antonadia borges

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  • Introduo

    No Distrito Federal encontramos com recorrncia, nas apreciaes de sensocomum a respeito da vida nas cidades que circundam Braslia, uma srie determos que pontuam parte significativa dos estudos sociolgicos sobre fen-menos polticos e/ou eleitorais. No raro, a vida de milhares de pessoas considerada apoltica, porque marcada pelo clientelismo. Sabemos bem que,ao menos nos textos considerados clssicos, termos como clientelismo, popu-lismo ou coronelismo eram tratados com extremo rigor, sendo invariavelmen-te referidos a fenmenos especficos, para os quais tais categorias encerra-vam um valor heurstico preciso (p.ex., Queiroz 1969; Leal 1949). A transposi-o ordinria desses termos para todo e qualquer contexto indica no apenasa impreciso terica daqueles que assim procedem, como descortina seu pre-conceito. Preconceito moral (moralista e moralizante) que no se desvinculado preconceito sociolgico caracterstico desse tipo de apreciao.

    Incomodada com essa retrica que tropea nas pedras pretensamenterelativistas espalhadas pelo caminho, procurei compreender como certosfatos sociais totais, por assim dizer como o Estado, o governo, a poltica,as eleies , eram vividos por pessoas que moravam na cidade do Recan-to das Emas. Neste artigo, proponho um confronto entre o conhecimentoproduzido etnograficamente e esse tipo de formulao calcada em antago-nismos morais ao analisar as implicaes dos sistemas cadastrais desenvol-vidos pelo governo local para hierarquizar a populao em uma escala demerecedores de um lote. As pessoas que se cadastram se envolvem com osfuncionrios do governo de forma dissonante: no se trata de uma relaoexclusivamente burocrtica ou personalista. De seus encontros resultam so-bretudo documentos, isto , registros grficos, provas materiais que tornampalpveis e presentes as alteraes na vida de ambos. Os papis que cada

    MANA 11(1):67-93, 2005

    SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA*

    Antondia Borges

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  • um traz consigo, de um lado e outro do guich, remontam as mudanassem fim por que todos passaram: funcionrios, governos e populao.

    A preocupao com o lote perpassa a vida local em todas as direes, fi-gurando tanto em conversas corriqueiras como nos programas de governoe, para alm dos sempre apontados usos eleitoreiros da poltica habitacio-nal ou dos acidentes biogrficos de uma famlia particular de migrantes, otrabalho etnogrfico conduzido por mim no Recanto das Emas entre os anosde 2000 e 2002 demonstra que a existncia desse conjunto de crenas com-partilhado encontra sua expresso mxima na categoria "Tempo de Bras-lia". Apenas nos derradeiros momentos da pesquisa pude compreender queesse conceito diz respeito no somente a uma passagem cronolgica dosanos vividos na capital federal, mas conformao de um hbito singular,notado sobretudo nos procedimentos dos moradores e funcionrios do go-verno no que tange distribuio de benefcios governamentais.

    Para demonstrar tal associao, faz-se necessria uma estrutura narrativaque recupere o processo de conhecimento etnogrfico. Por isso, inicialmente,apresentarei uma entrevista em que vemos explicitados os envolvimentos so-ciais obrigatrios que marcam a vida dos moradores da cidade. Logo em se-guida, procuro analisar um conjunto de decretos, promulgados por sucessi-vos e diferentes governos locais, referente regulamentao da distribuiode lotes para a chamada populao de baixa renda. Essas leis, localizadas nombito do que poderamos nomear como engenharia social, dizem respeitos equaes matemticas utilizadas para se calcular o mrito de algum quepleiteia um lote junto ao governo. Este ltimo material analisado, de qualida-de distinta, documental, compreendido, todavia, mediante a mesma postu-ra cognitiva etnogrfica que torna a entrevista inteligvel.

    A partir de dois objetos aparentemente distintos (uma conversa e um con-junto de documentos), apresento uma anlise do comprometimento coletivo,amplamente espraiado entre os moradores do Recanto das Emas, com umlugar para morar. Esses smbolos que trago tona s podem ser compre-endidos em consonncia com os demais entendimentos sobre a vida no Re-canto (Borges 2003). Entre a entrevista com Dona Maria e Seu Vitrio e asfrmulas, h um elo preciso a noo de "Tempo de Braslia" por meio daqual experincias sociais de ordens absolutamente diversas puderam sersintetizadas durante o perodo de trabalho de campo nessa cidade.

    Dona Maria: voc no quer entrevistar a gente?

    Encontrei-as ao final da tarde. No meio da rua empoeirada. As duas mu-

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  • lheres e eu vnhamos de nosso dia de trabalho. Elas eram diaristas emmanses, mas naquele dia tinham visitado casas no prprio Recanto, ondefaziam leituras da Bblia e conversavam com os mais necessitados. Meutrabalho tambm consistia em sair pelo Recanto das Emas, batendo de por-ta em porta. Fazia isso diariamente, sobretudo, porque as pessoas comquem eu morava se mostravam incomodadas e ansiosas quando eu demo-rava a sair de casa pela manh, preocupadas com o bom andamento de mi-nha pesquisa. Afinal, eu estava ali fazendo um estudo e por isso temiamque eu perdesse tempo ficando com elas, conversando apenas. Para lhesmostrar que eu tambm corria atrs, vez por outra partia em busca de umaentrevista. Passados dois anos de contato constante com os moradores dacidade, j ao fim do trabalho, comecei a entrevistar alguns deles. Essas en-trevistas, curiosamente, ocorreram apenas depois de eu j ter travado umsem-nmero de conversas. Naquela tarde no foi diferente. Dona Mariainterpelou-me: voc no quer entrevistar a gente?

    Anteriormente, sem muito comprometimento, eu havia combinado defazer isso. Dentro do esprito jocoso que costumava pontuar as conversas eos espritos locais, fui repreendida porque, a exemplo de alguns polticos epessoas falsas, apenas prometia e no cumpria. Como sempre, tentei argu-mentar que, para a parte mais importante do meu trabalho de pesquisa, asentrevistas no tinham tanta importncia. Intil insistir, habituados a res-ponder questionrios de todo o tipo para agentes do governo, os moradoresdo Recanto das Emas tinham aprendido a falar a linguagem das entrevis-tas. Era uma obrigao minha atentar para essa habilidade, e no ignor-lasimplesmente, considerando-a ilegtima.

    Forada a aproveitar o meu tempo segui com Lourdes caminhando at aoutra quadra, onde morava Dona Maria e seu marido Vitrio. A casa de al-venaria sem acabamento estava com as portas e janelas abertas. Esse tipode habitao, que no nem um barraco vulnervel, nem uma casa commuro e portes fechados, nos remete posio mediana, fixao relativa-mente estvel daquela famlia ao Recanto das Emas. Os barracos tendem aser o primeiro teto de quem chega ao local. Os que continuam vivendo embarracos, mesmo que em lote prprio, em geral, acabam vendendo suapropriedade para morar em um lugar mais distante, mais barato. J as sli-das casas de alvenaria, cercadas por grades altas, indicam o intento de fi-xar razes na nova cidade. Embora no seja uma garantia de permanncia,essas habitaes refletem um investimento nesse sentido. O casal que nosrecebia estava, portanto, flutuando entre esses dois plos.

