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APÉROLA DASORAÇÕES reflexõessobre a Oraçãodo PaiNosso JorgeCésar Mota IMPRENSA METODISTA SÃO PAULO - 1947

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APÉROLA DASORAÇÕES

reflexõessobre aOraçãodo PaiNosso

JorgeCésar Mota

IMPRENSA METODISTASÃO PAULO - 1947

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TRABALHOS DO AUTOR

OPÚSCULOS:- Martinho Lutero e o Protestantismo, São Paulo, 1941, U. M. P.

- O Outro Cristo, São Paulo, 1944, U. M. P.

- Corpo e Espírito, São Paulo, 1944 — U. C. E. B.

- Histórico U. C. E. B. (Com Wilson Fernandes), São Paulo, 1945— U. C. E. B.

- Inteligência e Moral, São Paulo, 1945, U. C. E. B.

LIVROS:"Eu porém, vos digo:..." - J. A. Mackay, Editora E. C. Pereira, SãoPaulo, 1940. — Tradução.

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NOTA PRELIMINARComo sugere Rudolf Stier, um erudito autor, no seu livro “The words of the

Lord Jesus”, vol. I, pág 222, a Oração Dominical não consta apenas de petições esúplicas, mas, porque foi ensinada por Jesus, é como a promessa do coraçãodivino de dar o que Ele ensinou a pedir.

Àqueles, pois, que têm sede espiritual são dedicadas estas ligeirasmeditações. O principal objetivo do autor, tanto ao escrevê-las primitivamentepara a "Folha da Manhã" como agora ao publicá-las em forma de opúsculo comautorização daquele matutino paulista, é estimular o pensamento dos, que tãobem conhecem a Oração do Senhor mas podem vir a penetrar mais fundo osentido das suas palavras.

Não se trata, portanto, de um comentário. São simples sugestões que visamampliar os horizontes dos que buscam conhecer a mente de Cristo quandoatendeu ao pedido dos discípulos para que lhes ensinasse a orar.

Desse modo, pode ser usado este livrinho em classes de estudos bíblicosem acampamentos de jovens ou grêmios e congressos de estudantes, ou mesmoem cursos regulares nas Escolas Dominicais e outras sociedades internas dasIgrejas.

O capítulo intitulado "A santificação do nome de Deus" foi extraído de umartigo publicado pelo autor na revista "Fé e Vida".

O título deste livrinho foi-me sugerido pela leitura de F. W. Farrar, na suamaravilhosa “Vida de Cristo: "...even in that exquisite brevity which shows us howlittle god delires that prayer - should be made a burden and weariness — it is,indeed — the pear of prayers".

J. C. Mota

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SÊDEAtravés da monotonia de 72 quilômetros em linha reta, entre Juazeiro e

Bonfim, olhando pela janela do trem moroso a extensa planície eriçada de galhosressequidos, eu me condoia da natureza ferida. Parecia-me que, se se fizessesilêncio, poderia ouvir o clamor das suas queixas.

As árvores erguiam braços hirtos para as nuvens distantes, e os animais,descarnados, escavavam molemente o chão duro. E vinham-me à memória astristes passagens de Isaías e Ezequiel, em que se descrevem os rios extintos dasregiões assoladas pela estiagem "onde os aflitos e necessitados buscam águas, enão as há, e a sua língua se seca de sêde".

Um provérbio corre na boca do povo, segundo me informou um companheirode viagem, que alude às chuvas que nunca vão alem de um certo lugarejo:"Nosso Senhor chegou até Barrinha e voltou..."

Em cada povoado há sempre, à chegada do trem, um grupo de mulheres ecrianças seminuas, cujas latas e vasilhames o maquinista generosamente vaienchendo com um pouco da água barrenta do São Francisco.

Lá de longe em longe, cavada uma como bacia, no chão ou na pedra, naconjunção de declives, cercada por moirões fortemente ajustados para resistir àsinvestidas dos jegues, os interessantes e serviçais jumentos do nordeste, que alificam, tempo perdido, olhos mortiços e resignados, namorando o líquidoesverdeado, já no fim. Uma espécie de porteira de grossas traves horizontais égarantida por enorme cadeado contra os invasores humanos. Ali se represam aságuas das raras chuvas do "inverno", que afluem de todas as direções lavando napassagem as espurcícias das ruas e dos quintais.

Apesar de tudo, a significação daqueles reservatórios se assemelha quase àdas cisternas que os israelitas encontravam no deserto, como aquela do vale deArnon, nos termos de Moab, que mereceu uma referência especial nas Escriturascom o registro de uma poesia popular:

Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos! Ao poço que os príncipes cavaram,Que os nobres do povo abriram com o cetro, com os seus bordões.

(Nm 21:17-18)

Não admira que os profetas bíblicos tomassem os impressionantes quadros dasregiões desertas como figura da situação espiritual daqueles que não têm o consolo daesperança naspromessas divinas e o arrimoda fé em Deus comoum Pai e Amigo.

Aqueles cuja concepção de valores prende na terra, agrilhoada a interessesefêmeros; a esses cujos corações se satisfazem com o pouco que lhes oferece oambiente espiritual em que vivem, mas que de vez em quando sofrem a sêdeinsofreável de algo melhor, que preserve a vida e a valorize, é que veio Jesusdizer: "Quem tem sêde venha a mim e beba!"

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A COMUNHÃO COM DEUSÉ muito conhecido um artigo de Alexis Carret sobre o poder da oração. Se o

tivesse escrito um pastor protestante ou um padre católico de certo não teriadespertado muito interesse. Mas Carrel é um notável cientista. Durante todo operíodo da guerra, muitas vezes os telegramas anunciavam a opinião de um doslideres cristãos da democracia — Roosevelt, Churchill, Chiang-Kai-Chek e suaesposa, Henry Wallace, Truman ou algum dos chefes militares, igualmentecristãos — Montgomery, Mark Clark ou McArthur, e outros, a respeito do valor dotempo que o homem deve consagrar à comunhão com Deus. Também nenhumdeles era ministro de religião. Tratava-se de vultos de grande prestígio político,particularmente nos acontecimentos internacionais.

Um, McArthur, chegou a declarar, no dia da rendição do império japonês, nodiscurso feito a bordo do Missouri, na baía de Tóquio, que “o problema do mundoé de natureza teológica”.

Decerto, na ocasião em que estes valentes e ilustres varões não seenvergonhavam de sobrepor à força dos seus exércitos e aos recursos da ciênciao poder de reservas invisíveis, muitas pessoas foram levadas a dedicar um poucode meditação ao assunto. Mas, é bem possível que tudo tenha passado, e ointeresse dessas pessoas se tenha de novo voltado para outras coisasaparentemente mais reais e eficientes.

Contudo, cabe àqueles que têm estudado os problemas humanos através dahistória à luz da natureza do homem e da revelação divina, a responsabilidade deinsistir naquele aspecto da vida que, parecendo a muitos secundário, é narealidade o mais importante e requer a maior atenção de todos os homens quepensam. Na verdade, só quando os homens se voltarem para dentro de simesmos, dedicarem um pouco mais de tempo ao cultivo do seu espírito, elevarema sua mente para o alto, e antepuserem os valores morais e espirituais aospassageiros valores materiais, é que o mundo andará melhor.

É intuitivo que o caráter, o amor, a fé, o respeito aos direitos humanos, avirtude, o ideal, a própria vida — todos realidades invisíveis — são mais do que odinheiro, a fortuna, os prazeres terrenos, a fama, a terra e o próprio corpo.

O bom senso nos diz que nada senão um espírito reto e de boa vontade —nem os tratados e acordos, conferências e comissões — poderá de fato exercer ocontrole da energia atômica...

