ap 470 - voto de luiz fux

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Supremo Tribunal Federal AÇÃO PENAL Nº 470 VOTO MINISTRO LUIZ FUX

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Voto de Luiz Fux na Ação Penal do Mensalão

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  • Supremo Tribunal Federal

    AO PENAL N 470

    VOTO

    MINISTRO LUIZ FUX

  • Ao Penal 470 Plenrio

    2

    VOTO

    ITEM III DA DENNCIA

    ORIGENS DOS RECURSOS EMPREGADOS NO

    ESQUEMA CRIMINOSO

    O Senhor Ministro Luiz Fux: Senhor Presidente,

    Senhores Ministros, Senhor Procurador-Geral da Repblica,

    eminentes advogados.

    Preliminarmente incumbe-me cumprimentar a todos

    pela competncia demonstrada nas atuaes orais e escritas

    o que exacerba sobremodo a difcil funo de julgar um

    processo materialmente complexo porquanto composto de

    mais de 235 volumes, centenas de apensos, mais de 500

    depoimentos, cuja digitalizao posto no comportar num

    hard disk de inmeros computadores, mereceu um HD

    parte que contm mais de 40 gigabytes de documentos.

    A complexidade que o caso sub judice encerra, pelo

    seu carter mltiplo (37 rus), e as teses minuciosamente

  • Ao Penal 470 Plenrio

    3

    defendidas pelas partes e por mim anotadas uma a uma,

    inclusive as veiculadas nas sustentaes orais

    brilhantemente realizadas por ambas as partes, de um lado

    o PGR competente e combativo de outro um verdadeiro

    pool da inteligncia jurdica da advocacia penal brasileira,

    atributo extensivo aos advogados dativos, impuseram-me

    uma metodologia expositiva que fosse aplicvel votao

    de cada ru no que concerne s teses jurdicas comuns.

    Assim, v. g., restaram constantes alegaes sobre carncia

    probatria, ausncia de contraditrio na coleta da prova,

    ausncia de tipicidade por fora da inexistncia de ato de

    oficio no crime de corrupo, alm das vicissitudes

    apontadas em relao aos delitos que compem o mosaico

    penal do caso sub judice.

    Em face dessas nuances, permiti-me, preliminarmente

    traar premissas tericas sobre os temas acima indicados

    para depois, sem o vezo da repetio, analisar fatos, provas

    incidncia da norma penal e concluso.

    Assim explicitado o modo como me proponho a votar

    a presente ao penal, iniciou, ento pelas premissas

  • Ao Penal 470 Plenrio

    4

    tericas para ao depois adentrar nos captulos at ento

    enfrentados, na ordem de votao.

    Os graves fatos noticiados nestes autos foram

    inicialmente revelados pelo 29 denunciado (Roberto

    Jefferson) na CPMI dos Correios em 2005. O

    aprofundamento das investigaes conduziu ao

    depoimento da secretria do 5 denunciado (Marcos

    Valrio), Sra. Fernanda Karina Ramos Somaggio, que restou

    por revelar as inmeras operaes suspeitas praticadas pelo

    referido ru e pelas suas empresas de publicidade, em

    especial a SMP&B e a DNA.

    Em sntese, a tese defendida pela acusao pode ser

    identificada com a gnese do denominado "esquema do

    mensalo" nas palavras do discurso de defesa do 29

    denunciado (Roberto Jefferson) na Cmara dos Deputados,

    ocorrido em 14/09/2005.

    A expresso mensalo foi, assim, empregada para

    designar a suposta mesada recebida por parlamentares da

    Cmara dos Deputados oriunda de pagamentos feitos por

    uma suposta quadrilha integrada por um ncleo poltico,

  • Ao Penal 470 Plenrio

    5

    publicitrio e financeiro. O propsito dos pagamentos seria

    o de obter o apoio poltico ao governo federal e necessrio,

    sobremaneira, para a aprovao de matrias sensveis e

    deliberadas no Congresso Nacional no perodo de 2003 e

    2004 a que se refere a denncia.

    Os recursos destinados ao suposto pagamento dos

    congressistas volveis recompensa seria, em linhas gerais,

    obtido atravs de emprstimos contrados pelo PT e por

    empresas d0 5 denunciado (Marcos Valrio) com o Banco

    Rural e Banco BMG. Os referidos emprstimos seriam,

    segundo a compreenso do parquet, forjados e as aludidas

    instituies realizavam, na prtica, a disponibilizao dos

    recursos sem exigir a sua restituio. A acusao tambm

    sustenta que os valores necessrios para o preenchimento

    dos objetivos do esquema era fruto de dinheiro desviado

    dos cofres pblicos e destinado ao pagamento de polticos e

    de campanhas eleitorais.

    Na apresentao dos fatos e da dinmica dos ilcitos

    supostamente perpetrados, a denncia partiu de uma

    premissa de que havia diversos ncleos, grupos de pessoas

    com funes especficas no suposto mensalo. Essa

  • Ao Penal 470 Plenrio

    6

    formatao em grupos de rus e de ilcitos originou um

    texto dividido por itens. H, na denncia, um total de 8

    (oito) itens, cada qual, com exceo do primeiro que veicula

    a introduo da pea inicial acusatria, correspondente a

    um contexto ftico abrangente de diversos rus e ilcitos.

    O eminente relator optou por iniciar os trabalhos com

    o julgamento do item III da denncia que retrata, dentre

    outros crimes, a prtica de supostos ilcitos pelo ex-

    presidente da Cmara dos Deputados, o 15 denunciado

    (Joo Paulo Cunha), na contratao de uma agncia de

    publicidade do 5 denunciado (Marcos Valrio). De acordo

    com o aludido item III, intitulado Desvio de Recursos

    Pblicos, encartado s fls. 5.659 e seguintes do volume 27, o

    15 denunciado (Joo Paulo Cunha), o 5 denunciado

    (Marcos Valrio), o 6 denunciado (Ramon Hollerbach) e o

    7 denunciado (Cristiano Paz) teriam participado de

    diversos ilcitos envolvendo o desvio de recursos da

    Cmara dos Deputados para o favorecimento da agncia de

    publicidade contratada pelo referido rgo. Os crimes

    imputados aos rus no item III.1 da denncia so os de

  • Ao Penal 470 Plenrio

    7

    peculato, corrupo ativa, corrupo passiva e de lavagem

    de dinheiro.

    Em linhas gerais, de acordo com a verso do

    Ministrio Pblico, o 5 denunciado (Marcos Valrio)

    possua empresas de publicidade que j mantinham

    contratos com o Banco do Brasil, Ministrio do Trabalho e

    Eletronorte. Em decorrncia de sua proximidade com a

    agremiao partidria ocupante do poder no governo

    federal, o 5 denunciado (Marcos Valrio) teria, segundo a

    acusao, conseguido renovar essas avenas, manter um

    contrato com o Ministrio dos Esportes e vencer uma

    licitao feita pelos Correios em 2003 para prestar servios

    de publicidade.

    O estreito vnculo com integrantes da cpula do

    governo federal tambm teria, segundo a pea vestibular,

    gerado resultados positivos ao conseguir a conta de

    publicidade da Cmara dos Deputados, rgo de estatura

    constitucional presidido, na poca dos fatos, pelo 15

    denunciado (Joo Paulo Cunha), cuja campanha

    presidncia havia sido realizada por uma das empresas do

    5 denunciado (Marcos Valrio), do 6 denunciado (Ramon

  • Ao Penal 470 Plenrio

    8

    Hollerbach) e do 7 denunciado (Cristiano Paz). A acusao

    noticia a ocorrncia de diversas irregularidades na execuo

    do contrato de publicidade com a Cmara dos Deputados,

    v. g., a excessiva subcontratao dos servios e a ausncia

    de comprovao da prestao dos servios cobrados.

    No item III da denncia, h relato do parquet de que o

    modus operandi do desvio de recursos pblicos ocorria

    pela simulao de mtuos entre empresas do grupo do 5

    denunciado (Marcos Valrio) e terceiros, pela ausncia de

    contabilizao de servios e operaes financeiras; pela

    emisso de notas fiscais falsas para justificar o pagamento

    de servios sem a devida contraprestao, alm de outras

    prticas ilcitas envolvendo, v. g., a Cmara dos Deputados,

    o Banco do Brasil, a DNA Propaganda Ltda. e a Companhia

    Brasileira de Meios de Pagamento VISANET.

    No contexto da pea acusatria, h relato de que o 5

    denunciado (Marcos Valrio), em nome do 6 denunciado

    (Ramon Hollerbach) e do 7 denunciado (Cristiano Paz),

    ofereceu a vantagem indevida de R$ 50.000,00 (cinquenta

    mil reais) ao 15 denunciado (Joo Paulo Cunha), tendo em

    vista sua condio de Presidente da Cmara dos

  • Ao Penal 470 Plenrio

    9

    Deputados, com a finalidade de receber tratamento

    privilegiado para a sua agncia de publicidade. A referida

    quantia teria sido sacada pela Sra. Mrcia Regina no Banco

    Rural em 04 de setembro de 2003, um dia aps a reunio do

    15 denunciado (Joo Paulo Cunha) com o 5 denunciado

    (Marcos Valrio), e, segundo o parquet, o modo como o

    saque ocorreu teve o intuito de ocultar a origem dos

    recursos.

    O MPF tambm destaca que a empresa SMP&B teria

    participado do contrato de publicidade com a Cmara dos

    Deputados apenas para intermediar subcontrataes,

    recebendo honorrios de 5% s para fazer isso, o que

    caracterizaria um ilcito.

    Antes de adentrarmos a anlise da dinmica dos fatos

    pertinentes ao item III, revela-se necessrio abordar

    algumas premissas tericas concernentes aos crimes

    imputados aos rus. Essa anlise terica feita com o

    escopo precpuo de enfrentar os principais argumentos e

    teses invocados pelas partes. Sero enfrentados, outrossim,

    temas comuns na acusao e nas defesas de diversos dos

    acusados na presente Ao Penal, sob os aspectos do

  • Ao Penal 470 Plenrio

    10

    Direito Penal e do Direito Processual Penal, evitando-se a

    cansativa repetio de fundamentos ao longo do voto.

    PREMISSAS TERICAS

    INTRODUO: PROVA DA INFRAO PENAL EM

    CRIMES DO COLARINHO BRANCO

    A tnica das sustentaes escritas e orais se calca na

    prova de delitos de sofisticada atuao delitual, nos quais

    nem sempre os elementos de convico usuais do vetusto

    processo concebido como actus ad minus trium personarum

    so satisfatrios prima facie. Alis, dessa constatao que a

    histria penal inaugura a pr-compreenso dos

    denominados crimes do colarinho branco.