    Seu Vitrio aproveitava que no tinha clientes em sua barbearia paradebulhar uns caroos de mamona que colhera nos arredores da cidade.

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  • O Recanto das Emas, embora abrigue mais de cem mil moradores, umaregio administrativa recente, criada em 1993. Esse imenso assentamentourbano em meio ao cerrado, chamado por seus moradores de cidade, ficas margens do Distrito Federal, na fronteira com o estado de Gois. Nocampo aberto que circunda a cidade, ele colhera galhos de mamona e ago-ra retirava dos frutos as sementes que seriam torradas e esmagadas parase fazer leo. Para qu? Perguntei, mas ningum soube responder. "Dizemque bom". Sem dvida, bom para passar o tempo.

    O tempo para os moradores do Recanto das Emas uma questo de su-ma importncia na classificao de suas vidas e, em especial, de sua rela-o com o governo local. Perder ou ganhar tempo um tema de muitas con-versas, discusses e apreciaes sobre o mundo. No entanto, ganha um tomparticular quando o objeto ou experincia qual o tempo se refere diz res-peito a um bem pblico, a uma relao daqueles com o governo. Ganha-seo tempo perdido em uma fila no posto de sade, por exemplo, quando seconsegue uma consulta. Quando as fichas acabam na hora H, perde-se tem-po. Perde-se tempo tambm se, depois do exame, o mdico no descobrenada. Em suma, quando alguma coisa acontece como previsto ou desejado,o tempo foi ganho; quando as expectativas so frustradas, perde-se tempo.

    Nessas situaes ordinrias do cotidiano vemos referncias a um tem-po manipulvel, que ora se perde ora se ganha, mas que sobretudo exte-rior aos sujeitos. H, no entanto, alastrada pelo Recanto das Emas, umaconcepo de tempo distinta dessa primeira: o "Tempo de Braslia".

    O "Tempo de Braslia" envolve a todos visceralmente porque, ao transcor-rer, se inscreve nos indivduos, tornando-se parte deles prprios. O "Tempode Braslia" diz respeito, em grande medida, quilo que as pessoas so,porque se refere ao que cada uma viveu no Distrito Federal. Por meio dassituaes em que esse conceito empregado possvel compreender qualo sentido de uma srie ritualizada de atitudes que povoam o dia-a-dia des-sas pessoas, de tabus e evitaes que tm como objeto referencial o "Tempode Braslia".

    Em todo o Distrito Federal, milhares de indivduos dedicam-se a reco-lher provas materiais que demonstrem que viveram na capital federal aolongo de cinco anos ou mais. Eles consagram sua energia a essa tarefaporque por meio desse intervalo mnimo de tempo, os governos convencio-naram assegurar-se do mrito de todos aqueles desejosos de se tornarembeneficirios de seus projetos assistenciais. Dos benefcios que o governodo Distrito Federal distribui a quem lhe pede, isto , a chamada populaode baixa renda, aquele considerado de maior valor o lote. Este bem su-premo, que grande parte das pessoas procura de diferentes formas obter,

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  • s oferecido queles que comprovem seu "Tempo de Braslia". Por essa ra-zo, neste caso, o "Tempo de Braslia" percebido como um atributo pessoal.

    Quem deseja inscrever-se para receber um lote do governo deve, obriga-toriamente, preencher esse requisito bsico. A esta exigncia, condio sinequa non, se acrescenta ainda uma srie de informaes a respeito do indiv-duo e de sua famlia. Depois de cadastrado, seu nome passa a figurar emuma lista, em que se vem hierarquizados todos aqueles que aguardam obenefcio do governo. Embora a espera seja o modo legal para se conseguirum lote, h outras formas para a populao tentar acelerar o moroso proces-so burocrtico. Um desses recursos a invaso de terras pblicas (Borges2000), isto , a ocupao de espaos interditos, pblicos ou privados, que vi-sam a remoo seguida de assentamento (embora isto se d raramente, sen-do mais comum a investida militar violenta dos agentes de vigilncia do so-lo sobre os barracos erguidos nessas condies). O outro, o aumento do"Tempo de Braslia", neste caso, dos pontos necessrios contemplao.

    A lista oficial na qual se inscrevem os que aguardam estrutura-se median-te o clculo das qualidades ou "especificidades sociais" do futuro favorecido.Os lotes e todos os outros benefcios devem ser ofertados quelas pessoas queobtiverem mais pontos, que encabearem a lista. Enquanto espera por essedia de contemplao, quem sonha com um lote pode ocupar um espao nobarraco de um familiar ou amigo, construir um barraco no lote de um familiarou amigo, alugar um quarto ou um barraco no lote em que mora tambm o lo-cador ou alugar uma casa que seja a nica sobre um mesmo lote.

    Seu Vitrio e Dona Maria anteriormente moravam em uma regio de ch-caras. Nesse local, alm de tomar conta do stio de um conhecido, eles manti-nham uma vendinha. Dona Maria e Seu Vitrio no estavam em uma invaso,no pagavam aluguel e tambm no viviam com parentes (casos mais comunsno Recanto das Emas), mas como agregados rurais na regio do entorno, ouseja, em um lugarejo que fica no estado de Gois, mas que faz limite com oDistrito Federal1. Por isso, seu caso oferece uma outra modalidade de espera ede conquista do lote, razoavelmente distinta das demais.

    Os trechos que agora se seguem se referem ao final de uma longa con-versa, entre tantas outras. Depois de muita prosa, chegamos ao que em ge-ral o pice, ou ao menos um topos freqente no Recanto das Emas: a sin-gularidade da vinda de cada um para a cidade.

    Antondia: E como que vocs conseguiram esse lote aqui?

    Seu Vitrio: Ela [a esposa] fez a inscrio em Brazlndia.

    Antondia: Como que foi a inscrio, dona Maria?

    Dona Maria: A inscrio foi assim: eu sempre ia a Brazlndia porque ns t-

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  • nhamos boteco, e eu tinha que ir l pra comprar pinga... sempre ia buscar al-

    guma coisa pra suprir a vendinha. Tinha um guarda, nem lembro o nome de-

    le, era o guarda do CDS [Centro de Desenvolvimento Social]. Sempre ns a-

    mos no nibus juntos... Eu saa da minha casa e tinha de andar 40 minutos

    na estrada de terra pra pegar o nibus pra conseguir chegar a Brazlndia...

    coincidia de eu ir com ele... Um dia eu ia passando na rua e ele chamou:

    dona Maria, dona Maria!... Fui l ver o que ele queria. O que foi seu Z? Ele

    falou assim: Olha, amanh vai comear a inscrio de lote, vem aqui pra se-

    nhora pegar a senha e pode vir bem cedo porque vai amontoar de gente.

    No relato de Dona Maria, vemos o guarda como um mensageiro, cujo sinalmarcou o incio de uma real peregrinao dessa senhora em busca do seu lote.

    Dona Maria: Cheguei em casa falei [para o marido]. E ele: Voc vai? Eu tenho

    a minha inscrio, mas nunca saiu nada mesmo.

    A eu levantei, fui no primeiro nibus que tinha, cinco horas da manh. Fui a

    primeira. Cheguei l, fiz a inscrio. Depois, passou uns tempos: tem que reno-

    var a inscrio [i.e. recadastrar].

