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Resenha dos livros As palavras e as coisas (Capítulos II e III), Michel Foucault; Nós e os Outros, Volume I (páginas 21 a 76), Tzvetan Todorov e texto: Primitivismo e Ciência do Homem no século XVIII, Helêne Clastres. Para ter uma análise do estudo antropológico, durante épocas distintas são apresentadas maneiras diferentes de lhe dar com as práticas e os sinais dos indivíduos e povos. No século XVI, principalmente, há um pensamento predominantemente filosófico-teológico que regerá toda forma de visão nesse campo de estudo. Michel Foucault em seu livro “As palavras e as Coisas” apresenta o pensamento predominante que auxiliará o entendimento antropológico da época. Quando mostra as quatro similitudes ele demonstra como se via toda a natureza como um reflexo da ordem divinamente estabelecida, em que as coisas eram assinalações e em tudo havia sinais que deveriam ser ”lidos” pelos homens a fim de desvendar as similitudes. Nessa mentalidade, por exemplo, poder-se-ia perceber que os astros estão para o céu como os animais para a terra e assim identificar a ordem das coisas, pois as coisas estavam sinalizando as semelhanças. Remetendo a uma experiência de contato entre um europeu e um índio pode-se inferir algumas observações sobre as semelhanças que poderiam ser identificadas. Por exemplo, sabe-se que na chegada dos portugueses às terras do Brasil a interação com os índios permaneceu harmoniosa naqueles dez dias passados nas enseadas do sul da Bahia. Foi interessante quando um piloto da Nau de Cabral reconheceu dois nativos a bordo de uma canoa e os levou para dentro oferecendo comida e bebida. Apesar de não comerem logo dormiram e foram cobertos recebendo travesseiros sob ordem de Cabral. Também mais tarde um certo Diogo Dias, indo à praia em companhia de um gaiteiro, pegou os nativos pela mão e “meteu-se a dançar com eles”, dando a seguir um “salto real” que surpreendeu e encantos os indígenas. Tudo isso pode ser a demonstração de uma semelhança em que se constata que esses nativos podem dormir como os lusitanos, dançar, sentir etc. Essas características podem ter sido interpretadas no campo das similitudes como conveniência, por exemplo, e outras. Mas o importante é ressaltar que nesse primeiro momento elas significaram uma aproximação desses povos. Também na primeira missa realizada pelo Frei Henrique de Coimbra os índios assistiram de maneira aparentemente devocional, se ajoelharam, apontavam para o céu e para o altar, o que manifestava um certo sentimento religioso. Da mesma forma que se revelavam as semelhanças, depois se revelavam as diferenças. Embora poderiam parecer em fatos bem

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Resenha dos livros As palavras e as coisas (Capítulos II e III), Michel Foucault; Nós e os Outros, Volume I (páginas 21 a 76), Tzvetan Todorov e texto: Primitivismo e Ciência do Homem no século XVIII, Helêne Clastres.

Para ter uma análise do estudo antropológico, durante épocas distintas são apresentadas maneiras diferentes de lhe dar com as práticas e os sinais dos indivíduos e povos.

No século XVI, principalmente, há um pensamento predominantemente filosófico-teológico que regerá toda forma de visão nesse campo de estudo. Michel Foucault em seu livro “As palavras e as Coisas” apresenta o pensamento predominante que auxiliará o entendimento antropológico da época.

Quando mostra as quatro similitudes ele demonstra como se via toda a natureza como um reflexo da ordem divinamente estabelecida, em que as coisas eram assinalações e em tudo havia sinais que deveriam ser ”lidos” pelos homens a fim de desvendar as similitudes. Nessa mentalidade, por exemplo, poder-se-ia perceber que os astros estão para o céu como os animais para a terra e assim identificar a ordem das coisas, pois as coisas estavam sinalizando as semelhanças.