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Dentre esses valores espirituais um há que - é sem dúvida a chave de todos:a comunhão com Deus. Se o leitor reconhece a Deus como o Criador do Universoe Senhor das coisas todas, é natural que consagre um pouco de atenção às suasrelações com Ele. Não está nele a fonte da vida? Não é Ele mesmo o objetivo detodo o bem? Podem isolar-se as folhas e frutos da seiva que os alimenta, semque morram?

Temos necessidade de Deus. O salmista interpretou, em versos inspirados,o sentimento de todos os homens em todos os tempos e lugares, quando disse:

"O cervo brama pelas correntes das águas e eu, ó Deus, suspiro por Ti.A minha alma tem sêde de Deus, do Deus vivo".

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E ELE ENSINOU...Nada pode haver tão humano e tão belo como a amizade e intimidade

espontânea entre pais e filhos. É porque o belo é o que é natural e sincero.

Na religião de Jesus nenhum traço é tão característico como a simplicidadecom que a criatura deve procurar a comunhão de seu Pai.

A vida que não é assim carece de naturalidade e de realidade. A vida dohomem alienado de Deus é artificial: materializa-se pela preeminência dasrelações com o visível, limita-se pelo trato com os valores efêmeros. Aquele,porém, que procura a intimidade e amizade de Deus sente-se elevado para umplano superior de vida pelo contacto com o invisível, o infinito e o eterno.

Não há vida mais humana do que a que normalmente convive com oshomens e as cousas, na sociedade e no trabalho, e, ainda assim, torna acomunhão com Deus uma sublime realidade.

Ninguém viveu melhor a verdadeira vida humana, a vida simples do homemideal e íntegro do que Jesus. Os discípulos sentiram que aquele era o modonormal de viver. E descobriram que o seu segredo era a oração.

Quando, pois, pediram ao divino Rabi que lhes ensinasse a orar, a respostaveio pronta e clara. Nós a temos registrada em Lucas e em Mateus. Neste últimoEvangelho a oração dominical não está ligada à súplica dos discípulos, masincorporada ao Sermão do Monte. Há algumas diferenças entre as duas leituras, oque pode querer dizer que Jesus teria ensinado duas vezes a orar com modelosemelhante, e, em todo o caso, significa que o "Pai Nosso" não foi dito por Jesuscomo uma peça para ser decorada, e repetida mecanicamente, mas como ummodelo para todas as orações dos homens.

A sublime oração dominical é, como disse , Chateaubriand, obra de um Deusque conhece todas as nossas necessidades.

Giovanni Papini, na sua “História de Cristo” escreve sobre o Pai Nosso:

"É uma oração sem literatura, sem teologia; sem orgulho e semservilismo. Apesar de simples, nem todos entendem o Pai Nosso. A secularrepetição, repetição mecânica da língua e dos lábios, a milenária repetição,formal, ritual, desatenta e indiferente, tem-na transformado num rosário desílabas cujo significado primitivo e familiar se perdeu. Relendo-o hoje, novocomo se o fizéssemos pela primeira vez, perde o seu caráter de banalidade

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ritual e readquire a primitiva significação".

Observamos, então, que as sete súplicas do Pai Nosso se dividem em duasséries, tal como acontece com os dez mandamentos: à primeira numa relaçãodireta com o Criador e a outra com a criatura. Procurai notar isso por vósmesmos.

Observamos ainda que as petições intimamente se completam: cada umaestá ligada com a que se segue, sendo todas inconfundíveis e ao mesmo tempoinseparáveis. Assim, o nome de Deus deve ser reconhecido e santificado peloindivíduo antes que se possa realizar a esperada vinda do Reino para ele, e sóentão a vontade divina será verdadeiramente praticada. Podemos também dizerque todas as petições estão em gérmen na invocação, "Pai nosso...”, porque sópoderemos chamar a Deus sinceramente de Pai, quando santificarmos o Seunome na nossa vida, reconhecendo a Sua autoridade e submetendo-nos à Suavontade.

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A PATERNIDADE DIVINAOs Evangelhos não registram uma única ocasião em que o Mestre tenha

usado uma daquelas expressões do Velho Testamento para invocar a Deus, asquais, conquanto belas e respeitosas, deixavam a divindade sempre longe dohomem. Jesus sentia a proximidade de Deus, e Pai era a palavra mais adequadapara significar essa proximidade. O homem, por sua vez, devia normalmentetornar-se íntimo de Deus: nenhum outro termo levaria a criatura mais junto doCriador do que aquela pequena palavra: Pai.

Também Homero chamou a Zeus de Pai: Pai dos homens e Pai dos deuses.Mas a palavra ai é sinônima de senhor e governador — e Deus continuavaafastado do ser humano.

A religião judaica chegou muito perto, mas ainda ficou longe da verdade queresplandece com Cristo. A idéia central para os judeus era a da obediência. Osalmista assim se expressou: «Assim como um Pai guarda os seus filhos, assim oSenhor guarda os que o temem". Mas há ai somente uma comparação: "Assimcomo...". Jesus, porém, diz, falando com Deus: “Pai...”

Nas cinco orações de Jesus registradas nos Evangelhos, Deus é semprechamado de Pai; numa dessas preces, apenas de três versículos, aparece apalavra Pai cinco vezes.

É que Deus era uma gloriosa realidade, uma íntima realidade para ele. Nãoera mais só "Pai do povo", mas pai para cada indivíduo.

"Não se salvará a civilização só porque há homens e mulheres que afirmamsimplesmente que Deus existe", disse alguém. Muitas orações pronunciadassignificam muitas vezes apenas que os que as fazem reconhecem a existência deDeus; isso é o máximo que elas significam; mas não significam que Deus existerealmente para eles.

Cristo — diz o dr. Mackay — "sentia pulsar na vastidão dos séculos, paraalém do véu da natureza e através da dor e mistério da vida, um coraçãopaternal". E Giovanni Luzzi escreveu: Esse é o espírito apropriado com quedevemos aproximar-nos de Deus — o espírito filial.

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"PAI NOSSO""Pai nosso que estás nos céus". Assim começou o Mestre a oração que

ensinou aos seus discípulos.

Estas palavras tão curtas e tão simples representam, cada uma, idéiasprimárias, que nascem com o homem: a idéia de paternidade, a idéia de posse, aidéia de existência, a idéia de estado de santidade e a de elevação espiritual.

Uma sentença que revela o caráter e traduz a filosofia da vida de quem aproferiu: quem por esse modo tão puro e natural estabelece o contacto entre ohomem e Deus, quem assim se refere ao Criador e com Ele conversa, denota oalto conceito que forma do homem, a interpretação que dá à vida, a consideraçãoem que tem as outras criaturas humanas.

Uma linda e profunda expressão, transbordante de idealismo e de otimismo.

Aí está a idéia da nobre origem do homem: se Deus é nosso Pai, deledescendemos.

Aí está a idéia do nosso destino: "que estás nos céus". "Na casa de meu Paihá muitas moradas; vou preparar-vos lugar", disse Jesus noutra ocasião.

Aí também se encontra a idéia da dependência em que o homem seencontra de Deus, e a da solidariedade humana.

Aí se reconhece que a terra não é suficiente para que o homem se sinta feliz. Falta o céu. "A chuva que cai do céu faz frutificar a terra".

Escreveu João de Deus:Pai nosso, de todos nós,Que todos somos irmãos;A ti erguemos as mãosE levantamos a vós:

A Ti, que estás no céuE nos lanças com demência,Do vasto estrelado véuOs olhos da Providência!

Mas a primeira palavra é a mais importante de todas. Todas as idéias econceitos contidos na frase germinaram dentro desse vocábulo. Se tivermos aDeus por Pai, o mais é conseqüência.

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A SANTIFICAÇÃO DO NOME DE DEUS

"Santificado seja o teu nome".

