antropologia inaciana_nopw

Upload: diogo-augusto

Post on 15-Oct-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 5 Antropologia Inaciana

    Incio no elaborou propriamente um tratado de antropologia teolgica.

    A sua preocupao foi de ordem mistaggica. Porm, nesta mistagogia, que ele

    prprio experimentou e na qual conduziu a muitos, e posta por escrito no livro dos

    Exerccios Espirituais, se deixa ver toda uma experincia antropolgica que

    poder ser explicitada teologicamente. Esta a proposta a ser desenvolvida e que

    constar de trs eixos fundamentais: o ser humano na relao com Deus; a vida de

    Jesus como horizonte da vida humana e, por ltimo, a vida humana como uma

    vida segundo o Esprito.

    5.1. O ser humano na sua relao com Deus

    A experincia de Incio, narrada anteriormente e teorizada no livro dos

    Exerccios, permite dizer que o ser humano objeto da infinita misericrdia e

    piedade de Deus (Ex 71). Ele imagem de Deus pela criao (Ex 235);

    redimido pelo sangue de Cristo (Ex 53); capaz da sua glria, descobrindo sua

    realizao na semelhana e na identificao com Cristo (Ex 98), colocando-se a

    seu servio (Ex 234) na Igreja (Ex 352). O itinerrio a que nos propomos para o

    desenvolvimento da viso teo-antropolgica sinttica de Incio inicia-se pelo

    Princpio e Fundamento e percorrer as quatro semanas, encerrando-se com a

    Contemplao para Alcanar amor.

    A referncia inicial mais importante para o que se prope nesse captulo

    encontra-se pela primeira vez na 19 Anotao do livro dos exerccios:

    Proponha-se-lhe (queles que se dispem a fazer os Exerccios, mas que no

    podem retirar-se de suas ocupaes) para que fim o homem foi criado.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 180

    Indica-se sua origem, sua direcionalidade e sua finalidade. A afirmao

    completa encontra-se de modo explcito logo no prtico dos exerccios - no

    Princpio e Fundamento (Ex 23), que contm as afirmaes centrais sobre a

    vocao do ser humano,404 embora essa s possa ser plenamente compreendida no

    conjunto das quatro semanas que compem os exerccios.

    a) O ser humano criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso

    Senhor, e assim, salvar sua alma;

    b) As outras coisas sobre a face da terra so criadas para o ser humano,

    para o ajudarem a atingir o fim para o qual criado;

    c) Da se segue que ele deve usar das coisas tanto quanto o ajudam para

    atingir seu fim e deve privar-se delas tanto quanto o impedem;

    d) Por isso, necessrio fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas;

    em tudo o que permitido a nossa livre vontade e no nos proibido; de tal

    maneira que, da nossa parte, no queiramos mais sade que enfermidade, riqueza

    que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida breve e assim por diante em

    tudo o mais;

    e) Desejando e escolhendo somente aquilo que mais nos conduz para o

    fim para o qual somos criados.

    5.1.1. A origem e o fim do ser humano

    Conforme a 19 anotao, o homem foi criado (no passado) e, segundo a

    formulao do Princpio e Fundamento, criado (no presente). O homem tem sua

    origem fora de si, em Deus e Nele tambm o seu fim. A frase o homem

    404 Para Erich Prywara, de um lado, a palavra princpio poderia ser entendida, na perspectiva aristotlico-tomista, como aquilo do qual tudo se deriva e ao qual tudo se refere. Nesse sentido o fundamento dos Exerccios tanto o fim ao qual se referem as consideraes sobre seu sentido, orientao e estilo fundamentais, como a frmula conclusiva que liga as diversas vivncias experimentais durante as quatro semanas. O princpio e fundamento seria a frmula da teoria dos exerccios. Porm, por outro lado, a palavra fundamento expressa que o Princpio e Fundamento o verdadeiro comeo dos Exerccios. O fundamento forma parte integral do edifcio, como seu verdadeiro princpio. a base que contm em grmen todo o edifcio. Nesse sentido, pode-se encontrar nele sua antropologia que dever ser explicitada ao longo do texto dos Exerccios (Cf. ERICH PRZYWARA. Una teologia del ejercicios, Seminari EE. Col. Ayudar, n. 10. Cristianismi i justicia, Barcelona, 1992, p. 17 et. seq).

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 181

    criado, h de ser lida no presente. A pessoa criatura agora, e nica. ela

    quem sempre se distancia de si mesma, um ser em dilogo: est consigo e

    sempre se contempla distncia. Esse para donde sou Deus, e com essa palavra

    designa-se o incompreensvel, a liberdade absoluta que no est a nossa

    disposio. Estamos fundados em Deus; no incompreensvel e desconhecido;

    estamos fundados no abismo do absoluto, no abismo da liberdade de Deus, e

    porque o aceitamos assim, somos o que devemos ser.405

    Ser criado para indica, em ltima instncia, o seu carter vetorial e

    autotranscendente.

    O para de Incio se inscreve justamente nessa enfermidade gloriosa do homem, em seu inacabamento e abertura radical, na possibilidade de no ser puro reflexo de seus instintos, em ultrapassar a coisa que j . Assim (...) seu inacabamento por um excesso de realidade, se converte para ele num chamado, num para qu que se concretiza em louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e mediante isso salvar sua alma.406

    Embora a primeira palavra do Princpio e Fundamento seja o homem, o

    que por si expressivo,407 e dele continue falando at o final, unicamente ele o

    sujeito passivo da criao; ele no a norma autnoma de si mesmo e do mundo,

    nem o seu artfice, mas medido pelo seu Criador e ordenado por Ele.408

    O ser humano s pode entender-se a si mesmo quando esquece de si no

    louvor, reverncia e servio.409 O louvor a Deus brota com o que fazemos e somos,

    405 RAHNER, K. El sacerdocio cristiano : en su realizacion existencial. Barcelona: Editorial Herder, 1974, p. 30 et. seq.. 406 GARCIA, J. A. El hombre es criado para...(Ex 23): caracter vectorial y autotranscendente del ser humano. Manresa, vol. 80, 2008, p. 6.. 407 K. Rahner considera que o primeiro pargrafo do Princpio e Fundamento desenvolve um antropocentrismo to grandioso que o seu fundamento filosfico e teolgico pertence aos grandes e fundamentais textos da idade moderna. Segundo ele, quando Incio comea com a palavra o homem e quando na concluso, no Suscipe (Ex 234), o homem volta a entender-se como liberdade, e uma liberdade que situa-se antes das trs potncias da memria, entendimento e vontade, desemboca-se num existencialismo filosfico e teolgico que se encontra com o pathos da idade moderna, na qual, o pathos mais profundo do cristianismo adquire uma conscincia reflexa. (Cf. RAHNER, K. El sacerdcio, p. 26) 408 MARRANZINI, A. La teologia Del principio y fundamento a la luz Del Concilio Vaticano II. In: Los Ejercicios de San Igncio a la luz Del Vaticano II. Madrid: Bac, 1966, p. 54. 409 Louvar parece que no texto primitivo havia somente dois elementos: para louvar a Deus e salvar sua alma. H a hiptese de que a noo de reverncia e servio est em relao com a Contemplao para alcanar Amor. Louvor implica de fato reverncia e servio e um modo de glorificar a Deus. o elemento bsico e fundamental do fim. Reverenciar - no Dirio est ligado ao acatamento. Encontra-se a o reverbero da luz ntima que produziu em S. Incio a viso do Cardoner e o reflexo de sua viso da contemplao de um Deus sumo, infinito e divino. Servir -

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 182

    com o que sofremos e padecemos. A salvao consiste no amor a Deus. Nesse

    amor, o homem sai de si mesmo sem voltar atrs,

    serve para que Deus seja servido, louva para que Deus seja louvado, pratica a reverncia para estar sempre prostrado diante de Deus no temor reverencial, de tal modo que a salvao da alma no o fim desse servio, mas seja j uma realidade nesse servio divino.410

    Ele tem e est marcado por uma direo que o arranca de sua tentao de

    autosuficincia. Em relao ao seu fim,

    o homem, em sua pura criaturidade dependente de Deus, est chamado constitutivamente por vocao a uma adorao gratuita, que se articula na existncia histrica e temporal dos homens, porque no louvor alcana sua plena condio de homem. Pela pertena, o homem est unido a Deus pelo vnculo do amor que conduz ao maior servio e este sua salvao.411

    Portanto, a abertura do ser humano transcendncia de Deus constitui o

    fundo do seu ser. O sentido ltimo de sua existncia est gravado nele. O ser

    humano no tem em si mesmo o seu centro. 412 Seu centro encontra-se unicamente

    em Deus. Da que o homem s se autocompreenda como recebido de Deus, e o

    seu para qu consiste em referir toda a sua vida ao louvor e servio de Deus.

    Assim sendo, sua vida ter salvao. Salvao proporcionada por um outro

    diferente de si, proposta gratuitamente por Deus que o coloca como centro da

    criao.

    a manifestao do sentimento interno de que est dominada a alma, que no pode deixar de cumprir perfeitamente a vontade de Deus. O servio constitui a idia central da espiritualidade inaciana: um servio essencialmente dinmico, em contnuo desenvolvimento para formas mais perfeitas. Usa comparativos, no superlativos (sempre maior, sempre mais...) como querendo excluir o limite de uma possvel medida no servio. Servio sinnimo de doao e entrega total por amor, de consagrao total a Deus (cf. IPARRAGUIRRE, Comentrio a los Exerccios Espirituales, p. 150 passim). 410 RAHNER, K. op.cit, p. 33 et. seq. 411ARZUBIALDE. S. G. Ejercicios Espirituales de S. Igncio: historia e analise. Bilbao/Santander: Mensajero/Sal Terrae, 1991, p. 75. 412 Ibid., p. 73. Deus nosso centro, pelo qual nosso corao ainda que ame outras coisas, no pode descansar. Nenhuma outra coisa o enche. Deus o alimento proporcionado ao corao. (Cf. NADASI, apud. In: IPARRAGUIRRE, I. Comentrio a los Exerccios Espirituales, Roma, 1967, p. 149).

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 183

    5.1.2. O ser humano e as outras coisas

    O homem no um elemento qualquer do cosmos. Ele est frente a

    frente com Deus. E tudo o que est fora dele e de Deus designa-se como as

    outras coisas. Isso significa que o que Deus pensou foi o homem, no o

    mundo.413 O homem no uma parte de um mundo, mas o mundo um elemento

    dele e para ele: o homem individual (eu) tem aqui uma resoluo absoluta, de tal

    modo que possa entender tudo quanto existe, o mundo inteiro somente como as

    outras coisas e, pelo contrrio, entender-se a si mesmo como quem est em

    dilogo com Deus.414 Quando se diz eu encerra-se todo o resto no crculo das

    outras coisas frente s quais a pessoa nica e incomensurvel, tendo como seu

    supremo companheiro somente a Deus.

