antónio damásio e a mente

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_______________________________________________________________________________________ _ António Damásio e a mente “Cresci habituado a aceitar que os mecanismos da razão existiam numa região separada da mente onde as emoções não eram autorizadas a penetrar, e, quando pensava no cérebro subjacente a essa mente, assumia a existência de sistemas neurológicos diferentes para a razão e para a emoção. Esta era então uma perspectiva largamente difundida acerca da relação entre razão e emoção, tanto em termos mentais como em termos neurológicos.” A razão não é de modo algum pura, já que esta não se pode separar do sentimento e da emoção, da corporeidade, (…) “comecemos, então, pelo penso logo existo. Esta afirmação, talvez a mais famosa da história da filosofia. (…) Desde que foi cunhada por Descartes, no Discurso do Método, esta máxima estabeleceu um abismo entre corpo e mente. Ao definir o acto de pensar como uma actividade separada do corpo, o filósofo francês privilegiou a razão em detrimento da emoção. Para António Damásio, a máxima de Descartes carece de sentido uma vez que os estímulos sensoriais e as emoções resultantes são factores fundamentais na estruturação do pensamento (…) O erro de Descartes foi separar o corpo da mente, a razão da emoção, foi sugerir que a mente teria uma “substância diferente” da do tecido biológico. António Damásio baseia as suas conclusões no estudo de diversos pacientes com lesões cerebrais contrariando a crença de que “decisões sensatas provêm de uma cabeça fria e de que emoções e razão se misturam tanto quanto a água e o azeite”. Tal certeza começou a ruir quando Damásio se confrontou com um paciente, Elliot, que tivera uma mente saudável até ser afectado por uma doença neurológica, um meningioma que danificou parte do seu cérebro com predomínio no lobo frontal direito, em particular, no sector ventromediano. De um dia para o outro, o paciente começou a apresentar uma incapacidade total para tomar

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Psicologia

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Page 1: António Damásio e a Mente

________________________________________________________________________________________António Damásio e a mente

“Cresci habituado a aceitar que os mecanismos da razão existiam numa região separada da mente

onde as emoções não eram autorizadas a penetrar, e, quando pensava no cérebro subjacente a essa mente,

assumia a existência de sistemas neurológicos diferentes para a razão e para a emoção. Esta era então uma

perspectiva largamente difundida acerca da relação entre razão e emoção, tanto em termos mentais como em

termos neurológicos.”

A razão não é de modo algum pura, já que esta não se pode separar do sentimento e da emoção, da

corporeidade, (…) “comecemos, então, pelo penso logo existo. Esta afirmação, talvez a mais famosa da

história da filosofia. (…) Desde que foi cunhada por Descartes, no Discurso do Método, esta máxima

estabeleceu um abismo entre corpo e mente. Ao definir o acto de pensar como uma actividade separada do

corpo, o filósofo francês privilegiou a razão em detrimento da emoção. Para António Damásio, a máxima de

Descartes carece de sentido uma vez que os estímulos sensoriais e as emoções resultantes são factores

fundamentais na estruturação do pensamento (…)

O erro de Descartes foi separar o corpo da mente, a razão da emoção, foi sugerir que a mente teria

uma “substância diferente” da do tecido biológico. António Damásio baseia as suas conclusões no estudo de

diversos pacientes com lesões cerebrais contrariando a crença de que “decisões sensatas provêm de uma

cabeça fria e de que emoções e razão se misturam tanto quanto a água e o azeite”. Tal certeza começou a ruir

quando Damásio se confrontou com um paciente, Elliot, que tivera uma mente saudável até ser afectado por

uma doença neurológica, um meningioma que danificou parte do seu cérebro com predomínio no lobo frontal

direito, em particular, no sector ventromediano. De um dia para o outro, o paciente começou a apresentar uma

incapacidade total para tomar decisões e uma alteração na capacidade de sentir emoções, embora possuísse o

conhecimento, a atenção e a memória intactas, inclusive a memória de trabalho. A sua linguagem era

impecável, conseguia executar cálculos e lidar com a lógica de um problema abstracto.

Ao analisar o paciente, Damásio considerou pela primeira vez a hipótese de que emoção e razão

estariam visceralmente interligadas, e mais, que a emoção está na essência da capacidade de pensar e na

tomada de decisão. Com este caso, e outros semelhantes, Damásio denuncia a concepção tradicional acerca da

natureza da racionalidade: a razão não é incorpórea, sentimentos e emoções estão ligados e a ausência de

emoções é incapacitadora e compromete a racionalidade. A partir de casos clínicos (como os psicopatas que

repetem os seus crimes) equaciona exemplos “em que uma diminuição da racionalidade se faz também

acompanhar de diminuição ou ausência de sentimentos” e que a redução das emoções pode conduzir a

comportamentos irracionais, ou seja, socialmente inadequados e pessoalmente desvantajosos. No caso de

