anuário do ceará (2011-2012)

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Publicação mais antiga do Ceará, é um documento de cunho jornalístico produzido anualmente. Nele, são agregados dados e informações sobre as características geográficas, demográficas, sociais e políticas do Estado, bem como dados sobre a economia e finanças.

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Juazeiro, o milagre

do Padimpor Jáder Santana

Padre Cícero acordou antes do amanhecer naque-la sexta-feira de março de 1889 e sentiu o cheiro de cera derretida. Caminhou até o alpendre de sua casa e viu que uma dezena de beatos havia passado a noi-te inteira em vigília, em orações silenciosas e cânticos

de louvor ao Sagrado Coração de Jesus. Antes que o sol despontasse no horizonte, Padre Cícero deu início ao processo de comunhão daqueles fi éis: primeiro as mulheres, para que pudessem iniciar os afazeres do-mésticos. No início da fi la estava uma negra magra e de estatura mediana, a beata Maria de Araújo, com a boca aberta e a língua estendida para receber a hóstia das mãos do Padre. No momento em que aquela fatia de pão sem fermento tocou o corpo da beata, estava estabe-

lecido o início da peregrinação que resultaria a publi-cação da Lei 1.028, de 22 de julho de 1911, e decre-tava ofi cialmente o município de Juazeiro do Norte. Neste ano de 2011, a cidade celebra o centenário de sua emancipação.

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Mais de um século depois, a cidade do extremo Sul do Ceará, escondida entre as serras do Vale do Cariri, se esfor-ça para comportar seus 249 mil habitantes em uma área de 248 quilômetros quadrados (a terceira maior densidade demográfi ca do Estado). São homens e mulheres fortes, marcados pelo sol intenso daquelas terras semiáridas e pelo trabalho pesado em um parque industrial que serve de modelo para toda a região. Cíceros e Cíceras dividem es-paço entre as calçadas antigas de suas ruas históricas e res-piram um ar carregado de cheiros de terra e temperos culi-nários. Somente no cartório sede da do município, desde o ano 2000, foram registradas mais de duas mil e quinhentas crianças com nomes que homenageiam o Padim.

Juazeiro nem sempre foi essa metrópole regional, como um oásis entre serras e cidadelas de solo rachado. O Juazeiro de Padre Cícero, um povoado acanhado nos idos empoeirados de 1870, já foi moradia temporária de tropeiros que marchavam pelo sertão cearense à procu-ra de compradores para seus produtos caseiros. Ponto de descanso incrustado no meio do trajeto entre Missão Velha e Crato, cujo único aconchego era a sombra de três frondosos juazeiros nascidos no cerne daquela quentura,

a cidade não era destino de ninguém e parecia fadada ao eterno ostracismo geográfi co.

Foi nesse cenário que uma dezena de religiosos viu a hóstia recebida das mãos do Padim Ciço virar sangue na boca da beata Maria de Araújo, negra, analfabeta e sufi -cientemente pobre para não ser vista com bons olhos pe-los que detinham as verdades sobre as palavras e ações divinas. Enquanto a greja instaurava inquéritos de cunho investigativo, suspendia ordens sacerdotais, e tentava convencer seus fi éis de que aquele milagre não passava de embuste, Juazeiro assistiu ao gradativo crescimento de seus limites e população. Padim Ciço e sua beata foram agentes catalisadores da eclosão de um dos movimentos religiosos mais extraordinários da história do Brasil, que transformou o povoado em centro de romarias e reduto de encontro de religiosos de todo o mundo.

Contar a história de Juazeiro é contar a história de Padre Cícero Romão Batista. Os dois cresceram juntos e juntos assumiram lugar privilegiado no imaginário popular. Jua-zeiro sem Padim Ciço ainda seria lugar-de-passagem, e Padim sem seu torrão não passaria de um religioso com métodospouco ortodoxos.

Multiplicação: os primeiros romeirosEm meados de 1890, a população de Juazeiro começou a crescer de forma curiosa. Milhares de romeiros partiam em longas caminhadas até os arredores da casa do Padim e erguiam casebres de dois ou três cômodos, verdadeiros espaços de oração e louvor aos milagres de que apenas

haviam ouvido falar. No dia 7 de julho de 1889, quatro me-ses após o ocorrido, Monsenhor Monteiro, reitor do semi-nário de Crato, organizou uma romaria com mais de três mil pessoas que fi zeram o trajeto entre as duas cidades, movidas pela curiosidade e crença de que o sangue de Jesus havia se materializado na boca de uma negra mais pobre e menos letrada que a maioria deles. Finalmente, Deus havia cansado de obrar seus milagres em terras eu-ropeias e agora, com perdoável atraso, mirava seu olhar naqueles tão distantes, esquecidos.

