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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA E A EXPERIÊNCIA COLONIAL LUSO-

AMERICANA: MARCAS DE UMA RENOVAÇÃO HISTÓRICO-JURÍDICA

PEDRO PRAZERES FRAGA PEREIRA

PPGD-UFRGS

[email protected]

1. Introdução

Apontado como um dos primeiros países a passar pelo processo de

modernização e correspondente constituição de seu Estado Nacional, Portugal sempre

foi indicado como exemplo pioneiro na erradicação dos “abusos e privilégios feudais”,

arquétipo que só teria sido alcançado por seus vizinhos europeus com alguns anos de

atraso. Evocando a precocidade do processo de centralização e de monopólio do poder

político-jurídico por parte da coroa portuguesa, é vasta a historiografia que carregou de

tintas a imagem de um Portugal grande, cuja musculatura político-institucional seria a

chave explicativa da formação do vasto império ultramarino que começava a se

constituir já nos idos dos quinhentos.

Essa interpretação bem se adequava, desde então, aos desígnios

nacionalistas de uma elite política à qual convinha ressaltar a necessidade – ou mesmo a

inevitabilidade – da mão forte da coroa portuguesa na administração dos seus vastos e

heterogêneos domínios territoriais. Contemporaneamente, também serviu bem a uma

historiografia lusitana alimentadora do mito de um passado nacional grandioso,

autocontemplação fundadora de um nacionalismo nostálgico que não deixa de se fazer

presente no imaginário português.

Do lado de cá do atlântico, esse tipo de visão também se acomodou bem

a uma narrativa histórica que apontava a herança ibérica-colonial como a grande

causadora dos males que assolavam o Brasil. Colocando o país como vítima de uma

condição opressiva, que drenava seus recursos naturais por meio de uma economia

escravista-exportadora, projetava-se no “império” o tirânico entrave ao

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desenvolvimento livre e emancipado de uma população repressivamente subjugada em

sua relação com a metrópole.

Para além de tais usos e funções ideológicas aos quais a história volta e

meia se presta, a construção dessa imagem de um Portugal vanguardista se insere nos

marcos mais amplos de um cânone interpretativo que via no Antigo Regime o limiar da

moderna figura do Estado-nação – com sua correspondente unificação territorial e

centralização política. Quando se reconhecia a existência de certas continuidades em

relação àquelas práticas e estruturas sociais próprias dos períodos medievais, estas eram

tomadas por meras reminiscências, resíduos de uma medievalidade tardia que a

nascente “monarquia absoluta” em boa hora se encarregava de erradicar.

Em consonância com tais pressupostos, a historiografia colonial

brasileira se desenvolveu a partir de uma contraposição essencial entre “metrópole” e

“colônia”, formando um esquema explicativo com algumas características e inclinações

perduráveis. Correndo algum risco de simplificação, é possível destacar, entre estas,

uma clara priorização dos aspectos econômicos da empresa colonial, reconhecendo na

escravidão um elemento central (e distintivo em relação à realidade europeia) para

compreensão do período; e, de outro lado, uma ênfase em análises macroestruturais,

traço que persistiu desde a longínqua tradição ensaística brasileira até a historiografia de

meados de 1970.

Preocupado em decifrar o “sentido da colonização” a partir do

desenvolvimento do capitalismo europeu (PRADO JR., 2011) ou a dinâmica

macroeconômica da exploração colonial (FURTADO, 2007) , esse cânone interpretativo

(um tanto alargado para melhor servir ao argumento) pouco escrutinou as práticas e

instituições jurídico-políticas efetivamente vividas e praticadas naquela sociedade. A

partir de perspectivas e influências hegemonicamente marxistas, gerações subsequentes

mantiveram um enfoque sistêmico/estrutural na historiografia colonial brasileira,

destacando-se o reconhecido Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial

(1986), de Fernando Novais, responsável por (re)formulações conceituais que até hoje

orientam investigações sobre o tema.

Mais do que um elenco bibliográfico, o que interessa destacar aqui,

seguindo a observação de Sílvia Hunold Lara, é o fato de que,

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Em muitos trabalhos, a idéia de uma ‘unidade nacional’ ainda continuou a ser

projetada para a ‘colônia’, construindo-se uma história que era do ‘Brasil’

colonial, não dos domínios portugueses na América; que era da Nação, não de

sujeitos históricos múltiplos, desiguais e diferentes. Por isso, a oposição que

separava radicalmente o arcaico-escravista-colonial do moderno-capitalista-

nacional continuou de certo modo a ser a base das reflexões históricas sobre o

período colonial até bem pouco tempo atrás. (2005, p. 24)

A partir de meados dos anos 1980, observou-se uma renovação na

historiografia política, jurídica e institucional europeia sobre chamada Época Moderna.