Elliot, este não aprendeu com os erros mesmo quando confrontado com os resultados desastrosos dos testes e

perdia-se com descrições desnecessariamente pormenorizadas. Havia uma dissociação entre a vida real e os

testes de laboratório. Elliot sabia mas não sentia, relatava a tragédia da sua vida com imparcialidade, de forma

controlada, sem evidenciar traços de emoção ou sofrimento. (…)

Page 2: António Damásio e a Mente

A pessoa constrói-se com base no seu kit fisiológico e social no qual desempenham papel

fundamental a educação e a cultura, em suma, o ambiente; “as decisões pessoais e sociais estão repletas de

incertezas e têm impacto na sobrevivência de forma directa ou indirecta. Requerem, por isso um vasto

reportório de conhecimentos sobre o mundo externo e sobre o mundo que existe dentro do organismo.” Além

dos mecanismos de sobrevivência devemos acrescentar um conjunto de estratégias de tomada de decisão

socialmente aceitáveis.

Sentimentos como amor ou ódio encontram as suas bases em processos fisiológicos, neurológicos que

ocorrem no momento da interacção entre um cérebro e o seu corpo “quererá isto dizer que não existe amor

verdadeiro, amizade sincera, compaixão genuína?” Claro que existe. Se os sentimentos são autênticos,

verdadeiros e marcados pela beleza da sublimidade, jamais se inscreverão no reducionismo da neurobiologia,

mesmo sabendo que existem mecanismos biológicos automáticos subjacentes ao sentimento humano mais

sublime. Um sentimento é autêntico quando há correspondência entre o que eu faço/sinto e a minha mente.

Para além desta dupla condicionante contamos com algo exclusivamente humano: um ponto de vista moral

que transcende os interesses do grupo.

O corpo constitui quadro de referência para os processos neuronais e para a actividade da mente. Ele é

o instrumento de aferição que permite dar asas à subjectividade. Através dele experienciamos e forjamos

interpretações do mundo. Os processos e experiências corporais estabelecem os modelos do nosso raciocínio:

“os nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores acções, as nossas maiores alegrias e as nossas

mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição.” É o nosso próprio organismo e não uma

realidade externa ou absoluta que serve de base para as interpretações do mundo que nos rodeia e para a

construção permanente do sentido de subjectividade.

Ao estabelecer uma correlação entre a emoção e a razão Damásio reafirma a interligação destas a

partir do corpo. A novidade é o papel que as emoções têm quanto à capacidade humana de decisão já que estas

afectam o agir moral. Se a emoção não existe, deixa de haver percepção e compreensão das consequências dos

actos praticados e impedida a possibilidade de se considerar e pesar as consequências dos actos. A emoção

interfere na razão e a razão na emoção. A separação abissal não faz sentido. A relação é a de um compromisso

que não se pode romper pois “o cérebro e o corpo encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos

bioquímicos e neurais reciprocamente dirigidos de um para o outro.” Sem a regulação biológica que os

circuitos cerebrais permitem, o corpo não se salvaria, pois seria incapaz de descodificar os sinais do meio e

encontrar o seu equilíbrio, quer seja regulando o ritmo cardíaco, quer respirando, saciando a fome,

reproduzindo-se. Quando está em perigo, envia sinais ao cérebro desencadeando-se uma resposta

bioreguladora, adaptativa. Sem a regulação biológica a sobrevivência individual e evolutiva cessaria.

Damásio apresentou uma visão integrada da pessoa que supera todos os dualismos tradicionais, à excepção do

dualismo cérebro/mente (que será abordado mais adiante), e embora admitindo que em certos momentos as

paixões e emoções perturbem a capacidade de raciocínio conduzindo à indecisão, teve o mérito de chamar a

atenção para o facto de a ausência de emoções conduzir a comportamentos irracionais: “sob certas

circunstâncias, as emoções perturbam o raciocínio [...] devemos experienciar as emoções e os sentimentos

Page 3: António Damásio e a Mente

apenas em quantidades adequadas. Devemos ser razoáveis, [...] não vou negar que as emoções não controladas

e mal orientadas podem constituir uma das principais origens do comportamento irracional”36e “muito

embora acredite que é necessário um mecanismo com base no corpo para ajudar a razão “fria”, também é

verdade que alguns destes sinais com base no corpo podem prejudicar a qualidade do raciocínio.”

Com isto queremos dizer que as emoções também devem ser reguladas. Se não fossem, teríamos

dificuldade em superar as nossas tragédias pessoais e dificuldade em criar distanciamento face às tragédias

dos outros. Ora, um envolvimento emocional forte poderá cegar a própria razão e esta é boa conselheira.

Apesar de tudo, os impulsos biológicos e o mecanismo automatizado do marcador somático são essenciais

para alguns comportamentos racionais, em especial, nos domínios pessoal e social, embora, em determinados

casos, a ausência deste mecanismo possa até constituir uma vantagem.

