antropologia, estudos culturais e educação

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Pro-Posies, v. 19, n. 3 (57) - set./dez. 2008

Antropologia, Estudos Culturais e Educao: desafios da modernidadeNeusa Maria Mendes de Gusmo *

Resumo: Desde sempre a questo da diversidade e do contato cultural esteve presente na humanidade e, agora, coloca-se de modo intenso nas sociedades modernas. O que novo o questionamento das formas constitudas de explicao, cujas premissas tericas parecem estar superadas como possibilidade de compreenso desse novo momento e dessa nova realidade. A questo assim colocada faz emergir um intenso debate em torno da produo do conhecimento, de seu alcance e seus limites, de modo a questionar as formas constitudas de saber e os campos disciplinares construdos na modernidade. No contexto desse debate, a anlise das relaes existentes entre Antropologia, Estudos Culturais e Educao, apresenta-se como desafio terico da modernidade e como uma necessidade diante dos princpios e das prticas presentes na articulao entre o campo cientfico e o processo educativo na sociedade moderna. Palavras-chave: Antropologia; Estudos Culturais; Educao; diversidade; cultura.

Anthropology, cultural studies and education: challenges of our timesAbstract: The issues of diversity and cultural contact have always been inherent to mankind, and are now very present in modern societies. A new element added to that is the questioning of constituted ways to explain things, and the theoretical premises of these new kinds of explanation seem to be outdated as possibilities of understanding this new moment and situation. When we put it like this, we have the surge of an intense discussion around the ways knowledge is produced, as well as its reach and limitations, with the questioning of the constituted kinds of knowledge and disciplinary fields built up by mankind. In this debate, the analysis of relationships between anthropology, cultural studies and education proves to be a theoretical challenge of modernity and also a need in face of the principles and practices in the articulation between the scientific field and the educational process in modern society. Key words: anthropology; cultural studies; diversity; culture; education.* Professora associada do Departamento de Cincias Sociais na Educao (DECISE), do Programa de Ps-Graduao em Educao FE/UNICAMP e da Ps-Graduao Doutorado em Cincias Sociais (Antropologia) do IFCH/UNICAMP Livre-docente em Antropologia da . Educao. Publicaes: Diversidade, cultura e educao. Olhares cruzados. So Paulo: Biruta, 2003; Os filhos da frica em Portugal. Antropologia, multiculturalidade e educao. Belo Horizonte: Autntica, 2005; O visual e o quotidiano. Lisboa,PT: Imprensa de Cincias Sociais/ICS, 2008. [email protected].

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O mundo, hoje, encontra-se em meio de intensas transformaes. Falamos em unio, integrao econmica e cultural, superao de fronteiras com a criao de grandes blocos de tendncia hegemnica, como Unio Europia, Mercosul e outros. O mundo se globaliza, a cultura se mundializa, os mercados se unificam. Grupos diversos se deslocam no tempo e no espao e, no entanto, em diferentes espaos e latitudes, as particularidades se reafirmam, diferentes povos, grupos, regies e culturas reivindicam um lugar prprio e singular, fazendo de nosso tempo um tempo aparentemente esquizofrnico. nessa esquizofrenia que o debate das diferenas se coloca, ganhando presena e significado. O debate novo? Pode-se afirmar que no. Desde sempre a questo da diversidade e do contato cultural esteve presente na humanidade e, agora, coloca-se de modo intenso nas sociedades modernas. O que novo o questionamento das formas constitudas de explicao, cujas premissas tericas parecem estar superadas como possibilidade de compreenso desse novo momento e dessa nova realidade. A questo assim colocada faz emergir um intenso debate em torno da produo do conhecimento, de seu alcance e de seus limites, de modo a questionar as formas constitudas de saber e os campos disciplinares construdos na modernidade. A antropologia, como cincia da modernidade, coloca seu aparato terico construdo no passado, com possibilidade de, no presente, explicar e compreender os intensos movimentos provocados pela globalizao: de um lado, os processos homogeneizantes da ordem social mundial e, de outro, contrariando tal tendncia, a reivindicao das singularidades, apontando para a constituio da humanidade como una e diversa. Contudo, essa tradio hoje alvo de controvrsias, na medida em que os fatos decorrentes da intensa transformao da realidade parecem no estar contidos em seus princpios explicativos. Nesse campo de tenso, defende-se que ora a trajetria da antropologia tem sido a de avaliar as diferenas sociais, tnicas e outras com a finalidade de proporcionar alternativas de interveno sobre a realidade social de modo a no negar as diferenas; ora no seria a tradio antropolgica suficiente para dar conta do contexto poltico das diferenas e, como tal, estaria superada em seus propsitos. Decorrentes do questionamento que afeta as cincias humanas de modo geral ainda na segunda metade do sculo XX, e em particular a antropologia, emergem outras perspectivas tericas, dentre as quais se destacam os chamados estudos culturais, cuja definio se d no interior das correntes ditas ps-modernas. No contexto desse debate, a anlise das relaes existentes entre antropologia, estudos culturais e educao apresenta-se como desafio terico da modernidade e como uma necessidade diante dos princpios e das prticas presentes na articulao entre o campo cientfico e o processo educativo na 48

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sociedade moderna. Em jogo, a busca do dilogo inter e transdisciplinar capaz de recuperar da modernidade o pensamento crtico para compreender as propriedades da vida social e resgatar a noo de cultura como noo crtica e engajada, ou seja, que entende a cultura como questo poltica. Neste ensaio, portanto, pretende-se observar as razes mais antigas postas pela antropologia e considerar seu percurso, bem como as crticas j feitas sobre seu passado, em paralelo com a histria de emergncia dos estudos culturais, j que para ambos os campos a centralidade do conceito de cultura fundamental.

Antropologia e Educao: um pouco de histriaSegundo Paula Montero (2003), uma longa histria est na base de construo da antropologia como campo cientfico, e essa histria envolve duas categorias fundamentais: a idia de Homem e a idia de Cultura. Para a autora, hoje se faz necessrio retomar tais conceitos, resgatando seus pressupostos e, a partir do dilogo com alguns autores, situar a contribuio da abordagem antropolgica para a inteligncia dos problemas contemporneos. Diz ainda que necessrio rasgar o vu da inocncia que recobre muitos dos pressupostos da disciplina e, com isso, resgatar seu papel poltico, em nada diferente de outras cincias. A anlise do lugar varivel da antropologia, como campo disciplinar no passado e no presente, coloca em questo a dimenso poltica prpria de qualquer cincia e no ausente da histria e da prtica dessa cincia nascida nos estertores do sculo XIX e no incio do sculo XX. Nesse sentido, a afirmao de Benot de LEstoile, Federico Neiburg e Lygia Sigaud (2002) aponta sua natureza:Na diviso de trabalho entre as cincias sociais, a antropologia especializou-se na descrio e na classificao dos grupos sociais freqentemente tidos como primitivos, atrasados, marginais, tribais, subdesenvolvidos ou pr-modernos, definidos por sua exterioridade e alteridade em relao ao mundo dos antroplogos, ele prprio definido pela civilizao, pela cincia e pela tcnica. No entanto, o trabalho dos antroplogos s foi possvel porque tais grupos j se encontravam submetidos ou em processo de submisso aos estados nacionais ou imperiais modernos, e eram objeto de polticas que compreendiam desde a preservao e a proteo at programas de transformao social planificada e, tambm, polticas repressivas. A participao dos antroplogos na elaborao e na implementao dessas polticas tem sido habitualmente objeto de consideraes morais e polticas, mas negligenciada do ponto de vista da anlise sociolgica (p.9).

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A fala desses autores significativa, j que aponta para aspectos que, ao longo do tempo, tornaram-se marcas registradas da antropologia, porm, vista como sendo toda a antropologia. Trata-se de seu carter descritivo e classificatrio, necessrio para a caracterizao dos povos objetos da colonizao entre os sculos XIX e XX, e que construiu o que no campo do conhecimento se denomina, hoje, como antropologia clssica. Esta apresentava, por seus princpios centrais, a noo de exterioridade e alteridade, apreendida, esta, como alienidade1. Nesse sentido, antropologia e antroplogos estavam inseridos num mundo marcadamente tido como civilizado, cientfico e tcnico, no qual a trade civilizao, cincia e tcnica, como elementos centrais da condio de sociedade e de modernidade, definiam e demarcavam a condio humana e a prpria humanidade. O fazer antropolgico, nessa medida, era o de submeter e colocar em submisso o outro e seu mundo, tendo por meta a civilizao e a humanidade. A antropologia como cincia pregava, ento, a preservao, a proteo, a transformao e a represso como objeto de polticas dirigidas ao mundo do outro. Nesse sentido, a participao dos antroplogos e a cincia que praticam acontecem na elaborao e na implementao dessas polticas, o que, mais tarde, j no incio do sculo XX, ser conhecido como uma cincia da prtica ou uma cincia de servio.2 O que est em jogo nesse tipo de cincia so as relaes entre cincia e prtica, at hoje, fato de constantes discusses no mundo cientfico e social. Expressiva desse tipo de prtica cientfica e, posteriormente, objeto de consideraes morais e polticas, como toda cincia praticada naquele perodo, inscreve-se em um campo particular da antropologia a chamada antropologia da educao. O campo da antropologia da educao foi bastante ativo entre os anos de 1920 e 1930 e assim persistiu durante todo o sculo XX, mudando sua roupagem (e muito pouco seu contedo) de acordo com as conjunturas sociais e polticas de cada momento. Significativa nessa antropologia foi a tentativa de normalizar os sistemas educativos, em busca de uma funcionalidade entre a escola e a sociedade, segundo um modelo desejvel de escola. Tal perspectiva admitia, porm, a educao alm da escola, pois dizia respeito formao da1. Alienidade entendida como a alteridade distante em que viajantes, comerciantes, conquistadores, missionrios, fugitivos, etc. relatam a existncia do outro no mundo europeu, revelando estranhamento quanto a sua existncia social. (Santamaria, 1998, p.55) Balandier (1981) chama de cincia de servio a cincia de carter aplicado cuja perspectiva interventiva e justificada como de natureza tica (em nome do outro, de seu bem-estar, para seu desenvolvimento, etc.). Visa fornecer s administraes pblicas do passado e do presente, elementos para medidas de interveno sobre realidades vistas como problemas carentes de soluo. Constituda sob a gide do funcionalismo dos anos de 1920/1930, retorna no final do sculo XX, com vistas a dar elementos para polticas sociais multiculturais, tambm de cunho intervencionista. Ver, tambm, Bastide (1971).

