apocalypse agalopado (zé ramalho)
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Apocalypse
Zé Ramalho - Rio de Janeiro direto
APOCALYPSE AGALOPADO Foi um tempo que o tempo não esquece
Que os trovões eram roucos de se ouvir Todo um céu começou a se abrir Numa fenda de fogo que aparece O poeta inicia a sua prece
Ponteando em cordas e lamentos Escrevendo seus novos mandamentos Na fronteira de um mundo alucinado
Cavalgando em martelo agalopado E viajando com loucos pensamentos
Querubins executam nas trombetas Um acorde em todos instrumentos Violeiros cantando mandamentos Plangem cordas, violas e palhetas
Peregrinos carregam nas maletas Suas tábuas talhadas por Sumé Serpentários perdidos no sopé
Na montanha das aves carirís Periquitos, canários e com-criz Porta-voz do cacique Lucifér
Renuncio à morte e mato a vida Aterrizo no céu minha astronave Busco pedras, de fino alinhave
Solto raios, trovão não me intimida
Furacões nessa terra perseguida
Amolecem a fé no Criador Derrubando muralhas com furor Vem a Bêsta vingar enfurecida
Despertando em luz enegrecida E assolando vulcões em seu vigor
Pelas praias parou o movimento Das espumas gentis e flutuantes Não há barcos de velas ululantes Nem baleias na cor do pensamento
Nesse dia se fez o julgamento Dos severos castigos do Senhor Pro inferno quem vai é pecador
Grossas teias de fogo lhe acompanham Sete quedas de braço lhe apanham E estrangulam-no como um traidor
Entre os seios da Bêsta flamejante Um cavalo de fogo se escondeu Uma lua de lata apareceu
Numa aurora de luz alucinante Do cavalo desceu um ser gigante Caminhando que nem um vingador
Pareceu-me ser um gladiador Sua rede tem pregos retorcidos Arrastando cadelas e maridos
Para o reino do sonho aterrador O serrote de lajes reluzentes Obscuro ficou naquela hora
Um vaqueiro perdeu sua espora
Desonrado caiu entre os clementes
A beata Maria dos Parentes Começou loucamente a se despir Enforcou-se nos braços de Nair
Sua morte foi calma e tão serena Parecendo Maria Madalena Procurando um motivo prá sorrir
Sete botas pisaram no telhado Sete léguas comeram-se assim Sete quedas de larva e de marfim
Sete copos de sangue derramado Sete facas de fio amolado Sete olhos atentos encerrei
Sete vezes eu me ajoelhei Na presença de um ser iluminado Como um cego fiquei tão ofuscado
Ante o brilho dos olhos que olhei Um metal esquisito e borbulhante Como larva descia de um facão
Cujo dono montado num tufão Carregava tal arma trucidante E bramindo tal qual um elefante
Condenava a doutrina de mentir Meu cachorro danou-se prá latir Correu sangue no tronco da jurema
Vi o lombo da serra Borborema Reluzindo o calor da carirí Uma porta que abre-se rangendo
Sete gatos que pulam nos umbrais
Uma lua que geme por detrás
Sete bocas de gozo se mordendo Sete dentes de ouro derretendo Sete ondas gigantes sobre o mar
Sete fogos divinos de queimar Sete cobras, piolhos de serpentes Sete vidas de normas aparentes
Sete horas eu vou me levantar Minha lira se chama Amaltéia Meu cavalo se chama Mato-Grosso
Minha cama de vidro é um colosso Meu planeta foi berço de Medéia Minha asa foi feita na Coréia
Me trouxeram no bico de um condor Carro forte, blindado e sem valor Atrevido poeta e penitente
Olho fundo queimado de sol quente E contraído de ferro e de calor Não pretendo deixar dedos falarem
Nem fazer de você perda inútil Nem vestí-la de sedas de um tom fútil Nem querê-la dormente de bobagem
Meu tecido forjado de coragem Nos teares ferventes de Satã Destronado do trono desse clã
Meu juízo atirou-se na procura Desviou-se dos beijos da loucura Aquecendo o bocejo do acuã
A visão do meu olho cristalino
Captando cometas estrelados
Nebulosas e astros anelados Através do cabelo de um menino Seu sorriso tem ares de divino
Porque males nenhum pode sofrer São crianças que vão sobreviver Ao poder que reinou embrutecido
Pelo mundo ficou só o rugido Dos motores que o homem quis fazer Observo olhares sem destino
Perfurando ovários estrelares Entretanto vacilam se buscares Tua régua de olho cristalino
No cabelo só passa o pente fino Na retina só vejo se olhar No gameta desprendo meu colar
Na costela da perna de um Adão Nos olhares das pernas de um pavão Hipnóticos ao enfeitiçar
A revolta de toda a natureza Mediante a matança dos seus bichos Através dos grudentos carrapichos
Toda praga que vem é com certeza O silêncio que paira na probreza È capaz desse mundo acordar
Para um louco que vive a meditar No dragão que matou a mocidade Um herói que morreu pela metade E se viveu não tem fôrça prá contar
Mas a vida me leva pela noite
Até o vento se cala a cotovia Uma ponte até um outro dia Um cangaço que pede um açoite
Que ninguém me convide que pernoite Nos confins das crateras poluídas Tenho várias couraças destemidas
E brazões de metais incandescentes Tenho rio, riachos e correntes Tenho chamas e são embevecidas
Quem duvida do fogo que não queima Acredita na água que não lava Atormenta botecos se deprava
Associa seu ódio com a teima Portador dos bacilos e da reima Adquire doenças genitais
