblia ser um dicionário Pode tudo ser uma refazenda Mas a mente talvez não me atenda

Se eu quiser novamente retornar Para um mundo de leis me obrigar A lutar pelo êrro do engano Eu prefiro um galope soberano

À loucura do mundo me entregar

Page 8: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Aprendi muito cedo a solidão Das pessoas que vivem sem pecado Nesse mundo de eixo avariado

Não há ritmo de amor no coração Mas o reino do grande Salomão Alojou-se na mente de José

A malícia do mago Lucifér A candura de um anjo serafim Os tesouros da Costa-do-Marfim E o futuro vai vir quando vier

APOCALYPSE A BEIRA MAR Quando o dia morre que a noite avança

A brisa marinha bafeja e murmura Nos braços divinos da santa natura A noite soturna tristonha descansa O mundo adormece e o mar se balança

A lua de prata começa a brilhar Jogando reflexos dourados no ar Rasgando o véu preto que envolve o espaço

Matando a metade do grande mormaço Que agita as procelas na beira do mar

Em cima da terra o mar permanece Cheio de enigmas, completo de enrêdos Guardando mistérios, profundos segrêdos Ciências ocultas que o chão desconhece

É bravo gigante que nunca adormece

Page 9: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Um minuto apenas não pode parar

A terra girando suspensa no ar Obriga que as água se movam também Sem obedecerem na terra a ningúem

Somente a Netuno que é mestre do mar No mundo da gente qualquer ser humano

Que viva pisando o globo terrestre É uma energia que para seu mestre É só contemplar esse grande oceano Aonde o poder de um ser soberano

Está retratado sem nada faltar Grandeza que o homem não pode imitar Nem mesmo em oitenta milhões de semanas

Aonde a ordem supera as humanas No céu e na terra e por dentro do mar

Por dentro das águas vi quadros risonhos E coisas que assombram o mundo dos vivos Peixes milagrosos, insetos nocivos Paisagens abertas, desertos medonhos

Léguas consativas, caminhos tristonhos Que fazem o homem se desenganar Vi peixes que lutam pra vida salvar

Daqueles que caçam no mar revoltoso Outros que devoram com gênio assombroso As vítimas que caem na beira do mar

Vi blocos de gelo que imitam penedos De alturas imensas e feitios belos Montanhas de areia, enormes castelos

Camadas de sais a formarem rochedos

Page 10: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

Retratos de Deus e divinos segredos

Que sávio nenhum conseguiu decifrar Há ervas marinhas que oscilam no ar Palmeiras esbeltas, antigos coqueiros

De leques abertos imitam guerreiros Guardando a fortuna do fundo do mar

Nessa hora sublime as aves em festa Osculam alegres os verdes arminhos Cobrindo de plumas os vastos caminhos Que vão para o cimo das grandes florestas

Selvagens trinados que lembram serestas Arpejos jogados à luz do luar Visões que obrigam minh'alma a sonhar

Com as ondas turvas dos mares revoltos Onde os seres brincam libertos e solto Nas largas viagens da beira do mar

Eu entendo a noite como um oceano Que banha de sombras o mundo de sol Aurora que luta por um arrebol

De cores vibrantes e ar soberano Um olho que mira nunca o engano Durante o instante que vou contemplar

Além muito além onde quero chegar Caindo a noite me lanço no mundo Além do limite do vale profundo

Que sempre começa na beira do mar O mar se revolta e os peixinhos pulam Mergulham velozes cortando as espumas

Os barcos veleiros resvalam nas brumas

Page 11: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

E as verdes palmeiras nos ares tremulam

As águas se abraçam, as brisas osculam Os tortos coqueiros que oscilam no ar O vento marítimo procura pegar

A força das ondas que ora se agitam Enquanto navios aflitos apitam Deixando naufrágios na beira do mar

Paquetes sem luzes, navios sem velas Visões invisíveis, terríveis assombros Montões de vasculhos, enormes escombros

Há ventos raivosos, tufões e procelas Lanchas destruídas, velhas caravelas E barcos perdidos sem mais viajar

Navios que o tempo tentou afundar Somas valiosas, tesouros mantidos Segredos do mundo que estão escondidos

No leito salgado do fundo do mar Furacões enormes, ondas revoltadas Pedras gigantescas, areias e brumas

Tapetes de lodos, rosários de espumas Tubarões famintos, baleias iradas Canoas perdidas, barcaças quebradas

Velhos fragmentos por todo lugar Há corvos marinhos voando no ar Sentindo o mau cheiro de ossadas remotas

São restos mortais de alguns patriotas Que estão sepultados na beira do mar Tem monstros que vivem no reino abissal

Num mundo profundo aonde não vai

Page 12: Apocalypse agalopado (zé ramalho)

O homem que entra dali nunca sai

Nem há batisfera veículo prá tal Nenhum oriente, nem ocidental Contempla o mistério que vou consagrar

Ouvir a sereia Anfertite cantar A onda que geme e que hipnotiza O fim da história na minha camisa

Que lavo na espuma da beira do mar Até que a morte eu sinta chegando Prossigo cantando beijando o espaço

Além do cabelo que desembaraçado Invoco as águas a vir inundando Pessoas e coisas que vão arrastando

Do meu pensamento já podem lavar No peixe de asas eu quero voar Sair de Oceano de tez poluída

Cantar um galope fechando a ferida Que só cicatriza na beira do mar.