Na literatura clássica, particularmente na latina, o nome de uma pessoa éintimamente ligado à sua própria reputação, honra, autoridade e dignidade. Virniagni nominis, homem de grande autoridade; solvere nomen, pagar a divida;Nomen Romanum, o povo romano.

Entre os judeus, como em todos os povos, um bom nome era o que de maisprecioso se podia almejar "Mais digno de ser escolhido é o bom nome do que asmuitas riquezas", diz o livro dos Provérbios, e "Melhor é a boa fama do que omelhor ungüento", afirma o Eclesiastes.

Se assim procede o homem para com o seu nome que não devemos fazerpela honra e glorificação do nome divino?

No Decálogo há um lugar reservado à maneira pela qual deve o homemtratar o nome de Deus. Lá está: "Não tomarás o nome do Senhor teu Deus emvão: porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Mas apesar de os cristãos conhecerem de cór os dez mandamentos e desaberem por esse modo, qual a vontade de Deus a respeito desse assunto, nãose encontra entre os gentios tanto desrespeito para com o nome dos seus deusescomo entre os cristãos para com o santo nome do Senhor! No livro dos Atos dosApóstolos há a notícia de um grande motim na cidade de Éfeso pela simplesrazão de estar correndo o boato de que alguns estrangeiros haviam ofendido onome da sua deusa Diana dos efésios.

Intelectualmente o povo judeu possuía uma compreensão muito profundadeste dever. O escriba ou copista usava sempre uma pena nova toda vez quetinha de escrever o nome de Deus (Iahveh). Ainda assim, não o escrevia nem opronunciava com os sons vocálicos próprios, o que se considerava profanação,mas com as vogais de outro nome mais familiar pelo qual era Deus conhecidoentre o seu povo (Adonai). Desse modo, em vez de Iahveh devia dizer-se Adonai,embora o que na realidade estivesse escrito, resultante da combinação dasconsoantes de um com as vogais do outro, fosse Jehovah. Assim se explica aorigem deste último nome de Deus. Iahveh só uma vez por ano era pronunciado,e essa mesma pelo Sumo Sacerdote e no “Santo dos Santos" do Templo.

O nome de Deus!

O nome de Deus implica o caráter de Deus — sua natureza e suas relações,sua obra, seus atributos, seus mandamentos, sua revelação.

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Era, pois, natural que Jesus tivesse colocado no início da oração-modelouma homenagem ao santo nome de seu Pai. Havia, porém uma razão maisfundamental e séria pela qual o Mestre ensinou a pedir: "Santificado seja o teunome". Um exame do Antigo Testamento mostrará que era ideal antigo que oshomens soubessem santificar o nome do Senhor. Uma promessa era feita noLivro de Isaías: "... e santificarão meu nome" (Is 29:33) . O Próprio Senhor Jesusdisse numa profunda Oração "Pai glorifica o teu nome!" (João 12:29).

Contudo o nome de Deus não era verdadeiramente glorificado peloshomens. Aquele escrúpulo com a pronúncia e a grafia do nome divino era apenasuma preocupação exterior e muitas vezes hipócrita. Deixa isso bem claro oprofeta Malaquias, (cap. 1 e 2) quando diz: “...e se eu Sou o Senhor onde está omeu temor, diz o Senhor dos Exércitos a vós, ó sacerdotes, que desprezais o meunome..."

Surge, porém, em relação a esta súplica na oração dominical, uma dúvidarazoável. Não é porventura o nosso Deus absoluta e perfeitamente santo? Não éassim mesmo que o invocavam os profetas, o descreviam os videntes e lhechamava Jesus Cristo? Como então devemos pedir a santificação do nome deDeus?

Um erudito comentador da Bíblia escreve sobre este trecho: "O que é santonão pode ser feito santo". O nome de Deus equivale à religião baseada narevelação divina. É a marca da sua existência na mente humana e no universo. A"santificação do nome de Deus" relaciona-se, portanto, com a vida dos santos.Essa é a maneira como devem ser entendidos os vários textos que usam essaexpressão ou semelhante. Está escrito em 1Pedro 3:15 —"santificai a Cristo,como Senhor, em vossos corações..."

O prisma pelo qual devemos olhar a petição "santificado seja o teu nome” é,pois, bastante prático. A santificação do nome de Deus está intimamenterelacionada com a vida humilde daqueles que verão o Reino de Deus. Esse Reinoé o que Jesus pede que desça sobre a terra logo depois de ter feito esta súplicaque estamos estudando: Aquela é o objetivo. Este é o processo pelo qual o alvohá de ser alcançado. As duas coisas têm de andar juntas.

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POR VILA NOVA ORDEM ESPIRITUAL"Venha o teu Reino..." diz Jesus, interpretando as aspirações mais legítimas

do coração humano, mas não é a um governo político que se refere, porém a umadisposição espiritual entre os homens. Ele pede o restabelecimento da ordem nouniverso moral, a colocação das coisas nos seus devidos lugares de acordo comuma graduação lógica de valores. Deve o céu dominar sobre a terra, o espíritosobre a matéria, Deus sobre o homem.

"Venha o teu Reino", dirão de boa vontade todos aqueles que anseiam pormelhores dias porque sabem que o Reino de Deus significa a hegemonia devalores que estão faltando nos reinos terrenos. Não se trata de uma revoluçãoviolenta visando a transformações políticas e transferência de autoridade civil:trata-se de ume mudança profunda no próprio ser do homem, não importando etipo de governo do país em que mora, visando a uma transferência de autoridademoral.

Cada pessoa que faz esta oração tem de sentir que é preciso começar porela mesma para conseguir qualquer coisa. Mais justiça, mais paz, maior elevaçãomoral, tudo depende de cada um.

"A sede do Reino a que se refere Jesus é o coração: "...Interrogado pelosfariseus sobre quando havia de vir o Reino de Deus respondeu-lhes Jesusdizendo: "O Reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-loaqui, ou ei-lo ali: porque eis que o Reino de Deus está dentro de vós". (Lc 17:20-21).

O Reino de Deus é, pois, alguma coisa que transcende as limitações detempo e espaço.

No sermão que o Mestre proferiu sobre o Reino de Deus, conhecido como oSermão do Monte, o centro em torno do qual giravam as idéias pregadas era:"Buscai primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça e todas as demais cousasvos serão acrescentadas". Nesse sermão aparecem as características daquelesque fazem parte do Reino que Jesus veio implantar aqui na terra. Estãoenumeradas nas famosas bem-aventuranças: a humildade, a aspiração da justiça,a misericórdia, a pureza de coração, o ânimo pacífico.

Os direitos de cidadania nesse Reino são adquiridos mediante um processomuito simples que, entretanto, nenhum dinheiro pode comprar: o novonascimento. Para encontrar a vida eterna — o prêmio natural da entrada no Reino— "é necessário nascer de novo", disse Jesus.

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Cousa muito diferente de simplesmente repetir de vez em quando "Venha oteu Reino" é viver de conformidade com essa aspiração, ser cooperador de Deus,como dizia o apóstolo São Paulo.

Oxalá o leitor forme no número daqueles que cooperam com o Reino deDeus para o estabelecimento de uma era de paz e felicidade, quando os homensse sentirão todos irmãos, porque terão a Deus como o Pai Celestial, e o seu maisespontâneo impulso será harmonizar as duas vontades, a divina e a humana, coma primeira por padrão.

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VONTADE:A NOSSA OU A DE DEUS? OU AMBAS?

"Seja feita a tua vontade..."

Esta frase tão simples abre caminho para um vasto e fecundo campo deidéias sobre o próprio conceito de Deus. Ao mesmo tempo sugere uma dascontradições filosóficas mais citadas por aqueles que encontram contradiçõesfilosóficas no hábito da oração.