Categorias como as de “Estado”, “centralização ou “poder absoluto”, por exemplo,

perderam sua centralidade na explicação dos equilíbrios de poder nas sociedades

políticas de Antigo Regime (HESPANHA, 2001, p. 165). Alguns autores ibéricos

assumiram papel de reconhecido destaque nesse processo de renovação1, no qual a obra

de António Manuel Hespanha influenciou particularmente a historiografia brasileira.

Vários foram os trabalhos e os historiadores brasileiros que, direta ou

indiretamente, sofreram influência dessa renovação. E entre as temáticas que emergiram

a partir de então, aquela relativa à experiência jurídica do universo colonial foi uma das

substantivas. Ao demonstrar as linhas marcantes dessa nova mirada interpretativa,

procurar-se-á, neste breve ensaio, justamente anotar seus principais eixos de

desenvolvimento, explorando, por fim, algumas pistas e caminhos eventualmente

abertos à compreensão do que se poderia chamar de direito colonial luso-americano.

2. Arquitetura institucional e imaginário jurídico-político da sociedade

de Antigo Regime

1 ALBADALEJO, Pablo Fernández. Fragmentos de monarquia: Trabajos de historia politica Alianza:

Madri, 1993. CLAVERO, Bartolomé. Tantas personas como estados. Por una antropologia política de

la Historia Europea. Madrid: Tecnos, 1986. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan.

Instituições e poder político. Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1986.

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O pano de fundo dessa nova vertente historiográfica reside numa

releitura sobre a dinâmica e a estrutura das relações de poder no Antigo Regime. Em

trabalho pioneiro sobre o assunto e extensamente apoiado em fontes jurídicas e

administrativas de Portugal do seiscentos, Hespanha esboçou uma imagem

absolutamente inovadora do que passou a chamar de “Monarquias Corporativas”2. Onde

se supunha a existência incipiente de um Estado forte e centralizador, o trabalho retrata

a presença resistente de uma constelação de poderes periféricos, compondo um quadro

de funcionamento essencialmente pluralista daquele sistema político.

A partir dessa perspectiva – que constitui o eixo fundamental sobre o

qual se desenvolve o argumento de Hespanha –, o poder real perde sua “centralidade” e

passa a ser compreendido a partir de suas relações com esses corpos sócio-políticos

“particulares” – tais como família, câmaras municipais, senhorios e jurisdições

corporativas. Corpos cujo poder autônomo de auto-regulação era então reconhecido

como natural (próprio à “natureza das coisas”), em consonância com a concepção

corporativa de sociedade subjacente ao imaginário político do Antigo Regime.

O Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta

partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio)

dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua

articulação natural (coherentia, ordo, dispositivo naturae) – entre a cabeça e a

mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos

devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a

de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio

própria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e,

por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada

um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual

o seu estatuto (‘foro’, ‘direito’, ‘privilégio’); numa palavra, realizando a justiça.

(HESPANHA; XAVIER, 1993, p. 115)

A essa imaginação cosmológica tardo-medieval correspondia, como não

poderia deixar de ser, uma concepção igualmente plural do fenômeno jurídico, dentro

2 Trata-se da já clássica tese de doutoramento de Hespanha publicada como As vésperas do Leviathan:

Instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

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da qual a lei possuía um papel francamente minoritário e subordinado. Primeiro porque

eventuais inovações legislativas eram inevitavelmente filtradas por um acervo

doutrinário que tinha no direito “natural” (em outras palavras, nos “fundamentos da

razão jurídica”) sua fonte de inspiração e legitimação. De outro lado, a concepção

corporativa da sociedade reconhecia os poderes auto-regulamentadores daqueles corpos

periféricos como anteriores à lei – justamente porque provenientes da própria natureza

da sociedade.

A este caráter “natural” da ordem dos corpos políticos inferiores correspondia

um diferente princípio de construção da ordem jurídica, segundo o qual a norma

particular derrogava a norma geral, no seu particular domínio de validade.

