antónio ferreira lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

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2013 OS BRASILEIROS ENQUANTO AGENTES DE MUDANÇA: PODER E ASSISTÊNCIA Coordenadores: Maria Marta Lobo de Araújo Alexandra Esteves José Abílio Coelho Renato Franco

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António Ferreira Lopes, um "brasileiro de torna viagem", legou à sua terra, em 1927, o hospital que em vida tinha construído. Para seu sustento, deixou à instituição dinheiro e títulos no valor de quase 2.000 contos. Mas, na disposição de última vontade não se esqueceu de outras obras de beneficência, de familiares, amigos, conhecidos e empregados, o que levou o já então ex-presidente da República António José de Almeida a escrever: "Este homem simples, a um tempo amorável e rígido, manteve-se, em tudo, fiel às suas tradições de filho do Povo. Jamais se aristocratizou, a não ser na expontânea nobreza dos seus sentimentos, que constituíram uma rara estirpe moral. E sendo em vida um exemplo da democracia generosa e sadia, ainda do túmulo nos deu lições de quanto vale para os homens de coração bem formado a recordação das gentes humildes, de cujo seio provieram e cuja convivência lhes modelou o porte moral".

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Page 1: António Ferreira Lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

2013

OS BRASILEIROS ENQUANTO AGENTES DE MUDANÇA:PODER E ASSISTÊNCIA

Coordenadores:Maria Marta Lobo de Araújo

Alexandra EstevesJosé Abílio Coelho

Renato Franco

Page 2: António Ferreira Lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

Maria Marta Lobo de Araújo

Alexandra Esteves

José Abílio Coelho

Renato Franco

(Coordenadores)

CITCEM - Universidade do Minho (Portugal)

Fundação Getúlio Vargas (Brasil)

OS BRASILEIROS ENQUANTOAGENTES DE MUDANÇA:PODER E ASSISTÊNCIA

Page 3: António Ferreira Lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

Título:

Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência

Coordenadores

Maria Marta Lobo de AraújoAlexandra EstevesJosé Abílio CoelhoRenato Franco

Apoio mecenático à edição:

Dr. Marcos Lopes (Brasil)

Data de edição: junho de 2013

Capa: Isabel Varajão

Edição:

CITCEM - Universidade do Minho (Portugal)Fundação Getúlio Vargas (Brasil)

Impressão e acabamentos:

Grafipóvoa, Lda. — Póvoa de Lanhoso (Telef. 253 634 372)

ISBN: 978-989-8612-07-6 (Portugal)ISBN: 978-85-225-1328-4 (Brasil)

Depósito Legal: 000000000

Page 4: António Ferreira Lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

ÍNDICE

Prefácio

Jorge Fernandes Alves

António Magalhães

Vianenses no Brasil, “brasileiros” em Viana.

Do sucesso económico ao reconhecimento local

através da Santa Casa da Misericórdia (séculos XVII – XVIII)

Paula Sofia Costa Fernandes

Legados que atravessam mares protegendo pobres na

Misericórdia de uma terra lusa: a utilização dos bens dos

“brasileiros” na Misericórdia de Penafiel na Idade Moderna

António Francisco Barbosa

O impacto dos “brasileiros” na assistência a nível local:

o legado de Bento da Costa Tição (Séculos XVII-XVIII)

Maria Odete Neto Ramos

Salvar a alma e socorrer os necessitados ao emprestar

capital a juro: a gestão do legado do brasileiro Cipriano Gomes

Claro pela Misericórdia de Arcos de Valdevez (1738-1760)

Maria Marta Lobo de Araújo

Na despedida da vida terrena: as preocupações do “brasileiro”

António Portela em meados do século XVIII

............ 9

.......... 17

.......... 35

......... 55

.......... 71

.......... 91

Page 5: António Ferreira Lopes: o legado de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

Renato Franco

Os portugueses na Misericórdia do Rio de Janeiro, 1800-1822

Alexandra Esteves

A intervenção dos “brasileiros” nas instituições

de assistência à saúde no Norte de Portugal (século XIX)

Ricardo Silva

Atravessar o Atlântico: alcançar

o sucesso ou perpetuar as dificuldades?

José Abílio Coelho

António Ferreira Lopes: o legado

de um “brasileiro” imbuído de ideais republicanos

Elsa Pacheco; Jorge Fernandes Alves

Rede migratória, integração social e refluxos. Da ruralidade

minhota à elite intelectual do Rio de Janeiro. Estudos de caso.

........ 109

........ 119

....... 141

........ 151

........ 171

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Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência

António Ferreira Lopes: o legado de um

“brasileiro” imbuído de ideais republicanos

José Abílio Coelho*

Foi especialmente na segunda metade do século XIX e nas primeirastrês décadas do seguinte que o noroeste português mais sentiu a sangriade filhos seus, que rumaram ao Brasil em busca de riqueza. E foi frutodo êxito económico de parte desses emigrantes que, dobrada a meio acentúria de Novecentos, toda a vasta região de entre Vouga e Minho setornou palco privilegiado da atuação de “brasileiros” ricos, os quais,tendo labutado anos, ou mesmo décadas, no Brasil, regressavam à pátria--mãe em condições de nela poderem ostentar os frutos do sucesso obtidoalém-mar.

Sabemos hoje, graças sobretudo aos trabalhos de Jorge FernandesAlves, que, nas datas apontadas, apenas cerca de metade do total dos quehaviam partido regressaram, rondando os 5% a percentagem dos quetraziam bons capitais1. E foram exatamente estes últimos que em cidades,vilas e aldeias nortenhas, a par de uma convivialidade sustentada naalegria e na abertura de espírito, implantaram novas regras sociais earquitetónicas e semearam benemerências capazes de causar espantoaos que nunca haviam partido2.