Parece mais do que mera coincidência que Cristo tenha, numa oração -naoração que seria conhecida por toda a humanidade- desfeito a supostaincoerência com quatro palavras.

Se nada há mais natural no homem do que o seu sentimento religioso, nadamais lógico existe do que o seu desejo de se pôr em contacto com a divindade.Ele o faz por meio da prece.

Temos de admitir que a vontade de Deus é soberana. O seu próprio atributode onipotência está limitado pela sua soberana vontade. Disse um teólogo: "Deusnão quer tudo o que pode, mas pode tudo o que quer".

Ora, o homem que é sincero no desejo de viver em comunhão com o seu paiceleste só pode aspirar a fazer a vontade de Deus. Nas petições dirigidas a quem"fará tudo quanto pedirmos” o seu querer deve subordinar-se ao querer santo doDeus a quem ora.

Se o crente é sincero quando diz: "Venha o teu Reino", nada maisconsentâneo com esse, desejo do que acrescentar em seguida: "Seja feita a tuavontade...”

Não há constrangimento em tal submissão, porém, espontaneidade. É alimitação voluntária da própria liberdade, tendo como prêmio o verdadeiro uso damesma liberdade, "...como é no céu". O paraíso de Deus não pode ter sequeruma criatura constrangida a agir contra a própria vontade. Tal situação deixaria deser céu: seria o inferno para aquela criatura. No céu todos querem o que Deusquer porque querem assim.

Quando será assim no mundo?

De acordo com o que vimos, o mundo em que prevalecesse a vontade de

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Deus seria um mundo mais feliz para os que sinceramente desejam um mundomelhor. Mas não nos esqueçamos de que a vontade do Criador se fará nessenovo mundo através da vontade da criatura. É o meio que Deus tem para fazer asua vontade no mundo social.

Então, será... "como é no céu".

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PÃO PARA A BOCA"O pão nosso de cada dia nos dá hoje..."

Numa das suas interessantes palestras feitas em São Paulo, disse-nos o Dr.T. Z. Koo que, na China, há mais de cinco mil anos, nasceu uma palavra que atéhoje é usada para reapresentar a idéia de paz e que se compõe de duas figurassignificando, a primeira, arroz; e a segunda, boca. A sabedoria do senso comumdaquele extraordinário povo há milhares de anos, já havia percebido que uma dascondições essenciais para a paz é haver pão para a boca para todas as pessoasno país e no mundo.

Não é decerto esta a única e suficiente condição para que haja paz, masJesus mesmo reconhecia que era essa uma das condições necessárias. Naoração dominical, o Mestre não a esqueceu: "O pão de cada dia..."

A religião de Jesus é realista. Depois de ter falado do advento do Reino deDeus, com a contribuição do homem e de Deus, introduz o divino Mestre umasúplica nas orações dos homens para que haja pão. A ausência de pão suficientepara todos tem um significado não apenas econômico e sociológico, mas tambémteológico e ético, porque indica a existência de uma falha moral qualquer nasrelações dos homens uns com os outros e, portanto, com Deus.

A falta de trabalho, desequilíbrio econômico, ou qualquer outro fenômenosocial apenas representam aspectos da justiça social que, no fundo, têm raízesmorais e religiosas, cuja explicação atinge o domínio da teologia.

Do ponto de vista de Jesus, portanto, no programa de quem desejasinceramente a vinda da nova ordem social que Ele denominou de Reino deDeus, há um lugar especial para um capítulo sobre o pão. Para Cristo éincompreensível que um verdadeiro Cristão não se impressione com o problemado sustento material de todos os homens. A indiferença neste respeito épecaminosa e inadmissível num caráter formado pelos princípios de Jesus.

À luz do texto original vamos estudar o que significam as palavras com queCristo pediu ao Pai o pão material para as criaturas humanas.

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"O PÃO NOSSO..."A primeira idéia que espontaneamente assoma ao nosso espírito ao lermos

a frase relativa ao pão de cada dia na oração dominical é a idéia de dependênciade Deus.

O homem precisa aprender de novo que não é tão independente, tão senhordo universo como pensa. "Adão primeiro viu os animais e as coisas e depois deu-lhes os nomes. Nós hoje aprendemos o nome das coisas antes de as vermos".Esta ilustração, usada por Whitehead para outro fim, nos ajuda a reconhecer quefoi mais fácil a Adão compreender a sua dependência de Deus do que é aohomem moderno. Porque hoje o ser humano não tem tempo de contemplarextasiado a natureza que o cerca e escutar a voz de Deus "na viração da tarde".Nem percebe que a despeito de todas as suas máquinas e laboratórios, fornos evitaminas, 95% do esforço total empregado em adquirir o pão de cada dia provém,segundo declaração de um entendido, do trabalho das mãos do Criador.

Esta súplica, é, portanto, antes de tudo, o reconhecimento humilde da partedo homem de que ele não teria seu sustento material se lhe faltasse a ajuda deDeus. A terra, o sol, a chuva, o mistério da vida da semente... Para que maisexemplos?

Logicamente esta súplica implica a intenção do homem que a faz deobedecer às leis divinas para conseguir seu pão. Essas leis não são só físicas —observadas pelo agricultor em relação à época adequada da semeadura ecolheita, ao tratamento do solo e da semente.

Muitas vezes têm os homens ficado sem pão por desobediência a essas leisfísicas. Por isso é que existem as Universidades Rurais e as Escolas deAgricultura. Toda a ciência, enfim nada mais faz do que ensinar os homens aconhecer as leis e obedecer-lhes.

Mas o homem poderá também perder o seu pão se se esquecer de que há,alem dessas, outras leis de ordem moral e espiritual que precisam ser igualmenteobservadas. Será preciso provar isso?

Há pouco tempo, andava eu com um menino de nove anos por uma das ruasdesta cidade, quando vi um cartaz na porta de uma padaria com este dizeres:"Amanhã não haverá pão". A letra estava mal feita e faltava o “H” ao verbo haver.Perguntei ao menino: "O que é que está errado naquele aviso?" Depois de pensarum pouco, o garoto respondeu: "O não!" "Por que?" perguntei-lhe. “Porque deviaestar assim: averá, pão" .

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O menino de nove anos parecia mais preocupado com os problemas sociaisdo que com as questões de gramática... É pena que as crianças tenham já depensar muito cedo nesses assuntos... E na verdade a falta de pão para a boca dopovo é erro muito mais grave e de mais sérias conseqüências do que a falta deum “H” no verbo haver.

E por que falta o pão?

As causas são somente físicas, ou são morais também?

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O PÃO É "NOSSO"Duas idéias distintas se encontram no seio desse adjetivo nesse lugar da

oração dominical.

A primeira é a idéia de co-participação e a segunda a de posse. Umarelaciona o que ora com o próximo, a outra com Deus.

Não ensinou Jesus Cristo ao homem a pedir o pão só para si ou para osseus apenas. "Nosso" é palavra que abrange toda a família humana. O indivíduoque pede o pão de cada dia, pede-o, ao mesmo tempo, para todas as pessoas, econseqüentemente a sua disposição de espírito é tal que está pronto a sofrer asrestrições necessárias na divisão que se fizer para que "todos" tenham pão. Ele éum dos partícipes.

O sentimento de solidariedade e de fraternidade, de simpatia e interessepelo próximo é despertado em seu coração pela lembrança de que, como ele,todas as criaturas precisam do pão para viver. Este sentimento é que teminspirado os mais nobres gestos de ação social praticados pelos cristãos ou pelaIgreja ou instituições dela nascidas. E só este sentimento nobre e altruístaauxiliará o mundo a socorrer os seus famintos nestes tristes dias de após-guerra.