    Os crimes do colarinho branco constituem um

    conceito relativamente novo, que apenas alcanou

    reconhecimento no ano de 1939, nos Estados Unidos, em

    um discurso do socilogo Edwin Sutherland na American

    Sociological Society, que criticou criminlogos da poca por

    atriburem a criminalidade pobreza ou a condies

  • Ao Penal 470 Plenrio

    11

    psicopticas e sociopticas. A noo de white collar crime

    particularmente importante por evidenciar a necessidade

    de considerar as infraes praticadas por indivduos

    ocupantes de posies de poder como crimes e no apenas

    ofensas civis. Ope-se aos blue-collar crimes, que so delitos

    perpetrados por integrantes de estratos sociais mais

    desfavorecidos.

    A definio de Sutherland, que enfatizava mais o

    sujeito que o delito praticado sendo, por isso, mais

    adequada a expresso criminosos do colarinho branco ,

    foi substituda posteriormente por uma concepo voltada

    para o fato. Assim, o Bureau of Justice Statistics (BJS) dos

    Estados Unidos utiliza o seguinte conceito de white collar

    crime: crime no violento dirigido ao ganho financeiro,

    cometido mediante fraude. Observa-se, portanto, que no

    h um rol delimitado de delitos que compem a categoria

    de crimes do colarinho branco, o que, todavia, no

    impede a represso e a punio aos autores desse tipo de

    infraes. Dentre os delitos que podem se amoldar ao

    conceito, incluem-se os crimes tributrios (tax crimes), as

    fraudes bancrias (bank fraud), os crimes de corrupo

  • Ao Penal 470 Plenrio

    12

    (public corruption) e a lavagem de dinheiro (money

    laundering), todos de relevantssimo interesse para a

    presente causa (PODGOR, Ellen S. White Collar Crime in a

    nutshell. Minnesota: West Publishing Co., 1993. p. 1-4).

    Na Alemanha, utiliza-se a denominao

    Wirtschaftsstrafrechts para designar o Direito Penal

    Econmico, que se ocupa dos aqui cognominados crimes do

    colarinho branco, sendo certo que no h uma lei que

    regulamente o tema de maneira uniforme (KUDLICH,

    Hans; OGLAKCIOGLU, Mustafa Temmuz.

    Wirtschaftsstrafrecht. Heidelberg: Hthig Jehle Rehm, 2011;

    MANSDRFER, Marco. Zur Theorie des

    Wirtschaftsstrafrechts. Heidelberg: Hthig Jehle Rehm,

    2011; HELLMANN, Uwe; BECKEMPER, Katharina.

    Wirtschaftsstrafrecht. Stuttgart: Kohlhammer, 2008). Klaus

    Tiedemann, expoente do Direito Penal Econmico alemo,

    afirma que esse ramo engloba todas as infraes que

    atingem bens jurdicos coletivos ou supraindividuais da

    vida econmica (TIEDEMANN, Klaus. Poder econmico y

    delito. Trad. Amelia Mantilla Villegas. Barcelona: Ariel,

    1985. p. 16).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    13

    Os crimes do colarinho branco, em essncia, so

    condutas punveis na esfera penal, e no apenas civilmente

    irregulares; so proibies relevantssimas para o seio

    social, e no apenas restries formais e circunstanciais.

    Cuida-se, nas palavras de Abanto Vsquez, da proteo dos

    bens jurdicos mais importantes contra as aes perigosas

    mais graves em uma sociedade, motivo pelo qual a

    tendncia da legislao e da doutrina penal dominante a

    de recrudescer o tratamento penal conferido a condutas que

    afetem negativamente interesses sociais econmicos

    (ABANTO VSQUEZ, Manuel A. Derecho Penal

    Econmico consideraciones jurdicas y econmicas. Lima:

    IDEMSA, 1997. p. 37).

    O desafio na seara dos crimes do colarinho branco

    alcanar a plena efetividade da tutela penal dos bens

    jurdicos no individuais. Tendo em conta que se trata de

    delitos cometidos sem violncia, incruentos, no atraem

    para si a mesma repulsa social dos crimes do colarinho

    azul (Go directly to jail: white collar sentencing after the

    Sarbanes-Oxley Act. In: Harvard Law Review, vol. 122,

    2008-2009. p. 1742 e ss.). A inoperncia das instituies

  • Ao Penal 470 Plenrio

    14

    causa um nefasto efeito sistmico, que, fomentado pela

    impunidade, causa pobreza atrs de pobreza, para o

    enriquecimento indevido de alguns poucos. O fato

    delituoso tanto mais grave na medida em que a cada

    desvio de dinheiro pblico, mais uma criana passa fome,

    mais uma localidade desse imenso brasil fica sem

    saneamento, o povo sem segurana e sem educao e os

    hospitais sem leito.

    A dificuldade de represso tambm se deve,

    conforme aponta o argentino Fernando Horacio Molinas, ao

    fato de que o delito econmico , aparentemente, uma

    operao financeira ou mercantil, uma prtica ou

    procedimento como outros muitos no complexo mundo dos

    negcios. A ilicitude no se constata diretamente, sendo

    necessrio, no raras vezes, lanar mo de percias

    complexas e interpretar normas de compreenso

    extremamente difcil. As manobras criminosas so

    realizadas utilizando complexas estruturas societrias, que

    tornam muito difcil a individualizao correta dos diversos

    autores e partcipes. Alm disso, comum o apelo

    chamada moral de fronteira, apresentando o fato criminal

  • Ao Penal 470 Plenrio

    15

    como uma prtica inevitvel, generalizada, conhecida e

    tacitamente tolerada por todos, de modo que o castigo seria

    injusto, passando-se o autor do fato por vtima do sistema

    ou de ocultas manobras polticas de seus adversrios

    (MOLINAS, Fernando Horacio. Delitos de cuello blanco

    en Argentina. Buenos Aires: Depalma, 1989. p. 22-23 e 27).

    A dignidade humana dos rus importante, como aqui se

    destacou, mas no podemos olvidar a dignidade da

    sociedade brasileira, atingida no seu mago por esse flagelo

    da corrupo.

    Essas sutilezas que marcam a identidade dos crimes

    do colarinho branco constituem razes que devem

    informar a lgica probatria inerente sua persecuo.

    O DIREITO PROBATRIO EM DELITOS

    ECONMICOS

    Com efeito, a atividade probatria sempre foi

    tradicionalmente ligada ao conceito de verdade, como se

    constatava na summa divisio que por sculos separou o

    processo civil e o processo penal, relacionando-os,

    respectivamente, s noes de verdade formal e de verdade

  • Ao Penal 470 Plenrio

    16

    material. Na filosofia do conhecimento, adotava-se a

    concepo de verdade como correspondncia.

    Nesse contexto, a funo da prova no processo era

    bem definida. Seu papel seria o de transportar para o

    processo a verdade absoluta que ocorrera na vida dos

    litigantes. Da dizer-se que a prova era concebida apenas

    em sua funo demonstrativa (cf. TARUFFO, Michele.

    Funzione della prova: la funzione dimostrativa, in Rivista

    di Diritto Processuale, 1997).

    O apego ferrenho a esta concepo gera a

    compreenso de que uma condenao no processo s pode

    decorrer da verdade dita real e da (pretensa) certeza

    absoluta do juiz a respeito dos fatos. Com essa tendncia,

    veio tambm o correlato desprestgio da prova indiciria, a

    circumstancial evidence de que falam os anglo-americanos,

    embora, como ser exposto a seguir, o Supremo Tribunal

    Federal possua h dcadas jurisprudncia consolidada no

    sentido de que os indcios, como meio de provas que so,

    podem levar a uma condenao criminal.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    17

    Contemporaneamente, chegou-se generalizada

    aceitao de que a verdade (indevidamente qualificada

    como absoluta, material ou real) algo inatingvel

    pela compreenso humana, por isso que, no af de se obter

    a soluo jurdica concreta, o aplicador do Direito deve

    guiar-se pelo foco na argumentao, na persuaso, e nas

    inmeras interaes que o contraditrio atual,

    compreendido como direito de influir eficazmente no

    resultado final do processo, permite aos litigantes, com se

    depreende da doutrina de Antonio do Passo Cabral (Il

    principio del contraddittorio come diritto d'influenza e dovere di

    dibattito. Rivista di Diritto Processuale, Anno LX, N2, aprile-

    giugno, 2005, passim).

    Assim, a prova deve ser, atualmente, concebida em

    sua funo persuasiva, de permitir, atravs do debate, a

    argumentao em torno dos elementos probatrios trazidos

    aos autos, e o incentivo a um debate franco para a formao

    do convencimento dos sujeitos do processo. O que importa

    para o juzo a denominada verdade suficiente constante

    dos autos; na esteira da velha parmia quod non est in actis,

    non est in mundo. Resgata-se a importncia que sempre

  • Ao Penal 470 Plenrio

    18

    tiveram, no contexto das provas produzidas, os indcios, que

    podem, sim, pela argumentao das partes e do juzo em

    torno das circunstncias fticas comprovadas, apontarem

    para uma concluso segura e correta.

    Essa funo persuasiva da prova a que mais bem se

    coaduna com o sistema do livre convencimento motivado ou

    da persuaso racional, previsto no art. 155 do CPP e no art.

    93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia

    livremente os elementos probatrios colhidos na instruo,

    mas tem a obrigao de fundamentar sua deciso,

    indicando expressamente suas razes de decidir.

    Alis, o Cdigo de Processo Penal prev

    expressamente a prova indiciria, assim a definindo no art.

    239: Considera-se indcio a circunstncia conhecida e provada,

    que, tendo relao com o fato, autorize, por induo, concluir-se a

    existncia de outra ou outras circunstncias.

    Sobre esse elemento de convico, Giovanni Leone

    nos brinda com magistral explicao:

    Presuno a induo da existncia de um

    fato desconhecido pela existncia de um

  • Ao Penal 470 Plenrio

    19

    fato conhecido, supondo-se que deva ser

    verdadeiro para o caso concreto aquilo que

    ordinariamente si ser para a maior parte

    dos casos nos quais aquele fato acontece.

    (...)

    A presuno legal (praesumptio iuris seu

    legis) se a ilao do conhecido ao

    desconhecido feita pela lei; por outro

    lado, a presuno do homem (praesumptio

    facti, seu hominis, seu iudicis) se a ilao

    feita pelo juiz, constituindo, portanto, uma

    operao mental do juiz.

    ()

    No Direito Processual Penal no existem,

    de regra, fices e presunes legais ().

    Existe, ao contrrio, a possibilidade de

    incluso, no processo penal, como em

    qualquer outro processo, das presunes

    hominis.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    20

    A expresso mxima da

    presuno hominis dada pela prova

    indiciria.

    (Traduo livre do texto: Presunzione

    "l'induzione della esistenza di un fatto ignoto

    da quella di un fatto noto, sul presupposto che

    debba essere vero pel caso concreto ci che

    ordinariamente suole essere vero per la maggior

    parte dei casi in cui quello rientra".(...)La

    presunzione legale (praesumptio iuris seu

    legis) se la illazione dal noto all'ignoto fatta

    dalla legge; ovvero dell'uomo (praesumptio facti,

    seu hominis, seu iudicis) se la illazione fatta

    dal giudice, costituendo pertanto una operazione

    mentale del giudice.(...)Nel diritto processuale

    penale nonesistono, di regola, finzioni e

    presunzioni legali (...). Trovano invece

    possibilit di inserimento nel processo penale,

    come in ogni altro processo, le presunzioni

    hominis.L'espressione massima della

  • Ao Penal 470 Plenrio

    21

    presunzione hominis data dalle prove

    indiziarie. )

    (LEONE, Giovanni. Trattato di Diritto

    Processuale Penale. v. II. Napoli: Casa

    Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1961. p. 161-

    162).