Logo, o estatuto, tal como o privilégio, impunha-se à lei, que, assim, ficava

entalada entre uma doutrina (do “direito comum”), que a limitava por cima, e

um direito dos corpos, que a esvaziava por baixo. (HESPANHA, 1993, p. 15)

Nesse modelo de distribuição do poder, qualquer possibilidade de

distinção entre “Estado” e “sociedade civil” se torna impraticável. O caráter

globalizante dos mecanismos de poder e sua correlata dispersão por uma multiplicidade

de células sociais são apontados por Hespanha como os traços políticos estruturais da

sociedade de Antigo Regime, cuja compreensão só se torna possível a partir dessa

radical alteridade em relação ao “paradigma estadualista” pós-revolucionário (1984, p.

34-35).

Como as hierarquias entre as diferentes ordens normativas eram sensíveis ao

contexto (case-sensitive) e os modelos de transferência (ou transcrição não eram

fixos, o resultado era uma ordem entrecruzada e móvel, cujas particularizações

não podim ser antecipadamente previstas. É a isto que se pode chamar a

“geometria variável” do direito comum (ius commune). Em vez de um sistema

fechado de níveis normativos, cujas relações estavam definidas uma vez por

todas (como os sistemas de fontes de direito do legalismo contemporâneo), o

direito comum constituía uma constelação aberta e flexível de ordens cuja

arquitetura só podia ser fixada em face de um caso concreto. (HESPANHA,

2006, p. 30)

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Que não se imagine, nesse passo, que a ausência da figura estatal

implique em qualquer tipo de fragilização ou incompletude do direito moderno europeu.

A questão que se coloca é justamente que a centralidade que o direito alcançou no

Antigo Regime certamente não se ajusta ao contemporâneo imaginário de um “império

da lei”; revelando-se, antes, na coexistência de diferentes ordenamentos interpretados

por meio de juízos que muito mais prestigiavam as peculiaridades de cada caso do que

regras decisórias abstratas e apriorísticas. Era nesta tradição jurídica que ecoava a

percepção jurisdicionalista de poder, a indissociabilidade entre imperium e iurisdictio.

3. Um império centralizado(r)? A extensão da matriz pluralista aos

territórios ultramarinos

A partir dessa genealogia das relações de poder no Antigo Regime

português, Hespanha procurou lançar novo olhar também sobre as realidades coloniais,

especialmente sobre a “brasileira”. Imersa em uma formação histórica complexa e

extensiva, a experiência jurídica colonial luso-americana constituiu um universo

multiforme, hesitante e repleto de nuances. Daí porque incursões histórico-jurídicas

sobre aquele período sempre constituíram empreitadas difíceis, objeto de abordagens

extensamente variadas e não raras vezes contrastantes.

Tais dificuldades se devem a uma série de fatores, no mais das vezes

relacionados às características de fundo próprias à colonização portuguesa. Em primeiro

lugar, a ausência de circulação de um direito propriamente “culto” certamente dificulta

o acesso a fontes e prejudica análises mais tangíveis acerca daquele universo jurídico.

Além disso, o fato de que praticamente toda regulamentação jurídica – sobretudo as

ordenações do Reino – provinha do além-mar poderia colocar em dúvida a própria

possibilidade de se falar de um “direito colonial brasileiro”.

Mais uma vez a questão do anacronismo. Partindo-se daquelas premissas

sobre os modos de articulação fenômeno jurídico nas sociedades de Antigo Regime, o

historiador que procura estudar o direito colonial não deve andar tanto à volta de leis.

Nem deve pressupor uma capacidade de centralização político-administrativa do

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império ultramarino que, a par de impraticável por razões demográficas, em nada se

coadunava àquele modelo corporativo – logo, descentralizado – cujas características

procurou-se destacar. Eis aí a principal contribuição de Hespanha.

Essa nova matriz analítica buscou ressaltar que, por mais que o direito do

reino tenha pretendido uma validade absoluta no território imperial, fê-lo a partir e nos

limites dos modos de articulação do direito da sociedade da época. Se no centro

metropolitano o direito oficial já possuía uma incidência subordinada e minoritária,

nenhuma razão há para se supor que na vastidão do território colonial luso-americano,

separado por distâncias oceânicas da coroa, as coisas funcionassem de maneira

diferente.