* Doutorando da Universidade do Minho. Membro do CITCEM e bolseiro da [email protected] ALVES, Jorge Fernandes - Variações sobre o ‘brasileiro’ - Tensões na emigração e noretorno do Brasil. Revista Portuguesa de História. Tomo XXXIII: Coimbra, Universidadede Coimbra (1999) 15.2 Para um melhor conhecimento desta temática, cf. entre outros: PEREIRA, MiriamHalpern - A política portuguesa de emigração. 1850-1930. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981;CRUZ, Maria Antonieta - Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuiçãopara o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX. Revista deHistória do Instituto Nacional de Investigação Científica. Porto: Centro de História daUniversidade do Porto, vol. 7 (1986-1987) 7-134; MONTEIRO, Miguel - Migrantes, Emigrantes

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Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência

O papel socioeconómico deste grupo de emigrantes bafejados pelafortuna está hoje bastante bem estudado e documentado, fruto do interesseque, nas últimas décadas, a questão tem vindo a merecer a investigadoresportugueses e não só. Há, contudo, algumas áreas em que a investigaçãocontinua a justificar-se, dado não existirem ainda estudos de sistema-tização. Uma dessas áreas é a que trata do pensamento político desteshomens e mulheres e da forma como, regressados ao seu país ou às suasterras de origem, se dedicaram à política, ou dela se mantiveram apa-rentemente afastados. Acreditamos que o tema dará ainda pano paramuitas mangas e que para se entrar a fundo nessa questão se tornaránecessário avaliar, de uma forma abrangente, estudando as várias situaçõesa nível regional ou mesmo nacional, como se situou politicamente o“brasileiro” nas diferentes fases da vida política portuguesa nas décadasfinais da Monarquia Constitucional: quais os partidos com que simpatizouou aos quais aderiu; que cargos desempenhou; que influência teve naescolha de líderes políticos locais, regionais ou mesmo nacionais; queinteresses o moviam e que influência teve em cada um deles a instruçãoque levara consigo ou que, já em terras brasileiras, iniciou ou alargou.Importará saber, da mesma forma se, e como, os marcou a implantaçãoda República no Brasil, onde muitos se encontravam quando o novoregime ali chegou através do golpe militar liderado pelo marechal Deodoroda Fonseca, em 18893, e que antecedeu, em cerca de duas décadas, idênticoregime político em Portugal.

Não é nosso propósito tratar neste breve artigo da participação dos“brasileiros” na política nacional ou local, mas apenas fazer uma primeira

e Brasileiros (1834-1926). Fafe: ed. Autor, 2000; ALVES, Jorge Fernandes - Terra de Esperan-ças. O Brasil na emigração portuguesa, Portugal e Brasil – Encontros, desencontros, reencontros.Cascais, Câmara Municipal de Cascais/VII Cursos Internacionais, 2001. p. 113-128; ALVES,Jorge Fernandes - O ‘brasileiro’ oitocentista: representação de um tipo social. In VIEIRA,Benedicta Maria Duque (org.) - Grupos sociais e estratificação em Portugal no Século XIX.Lisboa: ISCTE (C.E.H.C.P.), 2004. p. 193-199; MACHADO, Igor José de Renó - O‘brasileiro de torna-viagens e o lugar do Brasil em Portugal. Estudos de História. Nº 35,janeiro-fevereiro de 2005, Rio de Janeiro (2005) 47-67; ARAÚJO, Maria Marta Lobo de- Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII), in ARAÚJO, Maria MartaLobo de (org.). As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (séculos XV-XX). Cuiabá (Brasil): Carlini & Caniato Editorial, 2009. p. 229-260.3 FIGUEIREDO, Marcelo - Transição do Brasil. Império à República Velha. In Araucaria.Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Nº 26, año 13 (2011) 119–145.

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abordagem através do estudo de caso da Póvoa de Lanhoso e, principal-mente, do exemplo de António Ferreira Lopes, o “brasileiro” que naterra mais se destacou pela fortuna que alcançou no Brasil e pela formacomo a distribuiu. Tentaremos, pois, compreender se simpatias políticasinfluenciaram a sua benemerência em vida e, muito especialmente, aforma como, delas imbuído, dispôs da sua fortuna na hora da morte.

Os “brasileiros” e a política

Foi com o Liberalismo, e sobretudo a partir de meados da década de1830, que a burguesia alcançou espaço e influência política4. Mas algumasdécadas haviam de passar até que os “brasileiros” ricos, que começaramnos meados do século XIX a integrar-se naturalmente nessa classe social,conquistassem também posições de destaque político, fosse como mem-bros das corporações municipais, fosse em cargos de carácter nacional.

Antes de qualquer outra questão, podemos perguntar-nos sobre umamatéria que dividiu a sociedade portuguesa, especialmente após 1870 edurante as primeiras décadas do século XX: seriam os “brasileiros” sim-patizantes da Monarquia ou da República?5 A resposta é muito simples:os “torna-viagem” dividiram-se, como os demais cidadãos portugueses,pelos dois lados da barricada. Parece-nos, contudo, que, se até aos finaisdo século XIX, se posicionaram em larga maioria pelo lado do sistemamonárquico (até pelas efetivas movimentações na procura da nobilitaçãoe de outros tipos de reconhecimento oficial), a partir de 1900 os ventos demudança que começaram a soprar mais fortemente em Portugal, e queno Brasil haviam feito cair o Imperador em 1889, iriam, paulatinamente,ter grandes reflexos6.