    No mesmo sentido, Nicola Malatesta, para quem,

    pela prova indiciria, alcana-se determinada concluso

    sobre um episdio atravs de um processo lgico-

    construtivo; mais precisamente: o indcio aquele argumento

    probatrio indireto que deduz o desconhecido do conhecido por

    meio da relao de causalidade (MALATESTA, Nicola

    Framarino dei. A lgica das provas em matria criminal. Trad.

    J. Alves de S. Campinas: Servanda Editora, 2009, p. 236).

    Assim que, atravs de um fato devidamente

    provado que no constitui elemento do tipo penal, o

    julgador pode, mediante raciocnio engendrado com

    supedneo nas suas experincias empricas, concluir pela

    ocorrncia de circunstncia relevante para a qualificao

    penal da conduta.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    22

    Alis, a fora instrutria dos indcios bastante para a

    elucidao de fatos, podendo, inclusive, por si prprios, o

    que no apenas o caso dos autos, conduzir prolao de

    decreto de ndole condenatria. (cf. PEDROSO, Fernando

    de Almeida. Prova penal: doutrina e jurisprudncia. So Paulo:

    Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 90-91).

    Neste sentido, este Egrgio Plenrio, em poca

    recente, decidiu que indcios e presunes, analisados luz do

    princpio do livre convencimento, quando fortes, seguros,

    indutivos e no contrariados por contraindcios ou por prova

    direta, podem autorizar o juzo de culpa do agente (AP 481,

    Relator: Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em

    08/09/2011). Idntica a orientao da Primeira Turma do

    Supremo Tribunal Federal, cabendo a referncia aos

    seguintes julgado:

    O princpio processual penal do favor rei

    no ilide a possibilidade de utilizao de

    presunes hominis ou facti, pelo juiz, para

    decidir sobre a procedncia do ius puniendi,

    mxime porque o Cdigo de Processo Penal

    prev expressamente a prova indiciria,

  • Ao Penal 470 Plenrio

    23

    definindo-a no art. 239 como a

    circunstncia conhecida e provada, que, tendo

    relao com o fato, autorize, por induo,

    concluir-se a existncia de outra ou outras

    circunstncias. Doutrina (LEONE,

    Giovanni. Trattato di Diritto Processuale

    Penale. v. II. Napoli: Casa Editrice Dott.

    Eugenio Jovene, 1961. p. 161-162).

    (HC n 111.666, Relator: Min. Luiz Fux,

    Primeira Turma, julgado em 08/05/2012)

    CONDENAO - BASE. Constando do

    decreto condenatrio dados relativos a

    participao em prtica criminosa, descabe

    pretender fulmin-lo, a partir de alegao

    do envolvimento, na espcie, de simples

    indcios.

    (HC 96062, Relator: Min. Marco Aurlio,

    Primeira Turma, julgado em 06/10/2009)

    Em idntico sentido: HC n 83.542, Relator: Min.

    Seplveda Pertence, Primeira Turma, julgado em

  • Ao Penal 470 Plenrio

    24

    09/03/2004; HC n 83.348, Relator: Min. Joaquim Barbosa,

    Primeira Turma, julgado em 21/10/2003.

    As digresses ora engendradas se justificam porque,

    nesses delitos econmicos e sofisticados, unem-se as foras

    das provas diretas e dos indcios.

    No Direito Comparado, no qual se abeberam nossos

    juristas, tambm se perfilha entendimento semelhante.

    Assim que a utilizao da prova indiciria para embasar a

    sentena penal condenatria admitida, v. g., em Portugal,

    cujo Supremo Tribunal de Justia j decidiu:

    IV - A prova nem sempre directa, de

    percepo imediata, muitas vezes baseada em

    indcios.

    V - Indcios so as circunstncias conhecidas e

    provadas a partir das quais, mediante um

    raciocnio lgico, pelo mtodo indutivo, se obtm

    a concluso, firme, segura e slida de outro

    facto; a induo parte do particular para o geral

    e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma

    fora que a testemunhal, a documental ou outra.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    25

    VI - A prova indiciria suficiente para

    determinar a participao no facto punvel se da

    sentena constarem os factos-base (requisito de

    ordem formal) e se os indcios estiverem

    completamente demonstrados por prova directa

    (requisito de ordem material), os quais devem

    ser de natureza inequivocamente acusatria,

    plurais, contemporneos do facto a provar e,

    sendo vrios, estar interrelacionados de modo a

    que reforcem o juzo de inferncia.

    VII - O juzo de inferncia deve ser razovel,

    no arbitrrio, absurdo ou infundado, e respeitar

    a lgica da experincia e da vida; dos factos-base

    h-de derivar o elemento que se pretende provar,

    existindo entre ambos um nexo preciso, directo,

    segundo as regras da experincia.

    (Portugal, Supremo Tribunal de Justia,

    Processo n 07P1416, n convencional

    JST000, n do documento

    SJ200707110014163, relator Armindo

    Monteiro, data do acrdo 11/07/2007)

  • Ao Penal 470 Plenrio

    26

    Consectariamente, o quadro probatrio dos autos,

    composto das provas orais, documentais e periciais so

    suficientes para lastrear uma deciso justa e atenta s

    garantias penais e processuais.

    Advirta-se que a presuno de no culpabilidade

    somente atua como um peso em favor do acusado no

    momento da prolao da sentena de mrito. dizer: se,

    para a sentena absolutria, existe um relaxamento na

    formao da convico e na fundamentao do juiz, na

    sentena condenatria, deve o magistrado romper esta fora

    ou peso estabelecido pelo ordenamento em sentido

    contrrio. Em suma: a presuno de no culpabilidade pode

    ser ilidida at mesmo por indcios que apontem a real

    probabilidade da configurao da conduta criminosa. A

    condenao, na esteira do quanto j exposto, no necessita

    basear-se em verdades absolutas, por isso que os indcios

    podem ter, no conjunto probatrio, robustez suficiente

    para que se pronuncie um juzo condenatrio.

    O critrio de que a condenao tenha que provir de

    uma convico formada para alm da dvida razovel

    no impe que qualquer mnima ou remota possibilidade

  • Ao Penal 470 Plenrio

    27

    aventada pelo acusado j impea que se chegue a um

    juzo condenatrio. Toda vez que as dvidas que surjam

    das alegaes de defesa e das provas favorveis verso

    dos acusados no forem razoveis, no forem crveis diante

    das demais provas, pode haver condenao. Lembremos

    que a presuno de no culpabilidade no transforma o

    critrio da dvida razovel em certeza absoluta.

    Nesse cenrio, caber ao magistrado criminal

    confrontar as verses de acusao e defesa com o contexto

    probatrio, verificando se so verossmeis as alegaes de

    parte a parte diante do cotejo com a prova colhida. Ao

    Ministrio Pblico caber avanar nas provas ao ponto

    timo em que o conjunto probatrio seja suficiente para

    levar a Corte a uma concluso intensa o bastante para que

    no haja dvida, ou que esta seja reduzida a um patamar

    baixo no qual a verso defensiva seja irrazovel,

    inacreditvel ou inverossmil.

    Nesse contexto, a defesa deve trazer argumentos

    devidamente provados que infirmem as ilaes articuladas

    pela acusao. A simples negativa genrica incapaz de

    desconstruir o itinerrio lgico que leva prima facie

  • Ao Penal 470 Plenrio

    28

    condenao. Como de sabena geral, a prova do libi

    incumbe ao ru, nos termos do que dispe o art. 156 do

    Cdigo de Processo Penal (A prova da alegao incumbir a

    quem a fizer [...]). Assim tambm a remansosa

    jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, sendo de

    rigor consignar os seguintes arestos:

    EMENTA: - PENAL. PROCESSUAL

    PENAL. HABEAS CORPUS. JRI:

    SOBERANIA. CF, ART. 5, XXXVIII. CPP,

    ART. 593, III, d. LIBI: NUS DA PROVA.

    CPP, ART. 156. I. - A soberania dos

    veredictos do Tribunal do Jri no exclui a

    recorribilidade de suas decises, quando

    manifestamente contrrias prova dos

    autos (CPP, art. 593, III, d). Provido o

    recurso, o ru ser submetido a novo

    julgamento pelo Jri. II. - Cabe defesa a

    produo de prova da ocorrncia de libi

    que aproveite ao ru (CPP, art. 156). III. -

    HC indeferido.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    29

    (HC 70742, Relator Min. Carlos Velloso,

    Segunda Turma, julgado em 16/08/1994, DJ

    30-06-2000)

    EMENTA: HABEAS CORPUS - ALIBI -

    CIRCUNSTANCIA INVOCADA APS A

    CONDENAO - CONTRADIO COM

    OS DEMAIS ELEMENTOS DE PROVA -

    IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DESSA

    MATRIA EM SEDE DE HABEAS

    CORPUS - ALEGAO DE

    CERCEAMENTO DE DEFESA -

    INOCORRENCIA - ORDEM DENEGADA.

    - O libi, enquanto elemento de defesa,

    deve ser comprovado, no processo penal

    condenatrio, pelo ru a quem seu

    reconhecimento aproveita. - O habeas

    corpus no constitui sede processualmente

    adequada ao reconhecimento do libi se

    este se revela incompatvel com a prova

    produzida, sob o crivo do contraditrio, no

    procedimento penal. - licita a audincia

  • Ao Penal 470 Plenrio

    30

    de instruo quando, ausente o Advogado

    constitudo, que fora regularmente

    intimado de sua realizao, vem o ru a ser

    assistido por defensor dativo designado

    pelo Juiz processante.

    (HC 68964, Relator Min. Celso de Mello,

    Primeira Turma, julgado em 17/12/1991, DJ

    22-04-1994)

    A lio idntica em sede doutrinria. Tratando do

    libi, preleciona Damsio de Jesus que [q]uem alega deve

    prov-lo, sob pena de confisso (Cdigo de Processo Penal

    anotado. 24 ed. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 187).

    Ora, se a prova deve ser compreendida em sua

    funo persuasiva, na argumentao do processo que se

    deve buscar o convencimento necessrio aos magistrados

    para o teste probatrio s alegaes das partes. E um

    conjunto probatrio seguro, cuja elaborao, decorrente do

    debate processual, seja apta a reconstruir os fatos da vida e

    apontar para a ocorrncia dos fatos alegados pelo

    Ministrio Pblico, o suficiente para extirpar qualquer

  • Ao Penal 470 Plenrio

    31

    dvida razovel que as alegaes de defesa tentavam

    impingir na convico do julgador.