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personalidade e socializao dos indivduos, necessrias integrao e acomodao sociedade e a seus valores. O centro de sua razo de ser estava, portanto, na relao indivduo-sociedade, tpica do conhecimento daquela poca que, anos mais tarde, em meados dos anos de 1950/1960, seria questionado como forma de conhecimento no campo cientfico. A interseco e a crtica das relaes indivduo-sociedade e, posteriormente, a compreenso dos indivduos como sujeitos sociais, iriam desencadear um debate entre as formas universais de compreenso da humanidade e as particularidades dos sujeitos, grupos e culturas. O fato, j no final dos anos de 1990, levar reviso do conhecimento cientfico produzido pela modernidade na busca por formas alternativas de conhecimento e seria designado como crise dos paradigmas. Tal movimento, em toda segunda metade do sculo XX, ir colocar a antropologia em geral e, em particular, a antropologia na educao3 como alvo das crticas que fariam emergir outras perspectivas de conhecimento, entre essas, os estudos culturais. Em razo desse contexto, no presente ensaio, busca-se demonstrar que as crticas morais e polticas feitas a partir de uma parcela do que foi e a antropologia gestaram uma cegueira na contribuio desta para com a educao. Ao mesmo tempo, a educao reeditou nos anos de 1990, nas abordagens do multiculturalismo, particularmente americano, os mesmos percalos da chamada cincia de servio da primeira metade do sculo que passou e da qual a antropologia da educao foi representativa. Como dizem LEstoile, Neiburg e Sygaud, se a cincia antropolgica foi alvo de muitas crticas morais e polticas, no foi, contudo, objeto privilegiado do ponto de vista da anlise sociolgica, vale dizer, da anlise mais crtica e analtica. Sem dvida, tal ausncia repercutiu, tambm, nas especialidades de seu campo, entre elas, a antropologia da educao. Desse movimento geral resultaram equvocos e limites na compreenso da antropologia, de seus mtodos e de suas categorias ou noes centrais, entre elas, a noo de cultura e seu campo explicativo. Nesse contexto, importam, aqui, as relaes entre a educao e a antropologia, em particular aquela que emergiu ao final dos anos de 1980/1990, marcada pela institucionalizao e pela generalizao de um novo campo disciplinar: os estudos culturais. No interior desse novo campo, surgiu como fundamental o rechaar da antropologia, vista apenas na sua dimenso clssica, sem considerar3. Deve-se observar que Antropologia da Educao e Antropologia na Educao referem-se a assuntos correlatos, porm diversos. A primeira expresso diz respeito a um perodo histrico determinado, primeira metade do sculo XX, e a uma corrente terica vinculada ao culturalismo e ao funcionalismo no trato das questes educacionais; , assim, temporalmente situada. A segunda expresso remete s relaes possveis entre antropologia e educao, sem estar limitada a uma abordagem especfica e temporalmente situada. Trata-se do dilogo entre campos de conhecimento diversos e suas possibilidades.

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sua dinamicidade e a prpria reviso de muitos limites que por mais de um sculo atuou de modo a modernizar seu campo terico e sua prtica como cincia, ainda no interior do sculo XX e, portanto, da modernidade. A multiculturalidade fato constatvel da realidade social que afeta as sociedades modernas, desde sempre presente para a cincia antropolgica e para seus adeptos, os antroplogos, passou a integrar um debate que se definiu a partir do chamado multiculturalismo4, ou seja, de um campo que pretende explicar a diversidade social, em termos de teoria e prtica. Rocha-Trindade (1995), ao olhar o mundo europeu de hoje, afirma que o multiculturalismo se expressa em pelo menos duas acepes: como fenmeno observvel na maioria das sociedades, a que corresponde um evidente pluralismo cultural resultante da intensificao e da posterior radicao de correntes migratrias de diferentes origens geogrficas; e como um conjunto de polticas aplicadas em vrios setores da administrao pblica, nomeadamente na educao, na formao profissional, no emprego e na ao social, com o propsito de responder aos requisitos especficos das sociedades plurais. No primeiro caso, vincula-se diretamente a heterogeneidade do social aos processos migratrios (recentes), e dele decorre a segunda acepo, ou seja, a do multiculturalismo como poltica aplicada. Muitas so as divergncias a respeito dessa postura, j que todas as sociedades so multiculturais no tempo e no espao; contudo, como diz Provensal, citada por Gusmo (2005), s no mundo moderno e contemporneo que o multiculturalismo se tornou uma forma de inveno e interveno social. Nesse sentido, a diversidade social, objeto basilar da cincia antropolgica, passou, sob a gide do multiculturalismo, a ser considerada a partir de outros parmetros e postulou como necessria a reviso do conceito de cultura, que deve ser, agora, inserido numa dimenso poltica que, teoricamente, foi originalmente negada pela antropologia. Vale, portanto, resgatar a citao de LEstoile, Neiburg e Sygaud, quando dizem que desde sempre os grupos obje4. O multiculturalismo no nasceu nesse perodo ou mesmo na segunda metade do sculo XX, como se postula em muitos textos, principalmente no campo da educao. A concepo do multicultural e do multiculturalismo surgiu com alunos de Ruth Benedict e de Margaret Mead, M.Herkovits, R. Redefild e C. Kluckhohn, ainda nos anos 1940, motivada pelo crescente reconhecimento da diversidade social humana, exposta por duas guerras mundiais e pelas lutas de libertao dos povos coloniais. Contudo, no se trata ainda de uma perspectiva crtica em profundidade. Caberia, tambm, distinguir a diferena entre os termos multiculturalidade (fato constatvel que abrange toda a diversidade humana) e multiculturalismo (abordagem que intenta explicar a multiculturalidade e propor formas de interveno em contexto multicultural) e explorar como, quando e por que so tratados como sinnimos; a razo disso e suas conseqncias, quando se trata de pensar (e propor interveno) na realidade concreta de povos, grupos, segmentos de grupos, etc.

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to do olhar do antroplogo j se encontravam submetidos ou em submisso aos estados nacionais ou imperiais modernos (2002, p. 9). O que os autores apontam que o espao por excelncia de constituio e de atuao dessa cincia, a antropologia, e seu instrumento maior de explicao das realidades que estuda a noo de cultura nunca poderiam ser pensados fora do campo poltico e de poder. Para o autor, a noo de cultura sempre foi e , portanto, uma noo que se define eminentemente como poltica. Essa a idia central que conduz o presente ensaio a refletir sobre os desafios da modernidade nas relaes entre antropologia, estudos culturais e educao, na pretenso de propor alguns caminhos de superao dos muitos vus que recobrem vrios dos pressupostos da disciplina e de, com isso, resgatar seu papel poltico, como diz Montero (2003). Desvendar esse processo pode contribuir para superar os vazios que permanecem no campo dos estudos culturais e que, muitas vezes, reeditam falhas j superadas do passado da antropologia. Nesse sentido, alguns dos princpios que os estudos culturais (americanos) postulam como necessrios compreenso e defesa de diferentes grupos portadores de especificidades, ou a suas causas, resultam num perigo interpretativo de srias conseqncias tanto para a cincia que se produz como para as formas de interveno que so propostas sobre a realidade. Trata-se da indefinio da noo de cultura, principalmente quando essa noo se aproxima demasiadamente da concepo de ideologia. O perigo coloca-se com mais evidncia quando ocorre uma dada premncia em buscar solues, tomando por meta certo ativismo, quando este deveria servir de combustvel da reflexo terica e, assim, propiciar o desvendamento das grandes questes para agir de modo mais eficaz na realidade dos grupos que se quer defender. Deve-se ressalvar, porm, o valor e a importncia das perguntas que os estudos culturais e os estudos ps-modernos colocam, mas sem negar antropologia seus crditos. preciso olhar para essa cincia e compreender, com ela e a partir dela, os erros e os acertos do passado e, assim, no reproduzir, hoje, muitas das falhas daquele momento na compreenso da diversidade social humana. Fato que a prpria antropologia j reconheceu e criticou e que, no entanto, no est longe de se repetir nos estudos atuais e, em particular, no campo da educao, sob a gide dos estudos culturais. Portanto, considera-se que as relaes entre antropologia, estudos culturais e educao resultam num campo tensional que diz respeito a duas dimenses correlacionadas: os paradigmas cientficos da modernidade e da chamada psmodernidade e os paradigmas pedaggicos que norteiam a educao. Por sua vez, as relaes entre antropologia e educao fazem-se, tambm, como um campo de relaes perigosas, j que envolvem a necessidade de considerar:

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- que toda cincia conhecimento vinculado ao movimento da histria e seus contextos; - que os caminhos de encontro e desencontro da antropologia e da educao, eles prprios histricos e datados, constituem um campo de confrontao no tempo, entre um passado e um presente do conhecimento cientfico que norteia nossa compreenso de mundo5. A antropologia como cincia preocupa-se com a questo das diferenas e busca propor formas de interveno sobre a realidade, papel a que se dirige qualquer conhecimento produzido a partir das relaes entre os homens e o mundo social criado por eles. Talvez, por essa razo, Manuela Carneiro da Cunha (1998) tenha chamado a ateno para o fato de que no so as culturas que criam as sociedades, mas so as sociedades que criam as culturas. Assim, torna-se necessrio o desvendar da sociedade onde se est e onde se vive, para compreender os dispositivos da cultura ou das culturas que operam nesse contexto. Contudo, as relaes entre os homens, constitutivas da vida em sociedade, so, sempre, profundamente heterogneas e marcadas por relaes de poder socialmente construdas. Dessa forma, a constituio de um campo de tenso entre sujeitos sociais diversos expe ao pensamento e prtica antropolgica trs grandes processos inerentes s sociedades modernas: a) busca permanente pela homogeneizao; b) existncia da contradio; c) a ameaa constante do conflito. Esses trs processos resultam da cultura ocidental que se move em torno da busca permanente de fazer do outro, do diferente, um mesmo. Assim, a realidade das chamadas sociedades modernas, complexas e acentuadamente diversas, transforma-se num desafio ao pensamento, ao conhecimento e s prticas sociais que envolvem as diferenas sociais, de raa, tnicas, de gnero, econmicas, etrias e outras. Os considerados menos, porque diferentes homens, mulheres, idosos, negros, indgenas passam a desafiar a ordem instituda, e esta coloca sobre eles certo dispositivo de saber sobre o outro, um saber sociolgico sobre o outro que no se dissocia de um poder sobre o outro (Santamaria, 1998, p. 56). A antropologia, nascida da sociedade ocidental portadora dessas caractersticas, no se dissocia de sua natureza, caminha com ela e constri um percurso que vai da alienidade em relao ao outro plena descoberta e ao comprometimento com esse outro. Transforma-se e institui a alteridade como a questo propulsora de si mesma como cincia, como fazer cientfico. E o faz pelo estranhamento do social, em razo da percepo e das evidncias do mundo social e histrico. E o faz, posto que a existncia social do outro, do nosso

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Ver, a respeito, Gusmo (1997, p. 8-25).