A religião de Buda inspirou na China a criação de uma associaçãobeneficente, segundo noticiaram os jornais em maio de 1946, cuja finalidade erafabricar caixões funerários em grande quantidade para que não ficasseminsepultos os milhares de indivíduos ceifados pela fome naquele país. Não é esseo programa do Cristianismo, mas quanto cristianismo há por aí que nem isso estáfazendo!

A religião de Cristo insufla o ideal de serviço e auxílio mútuo. Cristo nãodeixou nenhum plano determinado, padronizado, para resolver o problema dapobreza do mundo. Aliás, ele mesmo disse que "os pobres sempre os teremosconosco".

O Mestre não veio para ser "repartidor entre nós" mas para ensinar-nosprincípios e dar-nos poder para praticá-los de modo que as conseqüências sejama extinção dos nossos males sociais. A falta de bens materiais não torna ohomem "pobre" nem a sua riqueza o torna "rico", diante de Deus e perante oplano superior de vida ideal. Quantos pobres ricos e quantos ricos pobres! Jálestes a parábola do rico insensato? (Lucas 12:13-21).

Só uma adequada disposição interior do homem o, tornará feliz, seja

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abundante ou escasso o seu pão. E o homem só o é verdadeiramente quandotem sua consciência em paz no que concerne a seu dever social. Depende do queele sente quando diz: "O pão "nosso" de cada dia "nos" dá hoje...".

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UM ADJETIVO DE VALORUma das características dos Evangelhos é a concisão. Não pode haver

maneira de se dizer em menor número de palavras tudo o que diz o NovoTestamento. Como conseqüência é necessário muito cuidado para não sedesprezarem termos empregados pelos escritores sacros, uma vez que, pelomotivo da brevidade e ao mesmo tempo exatidão, não os podiam ter usadoinutilmente.

À primeira vista, parece que Jesus, ensinando aos discípulos a oração-modelo, poderia ter, sem prejuízo, omitido o adjetivo “nosso” na frase: "O pãonosso de cada dia nos dá hoje". Por que não podia ser: "O pão de cada dia...".Não seria supérfluo aquele nosso? Já não está no “nos” que vem em seguidacontido o pensamento expresso por esse vocábulo?

Já vimos, entretanto, que pelo menos duas grandes idéias nos sãotransmitidas por essas duas pequenas sílabas. Uma relaciona o homem queprofere a prece com o seu semelhante; a outra com Deus. Uma é a idéia desolidariedade, co-participação, altruísmo. A outra é a de posse: se é Deus quemdá, como é nosso o pão? Já estudamos a primeira; vejamos agora a segunda, aque relaciona o homem com o Criador.

Creio que se ensina aqui a lição do trabalho.

O homem confessa a sua dependência de Deus e pede-lhe: "Dá-nos".Admite de boa vontade que ele não deve isolar-se no momento de receber essepão, porque, de fato todos são os que dele precisam. E por isso: "nos" e "nosso".Entretanto, reconhece ao mesmo tempo que o que é próprio à sua natureza, oque é digno, é fazer a sua parte na aquisição dos recursos que lhe vêem do Paipara a manutenção da sua vida material, dando-lhes a 'qualidade de cousapossuída com esforço, com dignidade e honra. E o pão que Deus nos dá, torna-selegitimamente nosso, pelo trabalho.

Esta palavra relaciona o homem com Deus porque estabelece o princípio decooperação entre a criatura e o Criador na execução do programa social.

A natureza põe à disposição do homem todos os seus tesouros. Isto é o queDeus dá. O homem torna-se legitimamente proprietário desses mananciais pormeio do seu trabalho e do seu esforço. Há suficiente para todos, e todos têm derealizar a sua parcela. Qualquer deficiência de uns ou abuso e exagero de outrosdetermina desequilíbrio e injustiça social.

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Todo o homem tem o dever de contribuir pessoalmente com a sua dedicaçãoe a sua vida em benefício da coletividade. Ninguém vive só para si. Tudo o de queé capaz deve fazer. Mas todos têm igualmente o direito de receber da sociedadetudo o de que hão mister.

Para se alcançar este plano elevado de ação social, tão bem ilustrado porCristo na sua parábola dos trabalhadores (Mt 20) é necessário passar o homempela experiência da conversão, da mudança do caráter. Tão necessitados são desofrer essa mudança empregados como empregadores, ricos como pobres. Seerram uns, erram também os outros, cada qual vendo só o que lhe convém noadjetivo nosso da oração dominical.

Mas isto já é assunto para outra série de considerações.

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QUOTIDIANUM...Duas são as leituras que as versões latinas oferecem da frase da oração-

modelo que contém o pedido do pão material. E o interessante é que cada umadelas, tão diferentes, interpreta um lado da verdade do termo original. A soma dasduas corresponde, assim nos parece, ao pensamento de Jesus. A palavra grega érica de sentido e de difícil tradução por meio de uma única palavra de outra língua.

“Panem nostrum quotidianum da nobis hodie”. É uma das leituras, a maisconhecida porque é aquela que aparece nas traduções das línguas modernas. Opão de cada dia...

Efetivamente essa idéia se encontra na opulenta palavra original; ecorresponde ao teor geral da doutrina de Jesus. Ele ensinou, realmente, que oseu discípulo não deve ficar solícito pelo dia de amanhã, nem quanto ao comernem quanto ao vestir. Essa solicitude significa não somente uma falha no caráterpor indicar exagerada preocupação com as cousas secundárias da vida comotambém revela uma deficiência espiritual: falta de confiança em Deus.

Entretanto, a expressão “de cada dia” pode ainda indicar o lugar que ocupano coração do indivíduo a propriedade material. Não é justo acumular riquezas,aumentar os celeiros, armazenar sem limites, enquanto outros, que incluíramosantes no “nosso”, sofrem com a falta daquilo que nos está sobrando.

O fato de ser a Oração Dominical conhecida e repetida por todos os homenssem que se note alteração no seu procedimento social, é mais um tipo datremenda injustiça de que está feita a nossa sociedade hoje: representa ainconsciência dos homens, porque aquilo que dizem não praticam. Não é istoverdade só da generalidade dos ricos e abastados, senão também dos que, não osendo, fariam do mesmo modo se o fossem.

A finalidade espiritual da vida é destruída pela ênfase dada aos valoresmateriais. Estes existem e são necessários, porém não devem preocupar ohomem na mesma medida em que os espirituais o devem fazer. O desequilíbrionessa ordem de valores desvirtua o objetivo para o qual o homem foi criado.Imaginemos que a vontade e a inteligência dos homens tão hábeis em fazerfortuna fossem usadas também em fazer o bem e em promover o progresso morale espiritual do mundo. Em outras palavras: imaginemos que houvesse o mesmointeresse, entusiasmo, tempo, espírito de sacrifício que encontramos aplicados aoutros setores da vida igualmente dedicados à esfera moral e espiritual.

O pão, símbolo do sustento material, e todas as cousas relativas àmanutenção da existência são lícitos sempre e somente em função da verdadeirafinalidade da vida, nunca como uma finalidade em si mesma. Devemos sustentara vida, mas devemos também ser capazes de dar a própria vida por algo quevalha mais do que ela.

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CONSUBSTANTIALEM...“Panem nostrum consubstantialem da nobis hodie”. É a segunda leitura que

encontramos nas versões latinas. A idéia está por igual no vocábulo grego.

Se há alguma condição que possamos licitamente incluir no pedido quefazemos a Deus no nosso pão, é a sua qualidade e não a sua quantidade... Esta élimitada pelo "quotidianum"; aquela não tem limites: "Consubstantialem!” ou atémesmo "supersubstantialem", como aparece noutra variante.