    Isso especialmente importante em contextos

    associativos, no qual os crimes ou infraes administrativas

    so praticados por muitos indivduos consorciados, nos

    quais incomum que se assinem documentos que

    contenham os propsitos da associao, e nem sempre se

    logra filmar ou gravar os acusados no ato de cometimento

    do crime. Fato notrio, e notoria non egent probatione, todo

    contexto de associao pressupe ajustes e acordos que so

    realizados a portas fechadas.

    Neste sentido, por exemplo, a doutrina norte-

    americana estabeleceu a tese do paralelismo consciente

    para a prtica de cartel. Isso porque normalmente no se

    assina um contrato de cartel, basta que se provem

    circunstncias indicirias, como a presena simultnea dos

    acusados em um local e a subida simultnea de preos, v. g.,

    para que se chegue concluso de que a conduta era ilcita,

    at porque, num ambiente econmico hgido, a subida de

    preos, do ponto de vista de apenas um agente econmico,

    seria uma conduta irracional economicamente. Portanto, a

  • Ao Penal 470 Plenrio

    32

    concluso pela ilicitude e pela condenao decorre de um

    conjunto de indcios que apontem que a subida de preos

    foi fruto de uma conduta concertada.

    No mesmo diapaso a prova dos crimes e infraes

    no mercado de capitais. So as circunstncias concretas,

    mesmo indicirias, que permitiro a concluso pela

    condenao. Na investigao de insider trading (uso de

    informao privilegiada e secreta antes da divulgao ao

    mercado de fato relevante): a baixa liquidez das aes; a

    frequncia com que so negociadas; ser o acusado um

    nefito em operaes de bolsa; as ligaes de parentesco e

    amizade existentes entre os acusados e aqueles que tinham

    contato com a informao privilegiada; todas estas e outras

    so indcios que, em conjunto, permitem concluso segura a

    respeito da ilicitude da operao.

    AS PROVAS COLHIDAS EM INVESTIGAES

    PRELIMINARES E O CONTRADITRIO

    O contraditrio e a prova representam binmio

    inseparvel, o que foi objeto de todas as sustentaes. Nesse

    contexto, h que se enfrentar o tema da eficcia das provas

  • Ao Penal 470 Plenrio

    33

    colhidas em procedimentos preliminares de investigao,

    como Comisses Parlamentares de Inqurito e inquritos

    policiais.

    As CPIs so comisses temporrias do Legislativo

    nacional, destinadas apurao de dados relativos a fatos

    determinados e relevantes, com o fito de posterior

    promoo da responsabilidade cvel, criminal e poltica de

    eventuais envolvidos. De acordo com a doutrina do insigne

    jurista Lus Roberto Barroso, a frmula poderes de

    investigao prprios das autoridades judiciais, constante

    do art. 58, 3, da Constituio, atribui s comisses

    parlamentares de inqurito competncias instrutrias amplas, que

    incluem a possibilidade de (i) determinar diligncias, (ii) convocar

    testemunhas (que tm o dever de dizer a verdade, sob pena de

    crime de falso testemunho), (iii) ouvir indiciados (quando estes

    no optem pelo silncio), (iv) requisitar documentos pblicos, (v)

    determinar a exibio de documentos privados, (vi) convocar

    ministros de Estado e outras autoridades pblicas, (vii) realizar

    inspees pessoais, transportando-se aos locais necessrios

    (Temas de Direito Constitucional. V. I. So Paulo: Renovar,

    2001. p. 138).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    34

    O inqurito policial um procedimento

    administrativo pr-processual que tem por objetivo colher

    elementos aptos formao da opinio delicti do rgo

    acusador sobre a autoria e a materialidade do crime, seja

    pela sua configurao, seja pela sua no ocorrncia.

    Precisamente em razo desse vis unilateral, como

    preleciona Bruno Bodart, a participao do investigado no

    procedimento pr-processual no se fundamenta no princpio do

    contraditrio (BODART, Bruno Vincius Da Rs. Inqurito

    policial, democracia e Constituio modificando

    paradigmas. In: Revista Eletrnica de Direito Processual,

    vol. III, ano 2, jan.-jul. 2009, Rio de Janeiro. p. 133).

    Os elementos amealhados no curso desses

    procedimentos preliminares, todavia, no ficam

    permanentemente alijados da apreciao judicial em futuro

    processo.

    A uma, porque estes elementos podem ser

    confirmados, sob o crivo do contraditrio, no curso do

    processo penal, adquirindo, desse modo, a eficcia

    necessria para embasar um decreto condenatrio. o caso,

    deveras comum, da testemunha que ratifica em juzo todas

  • Ao Penal 470 Plenrio

    35

    as declaraes prestadas em sede preliminar, oportunidade

    na qual o ru exerce em plenitude o seu direito de defesa. A

    prova, para todos os efeitos, passa a ser processual, na

    esteira da jurisprudncia deste Supremo Tribunal Federal

    (v. HC n 83.348, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Primeira

    Turma, julgado em 21/10/2003).

    A duas, em razo da expressa exceo contida na

    parte final do art. 155 do Cdigo de Processo Penal, que

    autoriza que o magistrado fundamente a sua deciso nos

    elementos informativos colhidos na investigao quando

    cuidar-se de provas cautelares, no repetveis e antecipadas.

    Por fim, h que se ter em mente que o mesmo art. 155

    do CPP apenas probe que o juiz fundamente sua deciso

    exclusivamente nos elementos informativos colhidos na

    investigao, no impedindo a utilizao de elementos pr-

    processuais quando acompanhados e corroborados por

    provas produzidas em juzo. Esta tambm a pacfica

    jurisprudncia deste Pretrio Excelso, como se nota a partir

    dos seguintes julgados:

  • Ao Penal 470 Plenrio

    36

    Os elementos colhidos no inqurito policial

    podem influir na formao do livre

    convencimento do juiz para a deciso da

    causa quando complementados por outros

    indcios e provas obtidos na instruo

    judicial. Precedentes.

    (HC 104669, Relator: Min. Ricardo

    Lewandowski, Primeira Turma, julgado em

    26/10/2010)

    Os elementos do inqurito podem influir na

    formao do livre convencimento do juiz

    para a deciso da causa quando

    complementam outros indcios e provas que

    passam pelo crivo do contraditrio em

    juzo.

    (HC 102473, Relator: Min. Ellen Gracie,

    Segunda Turma, julgado em 12/04/2011

    assim tb. RE 425734 AgR, Relator: Min. Ellen

    Gracie, Segunda Turma, julgado em

    04/10/2005)

  • Ao Penal 470 Plenrio

    37

    Superadas as questes prejudiciais probatrias, passo

    s premissas tericas referentes aos delitos em espcie.

    LAVAGEM DE DINHEIRO

    Incluindo as condutas narradas em seu item III, a

    exordial acusatria imputa, no total, a prtica de crimes de

    lavagem de dinheiro a 36 (trinta e seis) dos 40 (quarenta)

    denunciados. As acusaes envolvem a interpretao e

    aplicao dos incisos V, VI e VII do art. 1 da n 9.613/98.

    De promio, alerto que a recente alterao da Lei n

    9.613/98, operada pela Lei n 12.683/2012, em vigor desde o

    dia 10 de julho de 2012, no tem o condo de afetar este

    julgamento. que se trata de legislao destinada a alargar

    o tipo penal da lavagem de dinheiro para abranger a

    ocultao ou dissimulao da natureza, origem, localizao,

    disposio, movimentao ou propriedade de bens, direitos

    ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de

    qualquer tipo de infrao penal. No houve alterao das

    penas cabveis, de modo que as imputaes lanadas na

    exordial acusatria devem continuar sendo regidas pela

    redao pretrita.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    38

    A lavagem de dinheiro, entendida como a prtica de

    converso dos proveitos do delito em bens que no

    podem ser rastreados pela sua origem criminosa, prtica

    combatida no mundo todo. No se deve perder de vista que

    a atividade de lavagem de recursos criminosos o grande

    pulmo das mais variadas mazelas sociais, desde o trfico

    de drogas, passando pelo terrorismo, at a corrupo que

    desfalca o Errio e deixa rfos um sem-nmero de

    cidados que necessitam dos servios pblicos (v. SATOW,

    Joe Tadashi Montenegro. Segurana Pblica. Nria Fabris,

    2011). Saber de onde vem o dinheiro , muitas vezes, o

    nico diagnstico para identificar a prtica de um crime e

    o seu autor.

    Alm disso, conforme descreve Oliveira Ascenso, a

    respeito do Direito Portugus, o branqueamento de capitais

    (como denominada a lavagem de dinheiro naquele pas)

    um mal por si, pois o seu combate previne o

    envenenamento de todo o sistema econmico-financeiro

    (ASCENSO, J. Oliveira. Represso da lavagem do

    dinheiro em Portugal. In: Revista da EMERJ, v. 6, n. 22,

    2003. p. 37). Estima-se que a lavagem de dinheiro envolva,

  • Ao Penal 470 Plenrio

    39

    hoje, at 5% do PIB mundial, ou seja, at dois trilhes de

    dlares alguns dados chegam ao absurdo montante de

    10% do PIB global (NAM, Moiss. Ilcito: o ataque da

    pirataria, da lavagem de dinheiro e do trfico economia

    global. Trad. Srgio Lopes. Jorge Zahar Editor Ltda, 2006. p.

    130). A represso lavagem de dinheiro visa a prevenir a

    contaminao da economia por recursos ilcitos, a

    concorrncia desleal, o zelo pela credibilidade e pela

    confiana nas instituies.

    Sendo assim, a dissimulao ou ocultao da

    natureza, origem, localizao, disposio, movimentao ou

    propriedade dos proveitos criminosos desafia censura

    penal autnoma, para alm daquela incidente sobre o

    delito antecedente, tal como ocorre com a ocultao do

    cadver (art. 211 do Cdigo Penal) subsequente a um

    homicdio no se opera a consuno de um crime pelo

    outro.

    Em sede doutrinria, o entendimento idntico:

    Com relao ao concurso de crimes, o

    entendimento de que h concurso

  • Ao Penal 470 Plenrio

    40

    material com o crime antecedente. Ento, o

    agente que pratica o crime de lavagem de

    dinheiro oriundo de atividade criminosa,

    responde em concurso material pelo crime

    de lavagem e pelo crime antecedente que

    deu origem criminosa aos bens, valores ou

    direitos. Essa no seria uma hiptese de

    progresso criminosa, porque a autonomia

    dos crimes est expressa na prpria lei.

    (BALTAZAR JUNIOR, Jos Paulo. Crimes

    Federais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do

    Advogado, 2010. p. 594)

    No Direito norte-americano, a doutrina costuma

    distinguir trs fases da lavagem de dinheiro (money

    laundering). A primeira fase a da colocao (placement)

    dos recursos derivados de uma atividade ilegal em um

    mecanismo de dissimulao da sua origem, que pode ser

    realizado por instituies financeiras, casas de cmbio,

    leiles de obras de arte, dentre outros negcios

    aparentemente lcitos. Aps, inicia-se a segunda fase, de

    encobrimento, circulao ou transformao

  • Ao Penal 470 Plenrio

    41

    (layering), cujo objetivo tornar mais difcil a deteco da

    manobra dissimuladora e o descobrimento da lavagem. Por

    fim, d-se a integrao (integration) dos recursos a uma

    economia onde paream legtimos (REUTER, Peter;

    TRUMAN, Edwin M. Chasing Dirty Money: The Fight

    Against Money Laundering. Washington: Peterson

    Institute, 2004).