Remetendo a uma experiência de contato entre um europeu e um índio pode-se inferir algumas observações sobre as semelhanças que poderiam ser identificadas. Por exemplo, sabe-se que na chegada dos portugueses às terras do Brasil a interação com os índios permaneceu harmoniosa naqueles dez dias passados nas enseadas do sul da Bahia. Foi interessante quando um piloto da Nau de Cabral reconheceu dois nativos a bordo de uma canoa e os levou para dentro oferecendo comida e bebida. Apesar de não comerem logo dormiram e foram cobertos recebendo travesseiros sob ordem de Cabral. Também mais tarde um certo Diogo Dias, indo à praia em companhia de um gaiteiro, pegou os nativos pela mão e “meteu-se a dançar com eles”, dando a seguir um “salto real” que surpreendeu e encantos os indígenas. Tudo isso pode ser a demonstração de uma semelhança em que se constata que esses nativos podem dormir como os lusitanos, dançar, sentir etc. Essas características podem ter sido interpretadas no campo das similitudes como conveniência, por exemplo, e outras. Mas o importante é ressaltar que nesse primeiro momento elas significaram uma aproximação desses povos. Também na primeira missa realizada pelo Frei Henrique de Coimbra os índios assistiram de maneira aparentemente devocional, se ajoelharam, apontavam para o céu e para o altar, o que manifestava um certo sentimento religioso.

Da mesma forma que se revelavam as semelhanças, depois se revelavam as diferenças. Embora poderiam parecer em fatos bem práticos, esses nativos se diferenciavam na sua maneira de se comportar em muitas coisas, tanto individualmente como coletivamente. De qualquer forma ficava aí uma pista a ser descoberta: o que eles têm de semelhantes? São seres humanos? E as suas práticas tão peculiares, qual o seu sentido?

A essa última pergunta deve se dar uma ênfase. Foucault fala dos signos que estão nas coisas e devem ser desvendados. É necessário fazer falar os signos identificando as semelhanças. Por exemplo, os índios dançam ao redor de uma fogueira, têm práticas que remetem automaticamente a uma semelhança com a religiosidade dos europeus, porém a divindade a que se presta culto não é a mesma e sua maneira de realiza-lo tão pouca. Poderão surgir as primeiras antipatias, mas que não estão separadas daquilo que primeiramente os aproximou. Vêm as analogias para fazer o nexo, a interpretação dessas atitudes.

O fato é que este homem do século XVI já possui como que um mapa que conduzirá a ele para que possa ver em tudo um texto que já está escrito e que só precisa ser desvendado. Tudo remete a algo e deve obedecer a uma linha, como um texto que está bem escrito e que conduz a uma direção. Não se fazia certas distinções de maneira ordenada mas em tudo se via as aproximações. Mas tudo

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isso por ser fundado sobre bases de uma filosofia onde Deus tudo dispôs toda a criação se identificava como obras. Nesse sentido há um princípio de universalidade onde todas as coisas devem se conformar como o desejo e a ordem estabelecida por Deus. Talvez por isso a necessidade de apresentar a fé cristã em vista de um ideal que para estes homens era virtuoso: levar ao conhecimento de Deus. Alguns acusarão os ocidentais do século XVI de etnocêntricos numa visão de que estes homens não respeitavam as diferenças dos povos. Contudo é preciso considerar o pensamento filosófico da época em que a ciência não estava desenvolvida e a única forma de discernir os fenômenos era a teologia que tinha o apoio da doutrina tomista e dos Padres da Igreja, essa era a maior forma de racionalidade da época.

Esse pensamento vai se modificar no século XVII com o racionalismo e as especulações do século XVII. Aí não mais se apresentará a procura das semelhanças mas somente no sentido de separação das coisas, numa classificação que ordenará as coisas em lugares distintos. Não mais os reflexos mas as distinções serão enfatizadas. Daí surgirão de maneira empírica as classificações de regime mais científico abrindo então as portas para diferentes filosofias e métodos de interpretação.

Ora nessas novas perspectivas filosóficas o debate que se terá sobre a questão do que é universal e relativo vai ser muito interessante.