Em Fortaleza, o bispo Dom Joaquim José Vieira parecia não acreditar em tão repentina mudança na forma de agir do Senhor. Do seminário da Prainha, comandava o gru-po cético em relação ao suposto milagre e aos motivos que teriam levado o olhar divino a pousar sobre Juazeiro. Em calorosas manifestações públicas, Dom Joaquim des-

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considerou os relatórios apresentados pelas comitivas de religiosos que havia enviado ao sertão para averiguar o caso. Também deixou de lado os laudos médicos que con-fi rmavam a veracidade do que se espalhava como vento por todos os cantos do Estado e pelos principais jornais da região. A verdade é que os esforços demonstrados pela paróquia da Capital em distorcer e abafar os milagres de Juazeiro serviram para aumentar a curiosidade do res-tante da população e, consequentemente, o número de romeiros que faziam o caminho até o interior.

Na primeira metade da década de 1890, Juazeiro já reu-nia em suas ruas de terra um variado leque de tipos huma-nos: comerciantes, artesãos e beatos dividiam espaço com vagabundos, bêbados e uma sorte de aleijados, paralíti-cos, cegos, loucos e tuberculosos que depositavam em Pa-dre Cícero a última esperança de cura. A fabricação caseira de artigos religiosos marcou o início da industrialização do vilarejo, a partir de técnicas simples, quase rudimen-tares, de confecção e comercialização dos produtos. Lam-parinas, velas, foguetes e santos de barro ocupavam as barracas de madeira e a janela principal das casas ao lado de medalhas de ouro e latão, arreios de couro, brinquedos, cachaças e armamentos. Sagrado e profano conviviam de modo harmônico e refl etiam o caráter popularesco e não institucional da religião nascida dos costumes, ainda dis-tante da romanização pregada pelo bispado.

O modo peculiar como a religiosidade nasceu e ganhou força no sertão cearense, apoiada na boa vontade de lei-gos e beatos que ergueram capelas e iniciaram o culto aos santos que acolheram de modo maternal, surpreendia o

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alto núcleo católico do Estado. A tentativa de purifi cação da religião popular parecia inútil diante do alvoroço criado em torno de Padre Cícero e sua beata. A reforma de costu-mes, a devoção familiar e a ênfase nos sacramentos perdia espaço para a presença cada vez mais intensa de imagens de barro que enfeitavam os principais cômodos das ca-sas. O milagre havia fortalecido a crença e o imaginário religioso popular que o bispado tanto queria adequar aos ditames ortodoxos.

A despeito das exigências do bispado, a deferência de Padre Cícero aos costumes religiosos específi cos e carac-terísticos das famílias sertanejas repercutiu na forma de sentir e vivenciar a religião até os dias atuais. Se ele con-trariou as tentativas episcopais de recolocar os fi éis sob o poder do clero, anular quaisquer possibilidades de auto-nomia e trazer para a Igreja o status de decidir sobre a vida e a morte das pessoas, também teve parcela de culpa na

tradição que leva mais de dois milhões de romeiros por ano às ruas de Juazeiro. Ao valorizar a religião popular em detrimento daquela pregada sob moldes clássicos estran-geiros – e por isso considerada superior pelo clero – Padre Cícero deixou para as gerações posteriores a noção de ro-maria como um grande encontro em que se concentram e misturam festejos, alegrias, pedidos, promessas, fogos de artifício e chapéus de palha.

O Juazeiro que conhecemos hoje, verdadeiro caleidos-cópio de cores, luzes, cheiros e sabores peculiares e con-trastantes, não seria possível sem a revolução enraizada pelas mãos proverbiais de Padre Cícero e levada a cabo pelo trabalho e orações de seus seguidores e inimigos. De pólvora, pimenta-do-reino, carros importados, barro mo-lhado, roupas de grife e esterco animal, o Juazeiro destes anos parece distante, mas infi nitamente próximo daquele ofi cializado há um século.

