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“Elas chegaram para ficar”: mulheres no mercado de trabalho e história de vida RHAENNY MAÍSA FREITAS * Este trabalho faz parte de pesquisa de dissertação de Mestrado referente ao protagonismo feminino na cidade de Nova Porteirinha/MG. A guinada para o estudo ocorreu através da observação da grande participação feminina na política neste município, o que depois nos levou a também perceber que o protagonismo se expande para outros setores da sociedade, o que merece ser estudado e tomado enquanto exemplo quando se trata da igualdade de gêneros. “Elas chegaram para ficar” foi título de excelente matéria produzida por Maria Cristina Bruschini e publicada no Notícias Forenses no ano de 2007. No texto a autora aborda a inserção das mulheres no poder judiciário, após constatar que o seu número se tornou superior ao dos homens nestes espaços. Obviamente não estamos tratando aqui desse mesmo aspecto de ocupação feminina, mas fizemos jus a esta autora ao dizer que “elas chegaram para ficar” significa que, após serem pioneiras na construção da cidade de Nova Porteirinha, confirmaremos agora que esse protagonismo não foi apenas um vulto. Ele continua e se expande para outros ambientes que, em outras localidades, se constituem tipicamente masculinos. Assim como no poder judiciário, evidenciamos que as mulheres adentram o mercado de trabalho em Nova Porteirinha nos proporcionando histórias inspiradoras e exemplares para trazer à tona, mais uma vez, como homens e mulheres podem conviver e participar ativamente nos espaços de poder que existem no seu meio social. História de Vida A cultura está implícita no conceito de ser humano, fator que o diferencia dos outros seres da natureza e que faz com que suas produções estejam intrinsecamente ligadas. Por se tornar peça-chave da expressão da humanidade a cultura pode ser tanto benéfica como agir para o mal, uma contradição que reflete a própria vida do ser humano. Para além do * Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES); Pós-Graduanda em História Social; Bolsista Capes.

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“Elas chegaram para ficar”: mulheres no mercado de trabalho e história de vida

RHAENNY MAÍSA FREITAS*

Este trabalho faz parte de pesquisa de dissertação de Mestrado referente ao

protagonismo feminino na cidade de Nova Porteirinha/MG. A guinada para o estudo ocorreu

através da observação da grande participação feminina na política neste município, o que

depois nos levou a também perceber que o protagonismo se expande para outros setores da

sociedade, o que merece ser estudado e tomado enquanto exemplo quando se trata da

igualdade de gêneros.

“Elas chegaram para ficar” foi título de excelente matéria produzida por Maria

Cristina Bruschini e publicada no Notícias Forenses no ano de 2007. No texto a autora aborda

a inserção das mulheres no poder judiciário, após constatar que o seu número se tornou

superior ao dos homens nestes espaços. Obviamente não estamos tratando aqui desse mesmo

aspecto de ocupação feminina, mas fizemos jus a esta autora ao dizer que “elas chegaram para

ficar” significa que, após serem pioneiras na construção da cidade de Nova Porteirinha,

confirmaremos agora que esse protagonismo não foi apenas um vulto. Ele continua e se

expande para outros ambientes que, em outras localidades, se constituem tipicamente

masculinos.

Assim como no poder judiciário, evidenciamos que as mulheres adentram o

mercado de trabalho em Nova Porteirinha nos proporcionando histórias inspiradoras e

exemplares para trazer à tona, mais uma vez, como homens e mulheres podem conviver e

participar ativamente nos espaços de poder que existem no seu meio social.

História de Vida

A cultura está implícita no conceito de ser humano, fator que o diferencia dos

outros seres da natureza e que faz com que suas produções estejam intrinsecamente ligadas.

Por se tornar peça-chave da expressão da humanidade a cultura pode ser tanto benéfica como

agir para o mal, uma contradição que reflete a própria vida do ser humano. Para além do

* Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES); Pós-Graduanda em História Social; Bolsista Capes.

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mundo material e espiritual, a cultura também se conecta ao processo criador humano,

ganhando um significado maior dentro do mundo em que vivemos. “Em consequência, numa

primeira análise, entendemos por cultura o mundo de vivências e experiências, o processo

criador da história e auto-produtor do ser humano, seu produto essencial e o âmbito natural de

sua vida” (CUNHA; MACHADO, 2003: 66).

Este processo envolvendo a cultura humana nos demonstra o quanto é importante

trazermos os discursos individuais como forma de produzir história e entender processos

coletivos maiores. É o caso deste capítulo, onde procuramos evidenciar a vida destas mulheres

para validar o poder de outras que vieram depois isto porque, até então acreditava-se no

protagonismo feminino dentro de nosso campo de estudo apenas na política, o que agora não

pode mais ser sustentado como teoria, pois percebemos que este poder é anterior ao processo

político.