Emoção e Razão

Contra a perspectiva tradicional, de que existe uma área cerebral separada para a razão, Damásio irá

defender a tese de que “a emoção é uma componente integral da maquinaria da razão”, e que a afectividade e

a racionalidade têm um suporte biológico, orientando a sua investigação no sentido de provar que “a razão

humana está dependente não de um único centro cerebral mas de vários sistemas cerebrais que funcionam de

forma concertada ao longo de muitos níveis de organização neuronal” e que “todos estes aspectos, emoção,

sentimento e regulação biológica, desempenham um papel na razão humana”.

A obra, O Erro de Descartes, prossegue na concretização desta tese mediante a análise de casos, de

que é exemplo a transformação psicológica de Phineas Gage. Até metade do século XIX, tinha-se a evidência

de que a linguagem, a percepção e as funções motoras estavam vinculadas ao funcionamento de áreas

específicas do cérebro. A lesão sofrida por Gage veio mostrar que além disso as convenções sociais e as regras

éticas dependiam do bom estado de regiões do cérebro que aparentemente não deveriam interferir na tomada

de decisão. O mesmo se poderá dizer em relação à capacidade de sentir empatia. Phineas Gage que sofreu

uma lesão nas regiões pré-frontais dos dois hemisférios cerebrais não possuía nenhum sinal de afasia. As

principais sequelas haviam marcado o seu carácter e não o seu corpo; as lesões afectaram as suas deliberações

de carácter moral e não o seu raciocínio: “a seguir ao acidente, deixou de demonstrar qualquer respeito pelas

convenções sociais; os princípios éticos eram constantemente violados; as decisões que tomava já não tinham

em consideração os seus interesses mais genuínos.”

Phineas Gage não conseguia harmonizar o seu conteúdo cognitivo com acções e projecções de acções

futuras. O seu sistema de valores tinha-se desligado da realidade e as decisões que tomava prejudicavam os

seus interesses. A alteração da personalidade devia-se a uma lesão circunscrita a um local específico. No caso

de Gage, a região ventromediana do lobo pré-frontal era a sua área especializada para o envolvimento

afectivo. Gage perdeu a capacidade de planear o futuro, pois os elementos emocionais e sentimentais

indispensáveis para a tomada de decisão foram-lhe retirados. Mas a incapacidade de Gage em experimentar

emoções não afectou apenas a sua capacidade de tomar decisões. Ela afectou igualmente a sua capacidade de

Page 4: António Damásio e a Mente

estabelecer relações empáticas com as outras pessoas, e esta foi certamente uma das causas mais profundas da

sua desumanização e impossibilidade de ser curado.

Deve-se a Damásio a revelação de que os circuitos neuronais que estão na base da percepção das

emoções e dos sentimentos não se localizam apenas nas estruturas do sistema límbico, como a amígdala, mas

em certas partes do córtex pré-frontal, e também, o que é mais importante, nas regiões do cérebro onde se

projectam e onde estão integrados os sinais que vêm do corpo. Estes circuitos dialogam com todo o organismo

pela secreção de hormonas e pelas vias nervosas em contacto com os órgãos.

Muitas das nossas decisões têm como base o indicador somático que funciona como um dispositivo de

assistência automatizada em vez da análise racional que conduz muitas vezes à indecisão. A tomada de

decisão em termos gerais e sociais tem como finalidade a sobrevivência do organismo. Observar convenções

sociais, comportar-se segundo princípios éticos e tomar decisões vantajosas para a própria sobrevivência

requerem o conhecimento de normas e estratégias comportamentais e a integridade de sistemas específicos do

cérebro. (…)

A Hipótese do marcador somático e a fisiologia das emoções

Defensor de um holismo cérebro-corpo-ambiente, Damásio demonstra a existência de uma fisiologia

das emoções. O sentir de uma emoção implica um determinado sintoma do corpo. A hipótese do marcador

somático atesta isso mesmo. Com base no caso de Phineas Gage, e em outros mais específicos, Damásio

constrói a hipótese dos marcadores somáticos, áreas específicas do cérebro onde sentimentos e emoções

registam emoções primárias (medo, raiva, tristeza, alegria, surpresa, expressões faciais, vocais, corporais) e

secundárias ou sociais (vergonha, culpa, ciúme, orgulho) responsáveis pela identificação da afeição dos

indivíduos pelos objectos e situações com as quais se defronta. Trata-se de uma sensação visceral que ajuda a

reduzir drasticamente o número de opções. Sem saber aquilo que lhe agrada ou desagrada a pessoa não pode

decidir qual a atitude correcta a ser tomada. O marcador somático vem a ser o operar da nossa cognição que

constrói representações do mundo e as manipula. Raciocinar e decidir podem ser tarefas árduas quando estão

em causa a nossa vida pessoal e o contexto social imediato. Os instrumentos da racionalidade são frágeis e os

problemas sociais e pessoais são complexos e cheios de incertezas. (…) Pessoas com lesões pré-frontais

tomam as decisões como se as emoções pudessem ficar de fora.

Adaptado de: UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESAA SUPERAÇÃO DO DUALISMO CARTESIANO EM ANTÓNIO DAMÁSIO E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA AS CONCEPÇÕES E PRÁTICAS MÉDICAS OCIDENTAIS in

http://criticanarede.com/docs/damasio.pdf