Rosários no pescoço e armas em punhoFloro Bartolomeu da Costa pisou pela primeira vez em Jua-zeiro no ano de 1908. Médico baiano com fortes inclinações

políticas e progressistas, foi o primeiro a cogitar a possi-bilidade de emancipação política do povoado, até

então subordinado ao município de Crato. En-cantado pelo número crescente de romei-

ros que reconstruíam vida e família aos pés de Padre Cícero, Bartolomeu

enxergou no religioso uma parceria importante para

levar adiante seus pla-nos de indepen-

dência. Juazei-ro, àquela

época, já havia crescido de tal forma que, em termos demo-gráfi cos e econômicos, ameaçava superar o potencial da cidade matriz, mantenedora desde o século XVIII. Seu faro para descobrir oportunidades aliado ao poder de Padre Cí-cero sobre a população foi sufi ciente para incutir nos juazei-renses a semente para a luta separatista, que culminou com uma declaração informal de independência em 1910, com o povo reunido na Praça da Liberdade, atual Praça Alexandri-no de Alencar. Na ocasião, Bartolomeu alertou o povo sobre a necessidade de não mais pagar os impostos devidos ao Crato, recomendação que foi acatada e marcou o início do processo de independência de Juazeiro, efetivado em julho do ano seguinte.

A independência deu a Padre Cícero, naquele mesmo ano, a honra de assumir o posto de primeiro prefeito de J u a z e i r o do Norte, decisão que foi aceita e reconhecida

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por Antônio Pinto Nogueira Accioli, representante da oligarquia Acioli e então governador do Estado.

A população crescia em ritmo assustador para os pa-drões de outras cidades: em 1909, Juazeiro ultrapassou a marca de 15 mil habitantes, o triplo do valor registrado em 1890. A maior parte dos migrantes havia saído de outras cidades do Cariri, mas também são noticiadas co-mitivas de romeiros oriundas de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia e Alagoas. En-quanto a seca de 1915 diminuiu o ritmo das migrações para grandes cidades nordestinas, Juazeiro foi um dos únicos lugares que continuou registrando aumento na chegada de contingente humano.

Por esses anos, como refl exo de uma população as-cendente e uma sociedade cada vez mais ligada ao crescimento comercial, o agricultor juazeirense já derru-bava grandes árvores e ateava fogo na vegetação para o plantio de mandioca, cana-de-açúcar e criação de re-banhos. Quilômetros de matas de jatobás, visgueiros e paus-d’óleo deram lugar ao mato rasteiro das capoeiras, velames e marmeleiros, que serviam para alimentar o gado crioulo cruzado com o zebu, vindo da Bahia pe-los caminhos sinuosos das serras. Para guardar as águas do inverno, grandes buracos impermeabilizados eram cavados nas proximidades dos currais, onde também

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eram produzidos queijos de manteiga que depois seriam vendidos ou trocados em feiras populares. Padre Cícero também havia ensinado aos agricultores os melhores mo-dos de preparar a terra da região do Araripe, no nordeste da cidade, para o plantio de mandioca e maniçoba, essa última utilizada para a extração de látex que seguia para Fortaleza e era exportada para as nações europeias.

Em janeiro de 1912, contrariando as nascentes ambi-ções políticas do líder juazeirense, o governador Accioli foi deposto e o coronel Marcos Franco Rabelo assumiu o co-mando do Ceará. Após romper com o Partido Republicano Conservador (PRC), ao qual era fi liado Padre Cícero, Rabelo ordenou a imediata destituição dos cargos políticos que o religioso exercia e, sob as ordens do Presidente da Repúbli-ca, marechal Hermes da Fonseca, iniciou a tarefa de exter-minar o reduto político criado em torno do padre no sertão cearense. Quando a Revolução estourou, o Padim precisou ensinar aos beatos o manuseio de outros instrumentos: as armas. Infl uenciada pelas ideias vanguardistas de Floro Bar-tolomeu, a população juazeirense passou a defender a par-ticipação do município na economia e política do Estado por meio da representação de seus dois chefes.

Entrou para a história o episódio da trincheira cons-truída pelos juazeirenses, sob as ordens de Padre Cíce-ro, para auxiliar na defesa contra as tropas estaduais de Franco Rabelo. Com enxadas, pás, picaretas e vasilhas de

barro, cerca de 50 mil homens, mulheres e crianças, cava-ram, em seis dias, uma vala de dois metros de altura por doze de largura, que circundava todo o limite da cidade e impedia o ataque dos inimigos, munidos de armamen-tos sofi sticados para os padrões interioranos. Um mês depois, em janeiro de 1914, devidamente equipadas com rifl es, pistolas e peixeiras, as forças de Bartolomeu, com romeiros, beatas, cangaceiros e bandidos arregimentados pessoalmente por Padre Cícero, chegaram à Fortaleza e derrubaram o governo de Franco Rabelo, garantindo o re-torno de Acioli ao poder.

