antonio florentino neto - heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental

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Anais do Congresso de Fenomenologia da região Centro-Oeste Caderno de textos - IV Congresso de Fenomenologia da região Centro-Oeste - 19 21 de Setembro de 2011 CONFERÊNCIAS 26- Anais - Congresso de Fenomenologia da Região Centro-Oeste HEIDEGGER E O INEVITÁVEL DIÁLOGO COM O MUNDO ORIENTAL Antonio Florentino Neto Unicamp [email protected] O Contato de Heidegger com o mundo oriental A relação entre Heidegger e o pensamento oriental apresenta um leque amplo de perspectivas de abordagens das quais algumas já foram bem pesquisadas e outras que permanecem ainda à espera de uma reflexão minimamente satisfatória. Nenhum outro filósofo ocidental suscita tantas discussões e controvérsias no âmbito da relação ou diálogo Ocidente-Oriente, na filosofia, como ele, e diferente de outros pensadores alemães tais como Leibniz, Wollf, Hegel, Schelling ou Jaspers, que escreveram textos que tratam diretamente do pensamento oriental, não há, em Heidegger, tentativas claras de interpretá- lo. Ele quase não tece comentários explícitos sobre o pensamento oriental e seu único escrito completo sobre esse tema foi o texto-diálogo De uma conversa sobre a linguagem: entre um japonês e um interlocutor (Heidegger, 2004, pp. 71-120), no qual ele faz uma de suas melhores auto interpretações e está muito distante, porém, de abordar o pensamento japonês propriamente. A postura de Heidegger diante do pensamento oriental não pode ser classificada simplesmente como “positiva” ou “negativa”, como ocorre em Leibniz e Hegel. Sua relação com o mundo oriental exige grandes esforços para ser compreendida, visto que ela somente pode ser reconstituída como um mosaico, a partir de trechos isolados do conjunto de sua obra, de sua correspondência e dos relatos fornecidos por colaboradores diretos e amigos. Em nenhum outro filósofo ocidental, que se ocupa do mundo oriental, os vestígios e as formas deste ocupar-se se encontram tão dispersos como em Heidegger. Porém eles estão lá, quase nunca explícitos e raramente reconhecíveis à primeira vista. Todavia, são justamente esses vestígios que permitem a recolocação de uma pergunta pouco original, mas ainda pertinente: Podem tais vestígios ser considerados como influências do pensamento oriental sobre Heidegger? Considerando que a filosofia de Heidegger seja fundamentalmente um diálogo com a tradição filosófica ocidental, sobretudo com Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Aristóteles, Kant, Hegel e Nietzsche, ela só pode, portanto, ser compreendida neste contexto. Isso não exclui, entretanto, a possibilidade de que ela tenha sido influenciada significativamente por outras tradições e outras formas de pensar, pois não há

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    HEIDEGGER E O INEVITVEL DILOGO COM O MUNDO ORIENTAL

    Antonio Florentino Neto Unicamp

    [email protected]

    O Contato de Heidegger com o mundo oriental

    A relao entre Heidegger e o pensamento oriental apresenta um leque amplo de

    perspectivas de abordagens das quais algumas j foram bem pesquisadas e outras que

    permanecem ainda espera de uma reflexo minimamente satisfatria. Nenhum outro

    filsofo ocidental suscita tantas discusses e controvrsias no mbito da relao ou dilogo

    Ocidente-Oriente, na filosofia, como ele, e diferente de outros pensadores alemes tais

    como Leibniz, Wollf, Hegel, Schelling ou Jaspers, que escreveram textos que tratam

    diretamente do pensamento oriental, no h, em Heidegger, tentativas claras de interpret-

    lo. Ele quase no tece comentrios explcitos sobre o pensamento oriental e seu nico

    escrito completo sobre esse tema foi o texto-dilogo De uma conversa sobre a linguagem:

    entre um japons e um interlocutor (Heidegger, 2004, pp. 71-120), no qual ele faz uma de

    suas melhores auto interpretaes e est muito distante, porm, de abordar o pensamento

    japons propriamente.

    A postura de Heidegger diante do pensamento oriental no pode ser classificada

    simplesmente como positiva ou negativa, como ocorre em Leibniz e Hegel. Sua

    relao com o mundo oriental exige grandes esforos para ser compreendida, visto que ela

    somente pode ser reconstituda como um mosaico, a partir de trechos isolados do conjunto

    de sua obra, de sua correspondncia e dos relatos fornecidos por colaboradores diretos e

    amigos. Em nenhum outro filsofo ocidental, que se ocupa do mundo oriental, os vestgios

    e as formas deste ocupar-se se encontram to dispersos como em Heidegger. Porm eles

    esto l, quase nunca explcitos e raramente reconhecveis primeira vista. Todavia, so

    justamente esses vestgios que permitem a recolocao de uma pergunta pouco original,

    mas ainda pertinente: Podem tais vestgios ser considerados como influncias do

    pensamento oriental sobre Heidegger?

    Considerando que a filosofia de Heidegger seja fundamentalmente um dilogo com

    a tradio filosfica ocidental, sobretudo com Anaximandro, Herclito, Parmnides,

    Aristteles, Kant, Hegel e Nietzsche, ela s pode, portanto, ser compreendida neste

    contexto. Isso no exclui, entretanto, a possibilidade de que ela tenha sido influenciada

    significativamente por outras tradies e outras formas de pensar, pois no h

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    incompatibilidade alguma em dialogar com a tradio filosfica ocidental a partir de

    referncias do pensamento oriental.