    Uma vez que qualquer dessas fases tenha sido levada

    a efeito, resta consumado o crime do art. 1 da n 9.613/98,

    no havendo que se cogitar da completude do ciclo para o

    aperfeioamento do delito. Suficiente, portanto, para fins

    de condenao, a prova da autoria e materialidade de uma

    das etapas da lavagem de dinheiro.

    Bem por isso, ao contrrio do que sustentaram as

    defesas dos rus, no se pode exigir da acusao a

    demonstrao de que os recursos retirados de um

    mecanismo de lavagem de dinheiro equivalem, com exata

    perfeio, aos bens de origem criminosa injetados na

    economia regular. que o dinheiro lcito e o ilcito no

    reagem como gua e leo. Bens fungveis que so, uma

    vez reunidos em uma mesma economia, fica impossvel

  • Ao Penal 470 Plenrio

    42

    dissociar qual a parte advinda da atividade delituosa.

    Afinal, exatamente nesta tarefa de gerar a

    impossibilidade de distino que reside a atividade de

    lavagem.

    O elemento intencional necessrio para a tipificao

    do delito em comento o dolo genrico, isto , a vontade

    consciente e dirigida realizao de uma ou algumas das

    fases da lavagem de dinheiro. Rodolfo Tigre Maia, tecendo

    consideraes sobre o art. 1 da n 9.613/98, lembra que

    [a]os moldes da lei portuguesa que inspirou o dispositivo, no se

    exige qualquer outro elemento subjetivo (dolo especfico da

    doutrina tradicional) ou especial fim de agir, como requer, por

    exemplo, o tipo de branqueamento da legislao francesa (...) e,

    no Direito brasileiro, na receptao ou no favorecimento (MAIA,

    Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (Lavagem de ativos

    provenientes de crime) Anotaes s disposies

    criminais da Lei n. 9.613/98. 2 ed. So Paulo: Malheiros,

    2007. p. 89).

    No se reclama que o rgo acusador comprove o

    elemento anmico, sob pena de se lhe incumbir de um

    mister impossvel, verdadeira prova diablica.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    43

    Exatamente no intuito de evitar a impunidade, a segunda

    das quarenta recomendaes do Grupo de Ao

    Financeira sobre a Lavagem de Dinheiro (GAFI),

    organismo internacional que estabelece padres e

    desenvolve e promove polticas de combate a essa espcie

    de criminalidade, indica: Os pases deveriam assegurar que:

    a) A inteno e o conhecimento requeridos para provar o crime de

    branqueamento de capitais esto em conformidade com as normas

    estabelecidas nas Convenes de Viena e de Palermo, incluindo a

    possibilidade de o elemento intencional ser deduzido a

    partir de circunstncias factuais objectivas (grifo nosso).

    Deveras, basta, para o reconhecimento do dolo,

    ainda que na sua modalidade eventual, que se comprove

    que, pelas condies materiais em que praticado o delito,

    h motivos suficientes para se inferir que o agente

    desejava ocultar ou dissimular a natureza, origem,

    localizao, disposio, movimentao ou propriedade do

    numerrio, em relao ao qual, tambm pelas

    circunstncias objetivas dos fatos provados, conclua, o

    magistrado, que o ru sabia ou devia saber ser

    proveniente, direta ou indiretamente, de crime. Conforme

  • Ao Penal 470 Plenrio

    44

    j decidiu esta Corte: O dolo eventual compreende a hiptese

    em que o sujeito no quer diretamente a realizao do tipo penal,

    mas a aceita como possvel ou provvel (assume o risco da

    produo do resultado, na redao do art. 18, I, in fine, do CP).

    (...) Faz-se imprescindvel que o dolo eventual se extraia das

    circunstncias do evento, e no da mente do autor, eis que

    no se exige uma declarao expressa do agente (HC

    97252, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma,

    julgado em 23/06/2009).

    Outra no a lio de Klaus Tiedemann, que

    transcrevemos na ntegra:

    Na linha dos mais recentes acordos

    internacionais, que devem ter uma especial

    importncia para o mundo anglo-

    americano, h que se esclarecer, todavia,

    que sim admissvel deduzir dolo a partir

    das circunstncias do fato. No que com

    isso se retome a teoria do dolus ex re, mas

    sim que isso se deriva da admissibilidade

    processual da prova indiciria.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    45

    (Traduo livre do trecho: en la lnea de los

    ms recientes acuerdos internacionales, que han

    de tener una especial importancia para el mundo

    anglo-americano, hay que aclarar todava que s

    es admisible deducir dolo (etc) a partir de las

    circunstancias del hecho. No es que con ello se

    retome la teora del dolus ex re, sino que esto se

    deriva de la admisibilidad procesal de la prueba

    indiciaria. TIEDEMANN, Klaus.

    Eurodelitos: El derecho penal econmico en

    la Unin Europea. Cuenca: Ediciones de la

    Universidad de Castilla-La Mancha, 2004.

    p. 15)

    Outra objeo reiteradamente veiculada nas razes

    de defesa dos acusados diz respeito eficcia do inciso VII

    do art. 1 da Lei n 9.613/98. Alegam os rus, em suma, que

    a inexistncia de um crime intitulado organizao

    criminosa no ordenamento ptrio impediria a

    aplicabilidade desta hiptese de lavagem de dinheiro.

    O argumento, contudo, no resiste a uma anlise mais

    atenta, pois fundado em premissas equivocadas. Ao

  • Ao Penal 470 Plenrio

    46

    contrrio do que sustentam os defensores, a Lei n 9.613/98

    em momento algum prev, como delito antecedente

    lavagem de dinheiro, um crime de organizao

    criminosa. Nem parece razovel acreditar que tenha sido a

    inteno do legislador fazer referncia a um crime que ele

    mesmo no criou.

    Em verdade, pune-se, por meio do inciso VII da

    referida Lei, a lavagem de dinheiro que tenha como

    antecedente o crime praticado por organizao criminosa,

    algo absolutamente distinto da figura delitiva suscitada

    pela defesa. Por exemplo, sabe-se que o crime de roubo (art.

    157 do CP) no era contemplado no rol de crimes

    antecedentes da Lei n 9.613/98, antes da sua recente

    alterao pela Lei n 12.683/2012. Entretanto, a ocultao ou

    dissimulao da origem, natureza, localizao, disposio

    ou propriedade de ativos provenientes de crimes de roubo

    praticados por uma organizao criminosa configura,

    indubitavelmente, o delito de lavagem de dinheiro.

    Por essa razo, perfeitamente possvel considerar

    como antecedente da lavagem o crime, seja qual for a sua

    natureza, praticado por uma organizao criminosa. A

  • Ao Penal 470 Plenrio

    47

    expresso organizao criminosa prevista no como

    objeto, ou seja, como o crime antecedente em si, tratando-

    se, isso sim, do sujeito ativo responsvel pela consecuo

    do delito antecedente.

    O art. 1, VII, da Lei n 9.613/98, no que concerne

    concepo do termo organizao criminosa,

    complementado por duas normas, uma de maior

    abrangncia e outra de espectro mais restrito. So elas o

    artigo 2 da Conveno das Naes Unidas contra o Crime

    Organizado Transnacional e o art. 288 do Cdigo Penal.

    Assim, conforme j reconhecido por este Pretrio

    Excelso, o conceito de organizao criminosa, para fins de

    complementao do tipo previsto na Lei de Lavagem de

    Dinheiro, pode ser extrado da Conveno das Naes

    Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,

    cognominada Conveno de Palermo, promulgada pelo

    Decreto n 5.015 de 12 de maro de 2004 (Inq n 2786,

    Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno,

    julgado em 17/02/2011). Eis o que dispe o seu artigo 2:

    Artigo 2

  • Ao Penal 470 Plenrio

    48

    Terminologia

    Para efeitos da presente Conveno,

    entende-se por:

    a) "Grupo criminoso organizado" - grupo

    estruturado de trs ou mais pessoas,

    existente h algum tempo e atuando

    concertadamente com o propsito de

    cometer uma ou mais infraes graves ou

    enunciadas na presente Conveno, com a

    inteno de obter, direta ou indiretamente,

    um benefcio econmico ou outro benefcio

    material;

    b) "Infrao grave" - ato que constitua

    infrao punvel com uma pena de privao

    de liberdade, cujo mximo no seja inferior

    a quatro anos ou com pena superior;

    c) "Grupo estruturado" - grupo formado de

    maneira no fortuita para a prtica

    imediata de uma infrao, ainda que os

    seus membros no tenham funes

  • Ao Penal 470 Plenrio

    49

    formalmente definidas, que no haja

    continuidade na sua composio e que no

    disponha de uma estrutura elaborada;

    Frise-se que este Supremo Tribunal Federal tem

    longeva jurisprudncia no sentido de reconhecer aos

    tratados e convenes internacionais devidamente

    internalizados ao ordenamento brasileiro o mesmo status

    conferido s leis ordinrias (RE n 80.004, Relator: Min.

    Xavier de Albuquerque, Tribunal Pleno, julgado em

    01/06/1977; ADI n 1.480 MC, Relator: Min. Celso de Mello,

    Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997).

    A integrao da norma penal em branco, no caso,

    feita por diploma que tambm tem carter legal, no

    havendo que se cogitar de qualquer afronta ao princpio da

    legalidade. Klaus Tiedemann assevera que as normas

    penais em branco (Blankettstrafgesetze) so o meio tpico e

    mais importante disposio da tcnica legislativa no

    Direito Penal econmico (TIEDEMANN, Klaus Tecnica

    legislativa nel Diritto Penale Economico. Trad. Claudia

    Kaufmann. In: Rivista Trimestrale di Diritto Penale

    Delleconomia, ano XIX, n. 1-2, jan.-jun. 2006, CEDAM. p.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    50

    2). Abanto Vsquez alerta que essa tcnica da norma penal

    em branco e, portanto, lex dixit quam voluit, a adequada

    para conseguir o objetivo final: a proteo suficiente dos

    bens jurdicos que o legislador considere importantes

    (ABANTO VSQUEZ, Manuel A. Derecho Penal

    Econmico consideraciones jurdicas y econmicas. Lima:

    IDEMSA, 1997. p. 24).

    Alm do conceito previsto na Conveno de Palermo,

    o art. 1, VII, da Lei de Lavagem de Dinheiro tambm

    complementado pelo art. 288 do Cdigo Penal, que prev a

    quadrilha ou bando, modalidade de organizao criminosa

    h muito conhecida no Direito Penal brasileiro, nos

    seguintes termos: Associarem-se mais de trs pessoas, em

    quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. Sobre o

    tema, afirma Rodolfo Tigre Maia, fazendo meno ao

    idntico posicionamento de Mirabete, que, para

    determinar-se a presena de uma organizao criminosa,

    bastar to somente a presena dos requisitos

    tradicionalmente exigveis para o crime descrito no art. 288 do

    Cdigo Penal, desde que associados efetiva prtica de pelo menos

  • Ao Penal 470 Plenrio

    51

    um crime (MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro. 2

    ed. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 78).