Na década de 20, com as contribuições de Padre Cícero e Bartolomeu para a afi rmação do regionalismo nordesti-no e participação na onda de prosperidade que tomava o País, Juazeiro ganhou novas instituições educacionais e assistiu ao fortalecimento de suas tradições e festejos reli-giosos. Após a instalação do transporte ferroviário do Cra-to, em 1926, foi erguido, em um terreno doado pelo Pa-dim, o primeiro campo de aviação de Juazeiro, em 1928.

No dia 20 de julho de 1934, às 6h30 da manhã, depois de receber os últimos sacramentos, morria Padre Cícero, em decorrência de problemas renais. Antes de seu últi-mo suspiro, aos olhos de milhares de romeiros unidos em oração, Padim desenhou, com a mão direita vaci-lante, três cruzes no ar e sussurrou: “no céu, eu rogarei a Deus por todos vocês”.

Distante cerca de 493km de Fortaleza, o Juazeiro de hoje possui uma população majoritariamente urbana (96%) e se consolidou como a terceira cidade com maior densida-de demográfi ca do Ceará. Também é uma das mais vigo-rosas do ponto de vista comercial no nordeste brasileiro. Ocupa ainda lugar de destaque entre as maiores expan-sões produtivas do Vale do Cariri e da Serra do Araripe. De origem tupi, seu nome signifi ca fruto de espinho, para simbolizar uma cidade que nasceu no meio do sertão.

A Chapada do Araripe, com sua altitude de quase mil metros e centenas de nascentes de água, continua oferecendo ao juazeirense uma infi nidade de sementes, plantas e frutos: araçás, muricis, maniçoba e o icônico pequizeiro, que contém um caroço coberto, de elevado valor nutritivo, que pode ser roído ou utilizado como tempero nos principais pratos da região.

A rua São Pedro é a principal via de entrada na ci-dade. Seguindo direto por ela, o viajante chega ao cen-

Transubstanciação: transformação do vilarejo

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tro de Juazeiro, depara-se com suas casas comerciais sim-ples e residências confortáveis, margeadas por calçadas altas de pedra bruta. Os mais observadores ainda podem encontrar, entre bancos e farmácias, três ou quatro so-brados, incluindo a antiga casa de Padre Cícero, que após sua morte foi transformada em museu para exibição de seus objetos pessoais. Embora as classes mais abastadas da cidade estejam concentradas em bairros distantes, com suas grandes casas construídas em Lagoa Seca, o centro continua sendo reduto de uma velha nobreza que não arreda o pé do lugar. O Hotel Municipal, localizado na rua São Francisco, é símbolo dessa resistência.

São Francisco é apenas uma entre as mais de 55 vias batizadas com nomes de santos e religiosos. São Damião, São Cosmo, Santa Maria, Santa Cecília, São Jorge, São Ro-que, Dom Bosco e Frei Ibiapina fazem parte de uma lista de fi guras veneradas que desafi a a memória e o conhe-cimento religioso da mais fervorosa beata de Juazeiro. Todas elas estão democraticamente distribuídas em ruas de bairros e regiões segmentados de acordo com o po-tencial fi nanceiro de seus moradores, reafi rmando a má-xima de que, na terra de Padre Cícero, ricos e pobres são dignos de bênçãos divinas. Na Vila do Horto e Vila Tira-dentes, bairros que concentram as camadas mais pobres da população, ainda é possível encontrar habitações fei-

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xima de que, na terra de Padre Cícero, ricos e pobres são dignos de bênçãos divinas. Na Vila do Horto e Vila Tira-dentes, bairros que concentram as camadas mais pobres da população, ainda é possível encontrar habitações fei-

tas de tijolo moldado à mão ou taipa. Nessas casas, ainda estão de pé as paredes de vara preenchidas com barro, estrume animal, palha e pedaços de madeira. A maioria delas conta com quatro cômodos: uma sala grande, dois quartos e uma cozinha. O banheiro, uma “casinha” cer-cada por uma armação de madeira ou bambu, fi ca nos fundos da morada. Ao pé da porta principal, não é raro encontrar um pé de pinhão roxo, cuidadosamente plan-tado para espantar o mau olhado.