“O homem, ao criar a história, a cultura e a vida social, por meio do trabalho, cria

seu próprio mundo para habitá-lo e transformá-lo, ao mesmo tempo em que se transforma a si

mesmo” (CUNHA; MACHADO, 2003: 73). Os longos anos de pesquisa com História Oral e

História de Vida permitiram aos autores atentarem para o fato de que é imprescindível

oferecer ao entrevistado um espaço adequado de conversa e condições de rememoração de sua

história de vida para que, ao contar e reviver, ele possa também se reinventar, reconhecer e

reapropriar de sua própria história.

A linguagem também possui papel essencial dentro desta teoria, pois ela é capaz

de reafirmar os homens enquanto seres humanos dotados de raciocínio lógico e também de

emoções que se dissipam na conversa. A mitologia também possibilita analogia com esta

premissa:

Não há, a rigor, na Teogonia uma relação entre linguagem e ser, mas uma

imanência recíproca entre eles. Tal imanência é concebida e experimentada por

Hesíodo como uma força múltipla e divina que ele nomeia com o nome de Musas –

filhas de Zeus com Mnemosine, a deusa Memória. Elas possuem o divino poder de

trazer à experiência o não-presente, coisas passadas e futuras. O Ser se dá,

portanto, na linguagem do discurso das Musas, que é numinosamente força-de-

nomear. Ou seja, neste caso, a linguagem, enfim, o discurso não diz, ele é (CUNHA;

MACHADO, 2003: 74).

Conforme o que nos traz os autores, a conexão entre linguagem e ser está presente

neste ato de trazer à experiência o não-presente, coisas passadas e futuras. Isso faz com que

coisas e acontecimentos da vida humana sejam nomeados e relatos, tornando a linguagem

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dispensada de dizer, simplesmente porque o discurso por si só já existe, ele é inerente à vida

do ser humano.

A gramática também é eficaz para compreendermos o papel da linguagem na vida

do sujeito, pois o verbo enquanto indicativo de ação, quando dito por alguém significa fazer

do dito e dizer do feito. A linguagem tem capacidade criadora, que se presume

consequentemente em criação de cultura e como fator de humanização dos homens. “É por

isso que nas narrativas, que decorrem e que caracterizam os usos da história oral e histórias de

vida, narrador e entrevistador/pesquisador se envolvem em uma prática transformadora e

humanizadora” (CUNHA; MACHADO, 2003: 74).

Muitas pesquisas podem ser divididas entre quantitativas e qualitativas, ou até

mesmo as duas ao mesmo tempo. Podemos observar variados métodos dentro de cada um

desses campos, sendo que a área qualitativa é a que mais interessa para este trabalho.

Optamos por usar o método da História de Vida, levando em consideração a singularidade e

riqueza dos depoimentos obtidos das mulheres eleitas para protagonizar nossa pesquisa,

trazendo uma delas para esse texto. Trata-se, nessa esfera, de ressaltar o diálogo como um

momento único e construtivo passível de construir experiências significativas.

A concretização da História de vida como método de pesquisa, se fortificou a

partir da Escola de Chicago, onde professores e alunos da Universidade de Chicago iniciaram

um movimento de pesquisa voltado para a Sociologia e a Psicologia Social, com o

desenvolvimento de diversos estudos. Mesmo não havendo total consonância, este movimento

foi de fundamental importância para construir diretrizes e preceitos fundamentais para a

sociologia americana (SILVA et al, 2007).

Neste mesmo cenário emerge a teoria do interacionismo simbólico que ressalta a

necessidade da participação do pesquisador nos eventos a serem estudados por ele:

Assim, o acesso aos fenômenos a serem estudados pelo pesquisador só pode se dar

quando ele participa ativamente, como agente, no mundo a ser estudado, pois esses

fenômenos são precisamente as produções sociais significantes construídas pelos

agentes (...) O conhecimento de determinada ação só vai, então, fazer sentido se

entendido dentro de seu contexto, na realidade em que é experimentada (SILVA et

al, 2007: 30).

Neste aspecto, pesquisas desse tipo corroboram com a construção identitária do

indivíduo, além de sua trajetória pessoal que pode contribuir para uma dimensão social maior,

de conhecimento da sociedade em que ele viveu e as características de sua identidade. Contar

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uma história não é apenas trazer um depoimento individual, mas exteriorizar a maneira como

ela foi capaz de moldar os preceitos de uma sociedade determinada. Ou seja: “(...) por meio

da história de vida contada da maneira que é própria do sujeito, tentamos compreender o

universo da qual ele faz parte (SILVA et al, 2007: 31).

O ato de rememorar sua própria história e contá-la, faz com que o indivíduo

ressignifique sua própria vida e o meio social onde vive, possibilitando sua reinvenção. Estes

aspectos proporcionam, para além do alcance dos objetivos de pesquisa, a dimensão ética do

estudo, que seria proporcionar à pessoa contribuinte a oportunidade de experimentar sua

história sob novo ângulo e a partir daí, quem sabe criar novas perspectivas (SILVA et al,

2007).

A história de vida propõe uma escuta comprometida, engajada e participativa. Na

relação de cumplicidade entre pesquisadores e sujeitos pesquisados encontra-se a

possibilidade daquele que narra sua história experimentar uma ressignificação de

seu percurso e dar continuação à construção de um sentido frente à este relato

endereçado (SILVA et al, 2007: 31).