4 Cf. SÁ, Victor de - A subida ao poder da burguesia em Portugal. Dificuldades e condi-cionalismos. Revista de História da Faculdade de Letras. V. 5, 2ª série: Porto (1988) 245-252.5 Para se compreender a evolução dos ideais republicanos no nosso país, podem lêr-se,entre outras, as obras: MARQUES, A. H. de Oliveira - A Primeira República Portuguesa:para uma visão estrutural. Lisboa: Livros Horizonte, 1970; BRAGA, Teófilo - História dasIdeias Republicanas em Portugal. Lisboa: Veja Editores, 1983; MAGALHÃES, Joaquim Romerode - Vem aí a República! 1906-1910. Lisboa: Almedina, 2009.6 Alguns desses “brasileiros” envolveram-se, clara e aguerridamente, no combate pelorepublicanismo, sendo exemplo paradigmático o do famalicense Sousa Fernandes que,desde a década de 1880, se empenhou abertamente na defesa do republicanismo e que,já depois de 1910, viria a alcançar o cargo de senador. Cf. FERNANDES, Sousa - Sousa

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Após a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, os“brasileiros”, na sua esmagadora maioria, seguiram o processo deadesivagem que se verificou com a generalidade das elites portuguesas,tendo muitos deles aderido aos partidos republicanos e, em sua repre-sentação, sido nomeados ou eleitos administradores de concelho, presi-dentes de câmara, vereadores, deputados, senadores ou, até, presidentesda República7. Outros, sabendo que não era necessário estar dentro dasinstituições políticas para sobre elas exercerem influência, mantiveram-seà margem. Não deixaram, contudo, de pelejar pela promoção de homensde sua inteira confiança para os cargos de poder e de se transformarem,através dos significativos patrocínios concedidos às câmaras e de obrasexecutadas a expensas próprias, que depois ofereciam aos municípios,em cidadãos sempre escutados antes da tomada de grandes decisões.

Para o caso em apreço, interessa-nos sobretudo centrar atenções noconcelho da Póvoa de Lanhoso. Situado em pleno coração do baixoMinho, este município teve, ao longo de todo o século XIX e na primeirametade de Novecentos, como aconteceu com praticamente todos os con-géneres de entre Vouga e Minho, um significativo número de filhos seusemigrados no Brasil. Alguns desses emigrantes voltaram ricos do outrolado do Atlântico, trazendo na bagagem novos modos de ser, de estar ede falar; e dentro de si desejos de afirmação, fosse exibindo pessoalmenteos bens conquistados durante os tempos de duríssima labuta fosse, ainda,pelo semear de benesses e benemerências por familiares, amigos e con-terrâneos.

Um desses homens chamou-se António Ferreira Lopes. Após o seuregresso do Rio de Janeiro em finais da década de 1880, de onde trouxeimensa fortuna, e até à sua morte, ocorrida em 22 de dezembro de 1927,semeou benemerências na sua terra natal que mudaram radicalmente aface da pequena vila da Póvoa de Lanhoso. Tendo convivido bem coma Monarquia até 4 de outubro de 1910, sem contudo a ela se aliar aber-

Fernandes (1849-1928): Edição comemorativa do sexagésimo aniversário da morte do Senador.Famalicão: Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, 1988.7 Bernardino Machado Guimarães, nascido no Rio de Janeiro em 28 de março de 1851,- cidade onde viveu até aos nove anos de idade, altura em que regressou a Portugal -viria a ser presidente da República portuguesa por duas vezes: a primeira de 1915 a 1917e a segunda entre 1925 e o golpe militar de 28 de maio de 1926. Cf. ROSA, Elzira MariaTerra Dantas Machado - Bernardino Machado. Lisboa: Museu da Presidência da República,2006.

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tamente, passou, após a implantação da República, a privilegiar o relacio-namento com altas figuras republicanas, imbuindo-se de um espírito queestaria presente quando, em junho de 1927, procedeu à feitura do seutestamento.

O “brasileiro” António Ferreira Lopes

António Ferreira Lopes regressou do Rio de Janeiro em 1888, depoisde ali ter permanecido ao longo de mais de três décadas8. Tinha na oca-sião 43 anos de idade e dispunha de uma fortuna colossal, acumuladaem negócios com cereais, couros, empréstimos de dinheiro a juros e,sobretudo, na comercialização e exportação de cafés9. Consigo, veio aesposa, filha de um antigo patrão e sócio, entretanto falecido, e do qualo casal herdou, para juntar ao amealhado, outros vastíssimos bens.

Sem filhos, o casal optou por se instalar em Lisboa onde, em 1891,comprou à atriz Rosa Damasceno, uma belíssima vivenda na Avenidada Liberdade. Mais ou menos pela mesma altura, iniciou na Póvoa deLanhoso, terra natal de António Lopes, a construção de um outro palacete,no lugar chamado das Casas Novas, maior e mais luxuoso que o de Lis-boa. Neste último passava com a esposa três a quatro meses por ano.

Embora tivesse escolhido a capital do reino para viver, foi no seuconcelho natal que este “brasileiro” fez grandes investimentos, comprandocasas urbanas, quintais, outeiros e quintas de produção de cereais, vinhose gado, que passou a explorar por intermédio de caseiros, no caso dosterrenos agrícolas, ou que deu de arrendamento, no caso dos prédiosurbanos. Do Brasil, continuou a receber dividendos da grande empresafamiliar, onde se manteve como comanditário e, em Portugal, tiravatambém lucros significativos de dinheiros que emprestava a juros10.

8 Nascido a 16 de abril de 1845, partiu com destino ao Rio de Janeiro a 7 de setembro de1857, com 12 anos de idade. Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 35, ano 33º, de 29 de janeiro de1928. p. 1.9 Cf. O Brasil. Rio de Janeiro: Edição da S.te de Publicité Sud-Americaine Monte Domec& Cie (vol.1), 1919, p. 51-56.10 Cobrava em geral taxas de juro da ordem dos 6%, como aconteceu no empréstimo de2:680.000 réis que deu, em 1906, a Joaquina Rosa Pereira Basto, viúva, comerciante naPóvoa de Lanhoso. Cf. Arquivo Distrital de Braga, Fundos Notarias da Póvoa de Lanhoso,livro 256, fls. 7-8v.