    Seu Vitrio fizera sua inscrio para ganhar um lote h muitos anos,"mas", para ele, "nunca saiu nada". Muito provavelmente, Seu Vitrio jamaistivesse conseguido um lote. O mesmo critrio que fazia Seu Vitrio despen-car na classificao do governo, alaria Dona Maria condio de benefici-ria: uma mulher solteira, me de alguns filhos, com todos os seus documen-tos transferidos para o Distrito Federal e com meios de comprovar o seu"Tempo de Braslia" rene em si as condies ideais para "merecer" um lote.

    Dona Maria: Conversei com a mulher [do CDS] e ela me disse: Se eu fosse

    voc, eu tirava o seu cnjuge. Voc tira o cnjuge e deixa s as crianas, por-

    que fica mais fcil pra voc ganhar. Eu fui e eliminei ele. Tirei ele fora... quer

    dizer, eu fiquei sendo me solteira e sem marido...

    Dona Maria no era ntima da funcionria do CDS (rgo responsvel pe-la triagem e cadastro das famlias). No foi em troca de qualquer favor que afuncionria do CDS alertou Dona Maria para uma das variveis que compu-nham a equao de pontuao dos inscritos: "nvel salarial, nmero de de-pendentes, tempo de residncia em Braslia, condio de ocupao da mora-dia, idade do cadastrado e, por fim, especificidades sociais" (Gonalves1998:101). Assim como o guarda do CDS, ela se permitiu interpelar Dona Ma-ria de uma forma um tanto alheia ao procedimento burocrtico ideal, "formal-

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  • mente igual para todos" (Weber 1993:180-181) ou conduta patrimonialistahabitualmente associada ao funcionrio pblico no Brasil2.

    No havia nenhum lao forte entre eles que personalizasse as "dicas"que ambos lhe deram (a inscrio para o lote, a eliminao do cnjuge) eque a obrigasse a uma dvida para com os mesmos. Em cada encontro fu-gaz, ambos se permitiram aconselh-la formas por eles conhecidas de semanejar "especificidades sociais".

    As "especificidades sociais", se devidamente conduzidas, podem acele-rar muito o processo de algum que aguarda ser contemplado com um lote.No Recanto das Emas, em tom de pilhria, de admirao ou mesmo de revol-ta, pipocam, aqui e ali, nas conversas do dia-a-dia, comentrios sobre algumque conseguiu reunir provas que "felizmente" o ajudaram a ganhar um loteou, quando a pessoa contemplada no benquista no crculo de conversas,como esta, mentindo, pde ter alcanado to facilmente um benefcio que de-veria ser concedido a pessoas verdadeiramente necessitadas e com "Tempode Braslia"3. Embora a utilizao de subterfgios vrios possa ser considera-da legtima no processo de conquista de um lote, certas pessoas so despre-zadas por suas "mentiras", ao passo que outras envolvidas com procedimen-tos igualmente ilegais (como a invaso de terras ou a adulterao de docu-mentos) so admiradas por seu "conhecimento". A desqualificao, nesses ca-sos, no se deve ao repdio universal pela ilegalidade ou pela mentira, masao pouco prestgio social de quem recebeu o lote4.

    Ao comparecer bem cedo para pegar a senha, Dona Maria foi lenta-mente incorporando esse novo conjunto de crenas. Atenta s sugestesrecebidas, ela comparecia a todos os recadastramentos, reiterando o quefoi se transformando em seu principal propsito, ganhar um lote:

    Dona Maria: Sempre que era pra renovar eu corria atrs e renovava. Um dia,

    vim dar uma passeada aqui na Samambaia, porque tem uma irm dele [do

    marido] que mora aqui. Ela falou assim: Maria da Glria do cu, eles esto

    transferindo lote, fazendo transferncia de inscrio ou pra Santa Maria, ou pra

    Samambaia, ou pro Recanto das Emas, que eu nem sei onde . Eu respondi: o

    qu? Eu nem fiquei direito na casa dela.

    A notcia que Dona Maria recebeu de sua cunhada ("eles esto transfe-rindo lote", isto , o governo est distribuindo lotes, assentando inscritos)chega aos ouvidos dos moradores do Recanto das Emas de diversas for-mas. A mais corriqueira, no entanto, alm do jornal, o rdio, que todas asmanhs ecoa nos lares da cidade anunciando os feitos do governo e as pr-ximas inauguraes de obras a serem "prestigiadas" pelo ento governador

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  • Joaquim Roriz. Seja nas solenidades, seja em eventos cotidianos (como afila para a entrega do po e do leite, a fila no banco para o recebimento deum benefcio com carto magntico ou a fila para pedir algo ao adminis-trador regional), agentes do governo tratam de transmitir informaes aesse respeito aos presentes, os quais, por sua vez, se encarregam de propa-lar pelo Recanto as ltimas notcias sobre os lotes.

    Dona Maria: No outro dia cedo, eu me mandei pra casa, falei pra ele [para o

    marido], e ele: Voc vai de novo? No outro dia de manh, 5 horas da manh,

    corri l, na antiga SHIS, que agora IDHAB. Quando cheguei l 8 horas

    abriu a porta , o guarda perguntou: O que a senhora deseja? Eu falei: vim pra

    fazer transferncia de inscrio. A ele disse: s 2 horas da tarde. Eu respondi:

    o qu? Eu com as minsculas moedinhas na mo, porque o dinheiro pra pagar

    a passagem era de vale-transporte. Eu acho que eu no tinha 20 centavos na

    mo. Eu pensei: agora lascou, vou morrer de fome. Rodei, ento, l na W3 sul

    [avenida do Plano Piloto onde fica a Secretaria de Habitao], e achei uma pa-

    daria onde comprei um po e fiquei l, de castigo, at as 2 horas da tarde.

    Cabe destacar que, a cada inflexo nos procedimentos relativos ob-teno de um benefcio, se faz necessrio o contato pessoal entre quem odemanda e os agentes do governo. preciso que ambos se encontrem,sendo que os demandantes devem portar os documentos comprobatriosdo que declaram para que os funcionrios lhe entreguem um papel domesmo teor. Por isso, Dona Maria deslocava-se para o Plano Piloto, pois no Setor Comercial Sul, "l na W3 sul", que se localiza o centro das deci-ses, a "antiga SHIS, que agora IDHAB".

    Quando o governo modifica as regras, o cadastrado deve, mostrando-seatento, comparecer aos rgos competentes para se submeter aos novosparmetros. Dona Maria revela-se familiarizada com tais alteraes, a pon-to de se lembrar da antiga SHIS (Sociedade de Habitaes de InteresseSocial Ltda.), que foi substituda pelo Instituto de Desenvolvimento Habi-tacional do Distrito Federal (IDHAB) no final do mandato de Joaquim Ro-riz como primeiro governador eleito do Distrito Federal (cf. Lei n 804, de 8de dezembro de 1994). Esta mudana se deu no mesmo perodo em queDona Maria se dedicava a garantir o recebimento de um lote.