O pensamento dos autores permite asseverar neste momento a importância do

desenvolvimento desta pesquisa, pois sabemos que outros estudos sobre a cidade de Nova

Porteirinha já foram desenvolvidos, mas nenhum que tratasse especificamente da temática das

mulheres e que pudesse ainda ser desenvolvido pelo olhar de alguém que viveu naquele lugar

e conhece de longa data as protagonistas aqui apresentadas.

Portanto, a história de vida se apresenta também como terapêutica, pois o sujeito

tem a chance, não apenas de relembrar, mas reconstruir aquilo que viveu. Não podemos

esquecer ainda da importante tarefa de dar voz àqueles que foram sucumbidos por discursos

dominantes no passado, fato muito presente na história social das mulheres, quando se

preocupa em trazer a tona os silêncios da história.

O vínculo de confiança e amizade estabelecidos entre o pesquisador e os

entrevistados é essencial para assegurar a qualidade da entrevista e as falas que surgirão. É

importante que a pessoa entrevistada sinta por parte do pesquisador respeito e interesse por

seu percurso de vida e os relatos que tem a contar. Não é possível criar um roteiro pré-

estabelecido, mas sim, juntos, construir um processo que terá como resultado o seu caminho e

trajetória refeitos.

Em relação aos procedimentos que devem ser adotados, são os seguintes:

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O método começa a partir do desejo do entrevistado de contar sua vida. Pede-se ao

sujeito que conte sua história, como achar melhor – nos moldes de entrevista não-

estruturada. Este sujeito vai ser escolhido a partir das relações já desenvolvidas

pelo pesquisador no contexto, de acordo com seu desejo de participar. É a partir da

relação que vai sendo estabelecida – o vínculo, a confiança, a construção de

sentidos – que o método se desenvolve. Trata-se da interlocução. A história de vida

não pode ter um sentido, mas sim vários. O relato não corresponde necessariamente

ao real, a vida não é uma história. O que importa é o sentido que o sujeito dá a esse

real, de forma que o momento de análise posterior dê conta do indivíduo como

social (SILVA et al, 2007: 32).

Ao contar sobre sua vida, o indivíduo traz informações que nos permitem conectá-

lo ao coletivo, depreender ainda o contexto por ele vivenciado, seja com experiências,

ideologias, valores. Enfim, é possível saber mais sobre a característica de determinados

momentos, lugares ou pessoas, exteriorizando a história de vida não apenas como meramente

individual ou biográfica, mas como chave para compreender questões de alçadas maiores.

Abordar metodologias pertinentes a qualquer pesquisa que seja, envolve também

trazer à tona quais são os percalços e dificuldades que determinados métodos podem

ocasionar no trajeto de estudo, o que não é diferente com a História de Vida e todos os outros

utilizados até então. Thelma Spindola e Rosângela da Silva Santos (2003) apontam que a

primeira orientação para evitar entraves é a escolha do tema, que deve ser familiar ao

pesquisador, de modo que possa fazê-lo fluir de maneira agradável.

Como sabemos a primeira premissa para trabalhar a História de Vida é

compreender que ela está centrada na narrativa da história de vida da pessoa, não cabendo ao

pesquisador julgar os fatos ou confrontar a veracidade das informações prestadas. Este relato

servirá para compreender processos sociais na qual aquele indivíduo está inserido, tendo,

portanto, maior valor a sua experiência de vida e a maneira como vê os fatos.

Assim, o método de história ou relato de vida tem como consequência tirar o

pesquisador de seu pedestal de ‘dono do saber’ e ouvir o que o sujeito tem a dizer

sobre ele mesmo: o que ele acredita que seja importante sobre sua vida. Por meio

do relato de Histórias de Vida individuais, podemos caracterizar a prática social de

um grupo (SPINDOLA; SANTOS, 2003: 121).

Depreende-se que, mesmo sendo tão singulares, as histórias de vida proporcionam

valiosa reflexão sobre o momento já vivido pelo próprio indivíduo que está relatando sua

vida. Combinada à força motora de revelar características do grupo na qual a pessoa pertence,

o método se revela eficaz na perspectiva da narrativa como forma de construir histórias

(SPINDOLA; SANTOS, 2003).

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Torna-se importante compreender, dentro deste aspecto, como o cotidiano pode

ser entendido e ressignificado através da narrativa da história de vida. O cotidiano pode ser

erroneamente confundido como uma série de ações repetitivas e monótonas e asseveramos

que essa afirmativa acontece porque, na verdade, ele é carregado de férteis microeventos com

muitas significações tanto para os atores sociais que os vivenciam, como para os

pesquisadores que deles tomam conhecimento. “Um estudo do cotidiano dirige o olhar do

pesquisador para uma dimensão, uma família, um grupo social que pode ser identificado pelas

práticas sociais que elabora” (SPINDOLA; SANTOS, 2003: 122).

A história de vida não é capaz de agir isolada sobre os estudos pretendidos, deve-

se estar atento ao fato de que, aplicada a sua devida importância e suas técnicas de

metodológicas, partimos então para a análise do contexto em que se desenvolveu e os

aspectos históricos que a rodeiam, proporcionando a avaliação de seu contexto coletivo e

social (SPINDOLA; SANTOS, 2003).