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outro, revela ser este sempre prximo e diverso, sempre presente na constituio do nosso prprio mundo, do nosso prprio eu. A descoberta instaura o desafio pelos acasos da vida cotidiana entre pessoas e marca o senso comum com que cada um elabora sua percepo de mundo. Por outro lado, exige da antropologia como cincia a construo de um saber assentado num modo de proceder ou de fazer cincia que pode reduzir, coisificar o outro e que esteve muito presente na sua origem, mas resultou numa srie de procedimentos que colocaram em jogo a descoberta e a reflexo do nosso etnocentrismo e dela prpria como cincia. Mais que isso, instaurou a necessidade de desconstruir pressupostos a priori para efetivamente construir uma explicao mais compreensiva e analtica das realidades sobre as quais se debrua como cincia. Como diz Santamaria (1998), em questo a necessidade de impensar as categorias com que apreendemos o mundo nossa volta, para compreend-lo de outra forma. Assim,Impensar refletir de modo a explicitar as condies e os modos que constantemente informam, mobilizam, dispem, estruturam e instituem nossa percepo, nosso modo particular de olhar os seres e as coisas e conseqentemente a formulao epistmica que orienta nossas aes e pensamentos. (Santamaria, 1998, p. 59)

Para realizar tal empreitada, qualquer busca de explicao da realidade exige: - contextualizar a realidade dos sujeitos onde esto e vivem; - inverter o olhar deles (e o nosso) para com a sociedade em que eles (e ns) esto; - ver como essa sociedade se refere a esses sujeitos; - pr em questo o conhecimento que produzimos e a cincia que praticamos. Diante desse desafio, diz Santamaria (1998):todo conhecimento da realidade social no se reduz a uma mera operao cognitiva, mas tambm, como nos adverte Bourdieu, uma operao scio-poltica que sempre implica um reconhecimento e ou um desconhecimento daqueles sobre os quais se quer conhecer; daqueles a quem se quer conhecer (p.48)

Desentranhar esse universo cognitivo e sociopoltico exige tomar o campo da antropologia como cincia hoje, para perguntar sobre as categorias de apreenso e explicao da realidade, construdas no tempo. Exige no ignor-las, mas fazer-lhes a crtica e buscar construir um conhecimento de outra ordem, como j o fez ela prpria no percurso de sua constituio e histria como cin55

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cia, em outro momento no passado. S assim ser possvel o dilogo e o confronto dos avanos e dos limites da antropologia na educao, em particular no campo de sua prtica, a pedagogia, compreendendo a a dimenso poltica desse campo de conhecimento e o significado disso que se denomina, hoje, como estudos culturais. Em jogo, a natureza prpria de cada um dos campos e a histria que os constitui. Em jogo, os caminhos trilhados pela antropologia e pela pedagogia desde o sculo XIX, que envolvem os paradigmas cientficos e os paradigmas pedaggicos. Em questo, o conhecimento moderno constitutivo do campo cientfico e a natureza de interveno prtica subordinada ao ensino por parte de certo tipo de educao da qual somos todos herdeiros na sociedade moderna, vale dizer nas sociedades ocidentais centradas nas idias de progresso e desenvolvimento. Sociedades nas quais ainda prevalece a trade civilizao, cincia e tcnica como elementos centrais da condio de sociedade e de modernidade.

A cincia que praticamos: a modernidade em debateAs falas de Montero e de LEstoile, Neiburg e Sygaud, j citadas, olham a antropologia luz das cincias sociais, e esse olhar que conduz a presente reflexo, j que esses autores entendem que essa cincia s pode ser compreendida em termos da histria e, em particular, da histria da antropologia. Nesse sentido, Montero, ao resgatar a categoria de Homem, tem por base as chamadas cincias positivistas do sculo XIX. Da mesma forma, a categoria Cultura pensada como emergente da constituio das chamadas humanidades, ainda sob a gide do positivismo e que originou as diferentes cincias humanas, entre elas, a antropologia como cincia do homem. Montero prope a retomada das categorias para situar as contribuies da antropologia para a abordagem dos problemas contemporneos e tem em mente o resgate do papel poltico da cincia antropolgica. Por sua vez, LEstoile, Neiburg e Sygaud retomam o fazer antropolgico, inerente ao perodo positivista o descrever e classificar que resultam do contato com outros povos no perodo colonial , para reafirmar o papel poltico da antropologia e dos antroplogos desde a origem do seu fazer cientfico. O insistir na natureza poltica da antropologia significa afirmar a impossibilidade de a cultura ser uma noo apoltica, apenas descritiva e classificatria, at mesmo porque, como afirmam os trs autores, a antropologia como cincia nasceu sob a gide dos estados nacionais ou imperiais modernos. O fato exige reflexes crticas e anlise criteriosa, e no avaliaes morais e polticas despregadas do contexto histrico. Assim, a cultura como matria-prima da antropologia no um dado, uma herana, algo que se tem e que se herda como diz Cuche (1999), mas uma 56

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construo que se inscreve na histria das relaes dos homens entre si. Tais relaes decorrem do contato e do jogo de distino que, historicamente, estabelecem as diferenas culturais entre um eu e um outro. Nesse sentido, as culturas nascem de relaes sociais que so sempre desiguais (Cuche, 1999, p. 243), de modo que as hierarquias culturais resultam da hierarquia social existente. Assim, para o autor, a cultura de um grupo no independente de outro grupo que com ele se defronta, e nesse confronto criam um campo de tenso, s vezes de violncia e de conflito, que expressa relaes de poder imersas num campo poltico que deve ser considerado. Por essa razo, a no-considerao desses pontos, em termos das teorias do passado e do presente, leva a que no se compreenda a extenso, o alcance e os limites da cincia que hoje praticamos. Como diz Kuper (2002, p. 309), as teorias modernas sobre cultura reciclam as anteriores e se prestam a propsitos polticos semelhantes. Este o desafio necessrio de confrontar e fazer dialogar a antropologia e os estudos culturais, nomeadamente, no campo da educao. O dilogo, porm, debate-se entre o que herdamos das teorias do passado e o que buscamos no presente. Assim, Gilberto Velho (1997) fala-nos da tradio da antropologia no estudo da cultura das sociedades de pequena escala e o desafio que se interpe na anlise da cultura, quando a antropologia, sobretudo a antropologia moderna, migra para os contextos urbanos das chamadas sociedades complexas. Tais sociedades, marcadas pela heterogeneidade, pela multiplicidade de experincias, costumes e prticas, desafiam o olhar e o fazer antropolgico em razo da afirmao constante da individualizao, da multiplicidade das experincias humanas e da necessidade de universalizao dessas experincias em nome de uma realidade mais homognea e necessria a esse contexto. A cincia que praticamos , ento, desafiada no sentido de estabelecer pontes e fazer dialogar o particular (seu objeto no passado) com o universal e mais geral das sociedades modernas. Igualdade e diferena se fazem ento, categorias referenciais por excelncia; contudo, revelam-se no como categorias absolutas ou relativas como no passado, mas, sobretudo, como categorias relacionais, cuja definio exige compreender as relaes em jogo e os processos de poder e de dominao que, no passado e no presente, geraram e geram marginalidade e excluso. A antropologia, como cincia surgida no sculo XIX, ainda hoje transita entre as foras perturbadoras do saber cientfico (positivista) e a necessidade de sua superao, contudo, sem romper de modo absoluto (como, alis, todas as demais cincias de nosso tempo) com o modelo de racionalidade do que se convencionou chamar de cincia e o que se considerava, ento, senso comum. A razo est em que a antropologia nasceu das chamadas humanidades, vista na passagem do sculo XIX e XX como uma no-cincia ou como uma cincia 57

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menor por no estar inteiramente definida pelos parmetros cientficos da poca. No entanto, por sua trajetria e por sua prtica, que resultam no trabalho de campo e na interao com o outro, a antropologia e o antroplogo passam a constituir um espao de fronteira em que no se ajustam plenamente ao modelo cientfico predominante, nem se fazem alheios a esse modelo. A contradio que marcou, ento, a emergncia e a consolidao dessa cincia passa a ser o maior potencial de sua transformao, j na passagem do sculo XIX para o sculo XX. Contudo, ao confrontar-se com as contradies decorrentes desse fazer cientfico, a antropologia rompeu ou deu continuidade ao saber estabelecido? Mais do que isso, passados quase dois sculos, no advento do sculo XXI, a cincia que praticamos seja ela a antropologia, os estudos culturais ou outra consiste numa ruptura ou numa continuidade do conhecimento estabelecido e legitimado como cincia, desde o sculo XIX? Como diz Vieira (2000, p. 83): sabido que o sculo XX foi praticamente dominado pelo paradigma cartesiano do primado da razo. Do elogio da razo e da crtica da emoo. Somos todos filhos dessa escola criada por Descartes, volta da dvida metdica e do primado racionalista. Viveu entre 1596 e 1650, mas as suas idias mantiveram-se praticamente intocveis e, de p, at o sculo XXI.

Perante esse desafio, vozes insurgentes falam do fim da histria6, de crise dos paradigmas e instituem outras formas de pensar as realidades modernas, questionando o pensamento clssico que originou o campo cientfico da modernidade. Com respeito ao fim de um tempo de longo prazo (tpico da cincia positivista centrada na noo de futuro e de progresso) e ao seu colapso no curto prazo (entendido este como o final do sculo XX e o advento da ps-modernidade, que no reconhece o passado nem o futuro), Santos (1997) fala na necessidade de buscar no passado a capacidade de fulgurao e revelao no presente, para a construo de uma outra teoria da histria. Adaptando e adequando ao nosso debate as palavras de Santos, este trabalho prope que o passado da cincia antropolgica seja revisitado, para nele (e, portanto, na modernidade) buscar sua capacidade de fulgurao e revelao no presente, tal como sugere Montero (2003), ao postular a capacidade explicativa da antropologia para os fenmenos contemporneos. Trata-se de ver a cincia antropolgica no naquilo que simplesmente foi, mas no que ela e sua histria6. A referncia diz respeito a Francis Fukuyama e a sua Teoria do Fim da Histria citado por Boaventura de Souza Santos em A queda do Angelus Novus. Para alm da equao moderna entre razes e opes. (1997, p. 103-124).