    Porm, a pergunta sobre uma possvel influncia do pensamento oriental sobre

    Heidegger freqentemente ignorada ou desprezada pelos filsofos ocidentais, tal como se

    qualquer influncia do mundo oriental sobre a filosofia ocidental fosse, por princpio, sem

    consistncia e sem fundamento. Tradicionalmente, no meio acadmico filosfico, h uma

    disposio preponderante a excluir o pensamento oriental do mbito da filosofia e, por

    conseguinte, a recusar categoricamente toda possibilidade de influncias orientais sobre o

    pensamento ocidental. Pode at ser que somente no mundo ocidental tenha ocorrido o que

    denominamos de filosofia. Pode-se admitir que a filosofia seja puramente ocidental se

    definirmos precisamente o que seja a filosofia e se constatarmos que esta definio precisa

    de filosofia tem sua origem s e unicamente na Grcia antiga, mas no h nenhuma

    determinao maior ou qualquer necessidade lgica que nos impele necessariamente a

    chegar a essa concluso.

    O que se constata que, at mesmo filsofos que possuem pouco ou quase nenhum

    conhecimento sobre questes fundamentais do pensamento oriental, afirmam com

    freqncia, que somente os gregos antigos e os europeus fizeram e fazem filosofia. Esta

    postura pode ser compreendida nitidamente a partir da historia da interpretao filosfica

    do pensamento oriental, especialmente a partir da interpretao de Hegel sobre o mundo

    oriental, que influenciou decisivamente os filsofos posteriores a afirmarem, mesmo

    desconhecendo o pensamento oriental, que a filosofia exclusivamente europia. Porm, a

    pergunta pela influncia de Lao Ts, Tschuang Ts ou do Zen-budismo sobre Heidegger

    to relevante (ou irrelevante) quanto pergunta pela influncia de Anaximandro,

    Parmnides ou do Mestre Eckardt sobre seu pensamento. A pergunta posta aqui, mas a

    resposta est previamente condicionada intensidade da disponibilidade e abertura da

    filosofia ocidental para o futuro dilogo com o pensamento oriental. Ou seja, a pergunta

    tem um carter metodolgico, que visa, em primeiro plano, orientar uma reflexo sobre o

    dilogo entre Ocidente e Oriente no meio acadmico filosfico.

    Com Heidegger inicia-se um novo momento na relao entre o pensamento

    ocidental e oriental na filosofia, pois ele esteve ao longo de toda sua vida em contato direto

    com representantes do Budismo, do Zen-Budismo e do Taosmo. Vrios pensadores

    ocidentais estiveram em contato com pensadores e com o pensamento oriental, mas

    nenhum deles foi to solicitado por pensadores orientais quanto Heidegger. Ele se

    encontrou pessoalmente com filsofos, estudantes, monges e cientistas do Japo, da ndia,

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    da Tailndia, Coria e da China. Heidegger teve tambm alunos de diversos pases do

    extremo oriente principalmente do Japo, China e Coria. Este contato pessoal inicia-se em

    1921, permanece por toda a vida de Heidegger e dificilmente poderia ter permanecido sem

    significado algum para o conjunto de sua obra. Hoje j existem vrios livros publicados que

    so resultados de Colquios sobre Heidegger e o pensamento oriental.

    De acordo com Petzet, uma das primeiras referncias de Heidegger a um importante

    texto oriental, mencionada ainda hoje com freqncia, ocorreu pouco aps a publicao de

    Ser e Tempo. Em 1934, logo aps ter proferido a conferncia Sobre a Essncia da Verdade

    em Bremen para um grupo fechado, Heidegger faz referncia direta ao dilogo da obra de

    Tschuang Ts intitulado A alegria dos peixes. Depois da conferncia Heidegger se

    reunira com vrias outras pessoas na casa de um comerciante da cidade onde a discusso

    continuara (cf. Petzet, 1977, p. 184). Aps ter sido perguntado sobre a possibilidade de um

    homem se colocar no lugar de outro, de se compreender o que o outro compreende,

    Heidegger pedira ao anfitrio que lhe trouxesse a edio do livro de Tschuang-Tse, que, em

    1911, havia sido traduzida por Martin Buber, do ingls para o alemo. Ao ter o livro nas

    mos Heidegger lera a seguinte alegoria:

    A alegria dos peixes

    Tschuang Tse e Hui Tse passavam pela ponte sobre o rio Hao e Tschuang-Tse diz:

    Veja como as carpas nadam graciosamente para l e para c. Isto a verdadeira

    alegria dos peixes

    Voc no peixe diz Hui Ts, ento como voc pode saber de onde se constitui a

    alegria dos peixes?

    Voc no eu responde Tschuang-Tse, como voc pode saber se eu no sei de

    onde vem a alegria dos peixes?

    Eu no sou voc confirma Hui-Tse, e eu no sei o que voc sabe. Mas eu seu sei

    que voc no peixe, portanto voc no pode saber o que os peixes sabem

    Tschuang-Tse responde: voltemos sua pergunta. Voc me perguntou como eu

    posso saber de onde vem a alegria dos peixes. Na verdade voc sabia que eu sei, e ainda

    assim me perguntou. Eu sabia da alegria dos peixes, da ponte (Tschuang-Tse, 1951, pp.

    124-125).

    A interpretao que Heidegger fizera desta alegoria de Tschuang Ts, teria, de

    acordo com Petzet, rompido com o carter hermtico da conferncia Sobre a essncia da

    verdade e os convidados presentes teriam ficado entusiasmados com a desenvoltura de

    Heidegger em recorrer a um texto clssico do pensamento chins para elucidar partes da

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    conferncia recm proferida. (Petzet, 1977, p. 184). O fato de Heidegger, j neste

    momento, recorrer a um dilogo entre Hui Ts e Tschuang-Tse sobre a questo da

    intersubjetividade como esclarecimento de sua conferncia, no significa necessariamente

    que ele tenha sido influenciado pela filosofia chinesa, mas indica que h entre esses dois

    universos de pensamento certa proximidade.