É considerável notar a relevância do cenário das entrevistas e sua realização

propriamente dita. Quanto ao ambiente, este deve ser agradável para ambas as partes, e que

cause familiaridade principalmente aos entrevistados. A obtenção dos relatos também deve

ser feita de modo que seja estabelecida uma relação de confiança e intimidade entre

entrevistado e pesquisador, com o mínimo de interferências possíveis, fazendo com que a

pessoa conte sua vida da maneira que achar mais conveniente ou à medida que as lembranças

vão surgindo. Caso alguma questão não tenha ficado clara, é permitido intervir com perguntas

que possibilitem esclarecer fatos e não criar expectativa em torno do que não foi dito

(SPINDOLA; SANTOS, 2003).

Para quem trabalha com história oral e conhece o processo de entrevistas semi-

estruturadas, é sabido que os relatos de nossos entrevistados sempre instiga a mais

questionamentos, dúvidas e até mesmo interação em determinados momentos da fala dos

participantes. No caso da história de vida, um dos desafios é se manter em silêncio e deixar

que a pessoa conte sua história sem interrupções. É relevante constatar que não há obrigação

de ficar sempre calado, mas que, naturalmente, essa é uma metodologia onde há menos

intervenções por parte do pesquisador.

No caso das entrevistas realizadas, originalmente elas não foram planejadas como

história de vida. Entretanto, ao analisar melhor o que se conhecia da trajetória delas surgiu

esta possibilidade que se concretizou no momento dos primeiros contatos que antecederam os

relatos. O que percebemos é que elas não fizeram parte de movimentos isolados de

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protagonismo feminino ou participação em eventos importantes para a temática abordada ou

para a história da cidade de Nova Porteirinha, mas sim que suas próprias vidas foram, mesmo

que inconscientemente, um processo de engajamento por espaço na sociedade enquanto

mulheres. Isso nos permite crer que essas histórias de vida abriram caminho para as mulheres

que vieram depois, que se inseriram no mercado de trabalho, nos espaços públicos da cidade e

na política.

“Quem arranjar será feliz!”: história de vida de Inês Mendes de Souza

“Quem arranjar será feliz!” foi a frase saudosamente lembrada por Dona Inês

Mendes de Souza, segundo ela proferida no momento em que terminou de realizar as provas

do concurso público onde concorria os direitos sobre o Cartório de São José do Gorutuba.

Dentre muitos entraves políticos, ela “arranjou”, trabalhou, foi mãe, dona de casa e hoje se

considera batalhadora e possuidora por todo esse tempo da felicidade proferida naquele

momento.

As mulheres sempre fizeram parte do mundo do trabalho, entretanto, por um

longo tempo, suas tarefas laborais se restringiram ao campo doméstico e foram injustamente

desvalorizadas e tidas como obrigação do sexo feminino. Mesmo os trabalhos informais de

subsistência foram desconsiderados da renda familiar e descentralizados da figura da mulher

como provedora do lar, cabendo este papel apenas aos homens. O trabalho doméstico foi

incorporado como categoria na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) apenas

no ano de 1992, entretanto considerando-se apenas o trabalho remunerado, ficando as

atividades domésticas exercidas pelas donas de casa como inválidas dentro da esfera

econômica (GUIRALDELLI, 2007).

Cabe lembrar que a mulher não participa apenas do mercado de trabalho, ou seja,

assumindo funções produtivas, mas também as funções reprodutivas, além do

trabalho doméstico onde se prevalece a responsabilidade feminina, permitindo com

isso transmitir à mulher uma carga tripla de jornada de trabalho, ou seja, o

trabalho extra domicílio, o cuidado com os filhos e as tarefas do lar

(GUIRALDELLI, 2007: 6-7).

Mesmo com todas as transformações ocorridas em relação à presença feminina no

mundo do trabalho produtivo, há percalços e maneiras de pensar que sobrevivem, tais como

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aptidão feminina para determinadas tarefas e outras não, ficando destinadas exclusivamente

aos homens, além da ideia de que o trabalho das mulheres e a renda advinda daí serve como

complemento ao orçamento familiar, mesmo que em muitos casos sejam as principais

geradoras de renda (GUIRALDELLI, 2007).

Na economia agricultora, na manufatureira, no comércio ou nas tecelagens, as

mulheres vieram ao longo do tempo contribuindo substancialmente para o desenvolvimento

da economia de nossa sociedade e na geração de riquezas. Entretanto, devemos ressaltar como

muitas vezes a mão de obra feminina e a infantil foram desumanamente exploradas,

principalmente a partir do advento das fábricas, em decorrência da Revolução Industrial

(GUIRALDELLI, 2007).

No Brasil, foi a partir dos anos 1970 o ápice da inserção das mulheres no mercado

de trabalho, que ocorreu justamente através do trabalho doméstico remunerado. Esse

crescimento é tido como reflexo do aumento das mulheres no mercado de trabalho formal e

que a partir de então precisam de outras mulheres em suas casas executando as tarefas

domésticas e cuidando dos seus filhos (LEONE; TEIXEIRA, 2010).