    As outras coisas so tudo aquilo que se situa entre o eu mais profundo

    e Deus. Para K. Rahner, aqui entra muito de mim, com o qual sou realmente

    idntico e com que instintivamente tendo a identificar-me. Devo dar-me conta

    que, no puro eu, sou insubstituvel, no posso escapar dele, no posso descarregar

    minha responsabilidade nas realidades do marco que me circunda. Tal separao

    distanciadora uma tarefa eminentemente crist que reclama a vida inteira; e

    como caminho para a vida crist, resulta insubstituvel.415

    As outras coisas referem-se tambm aos objetos materiais de uso, s

    circunstncias de tempo, s pessoas ao meu redor, ocupaes, atitudes, inclusive

    natureza humana selada por decises livres, sade, enfermidade, honra, desonra,

    pensamentos, desejos. O processo de autolibertao se estende a todas as outras

    coisas. O que resulta a alma desnuda, a pessoa feita por Deus livre e

    responsvel de e por si, que se contrape a todos os demais, o aceita ou recusa, o

    ordena e marcha com sua deciso. Precisamente ao fazer isso, o homem alcana a

    Deus e a si mesmo, encontra a relao que medeia entre ambos. Trata-se de

    incorporar adequadamente as outras coisas ao servio, de integr-las para Deus.

    413 RAHNER, K. op. cit., p. 27. 414 Ibid. loc. cit. 415 Id. RAHNER, K. Meditaciones sobre los Ejercicios de San Igncio, Barcelona, 1971, p. 21.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 184

    Quanto mais positiva a relao do homem com as coisas, mais Deus

    cresce nele e vice-versa.416 Elas so o mbito do servio e da adorao. Elas so a

    situao irrenuncivel do homem, precisamente em ordem a chegar a Deus. As

    coisas a que renunciamos nem por isso se perdem, mas voltam a ns

    transfiguradas. Quem verdadeiramente capaz de deixar, se enriquece com a

    plenitude sempre crescente.417

    Segundo K. Rahner, no existe uma imediatez com Deus que permita

    eliminar sem mais essas outras coisas. Elas so o sacramento de Deus, o

    sacramento eficaz no qual Deus se nos d. Suas relaes entre ns e Deus,

    definitivamente, s se podem descrever com uma certa dialtica atravs do

    conceito de sacramento, com o qual desemboca irremediavelmente num mistrio

    que s pode consumar-se de algum modo na realidade concreta da existncia.

    Quando Incio diz que as outras coisas so um simples meio, deve-se acrescentar

    de um modo antropocntrico que o prximo querido por Deus, no

    simplesmente um meio, porque o homem no conta s com um entorno, com um

    contorno, com uma con-vivncia humana.418 Portanto, o ser humano um fim em

    si mesmo, portador de dignidade conferida por Deus que nele deixa suas marcas

    de origem e de finalidade.

    5.1.3. A busca da indiferena na relao com as outras coisas

    O Princpio e Fundamento afirma a centralidade da vocao do ser

    humano no plano da criao: as outras coisas sobre a face da terra so criadas

    para o homem e para o ajudarem a atingir o fim para o qual criado (23.3). No

    entanto, ter para com a criao uma relao limitada: o homem h de usar das

    coisas tanto quanto o ajudem para atingir o seu fim, e deve privar-se delas tanto

    quanto o impedem (Ex 23.4).419

    416 Ibid., p. 22 417 ARZUBIALDE, Ejerccios Espirituales de S. Igncio, p. 78 418 RAHNER, K. Meditaciones, p. 35 et. seq. 419 O encontro do Criador com a criatura se produz como um entramado relacional Deus-homem-mundo, cuja dinmica se esboa no Princpio e Fundamento. Por um lado, na relao com Deus est chamado a um descentramento, uma extroverso em louvor, referncia e servio; de outro, na relao com as coisas, acaba se firmando como o centro delas. Com isso no se justifica nenhum antropocentrismo, nenhuma prxis utilitarista do mundo. As coisas tm carter sacramental, esto tambm finalizadas como o homem, e justamente nesse marco hermenutico que Deus sai ao seu

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 185

    Fazer-se ativamente indiferente equivale ao longo processo da liberdade

    frente vontade divina com relao aos grandes pilares nos quais descansa a

    segurana entitativa do ser humano e de modo semelhante com respeito aos

    demais 420. Incio define a liberdade a partir da capacidade ou disponibilidade

    para (indiferena ativa) acolher a vontade divina. A indiferena a forma

    existencial da liberdade referida a Deus; resultado da experincia espiritual de

    Deus amor e Pai e est carregada de afeto. Corresponde experincia espiritual de

    quem sentiu que Deus lhe ama, e imagem de Deus como Pai e segurana

    absoluta em cujas mos o homem se abandona para achar nele a verdadeira

    liberdade. Um Deus fiel que se converte na autntica segurana do homem e ante

    o qual se resituam todos os afetos e a relao do homem com as coisas. No

    mesmo amor que Deus nos manifesta experimentamos um tempo liberdade e

    disponibilidade, ou seja, a incorporao positiva dos afetos ao agrado (servio) de

    Deus e a busca de sua vontade em todas as coisas.421

    Portanto, a indiferena a distncia necessria das coisas que torna

    possvel v-las com a objetividade requerida para uma deciso. 422 Ela se estende a

    todas as dimenses do ser humano, includas a sensibilidade e a corporeidade.

    Exige um distanciamento existencial e afetivo que liberta a vontade inclusive das

    pr-decises. Os exerccios tm em vista a indiferena ativa, em virtude da qual

    nos comportamos de modo que tanto o tomar como o deixar as coisas podem e

    devem colocar-se inequivocamente em nossa conta. A indiferena ativa se

    plenifica por sua vez na sbria e realista entrega do homem disposio de Deus.

    Deus quem nivela da nica forma adequada, as diferenas existentes na

    realidade do nosso ser, inclusive aquelas que nosso ser incapaz de equilibrar: o

    que conta deixar que o Incompreensvel disponha da gente, crendo que tal

    encontro, como se ver mais tarde na Contemplao para Alcanar Amor (Cf. RUIZ-PEREZ, Francisco Jose. Hombre, In: GARCIA JOSE, C (Dir). Diccionario de la espiritualidad , p. 946). 420 ARZUBIALDE, Ejerccios Espirituales de S. Igncio, p. 77 421 Ibid., loc. cit. 422 S. Incio no trata da teoria da indiferena, nem fala diretamente dela, mas s do modo como uma pessoa deva fazer-se indiferente. Pressupe conhecimento da norma de ordem, da convico de que s Deus pode constituir o ideal de sua existncia, mas no est no entendimento. A indiferena consiste numa disposio da vontade. a vontade determinada de abraar em cada caso o que seja mais conducente para o fim (Cf. IRRAGUIRRE, Obras completas de San Igncio, Madrid, 1963, p. 178).

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 186

    disposio obra de um amor infinito que preserva nosso ser espiritual do

    absurdo extremo.423

    A primeira dimenso na qual se busca a indiferena a corporeidade da

    existncia em sade e em enfermidade. Trata-se do biolgico, do instintivo, frente

    ao qual o nico fundamento Deus; a outra, a dimenso da auto-afirmao

    frente ao entorno pessoal das obras concebidas com inteno espiritual: honra,

    desonra, riqueza, pobreza; por ltimo, a totalidade da existncia humana como tal

    (vida curta ou longa). No nos pertencemos. A disposio da liberdade sobre ns

    mesmos consiste precisamente em deixar-dispor-sobre-si por Deus.424

    As outras coisas carecem de destino independente, e se ordenam ao fim

    do homem, centro da criao, para que lhe ajudem na prossecuo do fim. Da pura

    dependncia criatural segue que a relao ordenada do homem com as coisas, pelo

    correto uso delas, a ordem que se pretende para o cumprimento de seu fim: o

    louvor, a reverncia e o servio a Deus. O uso ordenado delas ou o tanto

    quanto constitui o mbito da adorao e do servio a Deus.

    Para que realize sua vocao, o ser humano leva frente um longo

    processo da liberdade diante da vontade de Deus com relao aos valores nos

    quais descansa sua segurana. necessrio, portanto, que o ser humano se faa

    ativamente indiferente. No se trata de uma fria ataraxia pela qual se aniquilam os

    seus afetos, mas de uma experincia espiritual de Deus Amor e Pai.425 uma

    indiferena carregada de afeto, de uma pessoa que sentiu que Deus a ama e

    imagem de Deus como Pai. Portanto, a vocao humana uma vocao universal,

    uma vocao aberta que arranca o ser humano de seu fechamento e o define como

    ser direcionado Transcendncia divina.

    5.1.4. Da indiferena opo pelo magis

    A essncia ntima da indiferena implica sua superao em uma deciso

    pelo magis. O tanto quanto da indiferena deve ser superado pelo que mais

    conduz para o fim da deciso mesma que a Deus toca exigir. Indiferena

    423 RAHNER, K. Meditaciones del Ejercicios, p. 26-27 424 Id. El sacerdcio, p. 42

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 187

    distncia das coisas com vistas a quer-las ou deix-las; deve, pois, transformar-se

    em no-indiferena. Ela no termina em si mesma, mas deixa passagem

    eleio das coisas que mais conduzem ao fim. liberdade para uma deciso que

    de Deus. a sua vontade, em ltima instncia, que se busca eleger.

    Da que a indiferena uma distncia das coisas que h que determinar

    luz de Deus: liberdade do homem que no pretende afirmar-se estoicamente,

    mas confiar-se a Deus, deixando a ele a ltima deciso.426

    A busca do magis indica, portanto, o dever sobre todos os deveres

    imaginveis e discutveis de amar a Deus com todo o corao, de tal modo que

    apenas mediante esse amor a Deus, em que todo o homem se entrega e se

    compromete sem reservas, o que deve ser, se ele quer encontrar definitivamente

    a Deus. Assim, a busca magis naturalmente a vontade para o melhor meio, para

    o caminho mais reto.

    Portanto, o magis da docilidade vontade divina, assim como o magis da

    relao positiva do homem com as coisas, o horizonte inesgotvel da liberdade,

    e o chamado comunho com um Deus sempre maior que, em seu amor

    providente, deseja entregar-se por completo ao homem (Ex. 234,2). O pano de

    fundo do magis precisamente a imagem de Deus, totalmente Outro e

    transcendente em seu amor, radicalmente dessemelhante dos pensamentos que se

    possa forjar Dele.427

    O horizonte da vocao antropolgica do Princpio e Fundamento Jesus

    Cristo. dele que se fala, foi ele quem realizou plenamente o louvor, a reverncia

    e o servio. Ele mais indiferente a todas as coisas, que concretizou o maior

    servio. No entanto, a formulao inaciana no fala da presena de Jesus Cristo.