O etnocentrismo aparece muitas vezes buscando definir o que é universal a partir dos valores de sua própria realidade. Porém haverá aqueles etnocêntricos que sem nenhuma crítica argumentativa irão definir seus valores como sendo ideais. E haverá aqueles que com uma crítica buscarão uma reflexão sobre os conceitos. Parece que a maior parte dos etnocêntricos tinha como que um padrão ideal e buscava criticar os indivíduos segundo esse padrão.

Mas o que fazer então? Acaso não se pode especular sobre valores universais. Se assim fosse não poderia haver nenhuma interação pacífica entre os homens. Continua-se a busca.

O cientificismo vai tentar procurar nas suas pesquisas essa fonte de universalidade que seria a natureza. Diderot é do pensamento de que a moral deve ser fundadas nas relações eternas que subsistem no homem mas essas relações seriam as da natureza. Na sua interpretação o homem deve seguir como que seus instintos mesmo se são violentos e isso é lícito moralmente pois está na natureza do homem. Ora, essa interpretação foi criticada pois parece se esquecer que a racionalidade faz parte da natureza do homem. Nessa perspectiva Rousseau, Condorcet e outros seguirão a linha de que os valores universais devem ser buscados pela via da razão.

De fato, isto tem sentido. Até a moral da Igreja Católica é afirmada sobre os princípios da natureza.

“Para a Igreja o que não é natural não é moral, e deve ser evitado” (Aquino, Prof. Felipe. Ciência e fé em harmonia. Cléofas. 2004).

O importante é a fato de que a razão humana faz parte de sua natureza e assim sua capacidade de dominar seus instintos e agir com discernimento do bem e do mal. Assim se verá um argumento muito consistente de Condorcet que afirmará que uma vez que a natureza humana é igual em todas as partes também deve ser o direito natural e assim também a lei em todos os Estados.

De fato o que pensar de homens que praticam a antropofagia com intuito de absorverem o conhecimento alheio. Se a razão é universal por que estes indivíduos têm esse tipo de comportamento? Uma característica que se distingue daquelas dos europeus de sua época. Será que a luz da razão não o iluminou para que então ele pudesse não ter atitudes como estas? Ou será isso um etnocentrismo. Mas não poderia ser a busca da verdade, esta em comunhão com a ciência? E quem discordasse disso não estaria querendo ser etnocêntrico com seu relativismo?

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Montaigne sustentando a tese relativista diz que as leis da consciência não nascem da natureza mas dos costumes e então nessa perspectivos não haveria muito espaço para as práticos que seguiriam valores universais como no cientificismo. Porém o relativismo pode ser questionado de algumas formas:

a) Considerando o pensamento de Montaigne em que todo deve ser remetido a uma realidade particular relativa, parece que a própria relativização pode ser um termo absoluto e quem não pensasse igual estaria errado.

b) Se tudo depende de uma relatividade de pensamento, então deverá se respeitar o direito e o pensamento de quem acredita possuir a virtude mais elevada. E se não se admite uma verdade relativa deverá se aceitar esse pensamento que, no entanto, nega esse relativismo.

c) O pensamento relativista pode ser uma forma de indiferença, para que não se tenha que discernir sobre as atitudes alheias e não se estabelecer uma responsabilidade coletiva.

Porém o pensamento relativista se evoluirá em muitas perspectivas como em Helvétius que afirmará que as sensações empíricas de prazer ou desprazer estariam na base do julgamento sobre o que é bom ou mal, e ainda que o interesse determinaria essas posições. Esses interesses variam na sociedade, o julgamento também. Outra concepção importante é a de Renan que afirmará um relativismo histórico, crendo sim na verdade, não absoluta, mas histórica, porém isso em relação aos valores porque segundo ele a ciência trata sim da verdade, do absoluto. Essa observação é importante, pois nos levará a conclusão já exposta sobre o pensamento do século XVI já naquela situação histórica a verdade foi determinada pelas condições da época enquanto que em outros tempos esse conceito se transformará. E ainda se de fato a ciência cuida do absoluto seria então uma questão de evolução racional a renúncia das práticas de antropofagia com intenção de absorção de conhecimento, assim como de muitas outras práticas.