    Dona Maria: A foi amontoando gente, foi amontoando gente. Quando che-

    gou a minha vez, eu falei pra moa: tem pra Samambaia? Intentando que eu

    vou ficar perto da minha cunhada. Samambaia no tem mais no. Mas tem

    Recanto das Emas e Santa Maria. Eu ficava cismada com Santa Maria. Santa

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  • Maria no quero no.

    Antondia: Por que?

    Dona Maria: No sei, eu no queria Santa Maria.

    Seu Vitrio: E ela no sabia do Recanto das Emas.

    [...]

    Dona Maria: Eu nem conhecia o Recanto, menina.

    Seu Vitrio: Eu falei pra ela: Olha, voc faz essa transferncia pra Santa Ma-

    ria, que seja pra onde for, mas faz a transferncia. Se voc chegar aqui sem es-

    sa transferncia, ns vamos brigar. E ela: Eu, pra Santa Maria, eu no quero...

    Antondia: O senhor queria pra Santa Maria?

    Seu Vitrio: Eu, uai, eu queria que fosse pra qualquer lugar.

    Dona Maria: Ah, voc pensou que eu no ia querer?!

    Seu Vitrio: Voc j imaginou se ela no fizesse, se fosse pra Santa Maria e

    ela no fizesse? Quando ela chegou em casa e disse: eu consegui fazer pro

    Recanto das Emas, no sei onde . Eu falei: Graas a Deus.

    Dona Maria: E voc sabia onde era?

    Seu Vitrio: No...

    Ao descreverem esse rduo dia, Dona Maria e Seu Vitrio debatem sobrea "escolha" da cidade para onde transferiram sua inscrio, sem revelaremno entanto a que cidade sua inscrio inicial os destinava. Era incio dosanos 90 e a "moa" do IDHAB apresentou-lhes o nome das cidades ento re-cm-criadas pelo programa de assentamento para populao de baixa ren-da. Dona Maria "cismou" com Santa Maria e transferiu sua inscrio para oRecanto das Emas. No relato do casal, essa deciso toma as feies de umaescolha, uma espcie de idiossincrasia a que se permitiram diante de umcontexto pleno de constrangimentos exteriores5.

    Dona Maria: A, toda vez que falavam: Roriz vai entregar lote no Recanto, eu

    me deslocava de pra l de Brazlndia e vinha. Tirava uma xerox da inscrio,

    entregava, dava um jeitinho, punha na mo da secretria. Acho que eles en-

    joaram de tanto eu ir SHIS e correr atrs deles. Acho que eles enjoaram: No,

    d logo a essa mulher, pra ficar livre dela logo.

    preciso perceber que Dona Maria apenas havia registrado em suainscrio o desejo de receber do governo um lote na cidade do Recantodas Emas. Durante alguns anos mais ela precisou manter-se atenta. Suaassiduidade a colocava, em algumas ocasies, na platia de comcios do gover-nador, quando ouvia o mesmo dizer que iria entregar mais lotes. Como DonaMaria, centenas de pessoas compareciam a essas solenidades e de l saam

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    confortadas pelas palavras de Joaquim Roriz, que sempre expressava seucomprometimento pessoal com a distribuio de lotes para a populao6.Este alento a tornava mais confiante na espera.

    Se Dona Maria via e ouvia o governador, para garantir que sua urgncia se-ria percebida, ela "tirava uma xerox da inscrio, entregava, dava um jeitinho,punha na mo da secretria". Este procedimento bastante corriqueiro. Pol-ticos e funcionrios do governo do Distrito Federal costumam ser abordadospor pessoas que lhes entregam esses tais papis7. Por vezes sem timbre al-gum, escritos caneta, frutos de cadastramentos constantes, tais pedacinhosde papel so carregados como amuletos, espcie de prova sagrada da parti-cipao de quem os porta no circuito de dons em que esto envolvidos o go-verno e a populao local.

    Neles constam o nome e o nmero de inscrio, ou seja, a senha que dacesso ao cadastro oficial. A esperana de quem entrega o papel que o po-ltico ou funcionrio aprecie a contagem dos pontos e, se possvel, ajude oinscrito a subir de posio no ranking. Essa longa espera pode um dia termi-nar com a melhor de todas as notcias: a contemplao com um lote8.

    Antondia: A um dia saiu o seu nome...

    Dona Maria: No que saiu o nome no jornal! Mais ou menos eu j sabia.

    Uma vizinha l falou assim: Como que c chama? Eu chamo Maria da Glria

    Alves do Nascimento. Ela falou: No, Maria da Glria Alves (lembra, eu no

    era casada...). Meu pai falou que saiu a inscrio de lote, tem tanta Maria da

    Glria. Eu pensei ento: Tenho f em Deus que um meu. Fiquei torcendo sem

    saber. Olha que eu j me arrepio de nervoso [mostra o brao arrepiado]. Meu

    Jesus vai abenoar que o meu lote t l. E nisso tem uma pessoa que at

    compadre da gente to assim desinteressada eu fiz tudo pra ele fazer a

    inscrio e ele no quis , que diz que lote saa s pra rico. Eu falei: Eu te-

    nho f em Deus, eu no sou rica, mas vou conseguir esse lote... Eu fui naquela

    expectativa: Eu no sei no, mas eu acho que o meu nome t nesse jornal.

    Seu Vitrio: Eu comprei o jornal.

    [...]

    Dona Maria: Quando ele chegou l em casa, eu fui abrir a porta e lembrei: Meu

    Deus. Ele falou: , danada! Eu respondi: O que foi? O lote saiu! A, eu chorei. Cho-

    rei de alegria: No acredito. E peguei meu marido e sa nas carreiras, no escuro,

    sa atropelando os paus, corri l nesse compadre meu e falei assim: Compadre, eu

    no te falei? Que o lote no sai s pra rico? Eu sou pobre e ganhei, graas a Deus.

    No relato de Dona Maria, parte fundamental da alegria de ter recebidoo lote revelou-se na possibilidade de correr l no seu compadre desinteres-

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    sado e declarar: "Compadre, eu no te falei? Que o lote no sai s pra rico?".Ao contrrio do que supunha seu compadre, ela tinha razo. Sua espera notinha sido v, e, a partir daquele momento, ela mesma poderia propagar oprprio sistema de crenas em que se envolveu. Laureada com o lote, DonaMaria correu at a casa de seu compadre e demonstrou o acerto de sua apos-ta, o enraizamento bem-sucedido de uma crena social da qual ele duvidava.

    Dona Maria: E voltei correndo. No outro dia j vim, no, no outro dia no.

    Eles marcaram uma semana depois pra vir ver, sabe? Receber a inscrio, re-

    ceber o papel, a documentao, para ter a posse.

    Seu Vitrio: No dia 14 de abril saiu no jornal, no dia 21 ns viemos aqui pra

    ver o lote.

    Antondia: Em que dia vocs se mudaram pro lote?

    Dona Maria: No dia 21 a gente j veio de mudana. Pagamos, fizemos um fre-

    te de uma Braslia.

    Antondia: Dia 21. Vocs ficaram aqui, construram...

    Seu Vitrio: Dia 21 ns samos de l e eu vim pra c. Capinando e morando

    por aqui, mas a mudana mesmo s depois.

    Dona Maria: E o medo? De algum vir e entrar no lote? Porque tava uma

    invaso desgraada.