    A pergunta sobre o nvel de conhecimento que Heidegger tinha sobre o pensamento

    oriental permanece ainda difcil de ser respondida, visto que referncias diretas sobre

    Oriente somente so feitas por ele a partir do final da dcada de 1950 (cf. May, 1989, S. 14).

    Isso no significa que Heidegger j no tinha anteriormente um bom conhecimento sobre

    o Budismo, o Taosmo ou sobre o Zen-budismo. Na verdade, a questo referente ao

    conhecimento de Heidegger sobre o pensamento oriental permanece to secundria quanto

    pergunta sobre a influncia que esse pensamento teria exercido no conjunto, ou em

    partes, de suas obras. Todavia, essas duas perguntas so as pr-condies para outra

    pergunta, qual seja, a da abertura para o incio do dilogo entre o pensamento ocidental e o

    pensamento oriental, que surge com Heidegger. Esta abertura aparece em sua forma mais

    clara quando ele afirma, no texto Cincia e Pensar Meditativo, que o retorno ao incio do

    pensamento ocidental seria a base para o dilogo com o mundo oriental.

    Este dilogo espera ainda por seu incio. Ele foi sequer preparado e permanece para

    ns mesmo como a precondio para o inevitvel dilogo com o mundo oriental.

    (Heidegger, 1954, p.43).

    Para Heidegger, o retorno ao princpio do pensamento ocidental a preparao para

    um dilogo com o pensamento do extremo oriente, mas a sua idia do dilogo encontra-se

    ainda numa perspectiva ocidental. A idia de abertura ao dilogo com o Oriente em

    Heidegger tem como referncia direta o dilogo com o universo grego, o retorno ao incio,

    que se torna central em seu pensamento a partir do final da dcada de 1930 e que se

    expressa em sua forma mais evidente no texto O que isto a filosofia, de 1949, no qual

    apontada a necessidade do dilogo com o mundo grego como possibilidade de resgate do

    carter ontolgico da linguagem, visto que, naquele momento, as coisas eram ditas de

    forma tal que, ao serem nomeadas, o prprio Ser se mostrava nelas mesmas. A idia do

    desvelamento do Ser, no incio do pensamento grego, em Heidegger, vincula-se, portanto,

    ao fato da linguagem enquanto Logos possibilitar o acesso direto s coisas. Nesse sentido,

    as obras de Heidegger que tratam do retorno ao universo Grego esto em sintonia e do

    continuidade ao problema do esquecimento da pergunta sobre o Ser, apontado inicialmente

    em Ser e Tempo. O pensamento pr-socrtico, particularmente Parmnides, Anaximandro

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    e Herclito, considerado por Heidegger como anterior a filosofia, visto que, at eles, o

    prprio termo filosofia ainda no havia sido usado e seu carter metafsico somente se

    desenvolve a partir de Plato e Aristteles.

    A palavra grega philosopha remonta palavra philsophos. Originariamente esta

    palavra um adjetivo para como philrgyros, o que ama a prata, como philtimos, o que

    ama a honra. A palavra philsophos foi presumivelmente criada por Herclito. Isto quer

    dizer indicao: o que dito na lngua grega , de modo privilegiado, simultaneamente

    aquilo que em dizendo se nomeia. (Heidegger, 1973, p. 214).

    O retorno ao incio significa o retorno ao momento anterior filosofia, o retorno ao

    universo grego, e justamente esse retorno que permite a abertura ao dilogo com o

    Oriente. Quando Heidegger afirma que a filosofia uma atividade eminentemente

    ocidental, ele no se refere ao incio, visto que no incio ela ainda no existia e que o

    retorno ao incio, enquanto dilogo com os pensadores originrios precondio para o

    incio do inevitvel dilogo com outros incios. O momento inicial da filosofia, que no se

    define cronologicamente, mas sim enquanto forma originria de manifestao do

    pensamento, no um fenmeno exclusivo do ocidente, mas ocorreu tambm em outras

    partes do mundo como na China, com o taosmo. Assim, a abertura ao dilogo com o

    Oriente passaria necessariamente pelo dilogo com o mundo grego e o toma como

    referncia, visto que ambos se situam, para Heidegger, enquanto pensamentos originrios.

    Ento, a pergunta sobre o carter do dilogo com o Oriente pode ser respondida a partir da

    forma como Heidegger dialoga com os pensadores originrios gregos.

    Entre os textos de Heidegger que tratam diretamente do retorno ao incio do

    pensamento, tomo como referncia central a anlise do fragmento 50 de Herclito feita por

    Heidegger em Vortrge und Aufstze, do qual cito a seguinte passagem: O Logos de

    Herclito foi interpretado dos mais diferentes modos desde a antiguidade: como ratio,

    como verbum, como ordem do mundo, como o lgico e como o pensar necessrio, como

    o sentido, como a razo. (Heidegger, 1954, p. 208). Heidegger toma como referncia para

    sua anlise hermenutica do termo grego Logos as diversas formas de como esse conceito

    foi interpretado desde a Antiguidade. O retorno ao que Herclito diz se torna possvel a

    partir do dilogo com a lngua grega que aponta, por si mesma, o verdadeiro significado do

    Logos. Nesse sentido, um possvel dilogo com o Oriente, especialmente com o taosmo,

    que est para o pensamento oriental assim como Herclito para o Ocidente, tem que se

    iniciar com a pergunta sobre o que o Tao. Essa pergunta exige uma anlise inicial das

    vrias interpretaes e tradues desse conceito para o ocidente. O dilogo comea, ento,

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    com uma anlise sobre as tradues do termo Tao, que tambm foi traduzido para as

    lnguas ocidentais por ratio, raison, Vernunft, Geist, Gott, Gesetz, Bahn, Sinn e outros

    termos prximos aos utilizados pelos tradutores do termo Logos em Herclito.

