apelo sobrenatural - revista de história

Upload: luizana-migueis

Post on 05-Jul-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/16/2019 Apelo Sobrenatural - Revista de História

    1/4

    Apelo sobrenatural

    A crença na magia e na feitiçaria era compartilhada por brancos e negros noMato Grosso colonial

    Mario Teixeira de Sá Junior

    19/1/2011

    Quando viu aquele embrulho suspeito na porteira do curral do capitão Carlos de Oliveira em VilaReal do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, o preto alforriado Joaquim Moreira achou por bemaveriguar o que havia ali dentro. Encontrou, entre outros objetos, pedaços de couro, corais,uma argola de ferro, versos de uma oração e até mesmo alguns bicos de pássaros, tudo issoenvolvido por um lenço de tabaco. Pensando ser feitiçaria, Joaquim ateou fogo naquelas coisas.Contrariado, o escravo Manoel Quiçamá, autor do embrulho, foi tomar satisfação, afirmando que“aquilo não era feitiço, mas remédio para curar os outros de feitiço”.

    As práticas de feitiçaria e magia faziam parte do dia a dia dos habitantes da região do MatoGrosso no século XVIII. Casos como o de Joaquim Moreira e uma série de denúncias sobre práticasde adivinhadores, rezadores, curadores e feiticeiros podem ser encontrados nos Autos da Devassada Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, realizada em 1785. Apesar de o Tribunal doSanto Ofício – braço da Igreja responsável pelo julgamento de crimes religiosos – não ter seestabelecido no Brasil, seus representantes realizaram sete importantes visitas, além de outrasde menor impacto.

    Os números da Devassa, que significa “investigação”, revelam aspectos muito interessantes sobreas acusações. Das 15 denúncias de prática de magia, 12 foram feitas por brancos. Em relação às

    acusações de feitiçaria, temos uma proporção próxima: das 48 acusações, 30 foram feitasbrancos. Seguindo a mesma lógica, das 15 pessoas acusadas por magia, apenas seis erambrancas. Além disso, entre os supostos feiticeiros não havia sequer um branco. O grande númerode denúncias de magia e feitiçaria feitas por brancos mostra como eles acreditavam que negros eíndios usavam estas práticas nos conflitos cotidianos.

    Apesar de ambas apelarem ao sobrenatural e serem proibidas, as duas práticas tinham grandesdiferenças. Enquanto a magia se ocupava de intervir na ordem natural, à feitiçaria cabia atarefa de criar ou solucionador malefícios, lidando, direta ou indiretamente, com a presença dosagentes do mal. Por esta razão, era considerada um crime mais grave. Dessa forma, a magia se

    ocupava mais de ações como a cura de doenças por meio de rezas e remédios, e a feitiçariabuscava as forças do outro mundo, maléficas – segundo a Igreja –, para solucionar ou criarproblemas.

    Se a crença nessas práticas era coletiva, o papel reservado a cada grupo social nelas envolvidoera diferenciado. Enquanto ao branco cabia o papel de cliente, ao negro e ao índio estavareservado o de fazedor e curador do feitiço. Um exemplo de como os brancos temiam que afeitiçaria fosse usada contra eles por negros e índios encontra‐se nos Anais de Vila Bela, de1770. Buscando uma razão para a longevidade de um quilombo, o autor do documento recorre aexplicações de outra ordem. Segundo ele, o quilombo teria como “maior oráculo o tal Piolho, porter sido, em outro tempo, rei em um quilombo que se dissolveu nos matos da cidade do Rio deJaneiro”. O papel de destaque conferido ao oráculo sugere a crença de que os poderes“diabólicos” nos quais o quilombola Piolho se fiava – como afirmou o autor – teriam contribuídopara a duradoura resistência do quilombo. Acreditar em tais denúncias significaria crer que odiabo realmente se colocava ao lado de negros, índios e seus parceiros, contra os brancos.

  • 8/16/2019 Apelo Sobrenatural - Revista de História

    2/4

    O advogado e cronista Barbosa de Sá (17?/1776) registra um fato curioso ocorrido após a monçãode 1734. As monções eram viagens em barcos que levavam tudo o que fosse necessário para sesobreviver e produzir nas minas e terras de Cuiabá e Mato Grosso entre os séculos XVIII e XIX.Após a frota ter passado pelo Rio Cuiabá e já ter alcançado o Rio Paraguai, avistaram‐sefogueiras. Temendo encontrar índios guaicurus ou paiaguás, os marujos “rodaram mansamentesem fazer estrondo e antes da meia‐noite chegaram aos fogos (ou seja, às habitações)”. Láestavam os paiaguás, que já sabiam da presença daquela monção. Surpresos e impressionados, osexpedicionários associaram o fato a uma “revelação dos seus feiticeiros (dos índios)”.

    Um outro caso reforça a tese de que africanos, indígenas e seus descendentes ocuparam emmaior número o papel de magos feiticeiros. Em 1799, morreram cinco escravos do alferesJoaquim Paes. Dois feitores, o escravo Francisco Preto, o Suçu, e o branco José Barros, foramacusados de maus‐tratos, o que teria provocado as mortes. Somente no processo de Suçu há umoutro motivo para a acusação: o uso de feitiçaria. O mais curioso é que a denúncia foi feitapelos próprios escravos, colegas de Suçu. Isso demonstra que os atos de acusação não ficaramrestritos aos brancos. Eles se disseminaram por toda a sociedade.