As mulheres foram capazes de ampliar sua participação na atividade econômica.

Houve crescimento muito forte do emprego feminino no serviço doméstico

remunerado. O emprego doméstico remunerado absorveu algumas mulheres,

possibilitando a liberação de outras para participarem da atividade econômica

(LEONE; TEIXEIRA, 2010: 3).

A independência das mulheres no mercado de trabalho começou a dar sinais a

partir de 1960, fruto dos questionamentos sobre seu espaço na sociedade e a luta pela

igualdade de gênero. Toda essa movimentação permitiu às mulheres maior domínio sobre seu

corpo e, principalmente, sobre suas funções reprodutivas, fator determinante para sua entrada

e permanência no mundo do trabalho formal (LEONE; TEIXEIRA, 2010).

Mesmo com todas as conquistas, algumas questões são passíveis de discussão

quanto aos avanços da presença feminina no desenvolvimento da economia de nosso país.

Uma delas é sobre a predominância do sexo feminino no trabalho doméstico e

consequentemente a divisão sexual de postos de trabalho, o que nos leva a refletir também

sobre as discrepâncias salariais existentes entre homens e mulheres que ocupam o mesmo

cargo e possuem o mesmo nível de escolaridade.

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As mulheres enfrentam no mercado de trabalho barreiras não visíveis, como maior

dificuldade de ascensão a cargos de chefia e as maiores exigências de escolaridade

em ocupações consideradas de maior qualidade mais acessíveis a mulheres. Sem

dúvida nenhuma as mulheres tiveram muitas conquistas, como o acesso ao mercado

de trabalho – ainda que em condições desiguais. Entretanto, essas conquistas

impuseram a dupla jornada de trabalho, a segmentação das mulheres em atividades

ou funções ditas femininas, as disparidades salariais e a ausência de políticas

púbicas como creches, etc (LEONE; TEIXEIRA, 2010: 4).

Essas discussões vão sendo incorporadas nas organizações femininas, nos

sindicatos e no próprio meio acadêmico para que mudanças sejam aplicadas, mesmo que

lentamente. Cabe ressaltar ainda a importância de demonstrar o protagonismo feminino e a

história dessas mulheres que, mesmo sendo exceção, trazem estimadas reflexões sobre o

ambiente em que vivem e os exemplos que podem ser seguidos no que concerne à igualdade

de direitos independente dos sexos.

Nova Porteirinha traz muitas peculiaridades, que talvez não sigam a regra sobre a

incorporação das mulheres no mercado de trabalho. Resguardados alguns empecilhos que

nossas protagonistas enfrentaram, podemos ver notáveis diferenças que permitem asseverar o

município como diferente dos demais. Não se trata de um caso isolado, mas de vários casos

de mulheres que despontaram em funções predominantemente masculinas e obtiveram

sucesso e reconhecimento da maioria da população, convidamos então para conhecer uma das

mulheres que se destacou na entrada ao mercado de trabalho.

Inês Mendes de Souza tem 76 anos é filha de Joaquim Marcelino da Conceição e

Maria Mendes da Silva. Ao todo foram dezesseis filhos, onde seis foram criados no seio da

família, inclusive Dona Inês. É casada com o Sr. Delcídio Antônio de Souza, conhecido na

cidade por todos pelo apelido de Seu Lola, há 58 anos, e tiveram como fruto deste

matrimônio onze filhos, sendo que oito estão vivos. A família se mudou para Nova

Porteirinha há 38 anos atrás, trazendo muitas histórias e lutas de sua matriarca para que visse

garantidos seus direitos básicos enquanto mulher trabalhadora.

A descoberta de Dona Inês como uma das mulheres protagonistas na cidade de

Nova Porteirinha se deu através de uma despretensiosa conversa no meio da rua e que, mais

tarde, originaria a entrevista então produzida para esta pesquisa. No meio da entrevista, ao

pausar para atender o chamado de uma das netas mais novas, surge a história que melhor

ilustra a garra e excepcionalidade de D. Inês: na semana anterior acabara de ir ao Parque de

Diversões com as netas e achou fantástico subir com elas nos brinquedos mais radicais sem

medo algum.

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A garra que Dona Inês demonstra logo no primeiro instante vem de longa

caminhada, quando ainda era muito jovem e morava no Distrito de São José do Gorutuba,

pertencente à Porteirinha. Segundo nossa entrevistada foi naquele lugarejo onde nasceu, se

criou, casou e teve seus filhos, berço também do nascimento de seus pais e avós. A sua

primeira saída de São José do Gorutuba foi para cursar o primário na cidade de Porteirinha,

onde primeiro foi enviada sua irmã Lili e posteriormente ela:

Meu pai colocou Lili minha irmã em Porteirinha em 1953, na casa de um amigo, o

ano todo pra fazer o primário e eu em 1954. E meus parentes ficava só falando com

meu pai: “Mas Joaquim tem coragem viu, pegar essas meninas e deixar na cidade,

onde pode acontecer alguma coisa diferente, Joaquim é muito corajoso”. Mas meu

pai, naquele tempo do carrancismo, meu pai, eu entendo meu pai um homem bem

civilizado, o povo falava e ele não tava nem ai. E com isso nos ajudou muito!