    Portanto, no procede a alegao de que o inciso VII

    do art. 1 da Lei n 9.613/98 era desprovido de eficcia antes

    da internalizao da Conveno de Palermo no

    ordenamento ptrio a complementao da norma j era

    realizada, embora com espectro mais restrito, pelo art. 288

    do Cdigo Penal.

    Ao acolher, no rol de delitos originrios da lavagem

    de dinheiro, clusula abrangente de todos os delitos

    perpetrados por organizaes criminosas, posicionou-se a

    lei brasileira na vanguarda da represso mundial a esta

    sorte de ilcitos. Como sabido, as legislaes de combate

    lavagem de dinheiro podem ser classificadas

    historicamente em trs geraes. A primeira diz respeito s

    leis que previam somente o trfico de drogas como delito

    antecedente do branqueamento de capitais. A gerao

    subsequente composta pelos diplomas que listam

    diversos crimes que podem figurar como antecedentes da

    lavagem. Por fim, na terceira gerao de leis, qualquer

  • Ao Penal 470 Plenrio

    52

    delito apto a constituir antecedente da prtica da lavagem

    de dinheiro.

    Oliveira Ascenso, a respeito da evoluo legislativa,

    ressalta manifestar-se orientao internacional no sentido de

    estender a incriminao ao branqueamento de capitais com origem

    noutras actividades criminosas (ASCENSO, J. Oliveira.

    Represso da lavagem do dinheiro em Portugal. In: Revista

    da EMERJ, v. 6, n. 22, 2003. p. 42).

    A prpria Conveno de Palermo exige de todos os

    Estados-Partes, no seu art. 6, n. 2, a, a extenso do crime

    de lavagem de dinheiro ao maior nmero possvel de

    infraes subjacentes. Na Sua, onde recentemente foi

    aprovado um novo Cdigo Penal, so antecedentes da

    lavagem de dinheiro as infraes punidas com pena

    privativa de liberdade superior a trs anos (BERNASCONI,

    Paolo. La criminalit economica nel nuovo codice penale

    svizzero. In: Rivista Trimestrale di Diritto Penale

    Delleconomia, ano XX, n. 1-2, jan.-jun. 2007, CEDAM. p.

    10).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    53

    Ressalte-se, ainda, que a Lei n 9.613/98, conforme j

    indicado, foi recentemente alterada pela Lei n 12.683/2012

    para alinhar-se s legislaes de terceira gerao, em um

    claro sinal de que a lavagem de dinheiro, seja qual for a

    origem dos ativos, prtica reprovvel e no tolerada pela

    ordem jurdica brasileira.

    Desta feita, proclamar a no incidncia do inciso VII

    do art. 1 da Lei n 9.613/98 caminhar na contramo da

    histria, restringindo indevidamente a imputao do crime

    de lavagem de dinheiro, quando, na realidade, a norma

    penal existente, devidamente complementada pela

    Conveno de Palermo e pelo art. 288 do Cdigo Penal,

    permite a identificao de todos os elementos da sua

    fattispecie.

    CORRUPO PASSIVA, ATO DE OFCIO E CAIXA

    DOIS

    Ao tipificar a corrupo, em suas modalidades passiva

    (art. 317, CP) e ativa (art. 333, CP), a legislao

    infraconstitucional visa a combater condutas de inegvel

    ultraje moralidade e probidade administrativas, valores

  • Ao Penal 470 Plenrio

    54

    encartados na Lei Magna como pedras de toque do regime

    republicano brasileiro (art. 37, caput e 4, CRFB). A

    censura criminal da corrupo manifestao eloquente da

    intolerncia nutrida pelo ordenamento ptrio para com

    comportamentos subversivos da res publica nacional. Tal

    repdio tamanho que justifica a mobilizao do arsenal

    sancionatrio do direito penal, reconhecidamente encarado

    como ultima ratio, para a represso dos ilcitos praticados

    contra a Administrao Pblica e os interesses gerais que

    ela representa.

    Consoante a legislao criminal brasileira (CP, art.

    317), configuram corrupo passiva as condutas de

    solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou

    indiretamente, ainda que fora da funo ou antes de assumi-la,

    mas em razo dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal

    vantagem. Por seu turno, tem-se corrupo ativa no ato de

    oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionrio pblico,

    para determin-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofcio

    (CP, art. 333). Destaque-se o teor dos dispositivos:

    Corrupo passiva

  • Ao Penal 470 Plenrio

    55

    Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou

    para outrem, direta ou indiretamente, ainda

    que fora da funo ou antes de assumi-la,

    mas em razo dela, vantagem indevida, ou

    aceitar promessa de tal vantagem:

    Pena - recluso, de 2 (dois) a 12 (doze) anos,

    e multa.

    1 - A pena aumentada de um tero, se,

    em conseqncia da vantagem ou

    promessa, o funcionrio retarda ou deixa

    de praticar qualquer ato de ofcio ou o

    pratica infringindo dever funcional.

    2 - Se o funcionrio pratica, deixa de

    praticar ou retarda ato de ofcio, com

    infrao de dever funcional, cedendo a

    pedido ou influncia de outrem:

    Pena - deteno, de trs meses a um ano, ou

    multa.

    Corrupo ativa

  • Ao Penal 470 Plenrio

    56

    Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem

    indevida a funcionrio pblico, para

    determin-lo a praticar, omitir ou retardar

    ato de ofcio:

    Pena - recluso, de 2 (dois) a 12 (doze) anos,

    e multa.

    Pargrafo nico - A pena aumentada de

    um tero, se, em razo da vantagem ou

    promessa, o funcionrio retarda ou omite

    ato de ofcio, ou o pratica infringindo dever

    funcional.

    Sobressai das citadas normas incriminadoras o ntido

    propsito de o legislador punir o trfico da funo pblica,

    desestimulando o exerccio abusivo dos poderes e

    prerrogativas estatais. Como evidente, o escopo das normas

    penalizar tanto o corrupto (agente pblico), como o

    corruptor (terceiro). Da falar-se em crime de corrupo

    passiva para a primeira hiptese, e crime de corrupo

    ativa para a segunda.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    57

    Ainda que muitas vezes caminhem lado a lado, como

    aspectos simtricos de um mesmo fenmeno, os tipos

    penais de corrupo ativa e passiva so intrinsecamente

    distintos e estruturalmente independentes, de sorte que a

    presena de um no implica, desde logo, a caracterizao de

    outro. Isso fica evidente pelos prprios verbos que integram

    o ncleo de cada uma das condutas tpicas. De um lado, a

    corrupo passiva pode configurar-se por qualquer das trs

    aes do agente pblico: (i) a solicitao de vantagem

    indevida (solicitar), (ii) o efetivo recebimento de

    vantagem indevida (receber) ou (iii) a aceitao de

    promessa de vantagem indevida (aceitar promessa). De

    outro lado, a corrupo ativa decorre de uma dentre as

    seguintes condutas descritas no tipo de injusto: (i) o

    oferecimento de vantagem indevida a funcionrio pblico

    (oferecer) ou (ii) a promessa de vantagem indevida a

    funcionrio pblico (prometer).

    Assim que, se o agente pblico solicita vantagem

    indevida em razo da funo que exerce, j se configura

    crime de corrupo passiva, a despeito da eventual resposta

    que vier a ser dada pelo destinatrio da solicitao. Pode

  • Ao Penal 470 Plenrio

    58

    haver ou no anuncia do terceiro. Qualquer que seja o

    desfecho, o ilcito de corrupo passiva j se consumou

    com a mera solicitao de vantagem. De igual modo, se o

    agente pblico recebe oferta de vantagem indevida

    vinculada aos seus misteres funcionais, tem-se

    caracterizado de imediato o crime de corrupo ativa por

    parte do ofertante. O agente pblico no precisa aceitar a

    proposta para que o crime se concretize. Trata-se, portanto,

    de ilcitos penais independentes e autnomos.

    Essa constatao implica, ainda, outra.

    Note-se que em ambos os casos mencionados no

    existe, para alm da solicitao ou oferta de vantagem

    indevida, nenhum ato especfico e ulterior por qualquer

    dos sujeitos envolvidos. A ordem jurdica considera

    bastantes em si, para fins de censura criminal, tanto a

    simples solicitao de vantagem indevida quanto o seu

    mero oferecimento a agente pblico. que tais

    comportamentos j revelam, per se, o ntido propsito de

    traficar a coisa pblica, cujo desvalor intrnseco, justificando

    a apenao do seu responsvel.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    59

    Um exemplo prosaico auxilia a compreenso do tema.

    Um policial que, para deixar de multar um motorista

    infrator da legislao de trnsito, solicita-lhe dinheiro,

    incorre, de plano, no crime de corrupo passiva. O agente

    pblico sequer necessita deixar de aplicar a sano

    administrativa para que o crime de corrupo se consume.

    Basta que solicite vantagem em razo da funo que exerce.

    De igual sorte, se o motorista infrator quem toma a

    iniciativa e oferece dinheiro ao policial, aquele comete

    crime de corrupo ativa. O agente pblico no precisa

    aceitar a vantagem e deixar de aplicar a multa para, s

    aps, o crime de corrupo ativa se configurar. Ele se

    materializa desde o momento em que houve a oferta de

    vantagem indevida para determin-lo a praticar, omitir ou

    retardar ato de ofcio.

    Isso serve para demonstrar que o crime de corrupo

    (passiva ou ativa) independe da efetiva prtica de ato de ofcio.

    A lei penal brasileira, tal como literalmente articulada, no

    exige tal elemento para fins de caracterizao da corrupo.

    Em verdade, a efetiva prtica de ato de ofcio configura

    circunstncia acidental na materializao do referido ilcito,

  • Ao Penal 470 Plenrio

    60

    podendo at mesmo contribuir para sua apurao, mas

    irrelevante para sua configurao.

    Um exame cuidadoso da legislao criminal brasileira

    revela que o ato de ofcio representa, no tipo penal da

    corrupo, apenas o mvel daquele que oferece a peita, a

    finalidade que o anima. Em outros termos, a prtica possvel

    e eventual de ato de ofcio que explica a solicitao de

    vantagem indevida (por parte do agente estatal) ou o seu

    oferecimento (por parte de terceiro).

    E mais: no necessrio que o ato de ofcio pretendido

    seja, desde logo, certo, preciso e determinado. O

    comportamento reprimido pela norma penal a pretenso

    de influncia indevida no exerccio das funes pblicas,

    traduzida no direcionamento do seu desempenho,

    comprometendo a iseno e imparcialidade que devem

    presidir o regime republicano.