Nos colchões supurantes onde vais Expulsar a resina dentro dela Adormeces no peito da janela Engolfado nos gases de Alcatraz
Pode ser que ninguém me compreenda Quando digo que sou visionário
Pode a Bíblia ser um dicionário Pode tudo ser uma refazenda Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar Para um mundo de leis me obrigar A lutar pelo êrro do engano Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar
Aprendi muito cedo a solidão Das pessoas que vivem sem pecado Nesse mundo de eixo avariado
Não há ritmo de amor no coração Mas o reino do grande Salomão Alojou-se na mente de José
A malícia do mago Lucifér A candura de um anjo serafim Os tesouros da Costa-do-Marfim E o futuro vai vir quando vier
APOCALYPSE A BEIRA MAR Quando o dia morre que a noite avança
A brisa marinha bafeja e murmura Nos braços divinos da santa natura A noite soturna tristonha descansa O mundo adormece e o mar se balança
A lua de prata começa a brilhar Jogando reflexos dourados no ar Rasgando o véu preto que envolve o espaço
Matando a metade do grande mormaço Que agita as procelas na beira do mar
Em cima da terra o mar permanece Cheio de enigmas, completo de enrêdos Guardando mistérios, profundos segrêdos Ciências ocultas que o chão desconhece
É bravo gigante que nunca adormece
Um minuto apenas não pode parar
A terra girando suspensa no ar Obriga que as água se movam também Sem obedecerem na terra a ningúem
Somente a Netuno que é mestre do mar No mundo da gente qualquer ser humano
Que viva pisando o globo terrestre É uma energia que para seu mestre É só contemplar esse grande oceano Aonde o poder de um ser soberano
Está retratado sem nada faltar Grandeza que o homem não pode imitar Nem mesmo em oitenta milhões de semanas
Aonde a ordem supera as humanas No céu e na terra e por dentro do mar
Por dentro das águas vi quadros risonhos E coisas que assombram o mundo dos vivos Peixes milagrosos, insetos nocivos Paisagens abertas, desertos medonhos
Léguas consativas, caminhos tristonhos Que fazem o homem se desenganar Vi peixes que lutam pra vida salvar
Daqueles que caçam no mar revoltoso Outros que devoram com gênio assombroso As vítimas que caem na beira do mar
Vi blocos de gelo que imitam penedos De alturas imensas e feitios belos Montanhas de areia, enormes castelos
Camadas de sais a formarem rochedos
Retratos de Deus e divinos segredos
Que sávio nenhum conseguiu decifrar Há ervas marinhas que oscilam no ar Palmeiras esbeltas, antigos coqueiros
De leques abertos imitam guerreiros Guardando a fortuna do fundo do mar
Nessa hora sublime as aves em festa Osculam alegres os verdes arminhos Cobrindo de plumas os vastos caminhos Que vão para o cimo das grandes florestas
Selvagens trinados que lembram serestas Arpejos jogados à luz do luar Visões que obrigam minh'alma a sonhar
Com as ondas turvas dos mares revoltos Onde os seres brincam libertos e solto Nas largas viagens da beira do mar
Eu entendo a noite como um oceano Que banha de sombras o mundo de sol Aurora que luta por um arrebol
De cores vibrantes e ar soberano Um olho que mira nunca o engano Durante o instante que vou contemplar
Além muito além onde quero chegar Caindo a noite me lanço no mundo Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar O mar se revolta e os peixinhos pulam Mergulham velozes cortando as espumas
Os barcos veleiros resvalam nas brumas
E as verdes palmeiras nos ares tremulam
As águas se abraçam, as brisas osculam Os tortos coqueiros que oscilam no ar O vento marítimo procura pegar
A força das ondas que ora se agitam Enquanto navios aflitos apitam Deixando naufrágios na beira do mar
Paquetes sem luzes, navios sem velas Visões invisíveis, terríveis assombros Montões de vasculhos, enormes escombros
Há ventos raivosos, tufões e procelas Lanchas destruídas, velhas caravelas E barcos perdidos sem mais viajar
Navios que o tempo tentou afundar Somas valiosas, tesouros mantidos Segredos do mundo que estão escondidos
No leito salgado do fundo do mar Furacões enormes, ondas revoltadas Pedras gigantescas, areias e brumas
Tapetes de lodos, rosários de espumas Tubarões famintos, baleias iradas Canoas perdidas, barcaças quebradas
Velhos fragmentos por todo lugar Há corvos marinhos voando no ar Sentindo o mau cheiro de ossadas remotas
São restos mortais de alguns patriotas Que estão sepultados na beira do mar Tem monstros que vivem no reino abissal
Num mundo profundo aonde não vai
O homem que entra dali nunca sai
Nem há batisfera veículo prá tal Nenhum oriente, nem ocidental Contempla o mistério que vou consagrar
Ouvir a sereia Anfertite cantar A onda que geme e que hipnotiza O fim da história na minha camisa
Que lavo na espuma da beira do mar Até que a morte eu sinta chegando Prossigo cantando beijando o espaço
Além do cabelo que desembaraçado Invoco as águas a vir inundando Pessoas e coisas que vão arrastando
Do meu pensamento já podem lavar No peixe de asas eu quero voar Sair de Oceano de tez poluída
Cantar um galope fechando a ferida Que só cicatriza na beira do mar.