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No início do século XX, António Ferreira Lopes iniciou uma autênticarevolução arquitetónica na sua vila natal, construindo de raiz significativonúmero de prédios de moradia de boa qualidade, nos quais se foraminstalando as elites locais. Concelho pequeno e pobre, há muitas décadasque Póvoa de Lanhoso tinha grandes dificuldades em encontrar residênciascondignas para os funcionários e profissionais independentes que, defora, ali vinham radicar-se. As muitas casas por si construídas passarama alojar magistrados, notários, advogados, médicos ou chefes das maisdiversas repartições públicas.

Foi também no início do século XX que o “brasileiro” das CasasNovas iniciou a fase de grande benemerência com que viria a favorecera sua terra. Em 1904, em conjunto com outros membros da sua família,fundou uma corporação de bombeiros, cujas despesas com veículos,animais de tração, fardamentos e materiais de combate a fogos quiscustear integralmente. Aos familiares, irmãos e sobrinhos, também elesregressados do Brasil onde sob sua proteção haviam amealhado razoáveispecúlios, entregou a organização da instituição, tendo o cargo de coman-dante sido atribuído ao seu mano próximo, Emílio António. Apreciadorde música filarmónica, dotou os bombeiros de banda própria, que apoiouna fundação, na compra de fardamentos e instrumental e na manutençãoda agremiação até à sua morte.

Ainda em 1904, mandou construir um teatro-club, que colocou semcontrapartidas ao dispor dos seus conterrâneos, aproveitando para, noseu piso térreo, instalar gratuitamente os bombeiros. Em paralelo, tornou--se uma espécie de mecenas do município na cedência de terrenos neces-sários ao embelezamento da terra, na abertura de ruas e estradas e noalindamento de espaços públicos que transformou em jardins. Estasobras, depois de concluídas, eram entregues à câmara que garantia asua manutenção. Em pouco mais de dez anos a influência deste homemtornou-se notória, nada se fazendo na terra sem que “o senhor Lopes”fosse ouvido.

Por isso, quando regressava à terra natal para temporadas de férias,depois de passar os invernos e as primaveras em Lisboa, era recebidoem festa, com girândolas de foguetes, bandas de música e ruas alegrementeengalanadas. As despesas eram pagas pela câmara e por familiares que,deste modo, promoviam o seu nome. De tudo os jornais locais faziameco. No fim de cada outono, pronto para tomar de novo rumo à capital,

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onde o clima lhe era mais favorável para problemas de ossos de quesofria, o seu palacete era visitado por delegações de ilustres da terraque se iam despedir e desejar rápido regresso. A imprensa local publicavaos nomes dos que o iam cumprimentar, entre os quais se encontrava in-variavelmente o juiz de direito, o delegado do procurador, o presidenteda câmara e toda a vereação, advogados, médicos, jornalistas, notários,professores e muitos outros amigos e admiradores, entre os quais seencontravam outros “brasileiros” com quem mantinha amizade.

Também os pobres, para quem as portas do seu palacete das CasasNovas se abriam semanalmente em apoios consubstanciados em agasa-lhos e comida, se apresentavam no dia da partida. E quando o automóveldos beneméritos atravessava a rua central da vila em direção a Braga,onde o casal tomava comboio com destino a Lisboa, eram várias as de-zenas de homens, mulheres e crianças que ladeavam a rua por onde osseus protetores passavam, para lhes acenarem um adeus por entre lágrimasde saudade.

Dona Elvira de Pontes Câmara Lopes viria a falecer em Lisboa emfevereiro de 1910. Choraram-na os muitos miseráveis a quem protegia,enquanto a imprensa local a apelidava de “mãe dos pobres” e “santa”.

Dois anos volvidos sobre a morte da esposa e satisfazendo um pedidoque esta lhe havia feito insistentemente em vida, António Ferreira Lopesdeu início aos preparativos para a construção de um hospital destinadoa acolher doentes pobres do concelho. Na construção deste edifício,inaugurado a cinco de setembro de 1917, e na dotação de mobiliário eaparelhagem médica gastou o “opulento capitalista” 150 contos de réis11.

António José de Almeida, médico, figura destacada da maçonarialusitana e da I República, já então ex-primeiro ministro de Portugal efuturo chefe da nação, com quem António Lopes mantinha desde hávários anos estreita amizade, foi uma das primeiras pessoas a visitar oestabelecimento de saúde após a solene inauguração. Quer AntónioFerreira Lopes, quer os seus irmãos e grande parte dos sobrinhos, eramapoiantes do Partido Evolucionista, liderado por Almeida. Emílio António,o irmão com quem mantinha mais afinidades, foi mesmo, durante váriosanos, o delegado local dos evolucionistas.