(SOUZA, 2017).

Foi graças ao impulso do pai de fazer as filhas estudarem fora de casa, não por

capricho, mas pelo fato de os recursos estarem realmente na cidade de Porteirinha, que aos 14

anos D. Inês começou no seu primeiro emprego como professora alfabetizadora de adultos.

Conforme ela mesma conta, a sala de aula era iluminada por lamparina de querosene e cheia

de alunos todos mais velhos que ela. Exerceu essa profissão por dez anos e durante seu

percurso começou a trabalhar também na escola estadual do distrito de São José do Gorutuba,

denominada Neco Lopes, onde deu aula por quatro anos.

Com o advento das eleições municipais em 1962, o candidato que sairia vitorioso

na cidade de Porteirinha era Alcides Mendes, adversário político do pai de Dona Inês.

Naquela época eram escassos os concursos públicos e muitos empregos dependiam

exclusivamente de indicações e articulações políticas entre quem estava no poder e seus

correligionários. Com isso Seu Joaquim Marcelino acabou sendo afetado por não ter eleito

seu candidato e diante de tal situação o prefeito eleito Alcides Mendes conseguiu que o Juiz

de Paz lhe tomasse o Cartório de São José do Gorutuba e passasse a outra pessoa, além de ter

feito com que suas filhas, Inês e Lili, fossem demitidas da escola estadual.

Lili tinha oito anos de trabalho, tempo necessário naquela época para que o

funcionário do estado se tornasse efetivo. Tal fator proporcionou sua volta à escola de

maneira definitiva, mas sua irmã Inês lecionava no estado há apenas quatro anos e acabou

ficando desempregada. Pouco tempo depois foi aberto concurso para o Cartório de São José

do Gorutuba, onde as irmãs se inscreveram juntamente com outros dois homens. A inscrição

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de Lili foi indeferida porque os documentos não chegaram a tempo, então os outros três foram

até Porteirinha para realizar a prova:

Na hora que terminou as provas lá em Porteirinha, eu lembro, onde é o

Destacamento Policial, ali era o Fórum né, então veio um Doutor Leontino de

Francisco Sá, promotor de justiça, aplicar as provas pra nós lá. Quando terminou

as provas eu perguntei assim: “Ô Doutor Leontino e o resultado das provas vai sair

quando?” Ele falou assim: “Todos aprovados por unanimidade! Agora vocês vão

brigar com o governo”. Ainda falou assim: “Quem arranjar será feliz!” (SOUZA,

2017).

A partir de então começou a busca entre os correligionários políticos para que

houvesse a sua indicação por parte do Governo Estadual para assumir o cartório, momento em

que teve substancial ajuda de Cícero Dumont e Humberto Souto, respectivamente Deputado

Estadual e Deputado Federal naquela época. O resultado do sucesso de sua empreitada chegou

à Porteirinha em um telegrama que depois seguiu a cavalo para São José do Gorutuba. Nele a

presença de Dona Inês era solicitada no município de Montes Claros para realização dos

exames de aptidão para o exercício do trabalho e depois o retorno à Porteirinha para tomar

posse.

Entretanto, diante da concretização do emprego tão almejado por Dona Inês, havia

um impasse: estava grávida e sabia que estava prestes a dar à luz, mesmo com a ausência de

acompanhamento médico. Ela mesma relata esse fator como um desânimo que a abateu, para

além dos comentários da população daquele distrito, que viam como loucura o fato dela viajar

grávida para assumir o cartório. Este comportamento não se caracteriza como novidade para

aquela época e para a sociedade predominantemente patriarcal na qual estavam inseridos estes

personagens, pois havia ainda a ideia de que as mulheres deveriam priorizar os cuidados com

a família e o lar, em detrimento de suas carreiras e aspirações pessoais.

Ai agora minha mãe falava: “Vai minha filha! Você tá indo é pra onde tem

conforto, talvez seja melhor que ficar aqui”. E eu desanimada, mas animei e fui.

Você sabe de quê que nós fomos pra Montes Claros no dia? Foi eu e meu pai, Lola

não foi não, Lola ficou em São José com os meninos, já tinha um bocado já né. Ai

agora nós fomos no jipinho velho de Almerindo Silva, naquele tempo a estrada era

só barro, só quebra mola, ainda não tinha asfalto, a estrada bem ruim né?! Então

nós fomos lá pra Montes Claros, sei que nós chegamos lá em Montes Claros dia 30,

30 de setembro, não, de Agosto! 31 nós fizemos a consulta tudo, pegou o laudo

médico. Quando foi 31, meia noite, eu entrei no hospital São Vicente de Paula pra

ganhar Gislene. Eu tava mais meu pai na pensão de Dandim, minha cama de um

lado do quarto e meu pai do outro, nós ficamos num quarto só. Falei assim: “Pai,

providencia que eu quero ir pro hospital ganhar neném!” Meia noite eu entrei no

hospital, quando foi primeiro de setembro 11 horas da manhã eu ganhei Gislene

(SOUZA, 2017).