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podem nos proporcionar para olhar o nosso tempo e sobre ele estabelecer explicaes possveis. Mais uma vez, inspirada por Santos e por seu texto ngelus Novus (1997), trata-se de no negar a modernidade em prol da ps-modernidade, como tem ocorrido nos emergentes debates de novos paradigmas, mas de reconhecer, na estrutura da cincia que praticamos, elementos fundamentais de construo de uma nova compreenso de mundo. Trata-se de no seguir a corrente, jogando a criana com a gua do banho, mas de colher, nas teorias produzidas pela modernidade, elementos fundamentais para avanar o pensamento e no reproduzir erros e limitaes do passado. Assim, o que tm a dizer as teorias do passado da antropologia? Particularmente, o que dizem com relao educao e sua prtica a pedagogia?

O caminhar entre dois sculos do XIX ao XXOs caminhos trilhados pela antropologia e pela pedagogia como campo prtico da educao no perodo colonial, do sculo XVIII ao incio do sculo XX, tiveram como alinhamento terico a cincia evolucionista, cuja histria diz respeito aos paradigmas cientficos do pensamento moderno. A pedagogia, como interveno prtica, subordinava a educao ao processo de ensino, visando modelar o chamado diferente ao modelo ocidental, branco e cristo. Tratavase de fazer evoluir e civilizar os chamados outros, sujeitos do processo colonial. Ao mesmo tempo, a cincia antropolgica, inspirada pelos mesmos princpios de ordem e em acordo com as Cincias Naturais da poca, buscava compreender o outro colonial dentro da escala evolutiva de uma humanidade nica e homognea. Ambas, a antropologia e a pedagogia tinham por referncia a unidade da condio humana e a centralidade da noo de homem forjada pela cincia de seu tempo e em consonncia com o modo de ser do europeu, colonizador. Havia, assim, um modelo de humanidade e um modelo de homem a definir os caminhos da civilizao e a possibilidade de evoluo e progresso daqueles que ainda no teriam a condio plena de ser humano. Nesta perspectiva do chamado evolucionismo linear, a cultura no tinha presena e, como tal, a diversidade do ser humano no encontrava lugar, a no ser como uma etapa necessria do desenvolvimento e do progresso da humanidade, representada num gradiente nico, necessrio e obrigatrio em qualquer tempo e espao. Principal terico do evolucionismo, L. Morgan ser questionado por seu aluno F. Boas, que introduziu a perspectiva particularista da histria da humanidade histria cultural ou culturalismo , na tentativa de responder a heterogeneidade do social revelado por outros povos e culturas no europias tornadas visveis pela realidade colonial. Ainda no sculo XIX, Boas ser um 59

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dos primeiros cientistas a chamar a ateno para o fato de que no existe cultura e, sim, culturas. Dir, tambm, que cada costume, hbito ou valor s poder ser explicado se relacionado ao seu contexto cultural (Cuche, 1999, p. 45). O culturalismo ganhar fora no princpio do sculo XX e ter, como uma de suas marcas, a denncia do olhar etnocntrico do momento anterior, presente, tanto na antropologia como na pedagogia que orientava os sistemas de ensino, em particular na sociedade americana de ento. Nessa nova forma de olhar a realidade, emergiu com fora uma concepo de cultura at ento ausente das teorias vigentes e que iria reconhecer que cada cultura tem uma histria prpria e singular, de modo a permitir caminhos diversos para a humanidade, que assim se faz plural e diversa. Com isso, a biologia e as cincias naturais deixaram de ser o alicerce das reflexes sobre as diferenas, para colocar tal encargo como de responsabilidade da cultura. Como afirma Geertz (1978 p. 47),a imagem de uma natureza humana, constante, independente de tempo, lugar e circunstncia, de estudos e profisses, modas passageiras e opinies temporrias, pode ser uma iluso, que o que o homem pode estar to envolvido com onde ele est, quem ele e no que acredita, que inseparvel deles. precisamente o levar em conta tal possibilidade que deu margem ao surgimento do conceito de cultura e ao declnio da perspectiva uniforme do homem.

Assim, a diversidade sociocultural dos povos coloniais permitiu o aprofundamento das crticas ao evolucionismo, denunciou seu etnocentrismo, fazendo com que a alienidade (o outro de meu mundo como no humano) do momento anterior fosse superada pela descoberta inicial da alteridade (o outro est no meu mundo e existe em relao a ele). Apesar da no plena conscincia do outro, h, no interior desse pensamento, o reconhecimento da condio humana do outro, ainda que dele pouco ou nada se conhea. O que importa que, ao alvorecer do sculo XX, a antropologia j apontava para a impossibilidade de argumentar em torno de etapas necessrias e biologicamente definidas para a condio humana. Afirmava que a condio humana s poderia ser pensada no interior da cultura e assegurava como centro de seu olhar e de seu fazer o conceito de cultura. Cultura como realidade mltipla, plural e diversa. Prenunciava, assim, outra compreenso de mundo e suas muitas possibilidades, mas o avano que esse passo representava era ainda limitado, posto que marcado por extrema relativizao, o culturalismo assume cada cultura como totalidade em si mesma. No mundo h, ento, culturas mltiplas e diversas, porm, que no so vistas como realidades insurgentes do contato e em relao a um contexto histrico determinado. 60

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Contudo, apesar das mudanas em curso no conhecimento estabelecido (outras cincias alm da antropologia emergiram, constituindo as chamadas Humanidades), os sistemas educativos e os mecanismos pedaggicos desse tempo ainda seguiam as diretrizes de uma educao pautada por um modelo nico, ao qual a instituio escolar estava submetida. desse momento a conhecida denncia de Boas sobre as escolas americanas e seu sistema de ensino. Em torno de 1909, dizia ele:a escola inexiste como instituio independente e, como tal, no possibilita independncia e autonomia aos sujeitos que a esto. A meta da escola centra-se num aluno-modelo que desconsidera a diversidade da comunidade escolar e, para contla, atua de forma autoritria. (Gusmo, 1999, p. 19).

A afirmao, em muito vlida ainda hoje, mostra a homogeneidade presente como meta, que no permitia escola o reconhecimento da diversidade social que adentrava o sistema escolar. Se no campo da educao e sua prtica tal no acontecia, no campo da antropologia algo comeava a mudar em direo consolidao de uma viso plural de mundo e de uma concepo relativista da cultura. Assim, o culturalismo, apesar de no ter significado uma ruptura absoluta com as matrizes do conhecimento clssico, apontava para outras possibilidades do olhar e o fazia porque:O trabalho de campo [emergente, porm, no consolidado] redimensiona o conhecimento cientfico, na medida em que exige uma rigorosa e sistemtica apreenso de uma dada sociedade ou grupo em seus mltiplos aspectos, formais, institucionais, concretos, tal como se encontram relacionados entre si e de acordo com a representao que deles feita. A cultura se torna, assim, central para a compreenso das prticas humanas, vistas como prticas significantes que distinguem o homem da natureza, o homem do animal e que fundam diferentes sistemas de interpretao da vida. (Gusmo, 1997, p. 21).

A cultura como universo simblico ser, ento, da maior importncia na compreenso da realidade social humana. O significado desse imenso passo na compreenso da diversidade sociocultural dos diferentes povos na face da terra no pode ser negado; porm, sua erupo no cenrio cientfico e no senso comum de seu tempo no significou uma mudana efetiva nas relaes concretas entre sociedades e culturas. O culturalismo americano ter, como parceiro de um pensamento em mudana, o funcionalismo de origem inglesa, ainda no incio do sculo XX e data61

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do entre os anos de 1920/1930. Centrado na concepo de funo e de sistema, o funcionalismo compreende a sociedade de uma forma integrada, em que o todo resulta de partes interligadas, ao mesmo tempo em que as partes contm em si o todo. Os procedimentos de anlise do social podem ento, eleger a parte e, por deduo, explicar a totalidade da vida social.Nesse processo o antroplogo aquele que faz a teoria nativa da sociedade que estuda, ou seja, que busca explic-la em seus prprios termos. Isso exige desde a compreenso da especificidade de cada cultura, j posta pelo culturalismo, como tambm a compreenso das partes que compe uma dada cultura em termos de um todo integrado de que fala o funcionalismo. (Gusmo, 1999, p. 21)

Para essa corrente terica, as necessidades de um grupo ou sociedade, bem como as respostas que estes do a tais necessidades, decorrem da cultura. Ser a cultura o elemento bsico que possibilitar a originalidade e a especificidade de um grupo ou sociedade diante de outros grupos e sociedades. Contudo, nessa abordagem, os conceitos que prevalecem so os de sociedade e estrutura. A noo de cultura ser entendida como um sistema de elementos interdependentes, que no podem ser compreendidos em separado. Importante, diz Cuche (1999, p. 71), no que tal trao (cultural) esteja presente aqui ou l, mas que ele exera, na totalidade de uma dada cultura, uma funo precisa. A funo ou as funes a que se destina: suprir necessidades individuais e coletivas atravs de instituies sociais que ordenam e organizam a sociedade; entre estas, a escola. Assim, a corrente americana com Boas e a corrente britnica com Malinowski, ainda que vissem a noo de cultura desde um ponto diverso, comungavam com o que iria, em definitivo, garantir antropologia sua condio de cincia: o trabalho de campo. Com eles, o trabalho de campo se torna a prpria fonte de pesquisa e a condio modular da antropologia como cincia da alteridade que, segundo Laplantine, se dedica aos estudos das lgicas particulares de cada cultura. (Gusmo, 1997, p. 20). Nesse quadro geral, o funcionalismo ter presena forte e significativa no modo de pensar a educao e a escola na primeira metade do sculo XX, mas a corrente culturalista americana ser a que ter maiores preocupaes com a educao. Ruth Benedict e Margareth Mead dedicaram-se aos estudos do campo educativo e da diversidade das culturas a partir de diferentes ngulos. M. Herskovits, R. Redfield e C. Kluckholn buscavam a relativizao dos saberes e as conexes entre saberes diversos [que] s se fizeram possveis em razo das experincias vividas e da integrao no mundo e na cultura de cada um

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(Gusmo, 1997, p. 20) e fizeram-se pioneiros ao colocar em pauta a educao multicultural, j nos anos de 1940/1950. Contudo, apesar dos avanos representados pelas correntes americana e inglesa nas formas de pensar a diversidade humana, mesmo no campo da educao multicultural que emergia, nenhum deles questionou a natureza da interveno das sociedades coloniais sobre outros povos, e pouco ou nada se questionou sobre a interveno do antroplogo nas sociedades estudadas por eles. Isso no significa, porm, a inexistncia de um movimento de luta das sociedades coloniais a desafiar o conhecimento estabelecido e as prticas coloniais que negam a heterogeneidade social e histrica dos diferentes povos. Do mesmo modo, um processo ainda em consolidao, em razo do trabalho de campo que marcou o funcionalismo (Malinowski), imps a reflexo sobre o papel do antroplogo e da antropologia perante as sociedades e os sujeitos que eles estudam, colocando em pauta a necessidade crescente de relativizar o prprio conhecimento. Como parmetro do pensamento de toda essa poca, Cuche (1999, p. 46) considera a produo de Boas e afirma queNo fim de sua vida [1942], Boas insistia em outro aspecto do relativismo cultural. Um aspecto que poderia talvez ser um princpio tico que afirma a dignidade de cada cultura e exalta o respeito e a tolerncia em relao a culturas diferentes. Na medida em que cada cultura exprime um modo nico de ser do homem, ela tem o direito estima e proteo, se estiver ameaada.