    Porm, no se pode esquecer que Incio viveu numa poca na qual em geral se

    pressupunha a posse socio-cultural de Deus. A existncia de Deus no supunha

    nenhum problema cultural. Ao apresentar ao homem uma converso e

    ordenamento em sua vida, ele podia comear e argumentar espontaneamente com

    425 ARZUBIALDE, S. Ejerccios Espirituales de S. Igncio., p. 77. 426 RAHNER, K Meditaciones, p. 27-28 427 ARZUBIALDE, Ejerccios Espirituales de S. Igncio, p. 81

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 188

    o conceito de Deus mesmo sem mencionar Jesus. Deus podia ser concebido como

    aquele frente ao qual o homem podia e devia buscar o sentido da vida.428

    Na avaliao de Sobrino,

    no Princpio e Fundamento aparece uma concepo de Deus que ao menos em sua formulao poderamos chamar de filosfica (...). Mas o que nos interessa afirmar que o texto tal como chegou a ns prescinde metodologicamente de Jesus e supe que compreensvel sem o recurso a Jesus (...). O Princpio e Fundamento d uma sensao da concepo testa de Deus (...). Logicamente falando, no comea com o Deus de Jesus, mas com uma considerao da radicalidade da existncia humana (...). O pressuposto antropolgico para fazer os exerccios tomar a srio a existncia humana e a fortiori crist. 429

    Para Jon Sobrino, o esquema textual do Princpio e Fundamento no

    Deus de Jesus Jesus Deus de Jesus, mas Divindade Jesus Deus de Jesus.

    Portanto, o acesso propriamente ao Deus de Jesus s se dar nas meditaes do

    Rei Eterno, Bandeiras, e Trs Maneiras de Humildade.430

    Na mesma linha de reflexo situa-se Juan Luis Segundo. Para ele, no

    Princpio e Fundamento no s no aparece uma cristologia explcita que

    poderia ter sido explicitada ao longo dos Exerccios -, mas as relaes Criador-

    criatura no foram afetadas por nenhuma cristologia.431

    Na proposio do Princpio e Fundamento, segundo o autor, no h sinal

    algum de um mistrio de amor revelado em Jesus Cristo sobre os planos do Pai.

    O destino do homem no constitui exatamente um mistrio, mas a conseqncia

    de um raciocnio cujas premissas so, por uma parte, a natureza do Criador e, por

    outra, a natureza da criatura.432

    Para J. L. Segundo normal que assim o seja, no s para Incio, mas

    tambm para os seus contemporneos. Esse vazio cristolgico deve-se ao fato

    de a teologia ter se atado a um determinado paradigma filosfico na definio de

    Deus.

    428 SOBRINO, J. El Cristo de los Ejercicios de S. Igncio, Sal Terrae: Aqui y Ahora, 1990, p. 16. Cf. RAHNER, K. El Sacerdcio. Incio viveu numa poca para a qual Deus seguia sendo no fundo uma realidade evidente, independente da confisso a que se pertencia (p. 15). 429 Ibid., p. 22-24 430 SOBRINO, J. El Cristo de los Ejercicios de San Igncio, Id. Ibid., p. 25 431 SEGUNDO, J. L. O homem de hoje diante de Jesus de Nazar, p. 69 432 Ibid., p. 69.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 189

    O mistrio de Cristo no revelou o mistrio do Pai. Manteve-se fora dele. A Cristologia se desenvolveu por si mesma. Cristo foi visto em funo dos que criam nele e pertenciam a sua Igreja. O homem como tal, no que tange ao seu destino e vocao, ficou amarrado a uma concepo de Deus mais metafsica que cristolgica.433

    Para Iparraguirre, Santo Incio no s no fala explicitamente de Jesus

    Cristo como Criador no Princpio e Fundamento, mas nem sequer indica quem

    criou. Fala-se de um modo impessoal. Para assinalar o fim, usou na 1 redao s

    uma palavra: servir a Deus. Incio, segundo ele, se mantm num sentido

    teocntrico de Deus como o ltimo fim, similar ao modo como faziam os autores

    de sua poca. No fundo seu pensamento trinitrio, como aparece no modo pelo

    qual apresenta a redeno: realizada pelas trs pessoas divinas (Ex 102) na mesma

    linha da criao.434 Jesus Cristo no Princpio e Fundamento entra no s como

    Criador, mas como uma das criaturas postas por Deus ao servio do homem. o

    Redentor, o caminho para o Pai, o doador da graa e dos sacramentos.

    Arzubialde afirma que o Princpio e Fundamento no nomeia a Cristo.

    Portanto, no cristolgico. Est referido a Deus nosso Senhor. Ele fala da

    criatura e de seu Deus. A imagem diante da qual se acha situado o homem a

    de Deus enquanto Deus e Pai em sua absoluta transcendncia de amor.435

    Entretanto, segundo Arzubialde, implcita e veladamente, na medida em

    que, na imagem do homem, no fundo da liberdade humana, atematicamente, se

    acha includa por essncia a configurao com o Filho, projeto perfeito de

    adorao e salvao, achamo-nos no ncleo da cristologia implcita, no ato de

    liberdade de toda a sua densidade, sem poder prescindir da histria do Filho, que

    aparece nas trs semanas seguintes. Porque a obedincia filial forma parte da

    vocao criatural protolgica e da identidade crist definitiva onde a glria de

    Deus se manifestou em Cristo. Por isso, sua condio de enviado e disponvel

    frente ao querer do Pai desempenha a funo assimilativa do crente pessoa de

    Jesus. E pela disponibilidade da f o homem participa da mesma obedincia filial

    de Jesus, sentido ltimo de toda a criao. O que aconteceu historicamente na vida

    433 Ibid., p. 82. 434 IPARRAGUIRRE, I. Obras completas de San Igncio. Madrid: BAC, 1963, p. 167. 435 ARZUBIALDE, Ejerccios Espirituales de S. Igncio, p. 78

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 190

    de Jesus de Nazar a realizao definitiva e perfeita do louvor, reverncia,

    servio e perfeita adorao.436

    A indiferena, enquanto atitude existencial humana, leva em si a imagem

    do Filho. o modo dinmico de passar da imagem semelhana, da livre

    disposio obedincia amorosa vontade do Pai, na forma Christi. O homem se

    identifica com o Filho na medida em que reconhece e assume a vontade de seu

    Pai. Este seu modo existencial de crer, e o centro nevrlgico de toda possvel

    ascese, que consiste em estar disponvel para Deus. Para isso, requer a ao

    purificadora e libertadora do Esprito, que leva o homem a se colocar inteiro

    disposio da vontade divina para uma mais certa direo do Esprito.437

    Fiorito cr que no Princpio e Fundamento se trata expressamente de

    Jesus Cristo como pessoa a quem o Pai orientou na criao. De modo que esse a

    Deus Nosso Senhor, na mente de Incio, quer dizer Jesus Cristo Nosso Senhor.

    O Princpio e Fundamento seria a revelao do ponto cntrico que Cristo tem no

    plano de Deus e, conseqentemente, a revelao de que Cristo nosso Senhor,

    para o qual o louvor, a reverncia e o servio foi criado o homem e tambm os

    anjos, mesmo antes que historicamente existisse no tempo e, finalmente, a

    revelao de que, como Deus, mas tambm como homem, o fim ltimo de toda

    a criao.438

    Karl Rahner, referindo-se ao Princpio e Fundamento, apresenta uma

    fundamentao cristolgica da indiferena afirmando que a morte do egosmo

    pecaminoso no fundo uma realizao da existncia em unio com o Logos de

    Deus encarnado. Com efeito,

    ele a pura receptividade, o puro aceitar do Pai e a pura receptividade, o puro

    aceitar do Pai e a pura devoluo da realidade ao Pai. O Logos feito homem recebe a

    glria de seu Pai na dimenso de sua vida humana atravs da morte. Assim, essa

    indiferena est no fundo de nossa existncia gratificada, e enquanto tarefa de nossa

    liberdade passa a ser a realizao da existncia em Cristo e com Cristo. E assim, essa

    436 Ibid., p. 79 437 Ibid., 438 FIORITO, apud IPARRAGUIRRE, op.cit., p. 170

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 191

    indiferena sempre mistrio, pois renuncia ao entendido pelo incompreensvel, ao

    gozado pelo prometido, ao presente pelo futuro439.

    Isso significa que s queremos estabelecer-nos no abismo de Deus e que

    tudo o mais s afirmamos, aceitamos, desfrutamos e queremos enquanto querido

    por Deus.

    Na perspectiva inaciana, Jesus Cristo est presente implicitamente no

    Princpio e Fundamento.440 Este no pode ser desligado da vida e experincia

    espiritual de Incio da qual brotaram os Exerccios enquanto texto. necessrio

    acentuar o princpio da globalidade em se tratando dos msticos, pois sua vida e

    escritos devem ser vistos em unidade, conferida, no caso de Incio, pela

    cristologia. Na verdade, Incio no est ocupado em fazer afirmaes metafsicas

    a propsito da existncia de Deus e do ser humano. O Princpio e Fundamento

    est enraizado na vida, na histria de sua converso e em sua experincia

    espiritual cristolgica.441 Portanto, o Princpio e Fundamento deve ser

    compreendido sobre o fundo existencial e teolgico da experincia de Incio. Por

    detrs de sua redao subjaz a experincia espiritual da pura criaturidade, de que

    toda a criao saiu das mos de Deus e retorna a Ele e que essa experincia remete

    a Manresa.442

    439 RAHNER, K, El sacerdcio, p. 41 440 Cf. SHIAVONE SHIAVONE, P. La SS. Trinit negli esercizi spirituali di Ignazio di Loyola, Roma: Apostolato della Preghiera Edizioni, 2000, p. 33-41 441 Segundo Ruiz Perez, o Princpio e fundamento tem uma cristologia ainda latente e est redigido sem dvida desde o cristolgico. Porm, ser na segunda semana que essa cristologia reluzir com todo o seu potencial de sntese. No Rei eterno contemplado em seu mistrio de vida, morte e ressurreio se acha a explicitao histrica do Princpio e Fundamento (Cf. RUIZ PEREZ, F. J. Hombre. In: GARCIA DE CASTRO, J. (Org.). Diccionario de espiritualidad Ignaciana, Bilbao/Santander; Mensajero/Sal Terrae, p. 947). 442 Autobiografia, cap. 3 , n. 29 Uma vez se lhe representou no entendimento com grande alegria espiritual o modo com que Deus havia criado o mundo, que lhe parecia ver uma coisa branca, da qual saam alguns raios, e que dela para Deus lumbre. I. IPARRAGUIRRE e L. GONZLES fazem remontar o Princpio e Fundamento ao processo de converso de Incio: O Princpio no foi para Santo Incio nenhum princpio. Foi a concluso a que chegou depois de uma aguda crise interna. Incio se encontrou aos 30 anos desorientado. O Princpio e Fundamento, ou seja, a norma verdadeira para todas as circunstncias, a direo reta de toda ao, foi apresentando a seu esprito como resposta a esta busca interna. , pois, uma concluso psicolgica de um processo interior. No descansou at que deu com o Princpio clarificador, o caminho reto (Cf. IPARRAGUIRRE, Obras completas de San Igncio, p.133-134. Cf. tambm ARZUBIALDE, Santiago G. Ejercicios Espirituales de S. Igncio: historia e analises. Bilbao/Santander: Mensajero/Sal Terrae, 1991, p. 71-73). Provavelmente em Manresa Incio elaborou uma primeira redao embrionria de tal experincia, anterior a 1535, e outra entre 1536 e 1539, que a formulao final.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 192