    Para Heidegger, o dilogo com a tradio grega o ponto de partida, o incio do

    dilogo com o pensamento oriental, porm para vrios pensadores do oriente, os

    verdadeiros pontos de partida para o incio de um dilogo so as prprias reflexes de

    Heidegger sobre a superao da metafsica, sobre a tcnica moderna e principalmente suas

    consideraes sobre o nada. Para os interlocutores orientais de Heidegger h tambm um

    outro motivo importante para o surgimento de um dilogo que no se caracteriza

    diretamente como retorno ao princpio do pensamento ocidental, mas que se refere s

    reflexes de Heidegger sobre o mundo oriental. Ou seja, os prprios comentrios de

    Heidegger sobre o pensamento oriental se tornariam a mais importante perspectiva da

    discusso sobre o incio do dilogo entre o pensamento do extremo oriente e a filosofia de

    Heidegger.

    A idia de Heidegger sobre um retorno ao incio da filosofia ocidental como

    preparao para o futuro dilogo com o pensamento oriental, aponta como os filsofos

    ocidentais podem preparar-se para esse dilogo. Os pensadores orientais, entretanto, no

    consideram em momento algum os primeiros filsofos gregos como a pr-condio para o

    incio do dilogo, mas sim, a prpria filosofia de Heidegger.

    1. A pergunta sobre a influncia como estmulo para o incio do dilogo

    A partir do final da dcada de 1980 inicia-se um novo momento na discusso acerca

    da relao entre Heidegger e o pensamento oriental. Com a publicao de vrios livros e

    artigos que tratam fundamentalmente de uma possvel influencia do Taosmo e do Zen-

    budismo sobre sua obra, pela primeira vez, este tema se torna um importante objeto para

    pesquisadores ocidentais dentro do universo da filosofia. Dentre os diferentes trabalhos

    publicados neste perodo, sobre este tema, destaco fundamentalmente os livros Ex oriente

    lux, de Reinhard May, que traz, pela primeira vez, uma anlise comparativa entre trechos de

    algumas obras de Heidegger e passagens de textos de pensadores orientais, com intuito de

    apontar uma inquestionvel influncia do pensamento oriental sobre Heidegger. Destaco

    tambm o livro Heidegger e o pensamento Oriental, organizado por Graham Parkes, que

    traz uma coletnea de diversos artigos, que foram apresentados no primeiro colquio

    internacional dedicado exclusivamente a esse tema, ocorrido na universidade do Ava em

    1989. Os artigos publicados neste livro podem ser considerados como a primeira reao s

    afirmaes categricas de May sobre clara e significativa influncia do pensamento oriental

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    sobre as obras de Heidegger. E por ltimo, o livro Heidegger e o Japo, organizado por

    Buchner, decorrente de um evento ocorrido na cidade de Mekirch, em homenagem

    Heidegger e Nishida, que, assim como o livro de Parkes, tambm uma coletnea de

    artigos, mas dedicado exclusivamente relao entre Heidegger e a filosofia japonesa

    contempornea. Todos os trabalhos publicados neste perodo, que tratam desta relao,

    indicam certa influncia do pensamento oriental sobre algumas obras Heidegger,

    principalmente sobre obras escritas a partir da dcada de 1940.

    A tnica das pesquisas realizadas aps as publicaes dos livros de May, Parkes e

    Buchner deixa de ser a existncia ou no de uma determinada influncia do pensamento

    oriental sobre Heidegger. A discusso toma outro curso e passa-se a pesquisar a intensidade

    desta influncia. Desta pesquisa destacam-se duas vertentes principais, distintas entre em si,

    mas que apresentam elementos comuns. A primeira admite que ao longo de sua carreira

    acadmica Heidegger estivera em contato com pensadores e com o pensamento oriental,

    mas que esse contato no teria influenciado necessariamente o conjunto de sua obra e

    sequer teria sido significativamente importante para obras especficas. Destaca-se como

    principal representante desta perspectiva o filsofo alemo Otto Pggeler, que no

    considera sustentvel a tese da influncia do Taosmo e do Zen-budismo sobre Heidegger,

    porm no desconsidera a importncia do dilogo que ocorrera entre Heidegger e o

    pensamento oriental. A outra importante corrente de analise deste tema representada por

    May, j citado anteriormente, e Kha Kyung Cho, que afirmam uma inegvel influncia do

    pensamento oriental sobre determinadas obras de Heidegger, publicadas a partir do final da

    Segunda Guerra Mundial.

    Logo aps o final da guerra Heidegger fora proibido de exercer qualquer atividade

    acadmica, como punio por seu envolvimento com o Nacional Socialismo em 1933,

    quando fora nomeado Reitor da Universidade de Freiburg. Neste momento inicial da

    proibio Heidegger comea, juntamente com o germanista chins Paul Shih-Yi Hsiao, os

    trabalhos de traduo do Tao Te King do chins para o alemo. A enigmtica tentativa de

    traduo desta obra clssica da filosofia chinesa permanece totalmente desconhecida do

    grande publico, e at mesmo dos amigos mais prximos de Heidegger, at a publicao do

    relato feito por Hsiao, logo aps a morte de Heidegger. Heidegger morre em maio de 1976

    e em 1977 Hsiao publica um artigo intitulado Ns nos encontrvamos na praa do

    mercado na coletnea organizada por Gnter Neske, Erinnerung an Martin Heidegger,

    (Neske, 1977).