No por acaso, um longo percurso levaria a que, ao final dos anos 1980/90, fosse esse o discurso a emergir em torno da questo das diferenas e dos direitos de grupos e sociedades sua especificidade, um discurso avanado, porm no inteiramente novo. O que entra em questo que, aparentemente diferente nos dias atuais, porque respaldado em outros quadros tericos, o problema da retomada do culturalismo, como diz Consorte (1997), parece desafiar os estudiosos da diversidade social humana e, em particular, o campo da educao e de sua principal agncia, a escola7. De l para c, entre os anos de 1920 e 1930, sob inspirao do modelo funcionalista, a Antropologia da Educao tomou forma e ganhou presena e fora no interior dos sistemas coloniais ainda vigentes, como uma cincia de servio ou cincia aplicada. Seu percurso, como tal, abranger um largo perodo, dos anos de 1920 at 1950/60, quando as teorias de desenvolvimento assumiram a ento chamada cultura popular ou tradicional como empecilho 7. E o fez, contudo, tendo por referncia no o campo das Cincias Sociais, ao qual a antropologia se vincula como cincia, mas o campo emergente dos estudos culturais entre 1980/1990, como se ver frente.

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modernizao e, necessitadas de mudana e transformao, tais teorias fariam da escola um instrumento do desenvolvimento; fariam dessa agncia e de seus agentes os componentes fundamentais de uma ordem em mudana. A cultura tradicional seria, ento, negada em seus termos para que se instaurasse uma cultura tida por significativa, posto que comungava com os ideais e os objetivos de uma ordem em mudana. O que no se questionava era o sentido da mudana, quase sempre forjado desde cima e em razo dos objetivos da sociedade (e do Estado), que buscavam pelo progresso e pela modernizao, muitas vezes pensados numa concepo urbana de cultura e sociedade. Nesse contexto, operou como um instrumento fundamental dos processos de mudanas das realidades ditas atrasadas a concepo da instituio escolar moderna. Organizada em torno de um sistema de ensino, a escola funcionava como um todo integrado pelas partes que a constituam administrao, funcionrios, pais, alunos entre outros, um todo orgnico e sistmico , tal como postulava a teoria funcionalista, da qual se resgatou inclusa a noo de comunidade8.Os estudos de comunidade constituem a outra ponta da perspectiva antropolgica que hoje parece retornar, sem uma efetiva conscincia do fato, nas pesquisas educacionais deste fim de sculo. A proposta desses estudos conduz os pesquisadores a verem, no mbito de pequenos grupos, a reproduo da sociedade, elegendo no campo da pesquisa o particular, como objeto de conhecimento, e no a generalizao. A cultura vista nela mesma, no interior do grupo e a ele referida, contexto em si mesmo tornam-se expresso maior dessa perspectiva de anlise, desse fazer cientfico. (Gusmo, 1997, p. 21)

Consorte (1997), em artigo sobre o culturalismo, mostra que este penetrou no Brasil em torno de 1930, para subsidiar o debate de nossa formao como povo e, posteriormente, j nos anos de 1950, atuou na forma de estudos de comunidade em razo do processo de modernizao da sociedade brasileira. A autora fala, ainda, que os pesquisadores [americanos e brasileiros], agiram em relao s suas comunidades como se elas fossem comunidades isoladas, fechadas sobre si mesmas, preocupando-se pouco em situ-las no contexto maior a que pertenciam. (1997, p.33). Como pesquisadora encarregada de avaliar, nesses estudos, o esclarecimento dos problemas da educao, Consorte ir concluir que a escola no foi objeto de preocupao sistemtica por parte desses estudos, perdendo-se a oportunidade de fazer a critica proposta homogeneizadora da escola, indiferente a latitudes e longitudes neste vasto8. A respeito do conceito de comunidade e sua presena nos PCN, ver Teixeira (2003, p. 47-82).

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territrio nacional (1997, p.33). Revela, assim, um limite dos estudos de comunidade e o fato de que as perspectivas culturalista e funcionalista no do conta de que as relaes culturais esto submersas em relaes de poder (Carvalho, 1989, p.21) e, como tais, dizem respeito a realidades mais amplas, estruturadas em torno de relaes de classe e baseadas em mecanismos de desigualdade e dominao. (Gusmo, 1997, p.22). Assim, de meados de 1950 a meados de 1960, abriram-se dois campos. Alguns estudiosos, a partir da antropologia da educao, ainda que comprometida e no independente, seguiriam um caminho diverso daquele pretendido pelos modelos autoritrios de desenvolvimento presentes no culturalismo e no funcionalismo. Comprometidos com a cultura tradicional e popular como veculo de conscientizao e responsabilidade social, esses antroplogos buscavam recuperar da escola seu papel de veculo de educao popular e permanente, isto , um instrumento do verdadeiro desenvolvimento (Fonseca, 1983, p. 4). O auge da chamada educao popular dar-se-ia inspirado pelos movimentos sociais dos anos de 1960/70. No por acaso, ser nesse mesmo perodo que os debates em torno da cultura popular e de massa, no confronto com as culturas de elite, daro o impulso necessrio emergncia dos estudos culturais em duas de suas principais tendncias: os estudos culturais ingleses ou Escola de Birminghan e os estudos culturais norte-americanos, nomeadamente no campo da literatura e das artes. No Brasil, os ecos do movimento de resgate da cultura popular atravs da educao e da escola tero em Carlos R. Brando uma referncia. Os estudos da antropologia e da educao popular faro da pesquisa participante uma modalidade nova de conhecimento coletivo de mundo e das condies de vida de pessoas, grupos e classes populares (Brando, 1984, p. 9) e, atravs de estudos dessa ordem, dentre outros, instaura-se a prtica poltica de compromisso popular. Nessa prtica, diz Brando, a realidade social no uma coisa dada e acabada, e que o pesquisador no pode ser um observador imparcial situado fora da situao que analisa (Brando, 1984, p. 23). Tal afirmao no acontece por acaso. Em meados dos anos de 1950 e 1970 estava em movimento uma discusso crtica ao fazer da cincia e a sua pretensa neutralidade, defendida pelo conhecimento clssico que separa as atividades do campo cientfico realizada nas universidades e nas instituies, das atividades e aes sociais do campo poltico, onde atuam cidados comuns. O princpio pressupunha a no-contaminao do conhecimento pelo social e, como tal, separava a prtica poltica da prtica cientfica. Contudo, as intensas transformaes dos anos anteriores a 1950/1960 no permitiam mais um fazer cientfico distanciado da prtica e dos sujeitos que ela estuda, com a cincia e o cientista protegidos numa redoma 65

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de cristal. Nesse contexto, a cincia comeou a rever suas prticas sob presso dos movimentos sociais emergentes. O fazer da antropologia e do antroplogo no foram indiferentes ao movimento. A prpria natureza do trabalho do antroplogo, segundo Fonseca (1999), muito antes disso, ainda no incio do sculo XX, conduziu-o a ter que se defrontar com o mundo do outro e seu universo e o fez para descobrir-se a si mesmo e ao seu prprio mundo. O contato face a face desvelou uma realidade em que o objeto de estudo se fazia sujeito, no sendo este um mero informante, como no passado, e o antroplogo, um controlador de situaes e variveis em campo. O estranhamento de ambas as partes seria o componente fundamental da investigao antropolgica e das possibilidades de descoberta de algo inteiramente novo, forjado no contato, na interao e na comunicao entre pesquisador e pesquisado. Aqui comeava a ser redimensionado o sentido ou os muitos sentidos da noo de cultura como fato relacional, e no relativa, que diz respeito ao contexto concreto das relaes sociais em movimento e cuja base dada por processos histricos do passado, mas, sobretudo, do presente. Nesse sentido, a antropologia que emergiu nos anos de 1950/1970, envolvia uma nova concepo de cultura, no alheia ao contexto de mudana das sociedades em contato, e ter seu nexo num campo de foras e de poder que comeava a ser reconhecido, em sua existncia, como de contradio e de conflito. A cincia antropolgica ir buscar, ento, em novas correntes tericas o estruturalismo e o marxismo as possibilidades de uma reflexo mais crtica e compreensiva da realidade social, capaz de superar as abordagens particularistas de cultura. O estruturalismo ser um reflexo desse novo tempo e teve por marco principal os anos de 1950 e 1960. A preocupao dessa teoria estar posta na descoberta de outras racionalidades e representaes, na tentativa de superar a desqualificao do diferente. Para tal, o estruturalismo repensou a dinmica da ao humana, suas manifestaes sociais e alteridades, agora de modo mais pertinente, porm no era ainda uma crtica real da desigualdade scio-cultural que cerca a to decantada diferena cultural, produto da dominao colonial e neo-colonial (Carvalho, 1989, p. 21). Sistematizada a partir dos estudos de Levi-Strauss, a teoria estruturalista far-se-ia presente nos debates da corrente inglesa dos estudos culturais que discutir a possibilidade de uma crtica cultural ou teoria cultural que se fazia como proposta acadmica e movimento poltico. O debate cultural no interior do marxismo, este sim, capaz de formular a crtica social, levou a que os estudos culturais nascentes se confrontassem com as idias de Louis Althusser, antroplogo de tendncia marxista-estruturalista, que discutia as instituies sociais como aparelhos ideolgicos do Estado, entre estas, a escola. A instituio escolar passou a ser questionada como instituio reprodutora da ordem social desigual e injusta (Althusser, 1998; 66

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Bourdieu; Passeron, 1975) e colocou-se em tela a noo de ideologia9. No por acaso. No quadro mais geral, na segunda metade do sculo XX, a frica imps ao mundo sua presena atravs das lutas por independncia, confrontando-se com o colonialismo ainda em processo de sobrevida. Duas guerras mundiais haviam dilacerado as certezas do mundo ocidental e a questo da humanidade, reconhecidamente diversa, estava em debate. A diversidade sociocultural presente na sociedade moderna impunha como necessidade ser reconhecida e dimensionada dentro e fora da escola, vale dizer, no interior da sociedade e da cultura que lhe prpria. No entanto, esse processo de reconhecimento no poderia limitar-se admisso das diferenas, tal como acontecia no culturalismo e no funcionalismo, sob pena de perder-se na superfcie da realidade social e no jogo ideolgico dos valores vigentes e operantes na compreenso de mundo que permeiam as relaes sociais. Nesse sentido, a ordem que se imps ao mundo de ento acusou a antropologia por seu passado de servio ao colonialismo e suporte de expanso do capitalismo. Afirmava que a noo clssica de cultura no mais atendia s necessidades desse novo tempo. Diante do fato, a cincia antropolgica reviu seus passos, reordenou seus princpios e se ps diante da tarefa de fazer uma cincia engajada a servio das populaes dominadas que sempre foram objeto de seu olhar. Reviu, tambm, as potencialidades de seu conceito central, a cultura. Corriam os anos de 1960/1970. O marxismo somou e dividiu o campo cientfico, a exigir da cincia, qualquer uma, uma postura de instrumento de outra poltica, mais engajada e comprometida. Questionou, tambm, o alcance do conceito de cultura, agora, diante de uma sociedade de classes. A percepo crescente da cultura como campo de tenso e conflito permeava, ento, no apenas o campo da teoria e da prtica no fazer da cincia, mas tambm se fazia presente no debate em torno do fazer social e poltico.