    No por outro motivo a legislao, ao construir

    linguisticamente os aludidos tipos de injusto, valeu-se da

    expresso em razo dela, no art. 317 do Cdigo Penal, e

    da preposio para no art. 330 do Cdigo Penal. Trata-se

  • Ao Penal 470 Plenrio

    61

    de construes lingusticas com campo semntico bem

    delimitado, ligado s noes de explicao, causa ou

    finalidade, de modo a revelar que o ato de ofcio, enquanto

    manifestao de potestade estatal, existe na corrupo em

    estado potencial, i.e., como razo bastante para justificar a

    vantagem indevida, mas sendo dispensvel para a

    consumao do crime.

    Voltando ao exemplo j mencionado, pode-se dizer

    que a titularidade de funo pblica pelo policial que

    explica a solicitao abusiva por ele realizada ao motorista

    infrator. No fosse o seu poder de aplicar multa (ato de

    ofcio), dificilmente sua solicitao seria recebida com

    alguma seriedade pelo destinatrio. Da mesma forma, a

    simples possibilidade de deixar de sofrer a multa (ato de

    ofcio) que explica por que o motorista infrator se dirigiu ao

    policial e no a qualquer outro sujeito. Em ambos os casos,

    o ato de ofcio funciona como elemento atrativo ou

    justificador da vantagem indevida, mas jamais pressuposto

    para a configurao da conduta tpica de corrupo.

    No se pode perder de mira que a corrupo passiva

    modalidade de crime formal, assim compreendidos

  • Ao Penal 470 Plenrio

    62

    aqueles delitos que prescindem de resultado naturalstico

    para sua consumao, ainda que possam, eventualmente,

    provocar modificao no mundo exterior, como mero

    exaurimento da conduta criminosa. O ato de ofcio, no

    crime de corrupo passiva, mero exaurimento do ilcito,

    cuja materializao exsurge perfeita e acaba com a simples

    conduta descrita no tipo de injusto.

    Em sntese: o crime de corrupo passiva configura-se

    com a simples solicitao ou o mero recebimento de

    vantagem indevida (ou de sua promessa), por agente

    pblico, em razo das suas funes, ou seja, pela simples

    possibilidade de que o recebimento da propina venha a

    influir na prtica de ato de ofcio. J o crime de corrupo

    ativa caracteriza-se com o simples oferecimento de

    vantagem indevida (ou de sua promessa) a agente pblico

    com o intuito de que este pratique, omita ou retarde ato de

    ofcio que deva realizar. Em nenhum caso a materializao

    do ato de ofcio integra a estrutura do tipo de injusto.

    Antes que se passe anlise das particularidades do

    caso sub examine, mister enfrentar uma construo muitas

    vezes brandida da tribuna que, no fosse analisada com

  • Ao Penal 470 Plenrio

    63

    cautela, poderia confundir o cidado e embaraar a correta

    compreenso do ordenamento jurdico brasileiro. Trata-se

    do argumento improcedente, j adianto de que, fosse o

    ato de ofcio dispensvel no crime de corrupo passiva, os

    Ministros do Supremo Tribunal Federal seriam todos

    criminosos por receberem com alguma frequncia livros e

    peridicos de editoras e autores do meio jurdico. Noutras

    palavras, a configurao do crime de corrupo passiva, tal

    como articulado por alguns advogados, dependeria da

    demonstrao da ocorrncia de um certo e determinado ato

    de ofcio pelo titular do munus pblico.

    A estrutura do raciocnio tpica dos argumentos ad

    absurdum, amplamente conhecidos e estudados pela lgica

    formal. Assume-se como verdadeira determinada premissa

    e dela se extraem consequncias absurdas ou ridculas, o

    que sugere que a premissa inicial deva estar equivocada.

    Ocorre que, in casu, a reductio ad absurdum no tem o

    condo de infirmar a concluso quanto desnecessidade de

    efetiva prtica de ato de ofcio para configurao do crime

    de corrupo passiva.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    64

    Com efeito, a dispensa da efetiva prtica de ato de

    ofcio no significa que este seja irrelevante para a

    configurao do crime de corrupo passiva. Consoante

    consignado linhas atrs, o ato de ofcio representa, no tipo

    penal da corrupo, o mvel do criminoso, a finalidade que o

    anima. Da que, em verdade, o ato de ofcio no precisa se

    concretizar na realidade sensorial para que o crime de

    corrupo ocorra. necessrio, porm, que exista em

    potncia, como futuro resultado prtico pretendido, em

    comum, pelos sujeitos envolvidos (corruptor e corrupto). O

    corruptor deseja influenciar, em seu prprio favor ou em

    benefcio de outrem. O corrupto vende o ato em resposta

    vantagem indevidamente recebida. Se o ato de ofcio

    vendido foi praticado pouco importa. O crime de

    corrupo consuma-se com o mero trfico da coisa pblica.

    Nesse cenrio, indispensvel, para caracterizar a

    corrupo passiva, que o agente pblico, ao receber a

    vantagem indevida, saiba para que ele est recebendo (para

    praticar certo e especfico ato de ofcio). Os Ministros desta

    Casa recebem livros que nunca solicitaram e de que muitas

    vezes nunca ouviram falar. Do recebimento do livro no se

  • Ao Penal 470 Plenrio

    65

    pode esperar que haja qualquer comportamento ou

    favorecimento. Pelo contrrio, possvel que o livro seja

    utilizado justamente em sentido contrrio quele

    pretendido, como forma de rebater as ideias nele lanadas,

    apontando divergncia de entendimentos.

    Da o engano da tese suscitada pela defesa. Os

    Ministros do Supremo Tribunal Federal no cometem

    qualquer crime simplesmente porque no mercanciam sua

    funo pblica em troca de livros e peridicos jurdicos. De

    fato, tais bens no tem o condo de influenciar o exerccio

    da prestao jurisdicional em qualquer sentido. Em outras

    palavras, falta, na comparao esdrxula sugerida da

    tribuna, um ajuste mnimo de vontade entre o agente

    pblico e a editora/autor do livro no sentido de influenciar,

    de alguma maneira, o exerccio da funo pblica.

    Ressalte-se, ademais, que totalmente despropositada

    a comparao entre vultosos valores em pecnia e alguns

    poucos exemplares de livros. Se os rus da presente ao

    penal tivessem recebido livros e peridicos jurdicos talvez

    no estivessem figurando no polo passivo deste feito. A

    prxis demonstra que o dinheiro e no os livros que

  • Ao Penal 470 Plenrio

    66

    so usados para comprar agentes pblicos, subvertendo

    os valores republicanos da nao brasileira.

    Por fim, no se pode deixar de conceder que, embora

    contra-intuitivo, o crime de corrupo passiva pode, sim, se

    configurar a partir da entrega de livros ao agente pblico,

    desde que demonstrado, por indcios robustos, que a

    concesso do material foi motivada pela obteno de algum

    favorecimento no exerccio da funo pblica.

    PECULATO

    A tutela jurdica da moralidade e da probidade

    administrativas tambm se reflete na legislao

    infraconstitucional pela tipificao do peculato como ilcito

    criminal. Consoante o magistrio de Damsio de Jesus, a

    aludida figura tpica consubstancia modalidade especial de

    apropriao indbita cometida por funcionrio pblico ratione

    officii. o delito do sujeito que arbitrariamente faz sua ou desvia,

    em proveito prprio ou de terceiro, a coisa mvel que possui

    em razo do cargo, seja ela pertencente ao Estado ou a particular,

    ou esteja sob sua guarda ou vigilncia. (JESUS, Damsio E.

    de., Direito Penal, v.4. Parte especial: Dos crimes contra a

  • Ao Penal 470 Plenrio

    67

    administrao pblica, 9. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 119-

    122).

    O bem jurdico protegido pela norma incriminadora

    a confiana pblica no escorreito e impessoal desempenho

    das funes estatais, justificando a apenao daqueles que,

    subvertendo essas finalidades, desviem ou apropriem-se de

    dinheiro, valor ou qualquer bem cuja posse lhes tenha sido

    atribuda em razo do exerccio de munus pblico. Nesse

    sentido, sendo o crime de peculato um crime contra a

    Administrao Pblica e no contra o patrimnio, o dano

    necessrio e suficiente para a sua consumao o inerente

    violao do dever de fidelidade para a mesma administrao,

    associado ou no ao patrimonial (MIRABETE, Jlio Fabbrini,

    Cdigo penal interpretado, 6. ed. - So Paulo: Atlas, 2007, p.

    2372).

    O caput do artigo 312 do Cdigo Penal brasileiro

    criminaliza a conduta caracterizadora do peculato prprio,

    que pode assumir duas distintas modalidades, quais sejam,

    peculato-apropriao (1 parte do dispositivo) e o peculato-

    desvio (2 parte do dispositivo).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    68

    O peculato-apropriao configura-se quando o

    funcionrio pblico apropria-se de dinheiro, valor ou

    qualquer outro bem mvel, pblico ou particular, de que

    tem a posse em razo do cargo. O ncleo da conduta tpica

    a apropriao indevida do bem possudo ratione officii.

    Apropriao, por seu turno, significa assenhoramento, de

    sorte que o agente pblico age como se o bem fosse seu,

    retendo-o, consumindo-o ou dele dispondo.

    O peculato-desvio, por seu turno, caracteriza-se

    quando o agente estatal imprime coisa destinao

    diversa da exigida ou esperada, em proveito prprio ou

    de outrem. O proveito a que se refere a lei tanto pode ser

    material como moral, auferindo o agente qualquer

    vantagem ainda que no de natureza econmica. Note-se

    que, nesta hiptese, o ncleo da conduta tpica o desvio

    de finalidade no emprego da coisa, cuja destinao in

    concreto passa a diferir daquela para a qual foi confiada, em

    proveito do prprio agente do Estado ou de terceiro.

    Em ambas as hipteses, relevante destacar que o

    dinheiro, a coisa ou o bem apropriado ou desviado no

    precisa ser pblico para que o crime de peculato se

  • Ao Penal 470 Plenrio

    69

    configure. Em verdade, o relato normativo de clareza

    meridiana ao reportar-se a dinheiro, valor ou qualquer outro

    bem mvel, pblico ou particular (sem grifos no original). O

    que figura indispensvel que o objeto tenha sido confiado

    ao agente pblico em razo da sua qualidade. Da por que a

    caracterizao do delito independe da natureza do bem, se

    pblica ou privada, bastando que se comprove que o agente

    o possua em razo das suas funes.

    nesse exato sentido a remansosa jurisprudncia

    desta Corte, cujos acrdos, h pelo menos trs dcadas, j

    registram a desnecessidade da natureza pblica do bem

    para a configurao do crime de peculato:

    EMENTA. Penal. Peculato. Dinheiro

    apreendido e, em seguida, apropriado por

    agentes policiais, no exerccio da funo.

    Delito configurado, j que, para a

    realizao do tipo do art. 312, caput, basta a

    posse da coisa em razo do cargo, ainda que

    a sua propriedade seja de particular. (HC n

    56.430-SP, rel. Min. Dcio Miranda, Segunda

  • Ao Penal 470 Plenrio

    70

    Turma, DJ de 07.11.1978, p. 8824 sem grifos

    no original).