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    O artigo de Hsiao permanece como a nica referncia escrita desta inusitada

    parceria, at a publicao da correspondncia entre Heidegger e Jaspes, em 1990

    (Heidegger/Jaspers, 1992, p. 181). Na carta 131 Heidegger comenta rapidamente a

    iniciativa do trabalho de traduo com Hsiao e suplanta definitivamente as suspeitas

    infundadas de alguns de seus discpulos, de que o relato de Hsiao seria fruto de sua prpria

    imaginao e visava apenas sua autopromoo, a reboque da fama do mestre da floresta

    negra. Muitas so as tentativas de elucidar os verdadeiros motivos que teriam levado

    Heidegger a se dedicar tarefa de traduo do Tao Te King, abordarei aqui, todavia,

    somente duas perspectivas opostas que expressam a dimenso da importncia do

    pensamento oriental para Heidegger. A primeira hiptese de que o interesse de Heidegger

    em um trabalho de traduo com Hsiao teve como base uma preocupao prtica direta:

    aps a guerra Heidegger fora submetido a um processo de desnazificao e no tinha,

    portanto, acesso a gneros de primeira necessidade e mantimentos bsicos tais como

    chocolate, caf, manteiga, salsicha e outros desta espcie. Hsiao, como pertencendo a uma

    nacionalidade dos pases amigos dos aliados, que ganharam a Guerra, tinha direito a todos

    esses bens e os dividia com Heidegger, durante os meses de trabalho em conjunto (Hsiao,

    1977, p.125). Heidegger teria, portanto, como principal interesse no trabalho de traduo

    em conjunto com Hsiao o acesso a esses to preciosos bens, em tempos de escassez total.

    Essa hiptese pouco plausvel, mas no pode ser totalmente descartada e ela predominou

    por um longo perodo entre os heideggerianos e pode ser ouvida ainda hoje.

    Outra possvel explicao para a dedicao a esse trabalho seria que, para Heidegger,

    a traduo do Tao Te King poderia possibilitar o retorno ao incio do pensamento chins,

    um retorno ao universo do Herclito do oriente e tal retorno, enquanto mtodo

    hermenutico, torna indispensvel um dilogo com a lngua do pensador originrio. Neste

    sentido, a tentativa de traduo do Tao Te King empreendida por Heidegger somente

    uma conseqncia da prpria hermenutica heideggeriana.

    Estes dois possveis motivos permitem compreenses muito distintas da importncia

    desta tentativa de traduo, para a filosofia de Heidegger, que no nos so acessveis

    facilmente, visto que Heidegger no se manifestara sobre isso. Os resultados do trabalho de

    traduo no esto disponveis para uma anlise mais detalhada, visto que os originais dos

    captulos traduzidos desapareceram. Os traos deste trabalho, todavia, permaneceram

    presentes em algumas obras posteriores de Heidegger. Antes de aborda-los, porm, farei

    uma rpida exposio das distintas formas de considerar o trabalho de colaborao entre os

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    dois, expressas por Hsiao e Heidegger. Em seu relato sobre o trabalho com Heidegger

    Hsiao esclarece detalhes dos procedimentos empreendidos no processo de traduo.

    Hsiao afirma que, devido perspiccia de Heidegger em relao aos mnimos

    detalhes no trabalho de traduo o livro todo somente seria concludo em dez anos, visto

    que aps um vero de trabalho sistemtico apenas oito captulos haviam sido traduzidos

    (Hsiao, 1977, pp.126-26). Heidegger, por sua vez, comenta a parceria com Hsiao de forma

    bem diferente. Antes da publicao de Cartas sobre o Humanismo Heidegger havia

    enviado o texto para Jaspers que, em uma carta resposta a Heidegger, afirma ter percebido

    vestgios do pensamento oriental no texto. O seu Ser, a clareira do Ser, a inverso que

    voc faz de nossa referncia para com o Ser da referncia do Ser para ns, o que

    permanece do ser mesmo. Creio ter percebido algo disso na sia (Heidegger/Jaspers,

    1992, p. 178). A carta seguinte de Heidegger a Jaspers o nico comentrio sobre esta

    parceria, escrito pelo prprio Heidegger.

    O que voc diz sobre o carter asitico excitante. Um chins que freqentou

    minhas prelees sobre Herclito e Parmnides nos anos de 1943-44 (naquele tempo eu

    dava curso-interpretao somente de uma hora de poucos fragmentos) encontrou tambm

    ressonncias com o pensamento oriental. Onde eu no me sinto em casa com a linguagem,

    l eu permaneo ctico. (...) Quando o chins, que telogo cristo e filsofo traduziu para

    mim algumas palavras de Lao Tse eu pude perceber, atravs de perguntas, quo estranho

    para ns era a linguagem. Ento ns abandonamos a tentativa. (Heidegger/Jaspers, 1992, p.

    181).