11 Consulte-se o jornal Maria da Fonte. Nº 35, ano 33º, de 29 de janeiro de 1928. p. 1.

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Nos dez anos que se seguiram à inauguração, o “brasileiro” das CasasNovas custearia do próprio bolso todas as despesas do hospital por siedificado: médicos, enfermeiras, pessoal auxiliar, administrativos,cozinheiras, remédios e alimentação. Tudo suportava em exclusividade,chegando a recusar algumas doações que ao hospital foram feitas pelogoverno de Lisboa12. Em Agosto de 1921, numa carta ao então diretor-geral da Saúde, Ricardo Jorge, escrevia João Albino de Carvalho Bastos,seu sobrinho e encarregado da gestão do hospital:

“Foi o Hospital inaugurado em 5 de Setembro de 1917. Desdeentão, até hoje passaram pelas suas enfermarias 898 doentes.Desde 1 de Janeiro de 1918 a 31 de Agosto de 1920, deu 3.393consultas gratuitas e fez 6.053 curativos gratuitos. Não tendoenfermarias para doenças infecto-contagiosas, quando da últimaepidemia de gripe [pneumónica], auxiliou tanto quanto possívelum [outro] hospital que aqui se improvisou para os epidemiados,fornecendo-lhe inclusivamente pessoal de enfermagem. Recebeuum grande numero de convalescentes daquela doença. Temprestado numerosos serviços a este concelho e é avultadíssima adespeza da sua manutenção. O estado só nos tem favorecido comenormes dificuldades na requisição de generos necessarios paraa sustentação dos doentes e ainda não pagou á nossa farmácia o re-ceituario nela aviado aos pobres epidemiados da gripe pneumonica”13.

12 Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso (doravante ASCMPL),Copiador do Hospital. Nº 1, fl. 87. Carta dirigida ao Ministro do Trabalho em 23 denovembro de 1922: “Ex.mo Senhor Ministro do Trabalho. Há dias publicaram os jornaisde Lisboa e Porto a noticia de que tinham sido subsidiados pelo Ministerio de que V.Exa. e digno titular, varios hospitais civis, distinguindo este também com verba de milescudos. Naturalmente V. Exa. desconhece que esta casa de caridade foi fundada porum benemerito que depois de a dotar com tudo o que a sciencia moderna exige o costeiae mantem com a maior largueza, e que deseja que a ele, e só a ele, caiba essa virtude. Poresse motivo, encerrega-me de transmitir a V. Ex.a o seu reconhecimento por lhe termereceido essa consideração a sua obra, e pede para essa verba seja oferecida à Comissãoque venera o Santuario de Nossa Senhora do Pilar onde se eleva como padrão detradições tão remotas o antigo e histórico Castelo de Lanhoso, que tanto merece serconservado e tanto necessidade de verba para esse fim.Saude e Fraternidade. O director,João Albino de Carvalho Bastos”.13 ASCMPL, Copiador do Hospital. Nº 1, Carta ao Dr. Ricardo Jorge, em 31 de Agosto de 1921,fl. 53.

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Apesar das queixas que a carta que se transcreve suscita, AntónioLopes continuou a modernizar o seu hospital: em 1922, numa das suasmuitas viagens pela Europa, comprou em Paris um aparelho de Raios-X para o seu hospital. Chegado este à alfândega do Porto, as autoridadesportuguesas não sabiam como taxar o aparelho, o que atrasou a suadesalfandegação. O fundador da “casa de caridade” povoense, depoisde semanas de espera sem que o governo se decidisse dar luz verde aopagamento do imposto devido para o levantamento do aparelho, recorreuentão ao seu amigo presidente António José de Almeida, que, utilizandoa sua influência, veio a conseguir, junto do ministro das Finanças, alibertação da aparelhagem14.

Nos anos seguintes o hospital tornou-se cada vez mais a obra davida deste “brasileiro”. Segundo um cronista da época, nos meses quepassava na terra, o fundador não deixava de visitar diariamente a suacasa de caridade, confortando os doentes internados e inspecionandopessoalmente o tratamento que a estes era dispensado15.

António Ferreira Lopes viria a falecer em Lisboa a 22 de dezembrode 1927. Em 1928, poucos meses após a sua morte, vieram a público osnúmeros impressionantes dos primeiros dez anos de funcionamento dohospital, quer quanto ao volume de hospitalizações, consultas e curativos,quer no respeitante aos internamentos, por sexo e profissão. As hos-pitalizações ultrapassaram as duas mil, as consultas externas beneficia-ram quase oito mil doentes e o número de curativos ascendeu a mais dequinze mil. Isto num concelho que, à época, tinha um pouco mais de19.000 habitantes16.

14 ASCMPL, Copiador do Hospital. Nº 1, Carta ao Dr. António José de Almeida, em 2 de Marçode 1922, fl. 62.15 Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 35, ano 33º, de 29 de janeiro de 1928. Segundo a imprensa,eram muitos os dias que António Lopes deixava a família em sua casa, a fazer a refeiçãosozinha, indo ele almoçar ao hospital, de forma a certificar-se da qualidade das refeiçõesali servidas. Note-se que grande parte dos doentes eram pessoas muito pobres, aosquais, em casa, faltava quase tudo e principalmente a comida, pelo que ali entravam sub-nutridos. Os jornais locais escreviam também que muitos desses doentes não queriamter alta porque, no hospital, tinham o conforto e as condições que em casa lhes faltavam.16 Cf. Censo da População de Portugal (Dezembro de 1930). Lisboa: Imprensa Nacional, 1933.p. 50.

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Quadro 1 - Internamentos por profissão

Pelo quadro dos internamentos por profissão (ilustração 1) conclui-seque, no caso dos homens, eram os profissionais que menos ganhavam,como os jornaleiros (240), os criados (155) e os que não tinham “profissãodefinida” (135) os que ali entraram em maior número. O mesmo ocorriano respeitante às mulheres onde o número das domésticas (433) e o dascriadas de servir (197) se destaca de todas as restantes. Era também signi-ficativo o número de mendigos internados gratuitamente nos dez anosem apreço: 50 homens e 35 mulheres.