A rua São Pedro também é o espaço por excelência das barraquinhas características de seu comércio popu-lar. Nas imediações do Mercado Central, sobretudo em época de festas e romarias, fi ca difícil transitar sem ser seduzido pela variedade de produtos: espelhos, perfu-mes, alfi netes, fi tas e rendas para as moças; alpercatas, botinas, chicotes, balaios e facas afi adas para os rapazes; para matar a fome, bolos, papas, beijus, tapiocas e paço-ca. Romeiros e andarilhos preferem o pará, uma mistura de farinha e água quente temperada com pimenta-do- reino, alho e sal, o melhor remédio para curar o cansaço e fadiga. Quem vem de outras cidades, precisa levar para casa seu nome gravado à faca numa caneca de alumínio, ou uma rede de algodão com traço elaborado.

Botequins e bodegas fi cam cheios de romeiros e homens de negócio que conversam em meio ao

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burburinho da rua, risadas e goles de cachaça. Estima-se que mais de 150 mil sertanejos chegam à cidade nos tempos de festejo, e é difícil acomodar tanta gente em ranchos e hotéis que sempre funcionam com a capa-cidade máxima. A solução é dormir em redes armadas nos paus-de-arara que fi zeram o transporte entre cida-des ou nas calçadas e praças locais. As casas também fazem parte do movimento de Juazeiro: a habitantes oferecem água e comida aos romeiros acomodados ao pé de suas residências. Alguns deles permitem o uso dos banheiros sem cobrar nada em troca. Os juazeiren-ses vivem uma espécie de momento único em que a ruptura do cotidiano demonstra o apego às tradições e o desejo de se sentir incluído naquela espécie de car-naval religioso.

Juazeiro, em festa, também irradia demonstrações de sua cultura secular: são cordelistas, cantadores, vio-leiros, poetas, xilógrafos, artesãos e ourives que dividem o limitado espaço do centro com artistas populares que apresentam rituais de maneiro-pau e reisados. Nessas apresentações, sagrado e profano mais uma vez convi-vem lado a lado: enquanto o maneiro-pau é uma dança máscula, surgida em meio ao movimento cangaceiro, que ganha percussão pelo entrechoque de pedaços de madeira pesada e ritmo pelo coro dos dançarinos, o rei-sado simboliza a anunciação da chegada de Jesus e é realizado por personagens que empunham violões, san-fonas, ganzás, zabumbas, triângulos e pandeiros.

Fora do período de festejos, os juazeirenses se dedi-cam aos estudos, em um dos mais de 40 cursos univer-sitários oferecidos na cidade, ou ao trabalho, em algu-ma fábrica de um polo industrial que produz sandálias de plástico e couro, bebidas, alumínio, alimentos, rou-pas, móveis e joias. Juazeiro também foi o primeiro mu-nicípio do interior cearense a ter um shopping center, o Cariri Shopping, e possui concessionárias de muitas montadoras de veículos nacionais. Apesar dos avan-ços, sua força econômica continua sendo o movimen-to criado ao redor das pequenas empresas de fundo de quintal, responsáveis pela produção de artesanatos e quinquilharias que dinamizam a economia informal.

Para dar visibilidade ao histórico de crescimento de Juazeiro, uma centena de periódicos foi lançada desde o início do século XX. A partir de O Rebate, jornal pio-neiro inaugurado em 1909 pelo Padre Joaquim Mar-ques de Alencar Peixoto, com o auxílio de Padre Cícero, uma série de outros títulos apareceu na cidade. É bem verdade que muitos deles tiveram vida efêmera e não

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chegaram ao segundo número, fato que serviu como justifi cativa para que os jornalistas batizassem a cidade de “cemitério de jornais”.

Alguns atribuem o constante desenvolvimento de Juazeiro aos cuidados divinos obtidos por meio de Nos-sa Senhora das Dores, padroeira ofi cial da cidade, junto ao Todo Poderoso. Outros, céticos, descartam o caráter sobrenatural e gritam sobre estrondosos suas razões político-partidárias. Há quem diga que Padre Cícero não passou de um demônio em vestes de santo. Certamente esses ainda estão em menor número. Para a maioria dos juazeirenses, descrentes ou místicos, é Padim Ciço, santo e político, milagreiro e desafi ador, sertanejo e progres-sista, que continua dirigindo a cidade em um espetáculo que já dura mais de cem anos.

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ver pág. 141Ficha de Juazeiro

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