    O comentrio esquivo e tmido de Heidegger sobre o trabalho de traduo do Tao

    Te King indica que ele mesmo considerara a tentativa como fracassada em decorrncia de

    barreiras lingsticas intransponveis. Muito diferente do relato de Hsiao, ele afirma apenas

    que um Chins traduzira para ele algumas palavras do Tao Te King, mas Hsiao, ao

    contrario, diz terem sido traduzidos oito captulos completos, sendo estes mesmo os mais

    complexos do livro. Em relao disparidade destas duas observaes distintas sobre esse

    empreendimento pode-se chegar tambm a duas concluses distintas: a) Heidegger no

    teria feito qualquer referncia ao trabalho com Hsiao, com exceo ao rpido comentrio

    encontrado na carta a Jaspers, porque tinha a clara inteno de omitir todos os vestgios de

    quaisquer elementos do pensamento oriental em seu trabalho; b) Hsiao pretendia se

    aproveitar da fama de Heidegger ao tentar transformar a atividade que tivera com

    Heidegger em algo mais importante do que realmente fora. Seu relato foi publicado

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    somente aps a morte de Heidegger e por isso no podia mais ser confirmado ao

    contestado, visto que os nicos que sabiam o que realmente havia sido feito eram os dois

    envolvidos.

    A anlise da primeira alternativa, mesmo no sendo ela totalmente correta, o ponto

    central da discusso sobre a influncia do pensamento oriental em Heidegger. O fato de

    Jaspers ter mencionado uma possvel ligao entre a Carta sobre o Humanismo de

    Heidegger e o pensamento oriental significativo. Ao ser perguntado por Jean Beaufret se

    ele estaria de acordo com a mxima sartriana de que a existncia precede a essncia,

    Heidegger responde pergunta, tambm com uma carta, publicada posteriormente, com o

    ttulo Carta sobre o Humanismo. A resposta de Heidegger a Beaufret no somente um

    golpe impiedoso ao existencialismo de Sartre e aos humanismos, mas , tambm, um

    marco na discusso sobre a relao de Heidegger com o pensamento Oriental.

    Heidegger trabalha na elaborao da Carta sobre o Humanismo logo aps ter

    interrompido os trabalhos de traduo do Tao Te King, com Hsiao e, de acordo com a

    anlise do filosofo coreano Kah Kyung Cho, neste escrito j est presente uma forte

    influncia do Tao Te King. Cho publica em 1987 um livro intitulado Bewutsein und

    Natursein - Phnomenologie in der West-Ost-Perspektive (Fenomenologia na perspectiva

    Ocidente-Oriente) onde aborda especificamente, em um dos captulos, a influncia de Lao

    Tse na Carta sobre o Humanismo (Cho, 1987).

    2. A origem grega da filosofia

    A reflexo sobre as influncias e concordncias entre Heidegger e o pensamento

    oriental estimulante e pertinente, considerando que, na histria do pensamento ocidental,

    nenhum outro filsofo esteve ao mesmo tempo to distante e tao prximo do pensamento

    oriental como Heidegger. Os pontos de aproximao esto dispersos como disse

    anteriormente. As distncias, porm, mostram-se atravs de afirmaes categricas, que

    consideram a filosofia uma experincia exclusivamente ocidental, como se pode ver nas

    prelees sobre Herclito em 1943.

    O ttulo da preleo trata do pensamento ocidental. A expresso filosofia ocidental

    evitada, pois essa designao, rigorosamente pensada, uma expresso sobrecarregada.

    No h nenhuma outra filosofia a no ser a ocidental. A filosofia em sua essncia

    originariamente grega de forma que ela porta o fundamento da histria do ocidente. E

    somente deste fundamento se desenvolve a tcnica. H somente uma tcnica ocidental, e

    ela conseqncia da filosofia e de nenhuma outra coisa (Heidegger, 1987, p.3).

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    Em outro texto de 1956, O que isto a filosofia Heidegger afirma, mais

    enfaticamente ainda, que a filosofia somente poderia ter se desenvolvido no mundo

    europeu.

    A batida expresso filosofia ocidental , na verdade, uma tautologia. Por qu?

    Porque a filosofia grega em sua essncia (...) A frase: a filosofia grega em sua essncia,

    no diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais ntima

    de sua histria, originariamente filosficos(Heidegger, 1973, p.212).

    Diante das duas citaes acima o problema da influncia de um pensamento no-

    ocidental sobre Heidegger parece perder qualquer relevncia. As afirmaes categricas so

    claras, porm, elas no deixam de criar alguns problemas dificilmente superveis, pois elas

    no podem mais ser defendidas incondicionalmente. Os princpios bsicos de Heidegger

    parecem ser simplesmente uma hybris eurocntrica, que aparecera na histria da filosofia,

    em sua forma mais elaborada com Hegel, que nas Conferncias sobre a histria da filosofia,

    explicita claramente, como nenhum outro filsofo anterior, sua concepo de filosofia,

    excluindo ao mesmo tempo o pensamento oriental da histria da filosofia (Hegel, 1995a, p.

    121). A filosofia seria, em sua origem, exclusivamente grega. A filosofia s pode surgir na

    Grcia, onde o homem da antiguidade experimentara, pela primeira vez, a liberdade, alega

    Hegel. A filosofia em seu sentido prprio comea no Ocidente. Somente no mundo

    ocidental emerge a liberdade da autoconscincia (Hegel, 1995a, p. 121).

    S e unicamente no mundo grego, ou seja, no ocidente, teria havido as condies

    imprescindveis para o surgimento do pensamento filosfico. Os gregos, e somente eles,

    segundo Hegel, conheciam os fundamentos do Ser ocidental e a liberdade individual

    (Hegel, 1995a, p. 121). O homem que criou o incio da filosofia tinha que ser

    necessariamente livre. O homem na filosofia hegeliana experimenta a liberdade em sua

    totalidade; ele tem que ser livre em todos os nveis e somente l, onde h liberdade poltica,

    pode surgir tambm a filosofia.