Mas ainda esta mesma condição é por sua vez condicionada pelo nossoanteriormente estudado. Procurando melhorar e aumentar a qualidade do nossopão, não devemos esquecer-nos da espécie de pão que os outros estãocomendo. Não será a qualidade das iguarias que tenho à minha mesa em prejuízoda alimentação do pobre? Ou pelo menos não poderia eu, conservando o pãopara mim e para os meus, suficiente porém não excedente, estar em condiçõesainda de ajudar os outros a melhorarem a sua alimentação?

Como é possível a indiferença daqueles em cujas mesas sobram asvitaminas e calorias em face da penúria e da fome na Europa e no Oriente, e, até,aqui mesmo? Se são cristãos, essa indiferença é impossível.

Porque pode-se saber de cor a Oração Dominical sem se conhecer o seuespírito, ainda o significado das suas palavras e até mesmo sem ser cristão...

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O PERDÃO"E perdoa as nossas dívidas assim como também perdoamos aos nossos

devedores".

O reconhecimento de culpa implicado num Fedido de perdão como este éuma das cousas que mais necessidade tem o mundo nos nossos dias.

Os homens precisam começar de novo, desde o princípio, a fazer uma novatentativa para acertarem viver uns com os outros. Cada indivíduo, família e nação,estão carregados de culpa. Enquanto não tiverem a coragem de confessá-lo enão se depuserem a humildemente voltar atrás para começar outra vez, de nadavalerão os seus múltiplos tratados de paz. A paz depende de sinceridade e estase revela pela coragem do reconhecimento de culpa.

Qualquer estudante da História da Civilização é capaz de discernir os errosdas nações (menos os mais secretos, naturalmente...), mas na hora dasconferências internacionais os autores desses erros não aparecem.

Por outro lado, a capacidade de confessar as culpas e pedir perdão implica adisposição de perdoar. E Deus não pode perdoar os homens que não sabemperdoar. São Marcos registrou estas palavras de Jesus: "E, quando estiverdesorando, perdoai, se tendes alguma cousa contra alguém, para que vosso Pai queestá nos céus vos perdoe as vossas ofensas" (Mc 11:25). E Mateus escreve: "Senão perdoardes aos homens as suas ofensas também vosso Pai não vosperdoará as vossas ofensas" (Mt 6:15).

Este parágrafo que se refere ao perdão na oração-modelo foi o único quemereceu um comentário do próprio Senhor Jesus: e o comentário é esse, referidoem parte por um evangelista e em parte pelo outro.

Na ordem social, só o perdão, o esquecimento voluntário dos erros dosoutros, poderá salvar o homem. Porque esse "nunca esqueceremos" com que seprocura perpetuar os horrores cometidos nos campos de concentração, tambémperpetua o mal-estar e a infelicidade daqueles mesmos que são convidados apermanecer odiando. O ódio mata: é germe venenoso que deteriora as fibras docaráter e corrói os fundamentos do ser.

Cristo convida a perdoar. Será possível reconstruir um novo mundo? Sim:sobre o alicerce do perdão. Também temos nossos erros tremendos cometidoscontra a paz do mundo, e Deus não os perdoará se não soubermos perdoar oserros que os outros cometeram...

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O PERIGO“E não nos deixes cair em tentação...”

O mundo está cada vez mais cheio de solicitações para a prática do mal.Cada vez se torna mais difícil um viver puro, bom e firme nos princípios de Cristo.Cada vez se torna mais necessário o socorro do Alto: “E não nos deixes cair emtentação...”

O pecado é fácil, a santidade é difícil. Mas se queremos um mundo melhor,não há de ser com o pecado, mas com a santidade da vida. E nenhum aspectomais belo da vida pode haver para o jovem do que a oportunidade de lutar evencer. Lutar e vencer pelo bem.

As lutas espirituais são mais duras; mas as vitórias que se alcançam sãomais gloriosas e projetam sua influência para longe, pela vida fora.

Não nos deixes cair em tentação: não nos deixes passar pela prova, mas sevier a prova, se Tu a achares necessária ao desenvolvimento do nosso caráter,não nos deixe pecar: “O Senhor sabe livrar da tentação os piedosos” (2Pedro2:9).

As provas são muitas vezes necessárias. Os dois tipos por excelência daraça humana passaram pela prova: Adão e Cristo. O primeiro fracassou. Cristotriunfou sobre o mal. Se somos descendência de Adão e temos, por isso,tendência para o pecado, podemos também, graças a Deus, salvos por Cristo,santificados por Ele, triunfar como Ele, o segundo Adão, triunfou sobre o pecado ea tentação.

A tentação é sempre inferior ao poder que há em nós, quando estamos emCristo.

"Em todas estas cousas somos mais do que vencedores por Aquele que nosamou", diz o apóstolo Paulo aos romanos (Rm 8:37) . "Mas graças a Deus quenos dá a vitória em Nosso Senhor Jesus Cristo", escreve o mesmo apóstolo aoscoríntios (2Coríntios15:57).

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O INIMIGO"...Mas livra-nos do mal".

A expressão grega tanto pode ser neutra, como masculina, podendo,portanto ser traduzida, por "mal" no sentido abstrato, ou por "maligno", contendonesse caso a idéia da personalidade satânica do Tentador. Ambas as versões sãoprestigiadas por grande número de exegetas e tradutores incluindo Moffatt(neutro), Goodspeed (masculino) e Revised Standard Version (masculino namargem). Praticamente, qualquer uma das duas versões nos levará à mesmaposição de aceitar inelutavelmente a realidade evidente do Maligno, o inimigo deDeus e dos homens.

O Maligno é uma tremenda e perturbadora realidade no Universo moral (cf.Gn 3:1-7; Jó 1:6; 2Ts 2:3,4,9; 1Pe 5 :8 ; Ap 12:10).

Foi uma realidade objetiva para Jesus (cf. Lc 4:1-13 (note-se o verso 13); Jô8:44; Mt 12:43-45; Mt 13:19,39; Lc 22:31, 40).

Os apóstolos não o consideraram uma ficção ou fantasia, nem alegoria oufigura de linguagem (cf. At 5:3,4; Ef 6:11,16; Tg 4:7; Jd 6.

O Maligno é o inimigo natural dos que pedem a glorificação do nome deDeus; dos que ardente e sinceramente desejam o estabelecimento do Bem, daVerdade, do Direito, da Santidade (em outras palavras, do Reino de Deus nomundo); dos que preferem o domínio da vontade do Criador; dos que sonham poruma ordem no mundo em que impere a justiça social eqüitativa e universal; dosque humildemente se dispõem a perdoar, a amar, a ser bons, reconhecendo osseus deméritos; dos que fogem da tentação e querem ser vitoriosos sobre o mal.

"Bem pode esta petição, escreve Bordman, tomar o seu lugar como aconclusão da Oração-Modelo. O mal de que ela pede livramento, é o resumo detodos os “ais” da parte do homem; o alívio que ela exige é o resumo de, todo oamor da parte de Deus" (Ap. Broadus, Comentário de São Mateus).

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APÊNDICE

INTERPRETAÇÕES LITERÁRIAS DO PAI NOSSO (1)

"O Lord, teach us to pray as Thoudidst pray, And only let us go when

we have learned"(G. B. Walker)

Sobre a maravilhosa oração ensinada por Jesus aos seus discípulos muitose tem escrito em todas as línguas cultas sermões, estudos exegéticos,comentários homiléticos e críticos, e muita literatura se tem feito em torno dosconceitos singelíssimos de que ela se compõe. Embora muitas vezes idéias demuitos desses estudos sejam idênticas, todavia é muito difícil encontrar-se umbom autor sobre a Oração Dominical que não apresente muitos pensamentosnovos e a cujo espírito a pequena prece não tenha tido alguma cousa nova arevelar. E o extraordinário é que quando lemos outra vez os versículos doEvangelho à luz da nova interpretação encontramos de fato aquilo em que,sozinhos, não havíamos posto reparo.