    Como afirma Carlo Maria Martini, Jesus Cristo ocupa o lugar

    absolutamente central na histria da salvao. Desde o princpio dos Exerccios, j

    na anotao 4, faz compreender que tudo gira em torno dos mistrios de Jesus. No

    Princpio e Fundamento e tambm na Primeira Semana, tudo vem referido a

    Cristo.443 Alm disso, o conjunto dos Exerccios deve ser lido e interpretado

    dentro de chave da moderna teologia postulada pelo Conclio Vaticano II, que

    recupera o sentido da histria como lugar da experincia de Deus.444

    Nesse sentido, o Princpio e Fundamento encontrar o seu pleno sentido

    luz das outras semanas dos Exerccios, sobretudo na meditao das Duas

    Bandeiras como resposta ao Chamamento de Cristo, o Rei, que conduzir

    Eleio. de Jesus Cristo que se fala implicitamente no Princpio e Fundamento e

    diante dele tambm que se desenrola a Primeira semana dos Exerccios quando

    da meditao dos pecados.

    5.1.5. O pecado e a redeno pela mediao de Jesus Cristo.

    Todo ser humano, por ser uma pessoa, deve realizar sua prpria

    existncia como pessoa. A considerao do pecado faz o ser humano experimentar

    sua condio de pessoa que livremente dispe de si. Esta liberdade se caracteriza

    por sua definitividade, quer dizer, pelo oposto possibilidade de poder fazer de

    novo o que fez, de maneira distinta.445 Nesse sentido, ronda sempre a criatura o

    perigo ou de afirmar a si mesma contra Deus ou de no tomar a srio a criao no

    horizonte do Absoluto. Isso se explica mediante a realidade misteriosa do pecado

    humano.

    O Princpio e Fundamento para o ser humano o horizonte de

    realizao da vocao humana liberdade, que pode ser entendida como um

    permanente processo de personalizao que vigora enquanto tiver existncia. No

    entanto, como ser afetivo, o ser humano tende a vincular-se e absolutizar aquilo

    443 MARTINI, C. Ejercicios e historia de la salvacin: pecado y redencin. In: Los Ejercicios de San Igncio a la luz Del Vaticano II. Madrid: Bac, 1966, p. 108. 444 Ler os Exerccios Espirituais luz do Conclio ser entender com maior profundidade o contedo do carisma inaciano e servir melhor a Igreja (...). O resultado foi ver como fica mais iluminado com nova luz pelo Conclio o contedo teolgico e espiritual dos Exerccios (ARRUPE, P. Prologo, In ESPINOSA, C (org), Los Ejercicios de San Igncio la luz del Concilio Vaticano II, BAC, Madrid, 1966, p. XIX-XXI).

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 193

    que meio. A absolutizao de uma realidade finita comporta um atentado contra

    o sentido da liberdade, como poder e dever orientados ao infinito. a recusa a dar

    o salto ao infinito, a relativizar radicalmente todo o limitado de modo a super-lo.

    Se o Princpio e Fundamento apresenta o horizonte de realizao do ser

    humano, os demais exerccios da Primeira Semana, ao contrrio, revelam a

    realidade do drama que leva despersonalizao qual todos esto submetidos,

    ao mesmo tempo em que apresenta uma sada feliz da realidade do mal. Ela

    compe-se de cinco exerccios que se resumem numa trplice perspectiva,446 quais

    sejam, a histria do pecado - os pecados dos anjos, de Ado e Eva; a psicologia do

    pecado o pecado pessoal; e a escatologia do pecado - a experincia do inferno.447

    Nesses mesmos lugares, faz-se a experincia da pura dependncia de Deus

    salvador e da ruptura humana. Junto com a vergonha e confuso o homem

    experimenta o consolo do perdo e da misericrdia do Deus de Jesus no qual

    recriado.448

    Com o propsito de descrever toda a histria da desobedincia humana

    no contexto do plano da histria da salvao,449 Incio oferece a considerao e

    meditao de trs momentos diferentes, mas que esto unidos por um

    denominador comum: os Trs Pecados alteram, na sua raiz mesma, a relao de

    dependncia criatural de Deus: Trazer memria o pecado dos anjos, isto ,

    445 RAHNER, K. Meditaciones, p. 32 446 RAHNER, H. La cristologia del ejerccios. Talher para entender mejor los ejercicios de S. Igncio, p.2, mimeo. 447 A primeira semana relaciona-se com a experincia de Incio em Manresa na qual passou por um perodo de tranqilidade espiritual, seguido de profundas purificaes passivas. Ele mesmo no consegue por suas prprias foras arrancar de sua situao de pecado. Somente com a experincia da pura graa quis o Senhor que despertasse como de um sonho que recupera a liberdade enriquecida com dons. O que lhe salva no a prpria justia, mas a justia de Deus. Possivelmente, no perodo em que recebe grandes dons espirituais e a ilustrao do Cardoner que Incio redige os exerccios da primeira semana (Cf. ARZUBIALDE, op. cit., p. 120-122) 448 A primeira semana no parte de uma formulao da f mas desde a experincia na f de um acontecimento histrico, que funda razes no mais alm (pecado dos anjos) que atravessa toda a histria da humanidade (Ado e Eva) e lhe alcana para integrar em sua prpria histria. Todo o processo da primeira semana tem como meta ajudar o exercitante a tomar conscincia da presena do pecado nele e na histria como um conflito permanente cuja sada feliz possvel (EMOUNET. P. Primera Semana, In Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Mensajero/Sal Terrae, 2007, p. 1478. 449 O esquema dos exerccios est firmemente orientado segundo o movimento de histria da salvao. Mais ainda, esta a nota que caracteriza os exerccios de Santo Incio e os distingue de outras formas de exercitar, que esto mais apegadas a conceitos e temas abstratos (Cf. MARTINI, C. Ejercicios e Historia de la salvacion: pecado e redencion, p. 106). Histria da salvao quer significar que a salvao se nos oferece no tempo, na histria; que se oferece segundo uma

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 194

    recordar como foram criados na graa. No quiseram, no entanto, servir-se de sua

    liberdade para prestar reverncia e obedincia a seu Criador e Senhor (50,4). O

    mesmo ocorreu com Ado e Eva. Foi-lhes proibido comerem da rvore da

    cincia. Contudo, comeram e, assim, pecaram (...). Viveram sem a justia original

    que haviam perdido (51,4-5). Tambm aconteceu com relao ao pecado

    particular.Trazer memria a gravidade e a malcia do pecado contra o seu

    Criador e Senhor (52,2). Neste sentido, as trs situaes de pecado rompem com a

    lgica do Princpio e Fundamento de louvar, reverenciar e servir a Deus

    preferindo o ser humano fazer seu prprio caminho margem de Deus.

    Incio parte da considerao do ato criador de Deus e do chamado

    gravado no ser da criatura destinada comunho para definir o pecado como

    desobedincia e rebeldia, como recusa da dependncia e a busca de uma v

    autocomplacncia: Isso ir contra a providncia amorosa do Criador e ao mesmo

    tempo a destruio do ser humano em todas suas dimenses. O contrrio

    precisamente a comunho e a vida.450

    A desobedincia anglica451 foi interpretada pela Tradio como o pecado

    da soberba, origem de todo pecado, em funo dos anjos serem dotados de livre

    arbtrio. Usaram-no contra Deus. Quando o ser humano no quer servir-se de sua

    liberdade para fazer reverncia e obedecer a Deus (Ex 50,4) incorre no mesmo

    pecado cometido pelos anjos.

    O que Incio ensina na meditao do trplice pecado no o relato de

    certos acontecimentos passados, mas o entramado histrico e livre da situao em

    que vivemos. a considerao da pr-histria de nossa prpria existncia e de

    nossa deciso existencial. Os anjos cumprem a vontade de Deus de uma forma

    autnoma, emancipada da ordem do Deus infinitamente maior. O pecado dos

    anjos nos diz que o pecado um acontecimento do esprito e no da carne em

    sucesso e progresso temporal; que a chave de interpretao da histria, sua verdade; que a salvao o fim da histria, que tudo na histria tende a esta salvao. (Cf. Id., ibid.,p. 107-110) 450 ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de S. Igncio, op. cit., p. 136 451 Essa doutrina provm de Santo Agostinho e possivelmente chegou a Incio atravs de Santo Toms ou do Mestre das Sentenas. A descrio da criao de Ado e Eva no campo damasceno foi tomada por Incio da leitura de Ludolfo de Saxnia.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 195

    primeiro lugar. Por isso o perigo do pecado se d na fonte da existncia espiritual,

    quando o ser humano se faz orgulhoso, fechado e vazio de amor.452

    Em que pese toda a carga corporal, o que em ltima instncia determina

    o ser humano o fato de ser esprito, transcendncia aberta ao infinito de Deus.

    Isto o assemelha de algum modo aos anjos. Ambos esto abertos transcendncia

    e so portadores da graa sobrenatural.453 Se h pecado de anjo, ento no existe

    nada no mundo que um todo que seja de antemo imune ao pecado.