    Em Heidegger, porm, a liberdade poltica do homem grego no desempenha papel

    algum no surgimento da filosofia, que sequer pode ser pensada enquanto resultado da

    cultura. Ele se situa, ainda, na contra corrente da tradio metafsica, da qual Hegel um

    dos expoentes mximos. Mas se a filosofia para Heidegger, assim como para Hegel,

    eminentemente grega, o que distingue ento estas duas concepes de sua origem, e como

    elas se situam em relao ao mundo oriental. No pretendo abordar neste momento estas

    diferenas entre Heidegger e Hegel em relao ao pensamento oriental, somente avanarei

    um pouco mais nas aparentes proximidades entres eles, referentes a esse tema.

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    A relao entre linguagem e pensamento, que um dos temas centrais da filosofia

    ocidental tambm um elemento fundamental na discusso sobre o dilogo entre ocidente

    e oriente, e, a meu ver, est diretamente vinculado tentativa de traduo do Tao Te King,

    empreendida por Heidegger com Hsiao. No pretendo abordar, aqui esta questo em

    Heidegger, mas sim tocar em um ponto polmico, que permite algumas reflexes sobre o

    dilogo entre esses dois universos de pensamento.

    O texto de Heidegger De um dilogo sobre a lngua- Entre um Japons e um

    Interlocutor (Aus einem Gesprch von der Sprache Zwischen einem Japaner und einem

    Fragenden) (Heidegger, 2004, pp. 71-120) o nico escrito, onde ele discute com clareza a

    suas idias sobre o pensamento do extremo oriente. Nesse dilogo, os seus comentrios a

    respeito do mundo oriental so menos dispersos do quem em todos os outros textos.

    Reproduzo abaixo uma parte do dilogo:

    J Ao voltar da Europa o conde Kuki proferiu em Kioto vrias conferncias sobre a

    esttica da arte e da poesia japonesas, publicadas posteriormete. Procurou considerar a

    essncia da arte japonesa valendo-se da esttica europia.

    P Mas ser que para tal propsito devemos lanar mo da esttica?

    J Por que no? P A palavra esttica e o que ela evoca provm do pensamento

    europeu, da filosofia. A considerao esttica deve ser assim, estranha para o pensamento

    oriental.

    J O senhor tem toda razo. Mas ns japoneses precisamos recorrer ao prstimo da

    esttica.

    P Para qu?

    J A esttica nos empresta os conceitos necessrios para apreender o que nos chega

    na arte e na poesia.

    P Vocs precisam de conceitos?

    J Provavelmente sim. O encontro com o pensamento europeu revelou uma

    incapacidade de nossa lngua.

    P Como assim?

    J Falta a fora das definies para representar objetos num encadeamento preciso

    de uns com os outros, dentro de um sistema recproco de subordinao.

    P O senhor considera mesmo essa incapacidade uma deficincia de sua lngua?

    J No encontro inevitvel do mundo oriental com o mundo europeu, essa pergunta

    exige, certamente, uma reflexo profunda. (Heidegger, 2004, pp. 71-72).

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    O trecho de Dilogo j toca em um ponto central da discusso sobre a diferena

    entre o pensamento ocidental e oriental. Heidegger usa inicialmente a expresso esttica

    europia e parece deixar em aberto questo, se tambm poderia existir uma esttica

    japonesa. Entretanto afirmado ao mesmo tempo, que uma considerao esttica seja

    impossvel dentro do mundo oriental, pois, a esttica seria um modo de pensar ocidental e,

    portanto, exclusivamente filosfico. Esse o verdadeiro desdobramento da afirmao de

    Heidegger, a saber, de que o conceito filosofia ocidental seria uma tautologia. A

    continuao da citao torna-se mais interessante quando Heidegger pergunta ao japons,

    se este precisaria de recorrer esttica para compreender a arte japonesa. Ao afirmar essa

    pergunta ele argumenta em seguida, que a lngua japonesa no seria capaz de entrar no

    mundo da filosofia ocidental. Creio que temos, nesta afirmao a questo central da

    discusso sobre um possvel dilogo entre estes universos aparentemente to distintos.

    Durante os trabalhos de traduo do Tao Te King, Heidegger perguntara a Hsiao

    pelo motivo do carter hermtico da forma de expresso de Lao Ts. Hsiao responde

    apontando o desconhecimento da lgica aristotlica, por parte dos chineses antigos, como

    a causa principal desta caracterstica do Tao Te King. O comentrio de Heidegger a esta

    afirmao foi claro e direto: graas a Deus que os chineses no a conheceram. (Hsiao,

    1977, p. 128). Este dilogo conciso entre Heidegger e Hsiao nos coloca uma questo que

    perpassa por toda a histria da interpretao ocidental do pensamento oriental, qual seja a

    da compatibilidade entre as lnguas ideogramticas, sobretudo do chins, e a lgica formal.

    A questo est vinculada funo dos verbos na lngua chinesa, especificamente, ela est

    em relao direta com a pergunta pela existncia do verbo ser, em chins antigo. O

    problema mencionado por Heidegger e Hsiao do desconhecimento, ou seja, da estranheza

    da perspectiva da lgica aristotlica para o pensamento chins antigo, poderia apontar uma

    deficincia desta lngua para o pensamento filosfico e cientifico. Ou melhor, a inexistncia

    de uma verdadeira perspectiva cientfica na china antiga que teria inibido o surgimento de

    uma estrutura de linguagem compatvel com a lgica formal, como afirma Hegel, nas

    Prelees sobre a Histria da Filosofia.