    Nas práticas de feitiçaria, os conceitos de bem e mal, certo e errado, divino e diabólico podiam

    coexistir de forma ambígua, diferentemente do cristianismo. Se, por um lado, o feiticeiro podiaganhar uma reputação negativa, por outro, sua sabedoria era valorizada por muitos. Osconhecimentos sobrenaturais que lhes foram atribuídos seriam capazes de “explicar” e proporsoluções para uma série de males e conflitos cotidianos enfrentados pelos seus contemporâneos.

    Mas, afinal, para que servia a feitiçaria? Assuntos ligados ao amor ou à saúde, problemaseconômicos, sociais ou judiciais, entre outros, faziam parte da longa lista de motivos.Praticamente qualquer problema podia ser levado ao feiticeiro ou mago.Alguns souberam se aproveitar de tamanha demanda. Em uma denúncia, a testemunha brancaUrsula Rondon relatou que Moxiba, escravo do capitão Carlos de Oliveira, teria ido atender uma

    escrava sua “enferma, que diziam enfeitiçada”. Após esfregar um frango sobre a cabeça dadoente, Moxiba anunciou a aparição de certa quantidade de cabelo dentro da ave. Feitiço?Fraude? Não se sabe.

    Em outra denúncia, feita pelo minerador Francisco Garcia ao visitador do escravo Moxiba, eleafirma que o capitão Carlos recebia “jornal”, isto é, pagamento, do escravo. Apesar de muitosoutros delatores terem relatado ignorar tal fato, é possível que as práticas servissem para umaespécie de “feitiçaria de ganho”, na qual o senhor ficava com uma parte do dinheiro e o escravodesfrutava de uma autonomia maior que a de costume. Os cativos ainda podiam sonhar com acompra de sua liberdade.

    Alguns dos feiticeiros de Mato Grosso eram escravos “quartados”, assim chamados porque haviamnegociado o pagamento de sua alforria em um período de quatro anos ou mais. Era o caso deManoel Quiçamá. Outros, como Maria Eugênia e Pai Miguel, já eram alforriados.

    A história de Pai Miguel nos mostra um outro papel reservado aos feiticeiros, o de solucionadoresde mistérios – espécie de detetives auxiliados pelo sobrenatural. O minerador e proprietário deescravos Gaspar da Silva Rondon relata à Devassa que Lourenço Fontes, após procurar semsucesso uma barra de ouro perdida, mandou chamar o feiticeiro. Depois de receber a quantia dedois tostões, Miguel começou “a rosnar consigo tendo na mão uma panelinha de barro, que tirarade dentro de um saco, na qual a panela mostrava ter dentro um óleo, ou azeite, e ajuntando a

    panelinha a boca estivera batendo‐lhe com as mãos”. O feiticeiro afirmou, então, ter tido umavisão que lhe mostrara uma negra de Francisco Guimarães encontrando o ouro. Ao procurar aescrava, a vidência do feiticeiro se confirmou: a barra de ouro estava com ela.

    A documentação sobre Maria Eugênia revela ainda outros detalhes sobre a feitiçaria. Em carta ao

     

  • 8/16/2019 Apelo Sobrenatural - Revista de História

    3/4

     

    governador Luís Cáceres (1739‐1792), o capelão José Leitão descrevia o comportamento dafeiticeira, que se encontrava presa na cadeia de Cuiabá, em 1778. Ele relata que, antes deenviar os requerimentos ou cartas ao governador em busca da sua liberdade, Maria Eugênia“pulverizava” os documentos e os passava “por certas fumaças”. Nesse caso, a feitiçaria deveriainfluenciar as decisões da Justiça.

    Mergulhar no fascinante e misterioso universo da feitiçaria no Mato Grosso do século XVIII nospermite ampliar os horizontes da história do período. Mas resta uma pergunta: o saldo de suas

    práticas trouxe aos feiticeiros mais conquistas ou perdas? Mesmo perseguidos e denunciados,muitos escravos conseguiram, graças a supostos dons sobrenaturais, afrouxar os grilhões erenegociar sua condição.

    Ainda hoje, basta caminhar pelo centro das grandes cidades brasileiras para nos depararmos companfletos anunciando os serviços de feiticeiras e mães de santo que, entre outras proezas,trazem a pessoa amada em poucos dias. Este fato mostra como tais crenças permanecem vivasno Brasil, oferecendo soluções mágicas para pessoas que querem resolver problemas em suasvidas. Em outras palavras, somos herdeiros do feitiço.

    MARIO TEIXEIRA DE SÁ JUNIOR É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOSE AUTOR DA TESE “MALUNGOS DO SERTÃO: COTIDIANO, PRÁTICAS MÁGICAS E FEITIÇARIA NOMATO GROSSO SETECENTISTA” (UNESP, 2008).

     

    Saiba Mais ‐ Bibliografia 

    BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros emPortugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

     

    CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Uma devassa nas Minas: imigração e moralidade nafronteira mais remota da colônia Mato Grosso, 1785. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2006.

    MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo na Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade no Brasilcolonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

  • 8/16/2019 Apelo Sobrenatural - Revista de História

    4/4