    M. C. Bingemer considera que o pecado dos anjos chama a ateno sobre

    o que constitui o ncleo essencial do pecado: recusar-se, na medida de sua

    liberdade em estado puro, ao movimento do ato criador e do apelo divino que ele

    significa. Essa recusa, nos anjos, exprime-se pela rejeio do fim para o qual

    foram criados: o louvor e a obedincia de Deus, seu Criador e Senhor, caindo

    assim no orgulho e na perverso.454

    Em sua interpretao, o movimento do pecado, como possibilidade da

    criatura, fundado sobre a natureza mesma do ser criado tem como finalidade

    ltima iluminar a compreenso do pecado do homem concreto: sua tentativa de

    transformar a obedincia em soberba, o servio em orgulho, a comunho em

    solido, buscando sua prpria glria e no a de Deus.455 Sua significao

    teolgica que o mal entra no mundo com a criatura, ou seja, o mal est no ser

    humano, ao mesmo tempo em que vem de mais longe que ele. Ele no existe em

    si, mas nosso. No desvio da glria de Deus para a glria do homem, cada um

    solidrio de uma desconfiana original.456

    Da mesma raiz partilha o pecado de Ado e Eva, agora no contexto

    histrico. O pecado de Ado criou uma situao da qual o ser humano no pode

    mais sair pelo prprio esforo voluntarista se Deus no tomar a iniciativa. Seu

    pecado rompeu a amizade com Deus tornando tudo diferente. Desencadeou uma

    fora que produz o mal, criadora de pecado que rompeu a solidariedade no bem

    para o qual o ser humano havia sido destinado no Princpio e Fundamento.

    452 RAHNER, Karl, El sacerdcio, p. 151 et. seq. 453 Id., Meditaciones, p. 48 454 BINGEMER, M. C. L. Em tudo amar e servir,, p. 181 455 Ibid., loc. cit. 456 Ibid., p. 182.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 196

    Todos somos solidrios no mal e, logicamente, essa resposta histrica e negativa

    da liberdade, tanto coletiva quanto individual, condiciona nossa resposta positiva

    a Deus e a comunho dos homens entre si. Entretanto, o homem no pode ser

    definido pelo pecado, mas pelo chamado graa da comunho que d a vida. Por

    isso, sempre que volta as costas a Deus, conseqentemente aparece a destruio

    moral, a in-comunicao humana, a perda da justia original e a corrupo do

    gnero humano que se expressa em suas vrias dimenses (Ex 51,2).

    O pecado do homem sempre um ato em relao com a realidade deste

    mundo, um ato do ncleo espiritual de seu ser que necessariamente se aventura no

    que o mundo. O pecado de Ado e Eva enquanto autodoxologia divide e separa

    o homem de Deus e dos outros homens. A alterao da doxologia na direo de

    uma glorificao do Outro e dos outros dever recolocar, progressivamente, o

    homem pecador e a histria no seu devido lugar.457

    Em terceiro lugar, Incio se detm no pecado grave particular como

    expresso do ato pessoal da liberdade humana. Nesse sentido, o ser humano deve

    se convencer que forma parte de um grande movimento de salvao, ou perdio,

    e que ator necessrio de uma Histria de Salvao aceitada ou recusada.458

    No momento em que o homem decide livremente romper a amizade com

    Deus na verdade coloca em jogo sua sorte definitiva. Ao destruir o fundo do seu

    ser a dependncia do amor (...) - destri a imagem de Deus no homem e nega o

    mesmo Amor, indo contra a bondade infinita, porque Deus est radicalmente

    vinculado ao ser do homem e no ser do homem se acha gravada a imagem de

    Deus.459

    Como ltima e mais importante etapa do primeiro exerccio, Incio

    indica que tudo deve terminar num colquio com Cristo Crucificado:

    imaginando Cristo, nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colquio: como, de Criador, se fez homem e como, da vida eterna, chegou morte temporal e assim morreu por meus pecados. Igualmente, olhando para mim mesmo, perguntar o que tenho feito por Cristo, o que fao por Cristo e o que devo fazer por Cristo.

    457 Ibid., p. 183 458 MARTINI, art. cit, p. 112. Cf. GS 12, 15-17, 24, 30-32 e LG 9, 12, 39-42. Partilha com os anjos, Ado e Eva a mesma condio solidria no mal. 459 ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de S. Igncio, p. 141.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 197

    Enfim, vendo-o nesse estado, assim, suspenso na cruz refletir naquilo que me ocorrer (Ex 53).

    Na esteira no Novo Testamento (Rm 5), o pecado a resposta negativa

    ao amor de Deus que nos entregou seu Filho e ao convite de identificao com

    ele.

    S desde a plena manifestao desse amor de Cristo podemos conhecer

    plenamente a gravidade do pecado. Ele , enquanto cabea e novo Ado, a nova

    iniciativa divina, a fonte e o princpio da salvao (...). S a morte de Cristo nos

    reconciliou e nos tirou de nossa condio anterior de mpios e pecadores.460

    Nesse sentido, a cruz de Jesus o resultado histrico do pecado dos anjos, de

    Ado e Eva, do pecado da humanidade e tambm do pecado de cada homem.

    Na cruz, como revelao da plenitude trinitria, aparece o amor do Pai

    aos homens no corpo de seu Filho crucificado. Deus se mostra como Pai no

    perdo. no corpo do Crucificado que conhecemos o Pai que entrega seu Filho

    por amor para resgate da escravido do pecado.461 Deus onipotente se fez

    impotente pela fora do amor; porque pela fora do amor que tem ao ser humano

    ficou amarrado para o castigo, preso nos laos da justia do amor. De outro lado,

    na cruz se reconhece a obedincia do Filho, em amor que o une ao Pai seu mesmo

    ser de Filho. Incio coloca desde o incio o ser humano frente a Cristo em sua

    condio Kentica. Porque s nele se reconhece a resposta de Deus

    desobedincia histrica da humanidade e o mistrio do ser humano, a capacidade

    da liberdade. Sua submisso por amor vontade do Pai nossa verdadeira justia

    e salvao.

    Se a desobedincia humana a equivocada

    ascenso do desejo pela inclinao da soberba que culmina na destruio e desmembrao humana, a obedincia a descida do Filho pelo caminho do esquecimento, princpio de vida e comunho. o descenso sem limites do Incondicionado, que se abaixa at o sem fundo do dio e da destruio para arrancar-nos do lugar em que havamos ficado submergidos e para outorgarnos a comunho com Deus.462

    460 Ibid., p. 142 461 Ibid., p. 143. 462 Ibid., 144

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 198

    E o mais importante para Incio que tendo Cristo morrido por mim, a

    sua superao termina na disposio do fazer algo por Cristo, portanto no

    desafio de seguir e escolher o seu caminho. Na verdade, as meditaes sobre o

    pecado acabam por construir uma prxis transformadora (Ex 56, 53), da

    transformao do homem. Reata-se assim a relao pessoal de amizade com Deus

    mediante a graa do perdo que provoca o desejo do seguimento de Jesus.

    Na mesma perspectiva coloca-se Karl Rahner ao reconsiderar o trplice

    pecado desde a perspectiva do colquio. A graa na qual viviam os anjos, sua

    vocao vida trinitria de Deus, tal como Deus em si mesmo, era j uma

    graa de Cristo, querida por Deus porquanto queria sua autodoao no vazio que

    no Deus na carne de Cristo. Da se projetou e decidiu toda a realidade,

    inclusive a dos anjos como espritos pessoais e foras estruturadoras do mundo

    material, da carne de Cristo. A conseqncia necessria que o pecado dos anjos

    constitui um no explcito ou implcito tambm encarnao do Logos.463

    O que em ltima instncia est em jogo a liberdade como possibilidade

    fundamental do definitivo, do irreversvel, do que permanece para sempre. Por

    isso, o pecado dos anjos um acontecimento fundamental localizado na

    profundidade irrefletida de nossa prpria existncia; um fato existencial inserido

    na origem criada do mundo, da histria do esprito e da matria, ao qual sempre

    devemos dizer no.464

    O pecado dos anjos vai dirigido contra Cristo. O estar submetido ao

    Logos na carne tem para eles um alcance ontolgico real. Cristo uma dimenso

    existencial decisiva no ser dos anjos, o que possvel somente porque o Pai

    sempre quis o seu logos como criatura e, a partir da, projetou a realidade

    inteira.465

    O mesmo deve ser dito sobre o pecado de Ado e Eva. A este mundo

    pertence desde sempre, em seu projeto inicial, o Filho de Deus feito homem.

    Portanto, Ado com seu pecado resiste ao amor de Deus, a sua criao, cujo Alfa

    463 RAHNER, K, El sacerdcio, p. 52 464 Ibid., p. 53 465 Ibid., p. 49

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 199

    e Omega Cristo. A graa de Ado, anterior queda, deve ser entendida como

    graa de Cristo.466

    Nesse sentido, a redeno no consiste simplesmente na eliminao deste

    constitutivo existencial originrio, mas na consumao que se realiza no

    entroncamento radical disposto por Deus entre pecado e conseqncia do pecado,

    cumprindo assim a redeno, coisa que o ser humano recusa reconhecer, porque,

    em ltima instncia, ele quer a rvore do paraso, no a rvore da cruz.467

    O mesmo deve ser dito em relao ao pecado pessoal. Santo Incio

    deseja que o ser humano reconhea o que significa um pecado cometido na

    presena de Cristo. O pecado a lcida emancipao de Deus pelo amor

    prpria excelncia e a recusa implcita do Verbo encarnado, fonte de graa e

    salvao.468 Ao mesmo tempo, porm, o ponto central no parece consistir no

    conhecimento da malcia do pecado considerado em si mesmo, mas na

    experincia de salvao que Cristo crucificado oferece ao ser humano como sada

    feliz da situao na qual se encontra.

    O ser humano se v mergulhado na histria do pecado da humanidade

    pela dimenso solidria do seu ser e pela solidariedade com os demais seres

    humanos que tambm esto no mal. No podendo sair por si mesmo dessa

    situao, necessitou da salvao trazida por Deus na cruz de Jesus. Entretanto, o

    pecado tende a ocultar-se mediante justificativas vrias. Por isso, Incio insiste na

    psicologia do pecado, para que o ser humano, no aprofundamento da qualidade

    dos seus sentimentos, descubra e aprofunde sua identidade diante de Deus e

    recupere o caminho da verdadeira liberdade para a qual foi constitudo (Ex 23).