    Para Hegel, a inexistncia da liberdade do indivduo no imprio chins no teria sido,

    contudo, o nico empecilho para o surgimento do conhecimento cientfico na China. To

    decisivo quanto a ausncia de subjetividade como empecilho para o surgimento do

    pensamento filosfico, seria o limite da estrutura da lngua chinesa, que seria, tambm,

    inapropriada para um pensamento sistemtico.

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    At mesmo a lngua escrita um grande obstculo para a formao da cincia, ou

    mesmo o contrrio, visto que o verdadeiro interesse cientfico nunca esteve presente, por

    isso os chineses no teriam um instrumento melhor para a exposio e a propagao do

    pensamento (Hegel, 1995b, pp. 169-170).

    As reflexes de Hegel sobre as propriedades da lngua chinesa tm como referncia

    os escritos do sinlogo figurista francs Jean-Pierre Abel-Rmusat, que fizera um dos

    primeiros esquemas da gramtica chinesa, na Europa. Os pressupostos das anlises de

    Abel-Rmusat sobre o pensamento oriental so de que os chineses antigos j conheciam,

    atravs de seus prprios escritos, os pilares do novo testamento, em sua forma mais

    primitiva, o que os aproximariam, por natureza, do mundo cristo. Mesmo assim, suas

    consideraes sobre a lngua chinesa, apresentadas na citao acima como inapropriada

    para a cincia, permanecem como uma das afirmaes mais difundidas sobre o pensamento

    chins, no meio acadmico ocidental e este fato marcara to decisivamente a nossa

    concepo sobre o que seja o oriente, que ainda hoje comum ouvir a repetio dos

    argumentos de Hegel sobre os limites das lnguas orientais e de suas impropriedades para o

    pensamento filosfico.

    Ao contrrio destas afirmaes, todavia, os resultados das pesquisas de Joseph

    Needham, principal sinlogo ingls do sculo XX, concluem que, na china antiga, o

    pensamento cientfico se encontrava no mesmo nvel de desenvolvimento que o da cincia

    europia.

    Mesmo considerando as lacunas existentes nos escritos chineses antigos que foram

    preservados e comparamos os taostas, mostas e lgicos com os seus correspondentes

    gregos, se tem a impresso que quase no h diferena entre os europeus e chineses

    antigos, principalmente no que se refere aos fundamentos do pensamento

    cientfico.(Needham, 1984, p.163).

    Em um dilogo com Jean Rivire, publicado posteriormente, no qual Needham

    aborda mais uma vez a relao entre o desenvolvimento do pensamento cientfico na china

    e sua relao com filosofia encontramos sua afirmao mais radical em relao s

    concepes tradicionais das lnguas ideogramticas como inadequadas para o pensamento

    lgico formal e cientfico.

    Um de meus colaboradores que se ocupa do pensamento chins me surpreendeu

    com a afirmao de que a lgica formal aristotlica pode ser to bem expressa a partir da

    estrutura da lngua e da gramtica chinesa quanto em qualquer lngua indo-europia. Um

    outro colaborador demonstrou que todas as caractersticas da lgica grega j poderiam ser

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    encontradas nos textos dos filsofos e escritores do perodo os reinos

    combatentes.(Needham, 1978, p. 55)

    As afirmaes de que o chins antigo no s preenchia todos os requisitos para o

    desenvolvimento da lgica formal, mas que seria at mesmo mais apropriada, referem-se

    aos trabalhos de Christoph Harbsmeier, que o responsvel pelo volume sobre lgica e

    linguagem na china antiga, na obra Cincia e Civilizao de Needham.

    Needham apresenta uma completa reorientao na compreenso europia do

    pensamento oriental, principalmente quando se trata da relao entre lngua e pensamento

    na China antiga. Entretanto, considero o vasto envolvimento de Needham com o

    pensamento chins no como um incio do dilogo, mas um novo ponto de referncia na

    interpretao europia do mundo oriental. Sua pesquisa sobre a China rompe, em vrias

    reas, com idias tradicionais e concepes no mais sustentveis sobre a incompatibilidade

    entre linguagem e pensamento na china antiga, principalmente com a to propagada

    concepo de uma lngua imprpria para o raciocnio lgico-formal.

    Estes novos elementos colocados por Needham e sua equipe reorientam as reflexes

    filosficas atuais ao romperem com as tradicionais concepes de um universo oriental,

    principalmente chins, inapropriado para o conhecimento cientfico e para os enunciados

    da lgica formal. Isso, porm, no elimina a importncia da filosofia de Hegel e Heidegger

    para o dilogo entre o pensamento ocidental e oriental, todavia nos obriga a reformular

    nossos argumentos sobre o carter eminentemente grego-europeu da filosofia, caso ainda

    nos propomos a defend-los.

    Referncias Bibliogrficas: Cho, K.K.: (1987). Bewutsein und Natursein Phnomenologischer West-Ost- Diwan, Mnchen, Heidegger, M. (2004). A caminho da linguagem. Petrpolis: Editora Vozes. ______(1973). Coleo Os Pensadores, So Paulo. ______(1954). Wissenschaft und Besinnung, in: Vortrge und Aufstze, Pfullingen 1954, S. 43. ______(1987). HERAKLIT Der Anfang des Abendlndischen Denkens, Frankfurt a. M. 1987, S. 3 Heidegger, M., Jaspers, K. (1992). Briefwechsel: 1920 1963, Frankfurt a. M. HEGEL, G. W.F (1995a). Vorlesungen ber die Geschichte der Philosophie, Frankfurt a. M. ______(1995b). Vorlesungen ber die Philosophie der Religion, Frankfurt a. M. Hsiao, (1977). Wir trafen uns am Holzmarktplatz, In Neske (Hrsg) Erinnerung an Martin Heidegger, Pfullingen.