A amizade com o Presidente António José de Almeida

António Ferreira Lopes nasceu em 1845, num Portugal monárquico,tendo vivido grande parte da sua vida adulta num Brasil imperial. Quandoregressou à pátria natal, em 1888, ainda no Brasil não tinha sido implantadaa República, o que só viria a ocorrer no ano seguinte à sua partida (1889).Mas as suas ligações ao Rio de Janeiro, onde voltou algumas vezes, em-bora por curtos períodos, bem como os grandes interesses económicosque mantinha naquele país, onde, para além de comanditário numa grandeempresa deixara outros bens, entre os quais alguns imóveis, fizeram comque se mantivesse em estreito contacto com a realidade brasileira. Essaligação proporcionava-lhe um perfeito conhecimento do novo regimeque governava o Brasil.

Fonte: Jornal Maria da Fonte de 9 de setembro de 1928, 1

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Em Portugal, até outubro de 1910, o benemérito da Póvoa de Lanhosonão assumiu, que se conheça, qualquer posição favorável às movimenta-ções que levaram à implantação da República. Também nunca se assumiucomo monárquico, sendo certo, porém, que, a pedido do professor oficialda vila, pagou do seu bolso, em agosto de 1908, dois retratos emolduradosde D. Manuel II para serem afixados nas paredes das salas de aulas,masculina e feminina, da escola primária da sua terra natal17.

Não nos parece difícil entender este posicionamento do “brasileiro”das Casas Novas pois, até 1910, os adeptos assumidos da República naPóvoa de Lanhoso eram muito poucos e quase todos jovens estudantes.Em Lisboa, onde a sua vida privada se diluía se comparada com as detantos outros homens ricos e influentes, não nos ficou nota, para esteperíodo, dos seus contactos. Contudo, após o “5 de Outubro”, mantendoembora total distanciamento em relação à política ativa, António FerreiraLopes viria a estabelecer estreitos laços de amizade com António Joséde Almeida, amizade essa que desconhecemos se seria anterior à quedada Monarquia. Era simpatizante do Partido Evolucionista, fundado em1912 na sequência da primeira secessão do Partido Republicano, e todosos anos, no dia em que se comemorava a implantação, mandava içar abandeira da República na varanda do seu palacete18. Vários dos seussobrinhos e outros familiares, e sobretudo os seus maiores amigos noconcelho natal, desempenharam importantes cargos nas comissõesadministrativas da câmara e na administração do concelho durante a IRepública, contando, sempre, com o apoio inequívoco do “senhor Lopes”.Em 1912, quando deu início à construção do hospital, os médicos, notáriose advogados de que se rodeou eram destacados republicanos locais, liga-ções que manteve até à sua morte, ocorrida em 1927.

António José de Almeida, um dos mais prestigiados políticos da 1ªRepública, várias vezes deputado e ministro, primeiro-ministro entre16 de março de 1916 e 25 de abril de 1917 (durante o “ministério daSagrada”) e chefe de Estado entre 5 de outubro de 1919 e 5 de outubrode 1923, chegou mesmo a visitar António Lopes na Póvoa de Lanhoso.A visita ocorreu no dia 1 de novembro de 1917. O já ex-presidente dogoverno (futuro presidente da República), e então chefe do Partido

17 Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 684, de 30 de agosto de 1908, p. 3.18 Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 35, de 4 de novembro de 1917, p. 1.

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Evolucionista, foi recebido na terra por vários cavalheiros “de todas asfações políticas” e por uma banda de música e girândolas de foguetes.Dali, e depois de muitos “vivas! à sua pessoa”, seguiu de automóvelpara o palacete do seu amigo “brasileiro” onde recebeu cumprimentosde boas-vindas, sendo-lhe de seguida servido “um lauto almoço”. Findoeste, António José de Almeida visitou demoradamente “o modelarhospital A. Lopes, ficando magnificamente impressionado”. A bandafilarmónica seguiu toda a visita do médico e político na visita ao hospital,sendo este acompanhado, para além do anfitrião, pelo líder dos evo-lucionistas distritais, pelo Dr. Armindo de Freitas, pelo major-médicoJosé Maria Rodrigues Braga, pelo Dr. Pereira Júnior, redator do jornal“A República”, bem como por outros destacados membros da mesmaformação partidária19.Parte do dinheiro gasto anualmente na vila comos festejos comemorativos da implantação da República, saía do bolsodos seus famíliares mais próximos.

A amizade entre o benemérito e o político republicano manteve-sepelos anos seguintes. Em 1922, então já presidente da República, AntónioJosé de Almeida outorgaria a António Lopes a Comenda da Ordem deCristo20.

O testamento de António Lopes

António Lopes fez o seu testamento em Lisboa, perante o notárioAntónio Tavares de Carvalho, seis meses antes de falecer, ou seja, aosvinte e quatro de junho de mil novecentos e vinte e sete21. Todos osseus bens foram distribuídos através de dois documentos distintos, regis-tados no mesmo dia e perante o mesmo notário. Num deles, AntónioLopes fazia a distribuição dos bens que possuía em Portugal; no outro,o que lhe pertencia no Brasil. Para cada um deles instituiu testamenteirosdiferentes, de proximidade aos bens, razão que talvez explique não terfeito um documento único.

Para o que possuía em Portugal, instituiu testamenteiros principaiso seu secretário, Madaíl Lopes Monteiro, e o seu sobrinho Arlindo AntónioLopes. Para os bens do Brasil nomeou os sobrinhos José Mendes de Oli-veira Castro e Américo António Lopes. Teve ainda o cuidado de deixar

19 Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 35, de 4 de novembro de 1917.20 Cf. Diário do Governo. II série, número 72, de 29 de março de 1922.21 ASCMPL, Testamento de António Ferreira Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

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escrito que, embora o expressasse em contos e não em réis, os legados emdinheiro deveriam ser entendidos como designados em moeda brasileira,dado querer que fossem pagos com o dinheiro que possuía no Brasil22.