    Trazendo memria os pecados da vida relativos ao lugar e casa onde

    morou, ao relacionamento estabelecido com as pessoas e s ocupaes assumidas

    (Ex 56) e, levando em conta a fealdade e malcia do pecado (Ex 57), Incio

    estabelece uma comparao qualitativa e ontolgica com a criao e com

    Deus:469 quem sou eu comparado com as pessoas, quem so os seres humanos

    466 Id. Meditaciones, p. 49 et. seq. 467 Ibid., p. 55. 468 ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de S. Igncio, p. 140. 469 Ibid, p. 148

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 200

    comparados com os anjos e santos do paraso, o que a criao inteira diante de

    Deus (Ex 58). Aqui, j no se olha tanto os pecados em geral, mas o ser pecador

    diante de Deus. Nessa constatao da distncia existente entre Deus e o homem,

    recupera-se a dimenso ltima da liberdade humana ao amor: s a experincia de

    Deus enquanto Deus, Amor e Pai desvela o mistrio da liberdade humana e neste

    sentido do ser do homem.470

    O ser humano levado a rever sua dimenso de horizontalidade nas

    relaes que estabelece no espao, tempo, com as pessoas, a vida profissional e

    ver a a profundidade e gravidade de seu pecado. Diante de Deus d-se conta de

    que o pecado um atentado contra a imagem de Deus no homem. A ruptura da

    amizade com Deus destri a capacidade de amar e a verdadeira liberdade do

    homem. O amor a imagem de Deus no homem: um ser criado para a liberdade e

    a relao de servio.

    A comparao com a multido dos homens leva a advertir um elemento

    peculiar no pecado: pelo pecado o ser humano apenas mais um na multido,

    um nmero na coletividade, perdendo seu prprio valor pessoal o qual deveria

    conservar inteiramente em Deus: a impersonalidade asfixiante do anonimato que

    hoje pesa sobre o mundo , no fundo, a justa verso de meu pecado.471

    No segundo ponto, Incio pede ponderar os pecados, olhando a fealdade

    e malcia de cada pecado mortal, vendo quem sou eu comparado com as pessoas,

    estes comparados com os anjos e santos e com a criao inteira diante de Deus.

    Faz-se aqui a experincia kentica de se perceber pequeno, insignificante e

    impotente dentro de todo o contexto do universo criado; o homem atirado em

    cheio dentro do nvel teolgico. A comparao a ser feita agora de si com o

    prprio Deus.472

    Antes do colquio, Incio, no quinto ponto, pede que o exercitante faa

    uma exclamao admirativa com grande afeto, repassando todas as criaturas:

    como me deixaram com vida e nela me conservaram! Os anjos, embora sejam a espada da justia divina, como me suportaram, protegeram e rogaram por mim. Os

    470 Ibid., loc. cit., 471 RAHNER, K., Meditaciones, p. 55 472 BINGEMER, Em tudo amar e servir, p. 184

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 201

    santos, como intercederam e protegeram e rogaram por mim. Igualmente os cus, a lua e as estrelas, com os elementos, as frutas, as aves, os peixes e os animais. Tambm a terra, porque no se abriu para me engolir, criando novos infernos em que eu penasse para sempre (Ex 60).

    O homem, chamado por vocao a buscar e encontrar Deus em todas as

    coisas, por sua pecaminosidade, imprime no dinamismo positivo da criao uma

    trajetria adicional que a emancipa da ordem desejada por Deus. Ou seja, o

    pecado atinge uma dimenso csmica que afeta toda a criao.

    Para Incio, toda criao boa, tem como fim a glria de Deus, carece de

    destino independente e se ordena para a relao positiva do homem a ela, a

    adorao e o servio de Deus. Toda ela saiu um dia das mos de Deus em Cristo e

    toda ela retorna ao Pai na liberdade humana, que a imagem do Filho.473

    O problema est em que o ser humano, por sua histria de pecado, faz

    com que a criao tenha como fim a prpria glria,474 apagando nela as marcas de

    Deus. dessa desordem que saem tantos pecados e maldades (Ex 58,5) e d um

    fim oposto ao plano original da salvao. Pela comparao gradual e qualitativa

    do seu ser com o resto da criao, pela qual simultaneamente ascende at Deus e

    desce ao fundo da existncia, o homem se v s diante de Deus.

    A distncia ontolgica que separa Deus do homem coloca s claras no

    s a infidelidade ao Amor que Deus lhe tem, a leso de uma relao de amor, mas

    tambm a dignidade Daquele contra quem pecou, o horizonte teolgico da

    liberdade e de seus direitos absolutos sobre o ser humano. A dimenso teologal do

    pecado o marco referencial para a inteligibilidade de sua gravidade, fealdade e

    malcia. Nesse sentido, o pecado , a um s tempo, a negao da distncia e da

    dependncia, que em ltima instncia a negao do prprio homem.

    A nica alternativa que lhe resta da comparao ontolgica entre seu

    nada, entre o abismo do pecador e Deus s pode ser a expresso de admirao

    expressada no colquio pelo agradecimento de ter sido mantido com vida. E o faz

    com a intercesso da criao inteira se convertendo em linguagem da

    473 Ibid., p. 153 474 Ibid., op. cit.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 202

    transcendncia e expresso da misericrdia divina.475 Com isso, aceita-se a

    prpria verdade de pecador ante o mistrio da transcendncia amorosa de Deus

    acolhedor para acolher sua linguagem e deixar-se perdoar. A salvao dom

    gratuito que Deus oferece histria da liberdade pecadora.

    O segundo exerccio termina com o colquio da misericrdia, falando e

    agradecendo a Deus nosso Senhor por lhe haver dado vida at ento: Nosso

    Senhor refere-se a Cristo que ocupa o lugar central. Segundo K. Rahner, o texto

    do colquio de misericrdia convida o ser humano a situar-se desde o princpio

    diante da cruz e da refletir sobre sua situao e, deste modo, ver todos os eventos

    da histria do pecado como fases da histria da salvao que, no fundo, conduzem

    para a cruz de Cristo e por ela se resolvem. Ao mesmo tempo, meditamos a

    solidariedade no pecado e na salvao. Tambm os fatos de perdio levam

    cruz; so compreensveis e explicveis unicamente na cruz.476

    S se compreende o pecado se se compreende a cruz e a misericrdia

    soberana de Deus. Unicamente podemos iniciar algo com o pecado, quando, sem

    pretender separ-lo da rvore da cincia do bem e do mal, samos do mesmo para

    refugiarmo-nos na glria soberana da vida de Deus. Por isso, o colquio constitui

    o ncleo dessa meditao. S colocando-nos de antemo ante a plena revelao da

    graa divina na morte do Verbo de Deus encarnado podemos entender algo

    concreto do pecado. Tudo isso significa que a graa de Deus abarca a realidade do

    pecado. A graa de Deus, o amor de Deus, sua vontade salvfica realmente em

    Jesus Cristo maior que o pecado.477

    Incio, no terceiro exerccio, que repetio dos anteriores, insiste em

    aprofundar o pecado na interioridade do ser humano. Depois de orientar para que

    se demore mais naqueles pontos onde se sentiu maior consolao, desolao ou

    sentimento espiritual, para que se alcance a graa do Filho, pede sentir

    conhecimento interno de meus pecados, detestando-os; sentir a desordem de

    minhas operaes, para que as detestando, corrija-me e ponha-me em ordem;

    pedir conhecimento do mundo, para que, detestando-o, afaste de mim suas

    vaidades e futilidades (Ex 63). Fazer o mesmo para alcanar a graa do Pai.

    475 Ibid., p. 155. 476 RAHNER, K. Meditaciones, p. 47

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 203

    Arzubialde afirma que esse conhecimento interno do pecado refere-se

    categoria teolgica contra Deus, cujo expoente definitivo no outro seno o

    crucificado. Sem sua cruz nunca seria possvel chegar a compreender a essncia

    ntima da separao da Vida, que Deus.478 Por outro lado, a desordem das

    operaes s poder se restabelecer quando Deus derramar sua misericrdia na

    interioridade mais profunda do corao humano. O conhecimento do mundo

    revela as foras antagnicas do pecado social contextualizado no mbito

    econmico-social-poltico, ideolgico e cultural que so obra histrica do pecado

    da humanidade em aberta oposio realidade humilde de Deus encarnado at o

    extremo da cruz.

    O exerccio concludo com o colquio Trindade. no Amor que o

    homem ascende, atravs do Filho, mediador, at o Pai de misericrdia, origem do

    perdo (Ex 63,6). O Esprito Santo faz-se presente possibilitando ao exercitante

    continuar sua experincia em busca do perdo de Deus. Maria aparece como a

    intercessora, como a porta que d acesso vida trinitria. Depois se dirige ao

    Filho para que como intercessor e nico mediador pelo seu sangue lhe mostre e d

    acesso ao pai, origem da salvao. Por ltimo, o exercitante se dirige ao Pai na

    espera de que Ele lhe conceda a salvao.

    A meditao do inferno, com a qual finaliza-se a primeira semana,

    apresenta a real possibilidade da liberdade humana recusar a graa de Deus. A

    graa pedida a Deus no exerccio a de fazer a experincia sensvel da separao

    de Deus o conhecimento interno da pena que padecem os condenados. Objetiva

    conhecer sensivelmente o pecado a fim de no cometer mais pecado grave. Ao

    mesmo tempo, pretende que o homem valorize o dom gratuito da salvao, a

    comunho com Deus. O exerccio ordena ao louvor da misericrdia divina por ter

    sido livrado do pecado e um tempo de graa para mais am-lo e segu-lo.

    O exercitante convidado a mover os cinco sentidos internos da

    imaginao sensibilizando a separao de Deus. O seu contedo o reverso das

    dimenses do amor de Cristo que ultrapassa toda medida e conhecimento. Ver

    com os olhos da imaginao as grandes chamas e as almas como corpos

    477 Id., El Sacerdcio, p. 57 478 ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de S. Igncio. p. 163

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 204

    incandescentes (Ex 66); aplicar o ouvido aos choros, alaridos, gritos, blasfmias

    contra Cristo nosso Senhor e todos os seus santos (Ex 67); com o olfato sentir o

    cheiro da fumaa, do enxofre, das cloacas da podrido (Ex 68); com o paladar,

    provar coisas amargas lgrimas, tristeza e o verme da conscincia (Ex 69); tocar

    com o tato as chamas que atingem e abrasam os condenados (Ex 70).

    Essa orao contemplativa ou meditativa sobre a perda de Deus s pode

    ser levada adiante desde o mistrio de Cristo. S a partir do mistrio da salvao

    torna-se possvel perder Cristo e nele o amor do Pai.479 O exerccio possui uma

    estrutura dialtica tanto no que se refere petio condicional (Ex 65,5) como

    pelo contedo, que oscila entre a experincia sensvel da perdio e a ao de

    graas pela salvao. Entre ambas, Incio apresenta a experincia sensvel da

    perdio. Esta a possibilidade concreta do homem voltar as costas a Deus ou

    perder a graa da amizade. Perd-la fazer a experincia da morte, que equivale

    ao pecado enquanto separao.480

    De acordo com Arzubialde, a perdio s pode ser pensada em termos

    personalistas de relao existencial e de liberdade, em termos de separao ou

    aniquilao do amor, desde o qual todos temos certa experincia.481 Perder-se

    recusar Jesus Cristo, o amor e a liberdade oferecida por Deus (Ex 71). Isto

    significa levar a srio a liberdade humana diante de Deus.