Trata-se aqui de encarar a história colonial brasileira como parte

integrante de um império cuja vastidão comportava elementos e dinâmicas sociais

bastante heterogêneas. Nesse sentido, é claro que o imaginário tardo-medieval trazido à

América por açorianos e reinóis não ecoou num deserto, refratando-se por meio do

contato com universos culturais outros, como aqueles das comunidades nativas e do

vasto contingente de africanos que aportaram no território ao longo do empreendimento

colonial. A essa diversidade cultural correspondia uma multiplicidade de estatutos com

os quais a teoria política corporativa estava tradicionalmente acostumada a lidar.

E tais interações haveriam de ser juridicamente assimiladas por força de

duas principais circunstâncias. A primeira delas diz com a atuação essencialmente

"localista" das instituições monárquicas (tais como ordenanças, cerimônias católicas e

câmaras municipais), o que favorecia o autogoverno das diversas comunidades. De

outro lado, a dinâmica dos fatores locais da realidade colonial brasileira certamente

encontrou na contextura do ius commune a permeabilidade necessária à tolerância –

quiçá institucionalização – daquelas práticas normativas e disciplinares particularistas,

estruturadas sobre o contato entre os diferentes agentes sociais (tais como potentados,

escravos, crioulos, índios e pardos) que compunham as experiências jurídicas

periféricas existentes na sociedade colonial.

Trocando em miúdos, Hespanha procurar demonstrar que, se as próprias

limitações de ordem demográfica e político-institucional já dificultavam sobremaneira

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qualquer presença centralizadora e expansiva por parte da coroa portuguesa, a

mentalidade jurídico-política tardo-medieval coadunava-se muito bem àquele estado de

coisas.

O resultado seria um Império pouco “imperial” ou, nos termos da época, com

pouca “reputação”: heterogéneo, descentralizado, deixado ao cuidado de muitos

centros políticos no caso dos direitos relativamente autónomos, uns de matriz

europeia, outros de matrizes nativas, ponteado de soluções políticas bastante

diversas e onde a resistência do todo decorria da sua maleabilidade. (...)

raramente a ocupação portuguesa implicava mudanças formais na estrutura

administrativa precedente. Isto porque o regime de um auto governo, mais ou

menos tutelado, com a permanência das instituições politicas locais e a

consequente devolução para elas das tarefas de governo, era mais economico,

com a condição de não prejudicar as finalidades pragmáticas do ocupante. (...)

Tudo isto transformava o governo numa atividade pouco rigorosamente

regulada, sobretudo dependente do acaso das pessoas e das situações.

(HESPANHA, 2012, p. 105-107)

4. Considerações finais

Como se procurou demonstrar, as novas perspectivas e proposições

analíticas de António Manuel Hespanha constituem um instrumental teórico-

metodológico de grande valia para estudos acerca das experiências coloniais, sobretudo

a luso-americana. A potencialidade dessa nova matriz interpretativa reside

especialmente em encarar os territórios coloniais como parte integrante de um império

cujas práticas e instituições carregavam as marcas renitentes do Antigo Regime

português.

A partir dessa compreensão de fundo, os grandes esquemas explicativos

(como a ideia de “Antigo Sistema Colonial”) e seus correlatos dualismos pouco

flexíveis (como a oposição Metrópole-Colônia), bastante característicos da

historiografia brasileira, perdem definitivamente sua força. Mais do que oferecer um

modelo estático para analisar o passado colonial luso-americano, Hespanha delineia as

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bases a partir das quais aquele universo foi constantemente reinventado e refratado na

dinâmica imperial.

A própria noção de império sofre um grave redimensionamento. Onde se

supunha a existência de um império omnipresente e centralizador, Hespanha demonstra

uma sociedade corporativa marcada por relações políticas complexas e plurais, nas

quais o pacto e a negociação prevaleciam sobre a obediência hierárquica. Sociedade em

que o direito oficial sofria intransponíveis mediações, perdendo centralidade por

limitações de ordem territorial, cultural, simbólica e política, com forte prevalência de

valores e instâncias decisórias locais.

Não obstante esta breve exposição tenha abordado apenas as questões

mais imediatamente ligadas à experiência jurídica, é fácil notar que as contribuições de

Hespanha ultrapassam em muito os limites da história do direito. Se é verdade que os

impactos dessa nova matriz interpretativa se fazem sentir com cada vez mais constância

na historiografia brasileira, também o é que há muito campo a ser explorado. As

potencialidades da obra de António Manuel Hespanha, mais do que somar ao acervo

historiográfico brasileiro, abrem caminho para uma agenda verdadeiramente nova de

investigações histórico-jurídicas.

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