Ambos os testamentos começavam por traçar algumas linhas sobreo seu nascimento, raízes e sobre uma mudança de nome, empreendidajá no Brasil, afirmando depois que não tendo herdeiros forçados, dispunhados seus bens livremente. Em qualquer dos testamentos, começava porlegar aos dois testamenteiros que executassem a sua última vontadeoitenta contos em solidário, seguindo-se extensa e valiosa distribuiçãoa membros da família, amigos e empregados, de imóveis, dinheiro, joias,objetos pessoais, de títulos de dívida pública que possuía ou seus rendi-mentos. Ao já então ex-presidente da República António José de Almeida,pela muita simpatia e amizade que dizia merecer-lhe, legava um tinteiroem prata, com monograma. As joias, que haviam pertencido à sua defuntaesposa e se encontravam recolhidas no cofre de um banco de Lisboa,queria-as distribuída equitativamente pelas suas quatro cunhadas, irmãsda esposa ou, na falta delas, pelas filhas das já desaparecidas.

Como se pode observar no gráfico que se segue, para além dos 160contos de réis que couberam aos quatro testamenteiros, legou cerca dequatro mil e trezentos contos aos familiares. Aos amigos, legou maisde mil contos, tendo o cuidado, para não ferir suscetibilidades, de, emalguns casos, referir tratar-se de “uma simples lembrança”.

Gráfico 1: Quadro dos legados, por grupos

22 ASCMPL, Testamento de António Ferreira Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

Fonte: ASCMPL, Testamento de António Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

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No que respeita aos empregados e colaboradores diretos, todos foramcontemplados: ao mordomo deixava 80 contos de réis e à governanta100 contos. Não esquecia o secretário, os três criados e as criadas, a co-zinheira, o cocheiro, o chauffeur e os muitos empregados que serviamno seu hospital. De fora, não deixava sequer os dois advogados a quemsempre recorrera para lavrar as muitas dezenas de escrituras feitas noscartórios da vila natal, fossem de compra e venda de casas e terrenos,fossem para assegurar o empréstimo de dinheiro a juros ou, até, paralegitimar a sua paternidade, dado ter nascido de mãe solteira. Num atode confiança nos seus testamenteiros, deixou cento e cinquenta contospara serem distribuídos por doze empregados da firma Castro, Silva &C.ia, a empresa da qual era sócio comanditário, devendo ser premiadosos que tivessem mais tempo de serviço.

Quadro 2 - Doações a empregados e colaboradores

Fonte: ASCMPL, Testamento de António Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

No respeitante a doações em dinheiro feitas a familiares, empregadose amigos, os valores são bastante diferentes: andam entre os dois contosde réis legados a Francisco Exposto, ajudante de enfermeiro no hospital,e os trezentos e trinta contos ao sobrinho Arlindo António Lopes.

Legados ao Hospital da Póvoa de Lanhoso

Generoso com familiares, empregados e amigos, António FerreiraLopes não deixou, ao expressar a sua última vontade, de se mostraruma vez mais magnânimo para com um conjunto de instituições debeneficência portuguesas e brasileiras, às quais legou 4.285 contos dereis. O hospital por si fundado mereceu-lhe a principal atenção.

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“Ao Hospital da Póvoa de Lanhoso, mandado construir única eexclusivamente à minha custa (…) e custeado também exclusivamentepor mim, deixo para seu património duas mil inscrições de Dívida InternaPortuguesa, no valor nominal de um conto cada uma [ao] juro de trêspor cento”, começa por dizer, referindo-se à obra da sua vida. Mas nãoirá ficar-se por aqui a generosidade deste “brasileiro” que, recomendandoque “nunca em tempo algum [possam ser os fundos] desviados paraoutro fim que não seja o tratamento de doentes pobres do concelho”,pede de seguida aos seus amigos e testamenteiros — logo, comprometendotodos aqueles a quem contemplava no testamento, como guardiões dasua vontade — “que resolvam com segurança esta minha disposição,entregando o hospital à Câmara Municipal do concelho ou a qualqueroutra corporação ou instituição pública ou particular, que já exista ouvenha a criar-se, ou que os meus testamenteiros possam organizar-se deacordo com o atual administrador [do hospital], o meu sobrinho JoãoAlbino de Carvalho Bastos, com tanto que mereça inteira confiançapara que este casa de caridade por mim estabelecida, não venha a sofrerde predações”. Ao hospital (parecendo querer conferir-lhe desde logoaquilo a que hoje se chama personalidade jurídica), legou o prédio ondeestava instalada a farmácia, com todos os seus pertences, e mais oitentacontos em dinheiro, que deveriam ser entregues logo após a sua morte,“para as primeiras necessidades do seu custeio”23.

A estas disposições, instituídas pelo primeiro testamento, juntavauma outra, a ser extraída dos bens que possuía no Brasil, doando maisseiscentas apólices ao hospital, no valor de um conto cada uma, paracom a sua renda se prover ao tratamento dos doentes pobres. Na totalidade,em dinheiro vivo e títulos, doou ao hospital 2.680 contos.

Refira-se que, um ano após a sua morte, e cumprindo o pedido quelhes fizera para que resolvessem com segurança o futuro do hospital,entregando-o à câmara municipal do concelho ou a qualquer outracorporação ou instituição pública ou particular, que já exista ou venhaa criar-se, viriam os testamenteiros, coadjuvados por alguns dos seusmelhores amigos e vários familiares, a fundar a “Misericórdia e HospitalAntónio Lopes da Póvoa de Lanhoso”, que, sustentada nos preceitoslegais e no compromisso aprovado, vem gerindo o hospital até aos diasde hoje.

23 ASCMPL, Testamento de António Ferreira Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

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Outras doações

Sendo o hospital por si fundado o grande beneficiado pela herançado benemérito povoense, outras instituições receberam também signi-ficativas ajudas.