    Depois da publicao de seu nome (seu nome de solteira), no tardoupara que Dona Maria recebesse "o papel, a documentao, pra ter pos-se"9. O lote que receberam contemplou a vontade de ambos. Hoje a casa fi-ca em uma rua e, virando a esquina, entra-se na barbearia de Seu Vitrio.Em nossa conversa, Seu Vitrio lembrou que nos primeiros meses em queesteve acampado no seu lote, capinou e fez fossa para os vizinhos. A mu-dana resumiu-se, inicialmente, sua prpria presena fsica no lote.Com o tempo essa atividade se esgotou e com os "500 cruzeiros" que con-seguiu ganhar comprou "pinga, uns doces e seis copos". Onde nada ha-via, com a ocupao dos lotes, com os primeiros biscates, lhe foi possveluma certa acumulao primitiva. Aos poucos comearam a aparecer ou-tros recm-chegados, os primeiros fregueses para a sua nova "vendinha".A pinga ia acabando e ele "corria pra comprar mais". Depois disso, cortoucabelo: "embaixo de qualquer sombra a, eu cortava cabelo". Havia vizi-nhos que ao se estabelecerem por l, como ele, passaram a precisar deseus servios de barbeiro. Seu Vitrio ficou sozinho at acreditar que po-deria trazer seus filhos e esposa para o Recanto das Emas. Enquantoaguardava esse dia chegar os visitava em "pra l de Brazlndia", no finalde semana, "de ps".

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    O desejo de Dona Maria, quando conversamos, era terminar sua casa:"Deus permita que eu tenha uma casa boa, bonita, com as minhas coisasbem bonitinhas. Porque o meu sonho ter as coisas bem bonitinhas". Estadeclarao alude aspirao de possuir um conjunto de crenas coeso,que jamais pudesse ou voltasse a ser abalado por dvidas alheias, exteriores.Um desejo por certo irrealizvel que, ao mesmo tempo, o que sustenta econstitui a atual crena de Dona Maria e Seu Vitrio.

    Interregno

    A vida dos moradores do Recanto, como a deste casal, est repleta de ndicesque nos remetem s prticas governamentais nomeadas oficialmente como"poltica habitacional". Quando perguntadas sobre o lote, pessoas como Do-na Maria e Seu Vitrio nos respondem com uma verdadeira carta de nave-gao social. Suas crnicas servem para revelar no apenas a quem pergun-ta, mas tambm a quem responde, o itinerrio que se percorreu at se alcan-ar o "Tempo de Braslia" ou, de outro modo, como a areia desse "Tempode Braslia" escorreu e se acumulou no interior de cada um, como se cada in-divduo fosse uma ampulheta medindo a si prprio.

    A compreenso desse "mecanismo" por parte dos moradores do Recantodas Emas, como Dona Maria e Seu Vitrio, no de uma falcia post hoc10.Ao recuperar os passos de sua peregrinao em busca do lote, Dona Mariasublinha categorias e procedimentos que esto difundidos "horizontal" e"verticalmente" (se nos permitida essa analogia tridimensional do espaosocial), no apenas entre os moradores do Recanto das Emas, mas tambmentre os agentes do governo, que os transmitem s pessoas comuns.

    Os eventos rememorados com nfase no esto concatenados de umacerta maneira por acaso. A forma como Dona Maria dispe os fatos passadosobedece a um conjunto de pressupostos conhecido por todos at mesmopor aqueles que se recusam a trilhar esse caminho (como seu "compadre de-sinteressado"). No se trata de uma narrativa sui generis ou uma saga parti-cular, mas de uma objetivao relativa a uma prtica comum a todos os mo-radores do Recanto das Emas com quem convivi. Prtica esta marcada poruma srie de procedimentos obrigatrios: as madrugadas nas filas, o cadas-tramento, a atualizao peridica do cadastro, o conhecimento gradual dasvariveis que "pesam" na frmula que calcula a pontuao do candidato, aadequao entre os dados de que se dispe e aqueles que devem serapresentados ao governo, a procura de documentos que registrem a veraci-dade do que declarado, a angustiante espera pela contemplao, interca-

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    lada por frustradas espiadelas no Dirio Oficial e nos jornais, e, enfim, onome na lista a emoo inenarrvel dessa experincia, a ocupao do lo-te, a construo de um barraco e, mais uma vez, a espera pela escritura.

    As frmulas

    Braslia, como sabemos, trata-se de uma inveno demirgica do governo deJuscelino Kubitschek. Naquela ocasio, o governo, depois de desapropriar, lo-teou e vendeu as terras do atual Distrito Federal11. Para faz-lo, especialmenteem se tratando dos loteamentos populares, foram sendo estabelecidos critrioscapazes de definir os potenciais beneficirios dessa ddiva estatal. Em 1958,por exemplo, o servio social da Novacap indicava se os trabalhadores desejo-sos de adquirir um lote na primeira cidade-satlite (Taguatinga) estavam "ha-bilitados" para pagar as futuras prestaes (Oliveira 1987:133), concedendoprioridade aos pedidos de trabalhadores candangos, isto , empregados naconstruo civil (Ribeiro 1980).

    J nesses primrdios, para alm da mera solvncia financeira, critriosenvolvendo legitimidade e precedncia determinavam quem seriam osprimeiros agraciados com as polticas habitacionais do governo. Quem noestivesse em Braslia trabalhando em empregos formais (p.ex. ligados construo civil) no poderia comprar um lote do governo. Banidas dessasprimeiras vendas de lotes, inmeras famlias capitanearam as primeirasinvases de terras no Distrito Federal.

    Esse mecanismo incidia de modo semelhante na concesso de benefciosimobilirios do governo para funcionrios pblicos que desejassem viver emBraslia. Em 1961, a Novacap calculava, por exemplo, quanto um funcionriomerecia tornar-se inquilino de um imvel do governo no Plano Piloto a partirdo tempo dedicado sua funo (ou seja, ao Estado), do salrio que recebia,do nmero de dependentes a ele ligados e do cargo que exercia:

    [...] cada perodo de 4 meses de exerccio efetivo 01 ponto ... salrio at Cr$

    15.000 01 ponto; de Cr$ 15.000 a Cr$ 25.000 02 pontos; acima de Cr$

    25.000 03 pontos ... cada dependente 1/5 ponto ... chefe de departamento

    e chefe de gabinete 03 pontos; chefe de diviso e de gabinete de diretor

    02 pontos; chefe de servios e de seo 01 ponto (Bertone 1987:55).

    Os invasores, ignorados inicialmente por no se tratarem nem de pio-neiros, nem de candangos12, passaram gradualmente a ser tambm alvoda ateno classificatria governamental13. Inmeros foram os clculos

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    propostos por engenheiros sociais para hierarquizar essa vasta parcela depessoas que vivia no limbo das invases. Aqueles que tivessem "Tempo deBraslia" e demonstrassem ser mais necessitados concorreriam pela distri-buio de lotes e de outros benefcios. A legitimidade classificatria estatalestabeleceu-se lentamente, por meio do uso de categorias reconhecidas lo-calmente como definidoras de mritos, dentre as quais se destacava o tem-po vivido na nova capital.