    Ao dispor de ns mesmos como realidade total na deciso da liberdade frente s pessoas e s coisas, em primeiro lugar, nos definimos ante Deus; porque no mesmo ato da liberdade a quem aceitamos ou recusamos sempre, em ltima instncia, a Cristo. Por isso, preciso considerar a possibilidade de que este dom to precioso da liberdade recuse frontalmente a Deus em sua deciso, mesmo atemtica, sobre os bens finitos intramundanos.482

    No exerccio do inferno preciso compaginar a afirmao relativa

    possibilidade real de uma condenao eterna, como constitutiva da mesma

    natureza da liberdade, com a obrigao de esperar para todos os homens a

    salvao em Cristo. Dizer que Jesus quem julga equivale a revestir o juzo do

    aspecto da esperana. Por este motivo o inferno se deve propor sempre como uma

    479 Ibid., p. 179 480 Ibid., p. 181 481 Ibid., loc. cit. 482 Ibid. p. 182.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 205

    possibilidade real que acompanha o convite gratuito converso, a vida e a ao

    de graas (Ex 71, 3-4).

    A meditao do Inferno indica, segundo K. Rahner, que o nosso pecado

    j , no fundo, solido infernal, trevas, queimao absurda. O que chamamos

    inferno, na realidade, s sua ltima e definitiva culminao. A possibilidade do

    inferno, que resulta da livre ao do homem, a conseqncia lgica da situao

    humana que recusa a misericrdia de Deus.483

    M. C. Bingemer afirma que na meditao do inferno, ao procurar v-lo,

    ouvi-lo, senti-lo, sabore-lo e toc-lo, o homem na realidade apalpa a ausncia de

    Deus. E, aps a aplicao dos sentidos sobre esta realidade de negao extrema, o

    texto coloca o homem diante da descoberta de ter sido dela preservado pela

    piedade e misericrdia de Deus.484.

    Martini, por sua vez, destaca o aspecto escatolgico que apresenta esta

    meditao e que imanente Histria da Salvao. Nesta, Cristo ocupa o lugar

    central. Ele a nica esperana de salvao frente separao e solido total que

    surge ameaante do interior do homem; na fase atual da histria da salvao h

    uma possibilidade real da recusa de Deus. Afirma tambm que ela a

    considerao da inverso do fim da Histria da Salvao, que a comunho com

    Deus, 485 na posse do Reino definitivo.486 A este fim se ope a frustrao total

    dessa tendncia da Histria da Salvao, o vazio de Deus, a misria da separao

    e da solido total. O fim especial dessa meditao fazer ver a imensido do

    fracasso que se experimenta quando no se pode j esperar nunca o fim ao qual

    tende toda a histria humana em Cristo.487

    A passagem do no-ser ao ser se opera passando progressivamente do

    pecado pessoal em ato inclinao do corao e as estruturas sociais, para aceitar

    finalmente, por um ato de plena liberdade, a redeno operada por Cristo na cruz.

    Ante a cruz, a conscincia de seu prprio pecado escava nele o lugar nico de

    Cristo como quem o faz viver ao arranc-lo do no ser e quem transforma a

    483 RAHNER, K. Meditaciones, 93 484 BINGEMER, op. cit., p. 185 485 DV, n. 2. 486 LG, n.9 e 48 487 MARTINI, art. cit., p. 114 et. seq.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 206

    histria do mal em histria de salvao.488 A cruz de Jesus, portanto, recupera a

    liberdade de (escrava do pecado) e conduz liberdade para (o seguimento de

    Jesus).

    Pode-se dizer, diferentemente do Princpio e Fundamento, que, para

    Incio, Jesus Cristo aparece explicitamente como horizonte da antropologia da

    primeira semana dos Exerccios, cujo cume se deixa ver no exerccio 53

    imaginando Cristo nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colquio,

    mas tambm o centro das semanas seguintes onde a vocao antropolgica se

    explicitar sua imagem.

    5.2. A vida de Jesus, horizonte da pessoa humana

    Assim como no Princpio e Fundamento, discute-se se de fato h uma

    centralidade de Jesus Cristo no conjunto dos demais exerccios espirituais. Juan

    Luis Segundo avalia que h um vazio cristolgico, no s no Princpio e

    Fundamento, mas tambm nas demais semanas. Vazio cristolgico, porque a

    cristologia, segundo ele, no influenciou na definio de quem seja Deus em

    funo da influncia da filosofia metafsica e tambm do princpio da prova e da

    lei que influenciava o modo de fazer teologia e de viver a espiritualidade.489

    Mais uma vez, preciso reportar vida e experiencia de Incio para

    entender o lugar que nela ocupa Jesus Cristo. Segundo Hugo Rahner, sua

    experincia mstica foi profundamente cristolgica. Cristo o Sol da vida de

    Incio. Isto vale tambm para a elaborao dos Exercicios. O clmax da formaco

    cristolgica de Incio, e de suas experincias espirituais foi a viso de Storta onde

    Incio, vendo o Pai e o Filho com a cruz ouviu: Quero que nos sirvas.490

    Portanto, para a compreenso de quem seja o ser humano no h outro caminho e

    lugar que no seja contemplar a vida de Jesus Cristo.

    A antropologia da Segunda Semana, como nos informa a 4 anotao (Ex

    4), se deixa verificar na contemplao dos mistrios da vida de Cristo (Ex 19). A

    contemplao levada adiante tendo em vista o objetivo de fazer a eleio daquilo

    488 PIERRE EMUNE, art. cit., p. 1798 489 SEGUNDO, J. L. O homem de hoje diante de Jesus de Nazar, Vol. II, Paulinas, 1985.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 207

    que Deus apresenta ao exercitante como sendo a sua vontade: que devo fazer por

    Cristo?491 O exercitante convidado a sair de si e colocar-se na perspectiva do

    outro Jesus histrico e de seu projeto.

    Segundo M. C. Bingemer,

    o contedo antropolgico da segunda semana cristolgico: a vida de Cristo ou, na linguagem inaciana, os mistrios da vida de Cristo Nosso Senhor, entremeados com as grandes meditaes inacianas que tm Jesus Cristo como centro (Ex 261) (). O contedo da segunda semana , pois, Jesus Cristo que chama e interpela o homem desde o incio (Ex 95). Incio prope, ento, a seu exercitante uma nova gnese, um novo nascimento para essa vida verdadeira (Ex 139), a fim de que seja possvel um seguimento concreto e real do mesmo caminho de Jesus, uma entrada no processo kentico e encarnatrio.492

    Tudo se inicia com o exerccio do Reino: o chamado do Rei temporal

    ajuda a contemplar a vida do Rei Eterno (Ex 91,1). Utiliza-se do mtodo da

    imaginao para fazer composio vendo o lugar. A graa pedida a de no ser

    surdo a seu chamado, mas pronto e diligente para cumprir sua santsima vontade

    (Ex 91,4). O exerccio do chamamento indica que toda a vida de Jesus, at seus

    ltimos pormenores, chamado que pede do exercitante discernimeno no

    momento presente e ao mesmo tempo uma resposta.

    O exerccio do chamamento do Rei Temporal desempenha uma funo

    chave de leitura cristolgica de todas as contemplaes da vida de Cristo.

    Explicita o tema do servio de Deus e a vocao do homem anunciada no

    Princpio e Fundamento (Ex 23). Por isso , em certo sentido, a pea equivalente

    ao Princpio e Fundamento das etapas que encaminham eleio. uma ulterior

    penetrao cristolgica no misterio que encerrava o Princpio e Fundamento.493

    A cristologia que se explicita nas expresses Jesus, Senhor, Rei Eterno,

    infinita bondade, santssima Majestade indica o Cristo glorioso, o Senhor Jesus, o

    Kyrios exaltado, que proclama kerigmaticamente o grande projeto de salvao e

    490 RAHNER, H. La cristologia de los Ejercicios, p. 1 491 Teologicamente considerados os exerccios no so seno uma eleio: a eleio dos meios e da forma concreta de fazer o cristianismo realidade vivente em ns. S isto importa a Santo Incio: que o homem se situe ante o chamamento do rei temporal e a meditao das duas bandeiras e pergunte: que devo fazer; na soberania de tua vontade, que queres de mim (RAHNER, Meditaciones, p. 13 et. seq.). 492 BINGEMER, Em tudo amar e servir: mstica trinitria e prxis crist em Santo Incio de Loyola. So Paulo: Loyola, 1990, p. 194

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 208

    que exorta a participar dos trabalhos da paixo, como necessidade intrnseca para

    chegar vitria final:

    O misterioso descenso (labor) do Filho do homem, que ser depois concretizado no momento da oblao, o fator determinante e o modo pelo qual a liberdade pessoal incorporada ao mistrio da salvao. Da se segue que no se deve ser surdo ao chamamento (Ex 91,4) (). Tudo isso a chave cifrada da incorporao ao mistrio do Reino e experincia da salvao.494

    Na kenosis do Cristo, que Incio prope contemplao do exercitante

    o prprio Deus, a Divina Majestade que se humilha e aniquila, vindo em direo

    vida verdadeira. O mistrio divino para Incio um mistrio de pobreza e

    majestade, da glria mais fulgurante revelando-se no servio mais humilde.495

    Trata-se de escutar o chamado do Senhor para verificar a resposta que tal

    chamado suscita, suplicando de Deus a graa, que possibilite e eleve a resposta

    altura tica das exigncias (o magis) do Reino. Pretende-se obter a graa de poder

    assumir uma vontade salvfica genrica em sua mais ntima radicalidade, de modo

    que o homem possa assinalar-se em todo servio.

    Atravs da contemplao dos mistrios do Cristo, o homem

    introduzido e configurado ao verdadeiro mistrio que Jesus Cristo, no qual o

    Deus Uno e Trino vem ao seu encontro. O chamado do rei temporal e do Rei

    Eterno , na verdade, uma resposta. O Deus de Incio, alm de ser Aquele que

    chama primeiro, Aquele que responde primeiro: seu chamado resposta

    grande questo suscitada pelo Crucificado com a qual o homem acabou de se

    defrontar na primeira semana. 496

    O Rei Eterno e Senhor Universal o Servo de Jav. O caminho de Deus

    e o caminho do homem se encontram e se confundem em Jesus Cristo. A glria

    suprema da vida humana o servio na pobreza, na ignomnia e nas injrias, no

    seguimento de Jesus de Nazar, o servo de Jav, o Rei Eterno e Senhor Universal,

    o Filho de Deus encarnado.497

    493 ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de S. Igncio, p. 222. 494 Ibid., p. 225 495 Ibid. p.195 496 Ibid., p. 196 497 Ibid., p. 200

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 209

    Segundo K. Rahner, a meditao do Reino a meditao fundamental da

    Segunda Semana, pois mostra que os exerccios inacianos so exerccios de

    eleio. Incio deseja que o exercitante tire valor de uma eleio que compromete,

    que afeta concretamente sua vida.498 Na meditao, trata-se antes de tudo de

    descobrir, na vida de Jesus, o imperativo, vlido para mim, de encontrar a eleio

    adequada. Esta meditao tem como objetivo fundamental trabalhar a disposio

    incondicional da eleio.