Enfim com o estudo mais profundo no século XVIII surge uma questão importante que tratará daqueles povos que, diferentemente dos ocidentais, teriam um comportamento peculiar. Os “selvagens” foram, no século XVIII, denominados primitivos e esta concepção implica muitas questões.

Para se considerar estes povos com esta qualificação há de se admitir uma aproximação no sentido de que se são povos primitivos é porque pertencem à espécie humana como nós mas que por algum motivo não tiveram a mesma evolução dos ocidentais. Isto presume um certo universalismo que neste caso não se trata daquele do século XVI em que a proximidade estava na natureza como toda criada por Deus, mas numa aproximação científica que coloca estes seres numa certa posição igualitária.

No entanto ao se afirmar que estes homens não evoluíram por algum motivo dito desfavorável, como o clima, maneira de viver, alimentação etc, pode-se inferir uma certa universalização no sentido de que a humanidade deveria, em condições favoráveis, progredir mas isso não aconteceu.

Esse pensamento pode ser comparado às teses positivistas em que Augusto Comte defende que é uma prerrogativa a tendência à universalização da vida em alguns padrões que estariam presentes na sociedade industrial, pois a partir do momento que se fala que esses primitivos não evoluíram por causa de condições desfavoráveis, essa própria qualificação pressupõe um sentido positivo em que em condições favoráveis as semelhanças desses povos com os ocidentais seriam maiores. Além disso, é certo que a sociedade hoje é muito mais homogenia do que era na época de Comte e a expansão de certos valores é nitidamente expressa. Com efeito, observa-se na atualidade o fato de povos que ainda carregam uma herança cultural daqueles que no século XVII seriam chamados primitivos estão cada vez mais, no contato com a sociedade industrial, sendo moldados pelos valores que vigoram majoritariamente. A requisição da cidadania,

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a prática dos estudos científicos, a relação com o Direito e a linguagem são alguns exemplos disso.

O fato é que naquela época os estudos procuravam averiguar estas sociedades no sentido de buscar em meio a essa primitividade a comparação dos costumes, não com os da época atual mas com os dos antigos. Esta é a grande questão, estudar os selvagens seria desvendar uma forma de comportamento que não estaria impregnado de civilidade e assim poder-se-ia chegar a uma cognição do homem na sua forma mais natural e assim perceber o que leva a aquisição das idéias, tudo isso para favorecer o entendimento do próprio homem hoje.

Para aqueles mais ligados ao naturalismo poderia se inferir que esses estudos eram a chave da verdade para uma moral fundada na natureza, porém é uma crítica feita pelo próprio Diderot que marca um tema muito complexo: será que por estarem mais ligados à natureza essa sociedade era mais feliz que a civilizada? Pois, nesse caso poderia ser válida a afirmação desses valores do contrário não, segundo o pensamento de alguns filósofos. Mas ainda sim essa concepção de felicidade pode ser questionada não excluindo a maneira de se estudar esses sentimentos com estes primitivos.

O fato é que as sociedades ditas primitivas ainda são motivos de especulações em diversas áreas do campo das ciências humanas principalmente por revelar uma humanidade que pode estabelecer formas de vida que podem não ser como a dos civilizados. Nessa perspectiva é necessário o respeito as diferentes culturas ao mesmo tempo que estas estão se transformando pelo permanente contado com a sociedade civilizada. De fato como disse Locke: as idéias provêm dos sentidos, donde segue que, colocados em condições idênticas, os homens recebem as mesmas sensações e, portanto, concebem as mesmas idéias. E é verdade que os homens que carregam uma herança de uma sociedade primitiva têm grande capacidade de adaptação assim como talvez um homem de uma sociedade industrial poderia se lançado em uma selva se adaptar a uma forma de vida mais próxima da natureza.

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BibliografiaFOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Martins FontesTODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros. Jorge Zahar EditorHELÊNE, Clatres. Primitivismo e Ciência do Homem no século XVIIIBUENO, Eduardo. Brasil Terra à Vista: A Aventura Ilustrada do Descobrimento.

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