    A atribuio de pontos a cada conjunto de atributos (anos vividos emBraslia, situao socioeconmica etc.) foi sendo aprimorada at tornar-setrivial a avaliao desse mrito por intermdio de equaes. Por meio defrmulas, passou-se a calcular o quantum de merecimento dos inscritosnos diversos programas assistenciais do governo, prtica esta que se tor-nou corrente.

    O poder estatal em questo no se restringia apenas doao de lotes,mas classificao da populao entre mais e menos apta a se tornar benefi-ciria. Quem se relacionava com o governo por meio dessas modalidades deassistncia tinha, como vimos no caso de dona Maria, seu nome estampadoem listas. O recebimento do lote dependia ao menos em tese da coloca-o obtida na lista, e essa ordem, por sua vez, era estabelecida mediante asoma dos pontos alcanados por cada indivduo.

    De todos os componentes da equao, ao tempo de residncia no DistritoFederal era dado um grande destaque e valor, como se a vida na capital un-gisse certas pessoas com uma qualidade especial, expressa por meio da ca-tegoria "Tempo de Braslia". Quem no nasceu na capital federal, ou seja,quem no "filho de Braslia", precisa passar necessariamente por cincoanos de provao para tornar-se digno dos diversos benefcios ofertados pelogoverno local. Esse tempo mnimo estabelece uma hierarquia a que pratica-mente toda a populao "de baixa renda" se submete de igual maneira.

    Um sistema de classificao que procura ordenar a populao a partirde um conjunto de mritos (estabelecidos e controlados pelo governo) fazsentido especialmente quando aquilo que o governo oferece no pode serdoado de forma universal e equnime a todos. Cada frmula criada, comoveremos, dispe de um conjunto de variveis que se pretendem as maisprecisas para calcular o grau de merecimento da populao em face dosbens (raros) a ela disponibilizados pelo governo. A razo de ser dessas fr-mulas (hierarquizar os inscritos diante de um bem limitado) continuou amesma ao longo dos anos, porm, seu contedo sofreu diversas alteraesdevido a mudanas nos juzos acerca do conjunto de mritos consideradosos mais reveladores de qualidades que destacariam alguns como merece-dores de ddivas que no podem ser universalmente ofertadas.

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA 81

    Por esse motivo, julgo importante acompanhar as modificaes maisbruscas dessas frmulas nos ltimos anos, bem como as categorias quepermanecem atuantes em todas elas, para percebermos quais so os atri-butos bsicos exigidos de todos os futuros beneficirios e quais so as qua-lidades que esclarecem as razes pelas quais o governo entra em contato ese mantm prximo de uma parcela, e no de toda a populao que de-manda ateno pblica no Distrito Federal.

    Primeira Frmula: o cadastro geral

    Uma legislao emblemtica, dedicada sistematizao de critrios capa-zes de tornar passveis de clculo a ancestralidade e a legitimidade de al-gum como merecedor de um lote doado pelo governo, remonta os idos dadcada de 80. No governo de Jos Aparecido de Oliveira foi decretado, nodia 5 de janeiro de 1986 (Decreto n 10.056), o cadastro geral de pretenden-tes moradia no Distrito Federal, que tomava o lugar do "antigo Sistema deInscries", inalterado durante todo o perodo de ditadura militar.

    Naquela ocasio, o rgo responsvel por essa matria era a SHIS (Se-cretaria de Habitao e Interesse Social). Para entrar na competio, qual-quer indivduo deveria preencher certos "requisitos bsicos": no ter sidoproprietrio de ou no ter imvel no Distrito Federal, ser maior de 21 anos,ter todos os seus documentos em dia, preencher os cadastros necessrios,cumprir os prazos estabelecidos e, condio sine qua non, "ser residente edomiciliado no Distrito Federal, comprovadamente, h mais de cincoanos". Esses cinco anos passaram, desde ento, a ser referidos, nos pr-prios documentos oficiais, como "Tempo de Braslia". J, quando concla-mado, o indivduo deveria "comprovar renda familiar mnima compatvelcom o encargo mensal". No mesmo decreto (n 10.056) exposta a frmulade classificao adotada:

    P = (a + 2b +c)d + 4e +8f

    onde,

    P = total de pontos obtidos pelo candidato14

    a = faixa etria do candidato (exposta em uma tabela)

    b = nmero de dependentes

    c = candidato com deficincia fsica

    d = idade mdia da famlia

    e = tempo de inscrio

    f = dependente invlido

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA82

    Tanto o nmero de membros da famlia quanto a idade dos mesmos spoderiam ser comprovados por meio de certides oficiais; tambm a even-tual deficincia fsica de um familiar deveria ser demonstrada com atestadomdico oficial. A partir desse decreto, a contemplao passou a ser comuni-cada ao candidato inscrito via edital pblico. Essa forma de proceder (pormeio de critrios padronizados a que se submeteriam todos os inscritos emum cadastro geral) se naturalizou lentamente como modo de documentar,ordenar e calcular eventos vividos em Braslia e, o que fundamental, tantopor parte dos agentes do governo quanto pelo lado da populao envolvida.

    Segunda Frmula: a renda

    Passada mais de uma dcada do governo de Jos Aparecido, em 3 de julhode 1997, o segundo governador eleito do Distrito Federal, Cristovam Buar-que, estabeleceu outra expresso para classificar os "candidatos aos pro-gramas de assentamento de populao de baixa renda":

    P = C + D + M +T +I +N + F + R

    Em quadros anexos ao decreto, eram exibidos quantos pontos se obteriapor deficincia fsica (C), pelo nmero de dependentes (D), pela condio demoradia (M), pela idade mdia (F) e renda da famlia (R), pelo tempo de per-manncia no Distrito Federal (T), pela idade (I) e naturalidade (N) do candi-dato. Caso "ocupasse uma sub-habitao", o candidato obtinha 100 pontos,ao passo que um candidato inquilino apenas 60 pontos. A tabela, que atri-bua pontos de modo inversamente proporcional renda familiar, variava demenos de 1 salrio mnimo a 10 salrios mnimos dentro desse intervalose encontrava a "populao de baixa renda"15. Quem "tivesse permanecido"h somente cinco anos (tempo mnimo necessrio inscrio) no Distrito Fe-deral no recebia ponto algum. No quadro onde se definem estes ltimospontos, o cume alcanado por quem demonstra viver h mais de 30 anosno Distrito Federal ou seja, 100 pontos para aqueles que desde 1957 esti-vessem em Braslia. O candidato "natural" do Distrito Federal recebia 100 eaqueles de "outras unidades da Federao", por sua vez, 20 pontos.

    Terceira Frmula: a lista limpa

    Vemos que as categorias bsicas permanecem intocadas, sendo o clculo

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA 83

    complexificado apenas pelo uso de tabelas anexas. Imerso na lgica localque considera o tempo vivido no Distrito Federal como um atributo quedistingue os moradores entre si, esse modelo indica o enraizamento dessascategorias fundamentais acionadas pelo governo para ordenar a popula-o. Como uma das ltimas realizaes daquele governo no mbito da po-ltica habitacional, em 6 de maro de 1998, foi institudo, por meio de umoutro decreto (n 19.074), o "Programa Morar Legal Lista Limpa"16.