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Seis dias após o nascimento da filha, foi hora de retornar à Porteirinha, de trem,

para tomar posse como Oficial do Cartório de 1º Ofício de São José do Gorutuba. Foi uma

grande correria, como bem disse Dona Inês e, para além de toda essa batalha, ainda teve que

lidar com o preconceito da própria família, em especial uma tia que a acusava de ter saído

“parindo pras estradas” na pressa de assumir o cartório mesmo estando grávida. Familiares de

seu marido também achavam um absurdo ela ter tido coragem de se inscrever no concurso e

fazer a prova no meio de dois homens, talvez com mais estudo e conhecimento que ela. Com

um sorriso no rosto ela agradece a Deus e expressa como foi feliz por não ter desistido de seus

objetivos diante dos empecilhos impostos, recebeu o Cartório com sua filha Gislene nos

braços e continuou sua trajetória que ainda reservava muitas lutas.

O trabalho do cartório era conhecido por Dona Inês por já ter pertencido ao seu

pai e era ela quem fazia tudo sozinha, pois o movimento não era tão grande pelo fato de

abrigar apenas os serviços necessários aos moradores do distrito. Durante a entrevista ela nos

explicou que, atualmente temos o costume de ver os serviços de cartórios desmembrados,

principalmente em cidades maiores, mas no caso do distrito era tudo feito no mesmo

estabelecimento: registro de nascimento, casamento e óbito; escrituras; procurações;

reconhecimento de firmas e os demais serviços que houvesse demanda.

O distrito de São José do Gorutuba está localizado muito próximo do Rio

Gorutuba, de onde seus moradores tiraram sua subsistência durante muito tempo, e onde

também houve desocupação de terras em função da construção da Barragem Bico da Pedra,

processo explorado no capítulo anterior. A desapropriação dos moradores da localidade

também afetou tanto a vida particular de Dona Inês, bem como seu trabalho no Cartório de

Notas.

Quando aconteceu a desapropriação lá na região de São José, foi desapropriado na

região lá e na zona rural tudo, mais de 450 famílias. Inclusive foi desapropriado até

a metade do povoado, a casa do meu vizinho foi desapropriada, a minha já não foi

desapropriada. Ai agora o povo foi saindo todo, era quatro, cinco caminhão de

mudança no dia. Quantas vezes eu chorei lá antes de me mudar, os carros de

mudança passando e os pais de família mandava parar e despedia da gente

chorando minha filha, deixando aquela propriedade com uma indenização irrisória.

Olha que tá com 38 anos isso e não dava pra comprar um lote nas periferias de

Janaúba, não valia nada a indenização não. Então eu chorei muitas vezes antes de

sair de lá (...) O cartório não tinha movimento mais não, o povo da região tinha

saído tudo, 450 família desapropriada, tava fazendo mais nada não, e se aparecesse

um registrozinho pra fazer não tava tendo nem testemunha mais pra assinar, não

aparecia testemunha (SOUZA, 2017).

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Ela lembrou ainda de muitas famílias que tinham a agricultura como forma de

subsistência, sendo necessário ter a terra e a água do rio para sobreviver, de onde foram

tirados com indenizações injustas em virtude de tudo que havia nas terras. Na opinião de

Dona Inês, todas essas pessoas deveriam ter sido os primeiros colonos a serem abrigados no

projeto de irrigação, mas infelizmente muitos ficaram de fora. Como vimos no capítulo

anterior, ela concorda que a vinda da barragem trouxe muito medo e perdas no começo, mas

que hoje ela é a salvação da população de Nova Porteirinha e Janaúba.

Em virtude dos fatos narrados, Dona Inês recorreu aos órgãos competentes em

Belo Horizonte para que pudesse mudar o cartório de São José do Gorutuba para Nova

Porteirinha, que naquela época ainda não era sequer distrito e estava subordinada ao primeiro.

Seu pedido foi acatado até que a sede definitiva fosse decidida em âmbito municipal. A

mudança trouxe boas perspectivas para Dona Inês e sua família, pois o povoado de Nova

Porteirinha estava crescendo com a vinda das famílias desapropriadas e consequentemente o

fluxo de serviços no cartório também aumentava.