Antropologia, estudos culturais e educaoAo cruzar a antropologia e a educao no campo da cultura, buscando compreender os caminhos de apreenso do mundo social pelos paradigmas vigentes entre dois sculos sculo XIX e sculo XX evidenciou-se que a histria da cincia antropolgica a conduziu em direo afirmao da diversidade sociocultural e do relativismo. O fato a colocou e a coloca em condio poten9. A escola de Birminghan postulava como necessrio saber se a cultura permitiria apenas a reproduo do social, tal como se apresentava no discurso de Althusser, porque hegemnica, ou se a partir dela, cultura, seria possvel suplantar a hegemonia colocada pela ideologia dominante e permitir uma mudana radical da sociedade.

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cial de interlocutora no interior do sculo XXI, em razo de sua experincia e de sua histria. Por sua vez, a histria da educao, por meio de suas prticas educativas campo da pedagogia conduziu-a na direo da afirmao permanente da homogeneidade colocada ainda no sculo XIX e centrada na busca por universais humanos, como valor e como ideologia. Como tal, a educao foi desafiada a responder s diversidades sociais humanas que se impunham e se impem como realidade e como direito no alvorecer do sculo XXI. Nesse movimento, a antropologia construiu seu caminhar, definindo um mtodo prprio de fazer cincia, construindo seu objeto a partir de uma forma particular de fazer perguntas, construir estratgias, para penetrar no universo do outro, seu sujeito, podendo com ele investigar e buscar explicaes para os fatos da vida humana. A perspectiva singular com que olha a realidade e opera o conhecimento, ainda hoje, resulta das teorias que emergiram ao longo da modernidade e que permitiram a adequao de seu objeto das chamadas sociedades simples s sociedades complexas e de si mesma como cincia. O contexto histrico que toma por pano de fundo o Ocidente e a colonizao, o contato e o confronto com outros povos e outras culturas, visando suprimir toda e qualquer alteridade pela imposio de um modelo de vida, torna-se o elemento crtico fundamental de uma reviso de si mesma como cincia da diversidade. Ao mesmo tempo, no pano de fundo da histria, a educao e sua prtica, ainda em busca de homogeneizao e dos universais humanos, determinaram-se como um efetivo processo de ensino centrado em modelos pedaggico e cultural diversos, porm que no venceram a contento a natureza etnocntrica e homognea presente na instituio escolar. Portanto, no ser por acaso que os anos de 1950/1960 sero um divisor de guas da realidade histrica contempornea e, tambm, um momento crucial de diviso na produo do conhecimento. O campo cientfico encontrava-se cindido em dois momentos: o passado com suas Teorias de Equilbrio10 e o presente com suas Teorias do Conflito11. Entre um e outro, a modernidade e sua aparente superao a ps-modernidade encontrava-se em gestao. Uma aproximao esquemtica do movimento que vai do pensamento clssico dos sculos XVIII e XIX at o sculo XXI revela a presena da concepo positivista de sociedade (Teorias do Equilbrio) que, nesse largo tempo, apenas10. As teorias do equilbrio, nomeadamente o evolucionismo e o funcionalismo, encontram-se atravessadas por outras correntes, tais como o difusionismo, o culturalismo ou a histria cultural e tm por caracterstica a manuteno do status quo da sociedade. Visam sua manuteno e reproduo de forma harmoniosa. 11. As teorias do conflito, tais como o estruturalismo, o marxismo, o interpretativismo e outras indicam a noo de conflito como a base dos processos de transformao social da sociedade, em particular, as sociedades de classes.

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alterou o prprio discurso para mostrar-se em consonncia com as mudanas, mas que no chegou a mudar fundamentalmente sua forma e contedo. O individualismo metodolgico que tomou o social como centro do olhar e que acompanhou a produo de conhecimento nesse largo perodo colocou no indivduo a tnica da realidade social. O fato ser denunciado pelas diferentes teorias no nascer do sculo XX, mas estas no avanaram mais que isso na emergncia das humanidades e no fortalecimento da noo de cultura que consolidou as chamadas cincias humanas via as correntes culturalista, funcionalista, estruturalista e parte do marxismo. Com isso, o holismo metodolgico que assume a sociedade como centro do olhar introduziu um tratamento mais compreensivo e interpretativo da sociedade presente na evoluo do pensamento cientfico de ento; contudo, no superou os limites de que se acusa a modernidade. A razo est em que tanto o individualismo como o holismo consideram o indivduo e a sociedade desde um lugar que o olhar dominante naquele momento, a sociedade colonial e europia ; olhavam de cima para baixo como parte dos processos de submisso e dominao que imperavam no tecido histrico, em sua centralidade e em seu etnocentrismo. As vozes dissonantes sero vozes de protesto, de denncia, mas no de superao. O campo de mediao entre os extremos que representavam comearia a ser construdo nos anos de 1950/1960. Nessa poca, as teorias emergentes (Teorias do Conflito) comeavam a desafiar a concepo de mundo atravs dos movimentos sociais, das transformaes histricas e das conseqncias das guerras mundiais das dcadas anteriores e das lutas por libertao e guerras civis em frica, demandando a urgncia de outro modo de pensar a humanidade. O interacionismo simblico emergente impunha a necessidade de relaes face a face e instaurava o debate em torno do pesquisador como sujeito poltico, da pesquisa como realidade engajada e momento crucial de permanncia ou de superao da produo de conhecimento por vias disciplinares constitudas na modernidade. No por acaso, portanto, a chamada crise dos paradigmas expressou-se significativamente ao final do sculo XX, colocando em debate as teorias interpretativas e as possibilidades da chamada ps-modernidade. As novas concepes de cincia diziam respeito a um espao de fronteira, discutido hoje, em termos da compreenso desse espao como de interao, centrado no contato e na comunicao entre sujeitos. Um espao que, por ser dinmico e de fluxo contnuo, faz emergir formas especficas de percepo, cognio e representao. Um espao, desde sempre, familiar antropologia, cuja prtica, o trabalho de campo, tornou necessrio as relaes face a face com outros sujeitos, outras culturas e outras sociedades. Tornou necessria a compreenso a respeito do outro e de sua vida, do outro e de suas vises de mundo, como no alheias ao prprio mundo do antroplogo, a sua viso de mundo e 69

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cincia que pratica. A reflexividade descoberta no trabalho de campo e um dos suportes da cincia antropolgica colocou o desafio da relativizao e da comparao das relaes concretas entre os homens, entre o pesquisador e o pesquisado, entre a cincia que pratica e a cincia que se encontra legitimada como tal. A compreenso do contexto histrico e poltico das relaes entre sujeitos tornava-se obrigatria e, para tanto, a antropologia ampliou seu conceito-chave a cultura para alm da condio de smbolo e significado, para apreend-la como estrutura de sentido e de comunicao, entendendo-a como mediao num contexto relacional, marcado por embates de um campo de fora e de poder. Assim, entre as cincias descritivas e classificatrias do pensamento clssico e o novo momento, a exigncia de teorias mais compreensivas e crticas se impunha com fora. Para Lovisolo (1984, p. 57), tal demanda imposta pela natureza das sociedades ditas complexas habilitou e habilita a antropologia na interpretao do tempo presente. As caractersticas metodolgicas construdas no passado e centradas na descrio etnogrfica uniram-se a um esforo etnolgico de explicao das sociedades ditas simples, desde o primeiro momento do contato destas com a chamada civilizao. Por essa razo, a antropologia realizou, em sua trajetria, um grande esforo etnogrfico [que] foi acompanhado de um trabalho etnolgico de porte semelhante, vale dizer, uniu a descrio de grupos e sociedades a um trabalho analtico (explicativo/interpretativo) significativo na compreenso desses grupos e sociedades. Mais do que isso, pode-se dizer que hoje,a aceitao da antropologia pela sociedade complexa convive com a emergncia da representao de sua diversidade [...] que comea a se opor/aliar a uma imagem de uma sociedade formada por grupos ou identidades coletivas (tnicos, religiosos, culturais, etc.) interagindo de formas diversas (Lovisolo, 1984, p. 59).

Nesse sentido, diz Lovisolo, o fato de as sociedades pensadas pela antropologia nunca terem sido universais fez com que essa cincia, desde sempre, tivesse por objeto a diversidade, a diferena entre sociedades, suas singularidades e as formas de construo dessas identidades (1984, p. 59). exatamente sobre esses mesmos pontos que as realidades complexas exigem a renovao do arcabouo terico moderno, e aqui que a antropologia, por seu mtodo e por suas categorias de anlise, se faz fundamental. Lovisolo defende a existncia de umaantropologia interpretativa vinculada ao lado ativo da vida humana e toma como objeto de interpretao a intersubjetividade, [e que] foi a que penetrou e est sendo aceita na sociedade complexa no contexto geral da revalorizao da

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subjetividade; a antropologia que pensa o homem como constitudo e constituindo o tecido de significaes que so seus meios, suas condies e seus fins. Diria que no campo educacional ela tem um papel relevante a desempenhar (1984, p. 67).