    Em aluso explcita sujeira que polua o IDHAB e suas deliberaesat ento, foi formulada uma nova expresso de clculo classificadora dequem ansiava por um lote ou por uma casa "ofertada" pelo governo. A fr-mula destinava-se a hierarquizar os inscritos em uma lista que fosse, destafeita, "limpa". Nessa equao temos:

    P= 5000.IT + 3000.IR + 1500.IM + 500.IE

    onde,

    IT = ndice de tempo de residncia no Distrito Federal do inscrito

    IR = ndice de renda per capita do inscrito (sic)

    IM = ndice de nmero de membros da famlia

    IE = ndice de condio especial do inscrito (ou seja, se este tem mais de 60

    anos ou portador de deficincia).

    Esta frmula sinaliza uma importante guinada no padro de clculo dogoverno. Sem questionar a classificao em si, ou seja, a possibilidade dese ordenar a populao ansiosa por um benefcio, essa nova frmula reiteratal poder governamental, concedendo um peso ainda maior ao "tempo" docandidato em Braslia. O "tempo de residncia no Distrito Federal" aladoa fator determinante na corrida pelo benefcio (multiplicado por 5000).

    Quarta frmula: o ncleo familiar

    No ltimo governo de Joaquim Roriz (1999/2002), uma outra mudanaocorreu. Como forma de marcar as diferenas entre os governos, o IDHABfoi substitudo pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Ha-bitao (SEDUH). Sob a batuta de um novo governo e de um novo secreta-riado, no foi somente o rgo voltado para a habitao que mudou de nomee sigla; uma nova frmula tambm foi criada:

    P = Cnf + Ndf + Tdf + Ces + Min

    onde,

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA84

    Cnf = ao nmero de componentes do ncleo familiar. Numa tabela progressiva

    ficamos informados de que uma famlia com um membro recebe 100 pontos e

    uma com sete pessoas 3000 pontos, por exemplo.

    Ndf = aos componentes do ncleo familiar nascidos no Distrito Federal. Con-

    sultando a tabela, sabemos que uma famlia com sete membros nessa condi-

    o recebe 2400 pontos, por exemplo.

    Tdf = ao tempo de moradia no Distrito Federal; calculado de forma ainda mais

    complexa, atravs da multiplicao do nmero de dias (sic) por um fator dis-

    ponibilizado tambm em uma outra tabela progressiva.

    Ces = aos portadores de condies especiais, sendo que cada membro da fa-

    mlia considerado desta forma acrescenta 10 pontos a mais no clculo geral.

    Min = mdia aritmtica da idade dos componentes do ncleo familiar

    considerado.

    A nova frmula continuou recorrendo a fatores e a progresses ofereci-dos por tabelas anexas, de complicado uso para boa parte dos moradoresdo Recanto que conheci interessados em calcular seu "Tempo de Braslia".Esse procedimento se estabeleceu, assim, gradualmente, como natural pa-ra determinar a pontuao e a conseqente classificao dos candidatosem listas. Dificuldade essa que adensava ainda mais com as freqentes vi-sitas aos rgos competentes necessrias para a atualizao cadastral dosinscritos afinal, cada "mudana na vida", como o nascimento de um fi-lho, ou, por fim, a prpria passagem dos anos no Distrito Federal, reconfi-guravam as condies de disputa do candidato ao lhe acrescentar ou,eventualmente, subtrair "pontos".

    Esse desdobramento aparentemente mecnico da equao indica umasignificativa mudana na forma de compor a legitimidade ou o grau de mereci-mento a ser imputado ao futuro beneficirio do governo. A mera existncia deum ndice geral denuncia o alastramento de uma concepo segundo a qualtodos podem ser "calculados" a partir de um parmetro comum. Chama aateno nesta ltima frmula, ainda, a distino que se faz entre as pessoasnascidas no Distrito Federal e as que apenas viveram em Braslia. Pela pri-meira vez, vemos serem contemplados de forma diferenciada aqueles quenasceram no Distrito Federal. Embora a categoria pioneiros ou candangos te-nha surgido com Braslia, essa nova varivel nos remete s geraes que nas-ceram em Braslia, isto , em uma cidade j estabelecida17.

    Vemos desta feita o "ncleo familiar" como fornecedor das bases para oclculo e no apenas o inscrito, como na equao anterior.

    Nesse sentido, o conjunto de membros de uma famlia, com seu "Tempode Braslia" e suas agruras coletivas somadas, pode alar o candidato a um

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    lote, por exemplo, a uma posio mais avanada na lista de quem aguardaser contemplado. No entanto, para fornecer todas as informaes a respeitode cada membro da famlia ou do "ncleo familiar", exige-se do inscrito umcomprometimento ainda maior em reunir um conjunto de documentos com-probatrios autnticos. Os sacos plsticos ou as caixas de papelo plenos dedocumentos, to comuns no Recanto das Emas, simbolizam tanto o con-trole e a importncia que um certo indivduo tem para um grupo de pes-soas que o cerca sua famlia como o controle e a importncia que ogoverno tem para esse indivduo. Se o "ncleo familiar", procurando com-provar seu "Tempo de Braslia", ao dar mostras de sua unidade, cria essaunidade, tambm o governo, ao dar e exigir reiteradamente provas docu-mentais de sua relao com a populao, cria essa relao.

    O sentido das frmulas

    Alm desses decretos colhidos para ilustrar tal processo, muitos outros ti-veram lugar, acrescentando, aqui e ali, pequenas mudanas na legislaoe pari passu na conduta coletiva em relao a esse fenmeno. O que pre-tendo fixar, a partir das mudanas classificatrias promovidas pelo prpriogoverno, o efeito que essa legislao tem sobre a realidade local. Por umlado, tais transformaes so implementadas tendo como esteio alteraesnos "padres" de migrao, moradia e natalidade que se detectam via "pes-quisas" realizadas pelo prprio governo, por meio dos diversos cadastrospreenchidos pela populao e tambm pelos dados censitrios. Por outro, aprpria populao tem suas crenas e condutas (ou seja, seu hbito) forte-mente orientadas pela legislao e polticas pblicas locais como foipossvel perceber pelos percalos passados por Dona Maria.

    Ao recuperarmos algumas das equaes criadas pelo governo local,compreendemos gradualmente a que se refere cada parte dessas senten-as (ou seja, cada varivel) e por que as mesmas foram destacadas do re-pertrio classificatrio nativo para figurar em uma frmula mgica estatal,tornando-se logo em seguida categorias legais de referncia para a popu-lao. Esse movimento espiralado, que conduz o poder estatal ao encontrodo cotidiano da populao e vice-versa, indica a construo da gramatica-lidade dessa relao de troca em que se intercambia o tempo pelo espao,os anos vividos e sofridos em Braslia por um lote ou, em ltima instn-cia, por um lugar social.

    Portanto, menos que tomar as frmulas e os conceitos governamentais demaneira referencial, o que julgo revelador o sentido do processo histrico

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    ao qual essas mudanas aludem, ou seja, a alteraes nos hbitos tantodo governo, quanto da populao que sustentam essa classificao.