As Misericórdias do Porto e do Rio de Janeiro, asilos, albergues,institutos de cegos e de beneficência portugueses e brasileiros, o LiceuLiterário Português no Rio de Janeiro, bombeiros, pobres das paróquiasonde habitou em Lisboa, onde residiu no Brasil e onde nasceu na Póvoade Lanhoso, foram também contemplados com significativas somas e,em alguns casos, com imóveis.

Para além daquelas que fez questão de privilegiar pessoalmente, deixouaos testamenteiros a responsabilidade de escolherem outras vinte ins-tituições, dez portuguesas e dez brasileiras, às quais seria entregue umtotal de quatrocentos contos.

Quadro 3 - Soma dos legados a instituições em dinheiro e em títulos da dívida pública

À câmara da sua terra deixou a elevada soma de quinhentos e trintacontos de réis. Duzentos contos serviriam para a construção de umaescola para crianças dos dois sexos, e trezentos à edificação de um novoedifício dos Paços do Concelho. Os outros trinta contos destinava-os aajudar a pagar a abertura de uma estrada para o castelo de Lanhoso.

A esta quantia, a ser paga em dinheiro, somava no legado ao municípiocento e vinte inscrições da dívida interna portuguesa, no valor de um

Fonte: ASCMPL, Testamento de António Lopes, pasta dos testamentos, s/paginação.

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conto cada, por forma a que, com o seu rendimento, o município forneces-se livros, papel e outros artigos escolares às crianças pobres que fre-quentavam as escolas da vila, e ainda para que, em cada ano e em cadauma das escolas, fossem distribuídos prémios aos pequenos estudantesque mais se distinguissem na higiene e melhor aproveitamento mostras-sem nos exames. Os prémios seriam dois por ano para a escola masculinae dois para a feminina, nos valores de cinquenta e de trinta escudoscada um, devendo denominar-se “Prémios D. Elvira Lopes”, pois queos instituía “em memória e veneração da minha nunca esquecida esposa”.

Contabilizando apenas dinheiro e títulos de renda, o legado destegrande benemérito da Póvoa de Lanhoso totalizava a extraordináriaimportância de dez mil, quatrocentos e setenta e um contos de reis.

António Lopes faleceu em 22 de dezembro de 1927.O já então ex-presidente da República portuguesa, Dr. António José

de Almeida, fez, nos dias que se seguiram à morte do seu amigo, publicarna imprensa um pequeno texto que, por si só, faz a síntese da benemerênciadeste “brasileiro” de grande coração:

“António Ferreira Lopes — escreveu então António José de Al-meida — foi um benemérito em toda a extensão da palavra. Emvida espalhou subsídios, coadjuvações e amparos às mãos-cheias.Depois de morto, a sua munificência desentranhou-se larga eubérrima como uma fonte pujante de benemerência.Este homem simples, a um tempo amorável e rígido, manteve--se, em tudo, fiel às suas tradições de filho do Povo. Jamais searistocratizou, a não ser na expontânea nobreza dos seus sen-timentos, que constituíram uma rara estirpe moral. E sendo emvida um exemplo da democracia generosa e sadia, ainda dotúmulo nos deu lições de quanto vale para os homens de coraçãobem formado a recordação das gentes humildes, de cujo seioprovieram e cuja convivência lhes modelou o porte moral.É interessante a lista dos legados que, no seu testamento, deixou.Lá há de tudo como um mostruário de filantropia inesgotável.Há lembranças para amigos, dádivas elegantes que valem,sobretudo, pela sua expressão espiritual. E há a grande massatestamentária de dons e benesses que deixaram ricas tantas pessoase remediadas muitas outras, tendo especiais cuidados para comos pobres e deserdados.

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Esse trabalhador indefeso não esqueceu os seus servidores e au-xiliares que, numa esfera ou noutra, o coadjuvaram. E, até, pa-ra que a obra fosse completa, ele legou aos testamenteiros odireito de escolherem algumas instituições de beneficência paraserem contempladas como escolhidas por ele. Quer dizer: AntónioFerreira Lopes, dentro do seu vasto benemeritarismo fez o maisprático e mais belo dos socialismos, pois não confiou ao seupróprio critério o rol completo dos seus beneficiados.A lição moral que resulta da sua vida e do testamento deste ci-dadão é magnífica e foi, sem dúvida, a melhor cláusula dassuas últimas disposições”24.

Contemplando no seu testamento tantas pessoas e instituições, o “bra-sileiro” fundador do hospital da Póvoa de Lanhoso nada pediu para si anão ser que o sepultassem no jazigo que possuía no cemitério dos Pra-zeres em Lisboa, e onde já descansava sua esposa, Elvira de Pontes CâmaraLopes: não destinou um centavo que fosse para missas, nem por si próprio,nem pela esposa, nem pelos pais, nem pelos sogros, nem por outros fa-miliares próximos que tivessem partido já para o além. Esta situação vi-ria, aliás, a ser esgrimida em público, anos mais tarde, por parte de algunsdos seus familiares, em questões que os opuseram ao clero local.

Após a morte do António Lopes, já em pleno regime da ditaduramilitar implantada pelo golpe de 28 de Maio de 1926, os seus sobrinhosque se mantiveram a residir no concelho da Póvoa de Lanhoso foram,pela influência que tinham e que em grande parte lhes advinha do estatutoe dos bens legados pelo tio, os últimos republicanos moderados a fazerfrente às novas elites representativas do Estado Novo. Naturalmente, per-deram a batalha e a influência. E nem sequer conseguiram opor-se àutilização do nome do benemérito, cujo exemplo o “novo poder” utilizouà exaustão para valorizar “a obra nacional de António de Oliveira Salazar”.

24 Cf. Jornal Maria da Fonte. Nº 35, de 29 de janeiro de 1928, p. 1.

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