Contudo, segundo o autor, o grande paradoxo que no reconhecimento da diferena, no respeito das singularidades ticas, raciais, culturais, etc., conservadores e revolucionrios [na educao, tal como em outros campos] encontram-se trilhando caminhos diversos (Lovisolo, 1984, p. 61). Em questo, uma concepo positivista de sociedade construda como parte das vises clssicas do passado e a necessidade de construo de uma concepo compreensiva e interpretativa de mundo, que chega at os dias de hoje e nos desafia. Em todo o contexto descrito, percebe-se que os passos da antropologia e da educao como prtica (a pedagogia) se iniciaram de um mesmo patamar e com uma mesma natureza, mas comearam a distanciar-se e a fazerem-se divergentes nessa mesma caminhada. A antropologia seguiu os desafios de cada momento histrico, preocupada em explicar a diversidade social humana a partir das singularidades e particularidades que revestem diferentes grupos e sociedades. Entre um sculo e outro, privilegiou o campo das diferenas e caminhou em sentido do reconhecimento das diversidades socioculturais de seu tempo. Atrelada aos universais humanos, a educao chegou ao final do sculo XX colocando, para a pedagogia, o desafio de ter que admitir as diferenas e de estabelecer um modo de dialogar com elas, mas que ainda no encontrou sua plena realizao. Na necessidade de superar os limites do momento anterior e na nsia de superar o denuncismo daquele momento para transform-lo efetivamente numa cincia mais engajada e mais prtica, o campo cientfico como um todo elegeu o interacionismo como fundamental na compreenso do outro. Ainda que se tratasse, agora, de colocar face a face sociedades, culturas e sujeitos diversos, postulando o conhecimento mtuo em condies de igualdade e eqidade, sem reproduzir as relaes assimtricas do passado e da histria ocidental, tal no aconteceu sem contradies e conflitos. Reconhece-se a condio de ao de homens concretos, de sua interao e comunicao, pensada em Marx como prxis social, mas o que o interacionismo buscava era o caminho da mediao das relaes entre os homens, que no reificasse o homem ou a sociedade, mas que os colocasse em dilogo. Um caminho intermedirio no qual a cultura devia ser vista no to-somente como universo simblico, contexto de smbolos e significados, como no passado, mas que fosse vista, tambm, como comunicao e mediao no interior de um campo de relaes. O fato que, desde sempre, as sociedades humanas esto em contato e em relao e, aqui, a antropologia armou-se de sua histria e memria para responder aos desafios dos 71

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problemas contemporneos relativos diversidade social, buscando compreendla em contexto. Um contexto simblico, mas, sobretudo, um contexto de relaes historicamente determinadas e, como tal, um campo poltico e de poder. Nesse sentido, como diz Gusmo (1999, p. 46):A cultura e seu movimento incorpora ainda uma outra dimenso que seu carter de mediao, ou seja, aquilo que faz com que as condies objetivas de vida sejam expressas pelos sujeitos sociais, no pelo que de fato so e representam, mas pela forma pela qual o real significado, percebido e interpretado. Cabe aos indivduos e grupos, perceber, significar e interpretar a si mesmos em relao ao que vivem e experimentam e que, impregnam a textura social do cotidiano, enquanto imagem, rotina e ruptura, enquanto universo significante que parte da vida vivida, pensada, sentida e concebida.

Aqui as potencialidades da antropologia, cincia gestada na modernidade, impunham-se de maneira particular e a colocavam como precursora do que se apresentaria como exigncia ao final do sculo XX. Na sua origem, a antropologia privilegiou a alienidade, porm, em sua caminhada, ainda na primeira metade do sculo XX, descobriu e elegeu as relaes face a face no trabalho de campo como seu modo de fazer cincia. A etnografia, como seu mtodo central, tem na reflexividade um caminho de dupla mo, de ida e volta a dois universos simblicos o do pesquisador e seu mundo e o do pesquisado e seu mundo. Pode-se dizer que, na modernidade, a antropologia e o fazer do antroplogo so j de interao, partilha e comunicao. Assim, a comparao e a relativizao constituem-se como pilares fundamentais de seu modo de fazer cincia12. Nesse fazer, pesquisador e pesquisado constituem-se como sujeitos em relao. A subjetividade do pesquisador e do pesquisado, que primeiramente a desafia como cincia, torna-se componente bsico e essencial da anlise antropolgica. Torna-se um paradigma de conhecimento. Com isso, a antropologia, entre as humanidades, segue um caminho de constituio em que sua natureza cientfica se define no pelo objeto, mas pelo modo de fazer cincia, ou seja, seu mtodo e o que vem com ele, suas categorias de anlise. Para sintetizar esse debate, conclui-se que, na antropologia como cincia, a passividade do sujeito tido como objeto e da cultura, como somente descrio, pode ser vista como parte de uma fbula que se conta na luta disciplinar do final do sculo XX, por no se situar de modo mais crtico e temporalmente a histria dessa cincia.

12. Ver, a respeito desse debate, o excelente texto de Claudia Fonseca (1999, p. 58-78).

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Da antropologia e dos estudos culturais: a questo da educao e da escolaA escola construda sobre a afirmao da igualdade e enfatizando a base cultural comum a todos13, diz Vera Candau (2002), enfrenta o desafio de ter que articular igualdade e diferena, a base cultural comum e expresses da pluralidade social e cultural, colocando em jogo, no processo educativo, as relaes entre o multicultural e a educao; o cotidiano escolar e a formao de professores, em razo de como se expressam a diversidade, a intolerncia e o tratamento desigual do diferente. Contudo, com base nisso tudo, que so fatos reais e concretos (o multicultural), no final do sculo XX, o relativismo cultural dos anos de 1930 revisitado nos anos de 1990 em diferentes prticas e estudos pedaggicos. Isso ocorre em razo da no-reflexo crtica desse movimento que tipificou a antropologia daquele momento e, em particular, a antropologia da educao. Em questo: como articular, no campo educacional14, valores universais (prprios das sociedades verdadeiramente democrticas) e as especificidades culturais, ou seja, o singular e o especfico de cada grupo, sociedade e cultura? No sem razo, portanto, o multiculturalismo, como campo terico de explicao dessa realidade e base de construo de uma prtica e interveno emergiu no campo educacional aps os anos de 1960 e firmou-se como perspectiva nos anos de 1990. Emergiu, porm, centrado na prtica mais que na teoria e como tal se tornou elemento fundamental, no do campo educacional, mas da ao educativa.15 O multiculturalismo dir, ento, da necessidade do reconhecimento das diferenas no interior de uma viso poltica comum e democrtica, capaz de garantir as liberdades individuais e particulares (Valente, 1993, p. 11). O modo como o faz, porm, revela muito de sua complexidade e contradio.13. Cabe observar que a cultura, como fato comum presente em toda e qualquer sociedade humana, no pressupe a existncia de uma base cultural comum a todos os homens, tal como pressuposto pela escola como instituio. 14. Campo Educacional de ordem mais ampla e crtica, pois busca uma viso compreensiva da realidade social, mais interpretativa, ordenada pelo campo poltico e pelas relaes de poder. Nele se discute o ser e o dever ser de sujeitos sociais concretos e seus mltiplos significados. Tem por paradigma a noo de conflito. Considera a dinamicidade da produo e da reproduo do mundo social. O ser social aqui participante ativo do social e sujeito de conhecimento. 15. Ao Educativa ou educacional de ordem prtica e mais prescritiva. Estabelece diagnstico e prescreve a ao de interveno sobre uma dada situao, com o intuito de dar soluo ao que tido como problema. Objetiva, assim, por meio da socializao, interiorizar sentimentos, hbitos, valores inerentes ordem social. O ser social , aqui, sujeito passivo das relaes de ensino.

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No campo antropolgico o problema coloca-se, segundo Valente, de modo a garantir que possvel inserir microrrealidades em contextos mais amplos e que a realidade do campo educacional no pode ser reduzida sala de aula ou escola em si mesma, como freqentemente acontece nos estudos relativos educao. No se pode, tambm, segundo Valente, higienizar o espao da escola, v-lo como neutro, higienizado de seus males em nome de um humanismo intil porque pragmtico e utpico, ou ainda, geral, abstrato e ideolgico. Afirma a autora:O que pode e deve fazer a escola para promover sua prpria transformao devolver ao discurso escolar aquilo que hoje ocultado: o uso social que feito dos conhecimentos que ela transmite. (Valente, 1993, p.13)

A questo est em que a chamada educao multicultural desconhece os caminhos j trilhados pela antropologia e elege seus estudos e propsitos em torno da educao e da cultura, por meio do que designado, principalmente nos EUA e com sucesso na educao brasileira, de estudos culturais. Terence Turner, citado por Kuper (2002), afirma que os cultural studies surgidos nos EUA influenciaram diretamente a ascenso do multiculturalismo. Para o multiculturalismo, a noo de cultura resulta de concepes presentes nas belas artes, na literatura, nos conhecimentos, nas artes negras, na cultura popular. Segundo Adan Kuper (2002, p. 291), so campos que consideram diferentes formas de culturas valorizadas como distintas, porm, sempre em relao a uma cultura oficial a alta cultura na contraface de uma cultura de massas que, por falsas, impedem a emergncia da conscincia e da luta por direitos. Por essa razo, diz Kuper, Stefan Collini critica os estudos culturais, afirmando que o dever dos que esto engajados nos estudos culturais subverter, desmascarar, contestar, des-legitimar, intervir, combater, prprio de um ativismo poltico e denuncista. Contudo, tal dever no parte de uma reflexo sistemtica e crtica que possibilite no apenas reconhecer o outro, mas conhecer o outro para que o reconhecimento se faa possvel para alm das identidades singulares. Os estudos culturais envolvem a questo do poder dominante e fomenta polticas culturais mediante o que considera uma nova abordagem da cultura ou da teoria cultural (campo da literatura), agora no antropolgica, tida como apoltica, mas numa concepo mais poltica e engajada, prpria desse novo campo. Dessa forma, os estudos culturais propunham-se a romper com a tradio antropolgica, visando apresentar uma proposta acadmica de crtica cultural que fosse tambm, e a um s tempo, um movimento poltico. Tais estudos elegem a prtica mais que a teoria e, se criticam o tempo de antes como 74