Mesmo Nova Porteirinha sendo o povoado de maior movimento e que estava

abrigando grande parte da população de São José do Gorutuba, após quatro anos fixado na

localidade, o cartório foi mudado para o Distrito de Bom Jesus, onde é sua sede até hoje. O

lugar era menor que Nova Porteirinha e possuía na época poucos habitantes, mas, conforme

Dona Inês, a mudança se deu por desavenças políticas. Mais uma vez o prefeito Alcides

Mendes conseguiu fazer com que Dona Inês e sua família fossem prejudicados, mesmo com

os danos ela levou o cartório pra Bom Jesus e a família permaneceu morando em Nova

Porteirinha, fazendo com que ela fosse e voltasse todos os dias para trabalhar. A diferença

entre Bom Jesus e Nova Porteirinha pode ser notada quando é relatado por nossa entrevistada

a queda de 90% nos rendimentos do cartório em decorrência da mudança. Uma experiência de

Dona Inês com seu filho caçula Joaquim, apelidado de Galego, retrata bem essa situação:

Ai agora, mas pra arranjar transferência da sede de Gorutuba pra Bom Jesus,

Alcides conseguiu um documento que deve ter levado pra Corregedoria de Justiça,

que era um povoado de mais de 100 habitantes pra transferir. Quando eu fui lá

tinha era seis casas na vila, a igreja e um grupo escolar só, depois que foi construir

a outra escola (...) Como eu ia falando, então eles arranjaram esse documento falso

e levou pra conseguir, porque não podia transferir com aquele pouco de casa ali

não. Eu lembro quando eu comecei a trabalhar lá, Galego devia ter quatro ou cinco

anos, quando eu comecei a trabalhar lá né... Justamente, quando eu vim pra cá ele

tinha um ano e sete meses né, fiquei quatro anos aqui e daí fui pra lá. Ele falou

assim: “Ô mãe, me leva no Bom Jesus mais a senhora! Me leva!” Ele ainda não

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estudava. Quando foi um dia eu levei ele e ele brincou muito mais os meninos de

minha amiga lá, andando à cavalo. Quando chegou pras menina ele falou assim,

quando chegou de lá: “As meninas, eu tô pensando que mãe trabalha mesmo é num

Bom Jesus, mãe trabalha, as menina, se vocês ver, é num Bom Matão! De Bom

Jesus lá não tem nada, é Bom Matão!” (SOUZA, 2017).

As adversidades políticas são muito afloradas em cidades pequenas, fazendo com

que mágoas e brigas sejam carregadas por longo tempo. Ressalta-se ainda a escassez de

recursos para que se pudesse recorrer de tais decisões que prejudicavam não apenas

especificamente à pessoa de Dona Inês, mas também na prestação de serviços àquela

população. Como não viu maneira de brigar para que a sede do cartório transferisse para Nova

Porteirinha, ela o levou para Bom Jesus e lá ainda trabalhou por mais treze anos até se

aposentar.

Durante este intervalo, Dona Inês solicitou ao Juiz de Paz que nomeasse sua filha

Gislene como sua escrevente, segundo ela não pelo fato de o movimento e o trabalho serem

muitos para uma pessoa só, mas porque às vezes era necessário deixar o cartório fechado em

decorrência de alguma viagem ou consulta médica. Após a sua aposentadoria, a filha tentou

concurso para continuar no cartório, mas não obteve êxito.

Atualmente é notório o quanto os concursos para cartórios são concorridos e

viraram a verdadeira galinha dos ovos de ouro para os bacharéis em Direito, tendo em vista o

grande retorno financeiro na maioria deles. Mas cabe ressaltar que nossa entrevistada está

centrada numa época de grandes dificuldades para a região, ela própria destacou que no

momento da última mudança do cartório, permaneceu cumprindo seu ofício mais para que

completasse o tempo de aposentadoria do que pelo retorno financeiro. Durante os treze anos

em que trabalhou longe de casa, Dona Inês contou com o apoio das filhas, algumas já

trabalhando e outras não, para que cuidassem da casa e dos filhos menores juntamente com o

pai.

Por fim, Dona Inês destaca como sua vida foi uma verdadeira batalha, com muitas

dificuldades e enfrentamento de estereótipos que ainda marcavam aquela época, onde fez

história como uma mulher protagonista de sua própria vida, que lutou para ter o seu lugar não

apenas no mercado de trabalho, mas dentro de uma sociedade que reconheceu a necessidade

da prestação de seus serviços.

Referências

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CUNHA, Jorge Luiz da; MACHADO, Alexsandro dos Santos. Sujeitos que lembram:

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GUIRALDELLI, Reginaldo. Presença feminina no mundo do trabalho: história e atualidade.

Estudos do Trabalho, 2007, ano 1, n.1, p. 1-15.

LEONE; Eugenia Troncoso; TEIXEIRA, Marilane Oliveira. As mulheres no mercado de

trabalho e na organização sindical. In: XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais.

Anais Eletrônicos ENEP 2010. Disponível em: <

http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2010/docs_pdf/tema_8/abep2010_2200.pdf>.

Acesso em Abr. 2017.

SILVA, Aline Pacheco et al. “Conte-me sua história”: reflexões sobre o método de História

de Vida. Mosaico: estudos em psicologia, 2007, vol. 1, n. 1, p. 25-35.

SOUZA, Inês Mendes de. Protagonismo feminino em Nova Porteirinha/MG: entrevista.

Concedida a Rhaenny Maísa Freitas, Abril/2017.

SPINDOLA, Thelma; SANTOS, Rosângela da Silva. Trabalhando com a história de vida:

percalços de uma pesquisa (Dora)? Revista da Escola de Enfermagem da USP, 2003, vol.

37, n. 2, p. 119-126.