Mas não são só os teólogos e eruditos que descobrem o pensamento dodivino Mestre contido na fonte inesgotável do “breviarium Evangelii” como diziamos Padres, a “pérola das orações”, como lhe chamou o deão Farrar.

Também os poetas. Estes são aqueles espíritos eleitos que sondam osmistérios da natureza e perlustram (observam diligentemente) os segredos daalma e muitas vezes interpretam os pensamentos de Deus e os revelam aosmortais. Foi isso que permitiu a Paulo sustentar um ponto da sua teologia empoetas pagãos que floresceram muito tempo antes de Cristo (2).

Os poetas são aqueles cantores de que fala Longfellow no "O poeta e osseus poemas", o qual precisa escrever quando o "Anjo" lhe ordena:

"...and needs must obeywhen the 'Angel says, "Write!"

Esses seres privilegiados têm um universo no "Pai Nosso" de Jesus, que ascriancinhas conhecem, em que o mundo cristão encontra um elo permanente deunião espiritual.

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Esta oração é, além do mais, uma síntese de todos os anseios mais altosdaquele que ora, do coração que aspira a uma comunhão com o Infinito, com o

"Father of all! in every age,In every clime adored,Bay saint, by savage, and by sage,Jeohovah, Jove, or Lord!” (3).

Tomemos, dentre as súplicas à divindade que os documentos mais antigosconservaram, desde os cânticos de Lugal-Zaggisi (3500 A.C.) a Bel de Nippur ea Sarpamit, até às rudes rezas dos selvagens do sertão da África, aquelasprecações que expressam um sentimento vivo da criatura humana que “procura”acima de si mesma alguma cousa que não encontra neste mundo e vejamos senão colocou Jesus numa súplica na oração do capítulo 6 de Mateus, que contém,no fundo, a mesma aspiração.

Na poesia de todas as literaturas e de todos os tempos, encontraremosigualmente rogativas que o "Pater noster" resumiu nalguma das suas petições.São um exemplo os poetas gregos a que Paulo aludiu no Areópago ateniense,Cleanto e Aratus de Soli (300 A. C.): "Pois somos também sua geração", palavrastiradas de poemas a "Zeus", chamados "sublimes" por Lightfoott.

"Pai nosso...", ensinaria Jesus.

"Poderoso Apolo!" exclama Orestes, nas Coéforas de Ésquilo. E logo o coro:"Há expiações: ide implorar Apolo, que ele vos livrará dos vossos males". Era odesejo de perdão e de paz que o Pai Nosso não esqueceu:

"Perdoa-nos as nossas dividas..."

E a alma satisfeita:"Qual no fluxo o refluxo, o mar em vagas leva a concha dourada...e traz das plagas corais em turbilhão,A mente leva a prece a Deus - por pérolas,E traz, volvendo após das praias cérulas (da cor do céu)Um brilhante: o perdão!” (4)

E Bocage:“Já que poder imenso em ti se encerra,Já que aos ingênuos ais atendes tanto,Socorre-me, entre os santos sacro-santo,Criminosas paixões de mim desterra”.

“...E não nos deixes cair em tentação”.

Na liturgia talmúdica, cuja compilação não terminou antes do século II A.D. (5) ,aparecem expressões muito semelhantes às petições do Pai Nosso. Van Doren

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refere que toda a oração do Senhor está contida nos livros judeus, exceto a cláusula"Assim como nós perdoamos..."

* * *

Entre as interpretações há algumas do ponto de vista literário muitointeressantes. Assis de Chateaubriand, por exemplo. Mencionemos a que serefere ao trecho "Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu":

"Palavra sublime, escreve, que compreende os atributos da divindade; santaresignação que atinge a ordem física e moral do universo" (6).

A de Papini nem sempre é feliz, mas, lede esta introdução:“...É uma oração sem literatura, sem teologia, sem orgulho e sem

servilismo. É a mais bela de todas. Apesar de simples, nem todosentendem o Pai Nosso. A secular repetição mecânica da língua e doslábios, a milenária repetição formal, ritual, desatenta e indiferente, tem-notransformado num rosário de sílabas, cujo significado primitivo e familiar seperdeu. Relendo-o hoje palavra por palavra, como se fosse novo, como seo víssemos pela primeira vez, perde o seu caráter de banalidade ritual ereadquire a primitiva significação.” (7)

Algumas traduções valem por interpretações. Algumas inglesas são assim. Ade Moffatt, por exemplo. “Dá-nos hoje o nosso pão para o dia de amanhã".

Moulton mostra como a simples variação na distribuição das várias cláusulasoferece possibilidades novas. Assim:

"Pai nosso que estás no Céu, santificado seja o teu nome. Venha o teureino. Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu".

Dispostas, porém, essas mesmas palavras em "figura de envelope", na quala primeira e a última linha são intimamente relacionadas e as outras ficamdependendo de ambas, temos:

"Pai nosso que estás no céu:Santificado seja o teu nome,Venha o teu reino,Seja feita a tua vontade,Assim na terra como no céu" (8).

O Bispo Jebb, estudando o original observou que, dispostos os versos deacordo com o sentido, parece ter havido um intuito didático na escolha daspalavras de sorte que se facilitasse aos humildes pescadores da Galiléia a suaretenção na memória (9). Assim notemos que a primeira e a quinta linha daprimeira parte terminam em “sigma” e as três intermediárias em “ypsilon”. Seacrescentar o “amém” costumeiro à última frase, teremos os seis versos da

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segunda parte da oração encerrados sempre por um “ny”.

E eu cuido encontrar ai alguns versos com cadencia poética, emboravariável. De qualquer modo, há muita poesia nessa maravilhosa oração. É um dosmuitos poemas em prosa do Novo Testamento.

Há aqui, acima da contagem dos pés, “um movimento harmonioso daimaginação", "uma lírica de pensamento”, "uma percepção do universo em nós” (10).

Burney dispôs as mesmas clássicas sentenças da Oração Dominical emtreze pequeninos versos (11) em que, sem rima, nem métrica, existe não obstanteum poema.

Alguns poetas, entretanto, encontraram o metro e rima nessa oração deJesus, alguns quase sem alteração da forma.

Vejamos este exemplo de John Bunyan, em rima para a infância: (12)

Our Father which in Heaven art;Thy name be always hallowed;Thy Kingdom come, thy will be done;Thy Heav'nly path be followed.

By us on Earth as ´tis with thee,We humbly pray;And let our Bread us given beFrom day to day.

Forgive our debts as we forgiveThose that to us indebted are:Into temptation lead us not;Bust save us from the wicked's Snare.

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The Kingdom´s thine, the Power too,We thee adore,The Glory also shall be thineFor evermore.

Em inglês arcaico encontraremos os seguintes versos do Papa Adriano IV(Nicolau Breakspeare - 1160):

Ure fadyr in heaven rich:Thy name be halyed everlich:Thou bring us thy michell blisse,As hit in heaven y-doe,Evar in yearth beene it also:That holy bread that lasteth ay,Thou send it ous all that we havith don,As wee forgivet uch other mon:Ne let ous fall into no founding,Ao shield ous fra the fowle thing. Amem (13)

Vejamos agora esta de Adoniram Judson, escrita na prisão em Ava, em1825.

Our Father God, who art in heavenAll hallowed be thy name,Thy Kingdom come; thy will be done,In earth and heaven the same.Give us, this day, our daily bread;And, as we those forgiveWho sin against us, so may weForgiving grace receive.Info temptation lead us not;From evil set us free;The kingdom, power, and glory, Lord,Ever belong to Thee.