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sendo eminentemente terico e pouco prtico, assumem agora seu oposto extremo a prtica engajada e militante acima de qualquer coisa. Foi essa forma de olhar que emergiu nos EUA dos anos de 1960 e cresceu nos anos posteriores, em simbiose com os movimentos sociais orientados por diferentes grupos, primeiro os negros americanos e sua confrontao com o Estado americano; depois, outras minorias como o feminismo, o homosexualismo e outros. A particularidade que define a identidade desses grupos ganhou visibilidade e expresso, dizia deles em suas singularidades, mas pouco permitiu com relao possibilidade de compreenso de uma ordem mais geral, em que esses mesmos grupos se encontravam inseridos. As relaes que a se manifestaram apontavam para a interioridade de cada grupo a reivindicar uma identidade prpria e alvo de direitos perante o Estado, que tendia e tende a homogeneizar a realidade social e que dizem de sua relao com o Estado-Nao como marcadamente de domnio e excluso. O que no se diz da natureza mesma dessas relaes como cultura e como ideologia. No campo da militncia tudo uma s e mesma coisa. Aqui operam reducionismos diversos que implicam dizer que toda cultura serve ao poder e que ou deve ser contestada, sem distingui-la do campo ideolgico propriamente dito. Por sua vez, a concepo de cultura restrita ao campo das artes, das mdias e ao sistema educacional reduz a concepo de cultura condio de produto cultural, sem lhe reconhecer a condio de processo cultural, dinmico e em permanente fluxo, como diz a antropologia. Como afirma Kuper (2002), para muitos, o multiculturalismo que a emerge, embora apresente questes pertinentes dos desafios de nosso tempo, no um movimento coeso, como por vezes se pretende: suas muitas escolas e tendncias (como a inglesa, a francesa, a australiana, a canadense) exigem muitos debates e questionamentos. Entre estas est o que os antroplogos defendem: toda cultura multicultural e a diversidade humana mais funo das relaes que unem os grupos do que funo de seu isolamento, como lembra Levi-Strauss. O fato exige olhar para as relaes entre os homens, e no para as diferenas de que so portadores16. Volta-se, portanto, descoberta central da antropologia sobre as relaes de alteridade que constroem a histria do mundo ocidental e moderno. Para Kuper (2002, p. 309), as teorias modernas [vale dizer dos anos de 1980/1990] reciclam as anteriores e se prestam a propsitos polticos seme16. Para Renato Ortiz (2000, p.165-166), a diferena remete a alguma coisa outra, que produzida socialmente e porta um sentido simblico e histrico, mas no equivalente noo de diversidade, principalmente diversidade cultural, que conduz a pensar situaes concretas e mergulhadas em campos de interesse e de conflitos sociais, tais como os que emergem no interior do capitalismo e da globalizao.

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lhantes confrontam objees, so reformuladas de modo ambguo e fraco. O que dizem no nada de extraordinrio, ainda que algumas luzes sejam lanadas por essas teorias. Para o autor, preciso separar os vrios processos que agrupamos indistintamente sob o rtulo de cultura (grifo meu) e olharmos alm do campo da cultura para outros processos se quisermos conhecer a cultura de um grupo ou sociedade. Para ele, a teoria da cultura estudos culturais desvia a ateno do que temos em comum e que permitiria nos comunicarmos atravs das fronteiras nacionais, tnicas, religiosas e, assim, irmos alm dela cultura , no permanecendo na diferena pela diferena, uma armadilha perigosa para as sociedades humanas. A proposta do autor de ir alm da cultura exige reconhecer outros processos sociais que desde a segunda metade do sculo XX tm gerado contextos tensionais decorrentes da diversidade social e desta como decorrncia de processos estruturais de uma sociedade de classes e de sua complexidade. Vale dizer, na qual nem tudo s cultura, mas tambm ideologia. E, como tal, preciso distinguir uma da outra para entender os nexos e os confrontos que se apresentam nas relaes entre os homens e suas sociedades, bem como entender a capacidade explicativa de cada uma dessas noes para no reduzir o olhar, culturalizando a poltica ou politizando a cultura17. Aqui, certamente, a noo de cultura em seu sentido antropolgico deve ser resgatada para colocarse de modo complementar e acrescido no contexto poltico da modernidade. Sem isso, a questo da diversidade e o respeito s diferenas, ao ensejar experincias educativas na escola, correm o risco de tornar-se um discurso tcnico, prescritivo e incuo. O debate importante e no resolvido por inteiro o conceito de cultura e o campo que o origina, a antropologia uma discusso que ora avana, ora se retrai. O fato exige apontar para a amplitude do conceito, para sua dimenso poltica e para seu alcance explicativo, para alm da questo simblica e, portanto, numa viso da cincia antropolgica moderna e crtica. Como se diz entre antroplogos, a antropologia nos EUA hoje Cultural Studies e, como tal, difere de outras partes do mundo, onde persiste como Antropologia (s); posto que mesmo plural, no desconhece suas linhagens, nem sua histria18. Por essa razo, praticar estudos culturais no Brasil ou mesmo na Amrica Latina, como diz Renato Ortiz (2004), no a mesma coisa que no caso americano. No Brasil e na Amrica Latina, na concepo do autor, os estudos culturais encontram-se voltados s humanidades, como campos disci17. Ver, a respeito, o texto de Eunice Durhan (1984, p. 71-89). 18. Marisa G. S. Peirano, antroploga da UNB, trata do tema em diversos artigos. Ver, da autora, o ensaio Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada), publicado em Miceli (1999, p. 225-266).

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plinares, principalmente na comunicao e nas artes. Contudo, diz o autor, se os estudos culturais se configuram como uma rea de conhecimento, a resposta pode ser positiva para o caso das universidades norte-americanas,mas, negativa, ou no mnimo ambgua, quando nos voltamos para a Amrica Latina. No que toca ao Brasil, parece-me que a penetrao dos Estudos Culturais se faz pelas bordas, ou seja [...] na periferia do campo hierarquizado das cincias sociais. (Ortiz, 2004, p.121)

Ortiz afirma que os estudos culturais no existem no Brasil como rea disciplinar, como o caso dos EUA. Ainda que se pontuem interesses nesse campo, tais interesses, aqui, voltam-se ao que produzido na Inglaterra via escola de Birminghan, enquanto, nos Estados Unidos, o interesse gira em torno de estudos literrios, ps-modernidade e globalizao. Entre ns, nos institutos e nos departamentos das cincias humanas, as tradicionais divises de ensino e pesquisa persistem, de forma prevalecente, porm, numa convivncia sem atritos com a nova tendncia. Est em questo, nesse fato, a condio histrica diversa que reveste a Amrica Latina, posto que, neste contexto, a temtica cultural, associada ao dilema da identidade nacional, foi uma preocupao permanente da intelectualidade. [...] A constituio da nao implicava uma reflexo diferenciada (Ortiz, 2004, p. 124). Fundamental, diz ele, queO dilema da identidade nacional levou a intelectualidade latino-americana a compreender o universo cultural (cultura nacional, cultura popular, imperialismo e colonialismo cultural) como algo intrinsecamente vinculado s questes polticas. Discutir cultura de uma certa forma era discutir poltica (p. 125).

Desse modo, o caso particular da Amrica Latina comunga, por sua histria, com parte da antropologia e com alguns antroplogos, como tambm com grandes escritores sobre cultura [que] jamais duvidaram de que a cultura fosse uma questo poltica (Kuper, 2002, p. 290). Na verdade, diz Kuper ao citar Turner, com os estudos culturais o debate da cultura voltou [grifo meu] a ter um carter poltico (p.289). Contudo, estranhamente, atravs dos estudos culturais, principalmente aps os anos de 1990, a noo de cultura se generalizou e se banalizou, tornando-se vazia de significado e alcance explicativo; ao mesmo tempo, o conceito de ideologia foi esquecido e banido das anlises cientficas e dos textos acadmicos. Cabe, portanto, perguntar o que isso explica ou esconde a respeito de nossa realidade e da cincia que praticamos. Ao perguntarmo-nos sobre as categorias de apreenso e explicao da realidade com a finalidade de lhes fazer a crtica e construir um conhecimento crtico de outra ordem, colocam-se em tela nossa historicidade particular e as 77

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possibilidades de dilogo e de confronto entre a antropologia e a educao, como cincia e como prtica. Com isso, a natureza prpria de cada campo e a histria que as constitui entram em relao, complementaridade e conflito. O fato exige pensar a produo do conhecimento como teoria e prtica que orientam processos de interveno cuja caracterstica central ser, sempre, social e poltica, porm historicamente determinada, o que exige um mergulho no que particular e especfico de nossa realidade, para com ela dizer do que geral e universal no campo terico. As crticas a uma dada antropologia do passado clssica ou moderna da qual se diz que no serve ao novo momento representado pela crise dos paradigmas, ensejam a reao dos antroplogos e da antropologia para dizer de um lugar outro capaz de contribuir para as questes desse novo tempo. O confronto disciplinar que se estabelece e origina espaos de constituio e institucionalizao desse novo campo disciplinar, os estudos culturais, no pode ser simplesmente transposto a realidades outras, tais como a da Amrica Latina ou a do Brasil. O equvoco do momento em que surge tal proposta, e vlido para alm desse espao scio-geogrfico, o de supor que cincia e poltica sejam fatos opostos entre si. Rano herdado do positivismo do sculo XIX, que no reconhecia que o campo cientfico e disciplinar, alm de no ser neutro, no se congelou no tempo, mas tambm se modificou para dar conta dos desafios de cada momento ao longo do sculo XX. Como afirmam LEstoile, Neiburg e Sygaud (2002), a bblia acadmica da primeira metade do sculo afirmava que as relaes entre cincia e poltica envolviam dois contextos. No primeiro deles, os pesquisadores seriam capazes de distinguir as atividades que realizavam como cientistas nas universidades e nas instituies de pesquisa daquelas que realizavam como cidados no campo poltico. Opunha, assim, o pblico e o acadmico, a pesquisa pura pesquisa aplicada. Os dois mundos no se confluam ou se comunicavam. O segundo contexto coloca a cincia a servio da poltica, visando racionalizar e solucionar problemas sociais por meio da utilizao do conhecimento cientfico ou da pesquisa engajada. Esta segunda opo vai alm da academia, comunga com a realidade pblica e militante e torna-se mais polissmica. Contudo, ambas as posies so tipos ideais, pois, como se v pela histria do campo cientfico e em particular na histria da antropologia na modernidade, no acontece tal como postulam uma e outra posio. A ambigidade das relaes entre cincia e poltica esbarra nas fontes de financiamento de que dependem tanto as pesquisas mais tericas como as mais engajadas e intervencionistas, colocando em questo o fato de ser ou no uma cincia pura ou uma cincia aplicada. preciso que se olhe o contexto histrico e sua variabilidade no tempo e no espao para que se possa definir autonomia, engajamento no conhecimento que 78

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produzimos. Como diz Steve Shapins, citado por LEstoile, Neiburg e Sigaud (2002, p. 15): a definio do que constitui a cincia e do que lhe exterior no pode ser tomada como dada: ela uma construo que varia no tempo. Como explicar, portanto, que tantos trabalhos no campo da educao bra