    Os traos histricos da parbola se apiam de um lado no pano de fundo

    humano universal ou metafsico-antropolgico: a existncia do homem

    substantivamente deciso lutadora at o fim, histria irrepetvel que leva a um

    objetivo definitivo. De outro lado, a parbola se baseia na histria da salvao, a

    partir da imagem da cruzada. H um reino de Deus e um reino de Satans. Ambos

    se entrelaam desde que, com a vinda de Cristo, colocou-se uma situao radical e

    total de deciso. A cruz de Cristo j vitria sobre o Senhor deste mundo. A

    imagem do Rei consente outra concretizao universal e crist da parbola. Esta

    imagem conduz a Cristo como Filho do homem que , para cada um de ns, o tu

    absoluto ao qual tendemos.499

    No primeiro prembulo, o Senhor, com quem tratamos, permanece

    eternamente aquele que num determinado tempo viveu na Palestina. , sim, o Rei

    da glria, o transfigurado, o elevado direita de Deus. Mas, para encontr-lo, o

    ser humano tem que saber, por uma autntica anamnesis de ndole eclesial-

    sacramental e contemplativo-existencial, que ele Aquele que, em seu tempo,

    atuou na Palestina.500

    Na segunda parte da meditao reaparece a dualidade do Princpio e

    Fundamento. Por um lado, o tanto quanto no uso dos meios; por outro, o

    magis, o clculo, a avaliao - que no se lana a nenhuma aventura de amor - e

    a vontade de algo mais absoluto, maior, alm do exigido. De fato, o tanto quanto

    deve conter o magis de um amor maior e total. Trata-se nessa meditao da

    disposio definitiva e radical ao seguimento de Cristo, que inclui expressamente

    498 RAHNER, K. Meditaciones, p. 124 499 Ibid., p. 127 500 Ibid., p. 128

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 210

    como elementos essenciais da prpria deciso a dureza, a fadiga, a humilhao, a

    pobreza e a morte no mundo.501

    Portanto, h aqui uma flexo para o magis. No terceiro ponto reaparece

    o magisdo Princpio e Fundamento, mais que mero saber e mera razo. Os

    que mais queiram se afetar e assinalar em todo o servio. Aqui se oferece a

    vontade incondicional de abraar a cruz de Cristo e aceitar o escndalo. A oblao

    expressa a vontade fundamental de seguir a Cristo.502

    Aps a meditao do Reino, Incio prope a contemplao do mistrio

    da encarnao (Ex 101-109). Trata do mistrio central da f e da experincia

    crist. E este deve ser contemplado em conexo com a anunciao a Maria. S se

    pode meditar existencialmente a encarnao de Deus se se tem em conta a unidade

    entre encarnao e anunciao. S atravs desta se pode penetrar na concreo da

    encarnao.503

    Incio apresenta a encarnao e o nascimento como a resposta de Deus

    situao histrica do mundo e pretenso utpica do homem para sair de sua

    finitude assim como de seu fracasso radical. Apresenta tambm a sada de Deus

    de si mesmo para a situao de desvalimento da humanidade.504

    O sentido da encarnao oscila entre dois plos dialticos vai da

    magnanimidade liberal do amor trinitrio, que desde seu eterno presente se volta

    para a realidade concreta, s condies histricas prprias da pobreza encarnatria

    nas quais haver de desenvolver-se a histria do Verbo. E, imaginativamente,

    passa da contemplao da Trindade, que olha a situao do mundo, casa e os

    aposentos de Nossa Senhora. Deus, saindo de si, assume o que lhe alheio, a

    impotncia, a fragilidade, para manifestar na carne a glria de seu amor e

    oferecer ao homem seu projeto de salvao. 505 A encarnao assuno da

    histria humana em sua totalidade e um decidido caminhar para a knosis radical

    que se consuma na morte de cruz.

    501 Ibid., p. 126 502 Ibid., p. 131 503 Ibid., p. 133 504 Id., El sacerdcio, p. 244 505 Ibid., loc. cit.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 211

    O Verbo, como primognito de toda criatura, tomou um corpo para

    oferec-lo como sacrifcio e, atuando assim, como fermento na massa, outorgou

    ao homem a incorrupo e a divindade. Assim, ficaram eliminados os trs

    obstculos que separavam o homem de Deus: o da natureza, ao encarnar-se e

    assumir a natureza humana; o do pecado, morrendo na cruz; e o da morte,

    eliminando da condio humana a corrupo, ao ser ressuscitado pelo poder da

    glria de Deus. 506

    Da decorre que o mistrio humano de insero do Verbo e manifestao

    do Reino passe necessariamente pelas mesmas instncias sucessivas em que teve

    lugar a salvao. enraizamento no mundo (encarnao) e posteriormente morte

    do mundo (mistrio pascal) para entrar na vida de Deus (ressurreio). A

    encarnao a estrutura permanente que o Verbo de Deus assumiu com o olhar

    posto no mistrio pascal.

    O Verbo se fez verdadeiramente homem. Jesus veio desde fora da

    histria do mal e do pecado, desde o amor trinitrio. Fez-se homem, tomou sobre

    si o mistrio peculiar da natureza humana que consiste no ilimitado estar-

    referido-ao outro. Ser pobre e chegar a ser si mesmo s na medida em que a

    liberdade se deixa apreender pelo mistrio Incompreensvel da plenitude de Deus.

    Por isso, para Incio, o ncleo da contemplao, consiste em demorar no

    concreto do mistrio de Jesus, em ver, ouvir e olhar (Ex 106-108). O sentido

    ltimo da histria da salvao no outro seno o de que a contemplao de como

    o amor que Deus sente pela humanidade lhe moveu o corao de forma, um dia no

    tempo, chegar a ser diferente do que era. A partir desse momento, comeou um

    movimento encarnatrio de cima para baixo que culminaria na entrega de si

    mesmo at o final. A intencionalidade trinitria pe, assim de manifesto, a glria

    de seu Amor ao pr em ao a salvao nas prprias estruturas humanas da

    indigncia e do pecado, em que o homem se havia fechado. O exercitante comea

    a contemplar este mistrio nos aposentos de nossa Senhora.507

    Desde o ponto de vista humano, encarnar-se o no-evidente, porque

    contradiz as expectativas daquilo que o egosmo humano concebe como

    506 Ibid., p. 245 et. seq.

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 212

    realizao, e ao mesmo tempo, o inexoravelmente necessrio para que seja

    possvel a proximidade prpria do amor. Da que a proximidade da carne de Deus

    no seio de Maria, ao no ser objeto de controle de parte da experincia humana,

    obrigue o desejo a sempre mudar. A utopia de Deus passa pelo escndalo da

    carne, por esta realidade que o homem constata ser s vezes empobrecida, lugar

    no qual o amor se consuma na debilidade, chamada, no mistrio da encarnao do

    Verbo, a assumir a proximidade do mesmo Deus. Deus se fez carne e manifestou-

    se no amor. O desgnio de Deus trata de tocar, deste modo, o corao dos homens

    por meio da humanidade de seu Filho Jesus. por esse motivo que Incio pede

    que o exercitante se demore contemplativamente no concreto, em todos os

    detalhes encarnatrios, porque sabe que tais condies materiais e histricas so

    para ele o modo humano-divino de apalpar a glria de Deus. O concreto converte-

    se assim na epifania do divino, no lugar concreto da revelao.508 A resposta

    humana encarnao consiste em que o Verbo nasa hoje de novo no corao do

    exercitante. Isto se manifesta no Colquio (Ex 109) pelo qual o ser humano

    responde iniciativa trinitria da salvao segundo a qual salvar-se seguir o

    Verbo encarnado de Deus

    A existncia humana do Logos significa uma filiao autntica, no seio

    de uma me humana, na qual a encarnao no se encerra em um processo natural

    e cego, mas que procede do encontro entre o anncio que Deus faz de sua vinda

    redentora e o amoroso escutar de uma mulher, j antecipadamente bendita,

    direcionada para esta escuta.509 Assim a mensagem convite e misso trazida

    pelo anjo a Maria j inefvel autoexpresso do Deus vivo no Logos, vinda

    espontnea de sua verdade benvola.

    Por isso, Incio prope nas contemplaes dos mistrios da vida de Jesus

    primeiramente ver as pessoas; segundo, ouvir o que dizem; terceiro, olhar e

    considerar o que fazem. Trata-se de colocar a prpria experincia vital diante do

    mistrio.

    No texto da contemplao da Encarnao, Incio recomenda considerar

    primeiro o mundo no qual Deus se incorporou como homem. Deve-se contemplar

    507 Ibid., p. 248 508 Ibid., p. 249

    PUC-

    Rio

    - Ce

    rtific

    ao

    Dig

    ital N

    052

    1450

    /CA

  • 213

    o mundo atual, com seus problemas. Deste mundo Deus quis fazer parte. Formou-

    se uma larga cadeia de palavras at o anncio transmitido a Maria por meio do

    anjo, e no qual o prprio Deus vivo fez-se verdadeiro homem, recebido pelo amor

    divino e humano da mulher em sua nova e eterna aliana.510

    Em seguida, Incio indica que o exercitante contemple como as trs

    divinas Pessoas, em sua eternidade olham o mundo desde o trono de sua glria.

    Olhar o Pai, plenitude sem origem da vida misteriosa; em seguida o Filho, o

    Verbo de sabedoria na abissal existncia divina; por fim, o Esprito que, como

    amor vivo do Pai e do Filho, penetra as profundezas da divindade: este Deus

    Trino concebeu o mundo desde a eternidade para convert-lo, com indizvel amor,

    no mbito de sua prpria histria de criatura, para participar, pela encarnao, da

    existncia terrena dos homens.511

    Deve-se voltar o olhar tambm para Maria, um ser humano entre os

    humanos, a quem Deus outorga a maternidade que est acima de toda

    maternidade. Ao pronunciar o fiat santa vontade de Deus, converte-se na

    representante de toda a humanidade.512 Acolhendo a mensagem de Deus, Maria

    identifica seu destino com o de seu Filho. Da l