Durante o período de formação das línguas românicas, apareciam poesiasbilíngües em que se alternava o latim com a língua comum. Às vezes isto foi feitocom intuito satírico, com vistas aos responsos da missa. Talvez houvessetambém, no fundo, como no exemplo que tiro de Gil Vicente, um esforço denacionalização do culto, pela insistência com que uma ou outra linguagem voltama se fazer ouvir.

Pater noster creadorQui es in coelis poderosoSanctificetur, Senhor,Nomem tuum vencedor

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Nos céus e na terra piedoso.Advieniat a tua graça,Regnuum tuum sem mais guerra;Voluntas tua se façaSicut int coelo et in terra.Panem nostrum, que comemos,Quotidianum teu he;

Escusá-lo não podemos:Inda que o não merecemos,Tu da nobis hodie.Dimitte nobis, Senhor,Debita nossos erroresSicut et nos, por teu amor,Demittimos qualquer errorAos nossos devedores.Et ne nos, Deus te pedimosInducas per nunhum modoIn tentationem caímos;

Porque fracos nos sentimos,Formados de triste lodo.Sed libera nossa fraqueza,Nos a malo nesta vidaAmem por tua graça,E nos livre tua altezaDa tristeza sem medida” (14)

Nesses versos de Mota Sobrinho, nota-se um esforço por não fugir aooriginal (15):

Senhor, que moras nas alturas,Atende às tuas criaturas,Pai nosso que estás nos céus.Santificado seja o teu nomeO poder tua mão retomeE venha o teu reino, oh Deus.

Seja feita a tua vontadeNa terra, por tua bondade,Como é feita lá nos céus;O pão nosso de cada diaNos dá hoje, e com alegriaO comamos, sem labéus.

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Dá-nos sempre esperanças vívidas,Perdoa-nos as nossas dívidasPor tua graça e favor,Assim como nós perdoamos,As culpas também relevamos,Ao remisso devedor.

E não nos vença a tentação,Ampare-nos a tua mão,Para que triunfe o bem.No vasto e horrendo tremendalGuarda-nos, livra-nos do malPara todo o sempre, amém.

Já noutros transparece a interpretação pessoal do poeta:

Pai nosso, de todos nós,Que todos somos irmãos;A ti erguemos as mãosE levantamos a voz:

A ti, que estás no céu,E nos lanças com clemência,Do vasto estrelado véuOs olhos da providência!

Bendito, santificadoSeja o teu nome, Senhor!Inviolável, sagradoNa boca do pecador!

E venha a nós o teu reino!Acabe o da vil cobiça!Reine o amor, a justiçaQue pregava o Nazareno;

De modo que seja feitaA tua santa vontade,Sempre a expressão perfeitaDa justiça e da verdade!

Seja feita assim na terraComo no céu onde habitaEsse cuja mão encerraA criação infinita!

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O pão nosso nesta lidaDe cada dia nos dá...Hoje, e basta; a luz da vidaQuem sabe o que durará!

E perdoa-nos, Senhor,As nossas dívidas, sim!Grandes são, mas é maiorEssa bondade sem fim!

Assim como nós (se é dadoJulgar-nos também credores)Perdoamos de bom gratoCá aos nossos devedores.

E não nos deixes, bom Pai,Cair nunca em tentação;Que o homem, por condição,Sem o teu auxílio cai!

Mas tu, que não tens segundo,Mas tu que não tens igual,Dá-nos a mão neste mundo,Senhor! Livra-nos do mal! (16)

E no Dante em que o Pai Nosso é “tradotto” e “glossatto” no dizer de Pollettono “Dizionario Dantesco”, há comentários e filosofia:

“O Padre nostro, che ne cieli stai,non circonscritto, ma per piú amoreche ai primi effetti de lassú tu hai,laudato sia il tuo nome e il tuo valoreda ogni creatura, com è degnodi render grazie al tuo dolce vapore!

Vegna vêr noi la pace del tuo regno,Che noi ad essa non potem da noi,S`ella non vien, com tutto nostro ingegno!Come Del suo voler gri angeli tuoiFan sacrificio a te, cantando: HosannaCosi facciano gli nomini de suoi!

Da oggi a noi a cotidiana manna,sanza la qual per questo aspro desertoA retro va chi piú di gir s`affanna!E como noi lo mal che avem sofferto,Perdoniamo a ciascuno, e tu perdonaBenigno, e non guardar lo nostro merto!

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Nostra virtú, Che di leggier s`adona,Non spermentar com l´antico avversaroMa libera da lui, Che si la sprona!Quest´ultima preghiera, Signor caro,Gia non si fa per noi, che non bisogna,Ma per color Che dietro a noi restaro” (17)

Estes versos foram traduzidos em vernáculo pelo Barão de Vila Barra:

Oh! Padre nosso, que no céu demorasSem ter confins, mas pois aí te prendeMaior amor às primordiais feituras:Teu nome e teu poder louvado sejamPor toda a criatura, como cumpreÀ tua Suma Essência render graças:Do Reino teu a paz sobre nós desça,A qual obter por nosso único engenho,Sem teu favor, nós próprios não podemosComo a sua vontade sacrificamOs anjos teus a entoar-te hosanas,Assim também procedam os humanos.O pão cotidiano dá-nos hoje,Sem o qual através deste ermo rude,Quem mais cuida avançar mais retrocede.E como nós a outrem perdoamosO mal causado assina a nós benigno,Perdoa, sem olhar se merecemos.A precária virtude não nos provesDo antigo inimigo expondo Às traças,Porém das suas tentações nos livra.

E há também teologia, pois as almas rezavam no Purgatório...:“Não é por nós, que já não carecemos,mas pelos que no mundo atrás deixamos”.

Um poeta inglês do Século XVII, Edmund Waller, cuja poesia é por algunstida como extravagante (18), escreveu também uma interpretação do Pai Nossoem que há idéias bem claras sobre a responsabilidade de quem eleva a Deus aspetições nele contidas. Terminemos estar série de autores com a citação destasconceituosas palavras de Waller:

“His kingdom come for the we pray in vain,Unless he does in our affections reign:Absurd it were to wihs for such a king,And not obedience to his scepter bring;

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Whose yoke is easy, and his burden light,His service freedom, and his judgements right”.

CITAÇÕES DO APÊNDICE(1) Artigo publicado pela primeira vez na revista Fé e Vida de Setembro de

1943.(2) Sobre esse assunto o autor publicou um artigo intitulado "Os Poetas e a

Teologia", no "O Estado de São Paulo" de 21 de Janeiro de 1942.

(3) Alexander Pope.

(4) Castro Alves — "Sub tegmini fagi"

(5) O Mishna; Gemara ainda mais tarde.(6) Génie de Christianisme, pág. 445

(7) G. Papini, História de Cristo, pág. 158.

(8) Moulton, "A short Introduction to the Litterature of the Bible", pág. 8.

(9) "Sacred Litterature", citado por James W. Thirtle, "The Lord's Prayer",pág. 48.

(10) Guilherme de Almeida, sobre tradução de poesia, em "Poetas deFrança", pág. 11.

(11) "The Poetry of Our Lord", cit. por C. P. Maus, "Christ and the Fine Arts".

(12) John Bunyan. "Book for Boys and Girlis" (1685). Apud J.W. Thirtle, ob.cit. pág. 308.

(13) J. W. Thirley, ob . cit.

(14) Gil Vicente - “O Velho da Horta” (Autos de Gil Vicente, Antônio LopesVieira, pág. 65).

(15) Mota Sobrinho, "O Sermão do Monte", pág. 38.

(16) João de Deus, "Campo de Flores".

(17) Purg. XI, 1 e segs.

(18) Philip Schaff e Arthur Gilman, “A Library of Religious Poetry", pág. 547.

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