    EMENTA. Peculato. Configurao.

    Irrelevncia de serem particulares os bens

    apropriados ou desviados, desnecessidade

    de previa prestao de contas. Habeas

    corpus denegado. (HC n 56.998, rel. Min.

    Xavier de Albuquerque, Primeira Turma, DJ

    de 08.06.1979, p. 115 sem grifos no

    original).

    As palavras pedaggicas do i. Min. Xavier de

    Albuquerque merecem transcrio, in verbis:

    No peculato, a leso patrimonial se

    configura ainda quando a coisa apropriada,

    ou desviada, pertena ao patrimnio

    particular, como na hiptese destes autos.

    o que diz o art. 312 caput quando se refere a

    valor ou qualquer outro bem mvel, pblico

    ou particular ... (Grifamos). O que importa

    que a apropriao ou o desvio tenha por

  • Ao Penal 470 Plenrio

    71

    objeto bens possudos em razo do cargo.

    E, no caso, isso igualmente se deu.

    Outra concluso relevante para a presente causa a

    de que o crime de peculato se configura ainda que o

    desvio de finalidade ocorra de forma escamoteada ou

    disfarada. o que se d quando o agente pblico emprega

    dinheiro, bens ou valores sob sua posse com a justificativa

    formal de satisfazer necessidade de interesse pblico, sendo

    que, sob o ngulo material, acabam por satisfazer interesse

    particular, prprio ou de terceiro.

    Comprovado o desvio em proveito prprio,

    configurado estar o crime de peculato. Da se concluir que

    a forma pode, em um primeiro momento, camuflar a

    realidade, mascarando o desvio da finalidade subjacente

    ao emprego de dinheiro, bens ou valores cuja posse tenha

    sido confiada a agentes estatais.

    Alis, uma anlise mais detida da legislao penal

    brasileira revela que dificilmente o peculato-desvio

    caracteriza-se de plano, pelo emprego direto e imediato de

    recursos sob custdia estatal em proveito particular,

  • Ao Penal 470 Plenrio

    72

    prprio ou de terceiros. Caso isso ocorra, configura-se o

    peculato-apropriao.

    Em verdade, no peculato-desvio comumente nota-se

    uma aparncia de regularidade, traduzida na pretensa

    realizao do interesse pblico, seguida da sua efetiva e

    concreta subverso, representada pelo desvio em proveito

    particular, prprio ou de terceiro. Mister, portanto,

    aprofundar a anlise e perquirir sobre a real e efetiva

    utilidade proporcionada pelos recursos utilizados pelo

    funcionrio pblico. S aps que se pode afirmar a

    configurao ou no do crime de peculato, a entendido na

    sua modalidade desvio.

    Estabelecidas essas premissas tericas, procedo

    anlise das imputaes feitas aos agentes.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    73

    DAS IMPUTAES

    III.1 CMARA DOS DEPUTADOS

    JOO PAULO CUNHA (15 DENUNCIADO)

    Da imputao de corrupo passiva (art. 317 c/c art. 327,

    2, CP)

    O acervo probatrio afiana a tese ministerial, no

    sentido de que o 15 denunciado (Joo Paulo Cunha),

    exercendo o cargo de Presidente da Cmara dos Deputados,

    recebeu vantagem indevida na data de 4 de setembro de

    2003, qual seja, o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais),

    como peita para beneficiar a empresa SMP&B Comunicao

    em licitao pblica (concorrncia n 11/03 da Cmara dos

    Deputados, contrato n 2003/204.0).

    O recebimento da quantia, por intermdio de sua

    esposa, foi confessado pelo prprio acusado, em seu

    interrogatrio (fls. 14.335).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    74

    Em oportunidades anteriores, o 15 denunciado (Joo

    Paulo Cunha) havia negado o recebimento de qualquer

    quantia, alegando que sua esposa comparecera ao Banco

    Rural para tratar de pendncias referentes a cobrana de

    empresa de televiso por assinatura (informaes prestadas

    ao Conselho de tica, fls. 10.697 do volume n 50).

    Entretanto, aps a busca e apreenso de documentos que

    evidenciaram o recebimento de R$ 50.000,00 (cinquenta mil

    reais) pela Sra. Mrcia Regina Milansio Cunha, passou o

    15 denunciado (Joo Paulo Cunha) a sustentar que a verba

    sacada fora enviada pelo 3 denunciado, com vistas ao

    custeio de despesas da campanha da agremiao poltica a

    que pertence prefeitura de Osasco/SP. A divergncia entre

    as verses milita em favor da verso acusatria,

    corroborada pelos demais elementos dos autos.

    A fls. 325 do Apenso 07 consta o recibo assinado por

    Mrcia Regina Milansio Cunha, referente ao saque de

    cheque da empresa SMP&B.

    A relao existente entre os rus envolvidos no

    episdio foi explicitada pelo Ministro Relator e pelas provas

    produzidas.

  • Ao Penal 470 Plenrio

    75

    A testemunha Virglio Guimares confirmou, a fls.

    20.085 e segs., as suas declaraes de fls. 8.588 e segs.,

    oportunidade em que relatou ter apresentado o 5

    denunciado (Marcos Valrio) ao 15 denunciado (Joo Paulo

    Cunha), bem como que o 5 denunciado (Marcos Valrio)

    participou, em 2002, da programao visual da propaganda

    da campanha do 15 denunciado (Joo Paulo Cunha)

    Presidncia da Cmara dos Deputados. O 15 denunciado

    (Joo Paulo Cunha), no seu interrogatrio de fls. 15.435,

    noticiou a realizao de reunio em hotel de So Paulo, na

    qual estiveram presentes, alm dele prprio, o 5

    denunciado (Marcos Valrio), o 4 denunciado (Silvio

    Pereira) e o Sr. Lus Costa Pinto. Disse tambm que, j como

    Presidente da Cmara dos Deputados, participou de vrias

    reunies com o 5 denunciado (Marcos Valrio).

    A especial intimidade verificada entre o 5

    denunciado (Marcos Valrio) e o 15 denunciado (Joo

    Paulo Cunha) resultou notria do episdio em que o

    primeiro presenteou o segundo com uma caneta mont blanc,

    bem como da oportunidade em que custeou uma viagem de

    sua secretria ao Rio de Janeiro, incluindo passagens areas

  • Ao Penal 470 Plenrio

    76

    e hospedagem. Os fatos foram confirmados pelo 5

    denunciado (Marcos Valrio), em seu interrogatrio de fls.

    16.363, pela secretria do 15 denunciado (Joo Paulo

    Cunha) (fls. 6.009/6.010) e pelo prprio 15 denunciado

    (Joo Paulo Cunha) no interrogatrio de fls. 14.337.

    A conexo entre o recebimento da vantagem indevida

    e a interferncia na funo pblica exercida pelo 15

    denunciado (Joo Paulo Cunha) exsurge evidente.

    Em primeiro lugar, constata-se que o montante foi

    recebido ilicitamente na data de 4 de setembro de 2003,

    enquanto que o edital da aludida concorrncia foi

    publicado 12 (doze) dias depois, data peculiarmente

    prxima. Alm disso, no dia 3 de setembro de 2003, vspera

    do recebimento dos valores, houve uma reunio entre o 15

    denunciado (Joo Paulo Cunha) e o 5 denunciado (Marcos

    Valrio) na residncia oficial da Cmara dos Deputados,

    conforme assumido pelo prprio 15 denunciado (Joo

    Paulo Cunha), em seu interrogatrio de fls. 15.432. No

    fosse o bastante, conforme argutamente apontado pelo

    Ministro Relator, na data de 12 de setembro de 2003, trs

    dias antes da assinatura do Edital de Concorrncia n

  • Ao Penal 470 Plenrio

    77

    11/2003, a empresa Graffiti, do grupo econmico do 5

    denunciado (Marcos Valrio), do 6 denunciado (Ramon

    Hollerbach) e do 7 denunciado (Cristiano Paz), obteve um

    emprstimo de R$ 9.975.400,00 (nove milhes, novecentos e

    setenta e cinco mil e quatrocentos reais), posteriormente

    repassado agremiao partidria a que pertence o 15

    denunciado (Joo Paulo Cunha), em uma sucesso de

    acontecimentos, minudentemente explicitados pelo Relator,

    que no se pode atribuir ao mero acaso.

    Documentos comprovaram, tambm, uma reunio

    entre o 15 denunciado (Joo Paulo Cunha), o 5

    denunciado (Marcos Valrio) e o 7 denunciado (Cristiano

    Paz), na data de 16 de julho de 2003 (fls. 1.074). Essa reunio

    precedeu em apenas alguns dias o ato da Presidncia da

    Cmara dos Deputados, assinado pelo 15 denunciado (Joo

    Paulo Cunha) em 08 de agosto do mesmo ano, que deu

    incio ao procedimento licitatrio.

    O 15 denunciado (Joo Paulo Cunha) confirmou em

    seu interrogatrio (fls. 14.334) que, como Presidente da

    Cmara dos Deputados, assinou o ato de nomeao da

    Comisso Especial de licitao, responsvel pela

  • Ao Penal 470 Plenrio

    78

    contratao da SMP&B Comunicao. Desse modo, resta

    afastado o argumento da defesa, no sentido de que o

    acusado no teria poderes para interferir no certame

    licitatrio.

    Cumpre referir que o 6 denunciado (Ramon

    Hollerbach) foi apresentado, na antessala do Gabinete do

    15 denunciado (Joo Paulo Cunha), ao Diretor da

    Secretaria de Comunicao da Cmara dos Deputados, Sr.

    Mrcio Marques de Arajo, aproximadamente em abril de

    2003, de acordo com as declaraes deste ltimo (fls.

    40.810). Mrcio Marques de Arajo foi nomeado para o

    cargo em fevereiro de 2003, justamente pelo 15 denunciado

    (Joo Paulo Cunha), e posteriormente integrou a comisso

    responsvel pelo contrato administrativo ora questionado.

    Outro dado que descredita as alegaes defensivas

    reside na circunstncia de que a empresa SMP&B j havia

    participado de licitao anterior para contratao com a

    Cmara dos Deputados, oportunidade em que obteve

    apenas o ltimo lugar, tendo sido desclassificada por no

    alcanar a nota mnima na avaliao tcnica (fls. 568 e segs.

    do volume n 3 do apenso n 84).

  • Ao Penal 470 Plenrio

    79

    Conclui-se, assim, que o 15 denunciado (Joo Paulo

    Cunha) recebeu vantagem indevida em razo das funes

    exercidas na Presidncia da Cmara dos Deputados.

    O 15 denunciado (Joo Paulo Cunha) deduziu, em

    sua defesa, que o valor recebido foi destinado ao custeio de

    pesquisas eleitorais em Osasco/SP. A afirmao no infirma

    a configurao do delito. A uma, porque o praeceptum iuris

    do art. 317 do Cdigo Penal contm o elemento subjetivo

    especial do tipo para si ou para outrem, de modo que