    Concluso

    Como vimos, o "Tempo de Braslia" no se refere apenas aos anos vividos nacapital, mas capacidade de ter suportado, ano aps ano, agruras de todaordem e, mais ainda, habilidade em comprovar esses dissabores por meiode documentos cujo emblema e garantia , por sua vez, um papel com o n-mero da inscrio que todos trazem consigo. Na conversa com Dona Maria eSeu Vitrio, vimos como as alteraes formais das regras burocrticas se re-plicam nas experincias sociais concretas dos indivduos que pleiteiam umlote ou outros benefcios do governo local. Trata-se de um modelo ritual detrocas entre as pessoas do governo e as pessoas do Recanto das Emas vivido cotidianamente por meio dessa distribuio de bens governamentaisque garantem a fixao da populao a lugares outrora inexistentes que,assim, vo sendo gradualmente transformados e compreendidos como espa-os controlados pelo Estado (Franco 1983).

    Alm de ser um conceito relativo a algo cronolgico, isto , "criao deintervalos na vida social" (Leach 1974:207), o "Tempo de Braslia" refere-se conformao daquilo que procurei chamar, inspirada em Charles Peirce,de comunidade de crena (Peirce 1992:149). Ao longo de cinco anos oumais, em vrios locais do Distrito Federal, milhares de pessoas aguardampor essa metamorfose social que lhes ungir com o "Tempo de Braslia", ne-cessrio ao recebimento de um lote. Nessa espera, a prpria crena na espe-ra conformada e com ela a aceitao coletiva de um hbito . Enquantoaguardam pelo dia em que tero "Tempo de Braslia", as razes dessa crenavo penetrando lenta e profundamente nos indivduos.

    Em uma invaso, ao lado de outros invasores, ou em um barraco, ao ladode outros barracos, enquanto esperam os sujeitos se vem espelhados emseus colegas e vizinhos. A espera de uns refora a dos outros e as dvidas queassomam tendem a ser espantadas para longe. Sem perceber, como DonaMaria, as pessoas passam a ter seu "Tempo de Braslia" quando aprendem amanipular as frmulas que o governo supe como emblemticas e fidedignasdo modo de vida da populao. Para outras tantas, porm, os anos corremsem que elas jamais tenham "Tempo de Braslia", sem que elas consigam seinserir nessa comunidade de crena. No que os primeiros se tratem de sujei-tos meramente alienados, manipulados por polticos. O diferencial de poder

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    existe e pende para o lado dos governantes. No entanto, como podemos com-preender a partir da experincia emblemtica de Dona Maria e seu marido,essa ligao dos polticos com quem vota neles no se justifica pela mera tro-ca de favores (rotineira ou espordica), mas pelo compartilhamento de umhbito, de um conjunto de crenas. dessa forma que se d o exerccio dopoder, no por um simples dom carismtico de Roriz ou de outro polticoqualquer, no pela ignorncia atvica de um povo cujo carter marcadopor relaes de subordinao a seus patres, mas pela gradual inculcao dalgica burocrtica dos governos no cotidiano de todos ns19.

    As inmeras frmulas, suas infindveis alteraes, exigem dos que de-mandam qualquer benefcio (considerado, paradoxalmente, pblico, mesmoque no oferecido de maneira universal e equnime) um envolvimentoconstante com os agentes do governo. Como ouvi certa vez no Recanto, no setrata de ser um seguidor cego de Roriz, mas de ser um adepto, ou seja, algumassduo, constantemente presente. por meio desse envolvimento visceralcom o governo que o Estado se faz presente e, literalmente, logicamenteindispensvel na vida das pessoas. No por causa de uma noo univer-salista, democrtica de direitos como gostariam alguns , mas por umanecessidade (scio-)lgica. No Recanto das Emas, depois de iniciado essevnculo, depois de inscrito, qualquer sujeito passa a pensar e a agir sobretu-do em relao ao governo.

    O "Tempo de Braslia" diz respeito preponderantemente profundidadee extenso desse envolvimento mtuo entre o governo e as pessoas. Indi-vidualmente, h muitos que duvidam da doao de lotes, da espera pelacontemplao. No entanto, essas dvidas no chegam a abalar a comunida-de de crena produzida pelo sem-nmero de aes dirias que pem em con-tato as pessoas comuns e os agentes do governo, os primeiros com suas vidasem mudana e os ltimos com as mais recentes exigncias, os mais novos cri-trios classificatrios do governo. Mais que um item de uma equao estabe-lecida por engenheiros sociais, o "Tempo de Braslia" seria ele prprio umafrmula sinttica derivada da vida neste lugar, caracterizada pela presenado governo no cotidiano de todos.

    Recebido em 16 de fevereiro de 2004

    Aprovado em 20 de janeiro de 2005

    Antondia Borges professora e pesquisadora PRODOC-CAPES no PP-GAS/MN/UFRJ. E-mail:

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    Notas

    * O presente artigo uma verso modificada de Borges (2004).

    1 Os moradores do entorno, no raro, pedem emprestado a algum prxi-

    mo, morador do Distrito Federal, um comprovante de residncia. Residir em

    Braslia, mesmo que de modo fictcio, facilita diversos trmites, sobretudo aque-

    les relativos obteno de benefcios pblicos. Da mesma forma, os polticos

    da capital nutrem um interesse especial por esses moradores do entorno. No

    Recanto das Emas corria um boato que um senador, proprietrio de uma cons-

    trutora, exigia que seus funcionrios tivessem um endereo e um ttulo eleitoral

    no Distrito Federal, mesmo que residissem, de fato, em alguma cidade de Gois,

    para poder votar nele.

    2 Candido dedica-se investigao da trajetria de "um burocrata imperial que

    saiu do nada" (2002:13) para demonstrar a heterogeneidade do que se nomeia funcio-

    nalismo pblico. A histria do Senhor Tolentino seria uma exceo regra amplamen-

    te aceita, que diz: "A nossa tradio administrativa provm da ibrica, na qual o cargo

    conservou o carter de prebenda. Tradio no fundo mais prxima das concepes

    orientais, que ligam o ato administrativo propina, do que da concepo alem de ins-

    pirao luterana, segundo a qual o servio pblico misso." (Candido 2002:90)

    3 No Recanto das Emas muito comum que sejam construdas duas ou trs resi-

    dncias em um mesmo lote. Nessas situaes, em geral, preciso que exista um acor-

    do sobre a diviso de tarifas de gua ou luz, por exemplo. Ou mesmo sobre a diviso

    das despesas com o material necessrio para que se faa um gato, uma gambiarra (li-

    gao clandestina). Este costuma ser um motivo para desavenas. As discusses tm

    como pice um momento de ameaa, que diz respeito veracidade das informaes

    que o oponente apresentou aos rgos do governo. Em um caso registrado na delegacia

    de polcia, uma mulher lembra-se de ter ameaado o vizinho inconveniente: "voc est

    aqui porque mentiroso, eu vou falar no IDHAB que voc mora sozinho, no tem nada

    de famlia, pra voc parar com esse abuso."

    4 Elias e Scotson interpretam de forma semelhante a dupla valncia da fofoca. Em

    "Winston Parva" o mexerico poderia ser bem-vindo, se a fofoca fosse conduzida por pes-

    soas com afinidades. Esta seria a chamada pride gossip. No entanto, quando grupos be-

    ligerantes lanavam mo de rumores, estes eram percebidos como recurso de difama-

    o, ou seja, blame gossip. A fofoca tinha, portanto, tanto "a funo de apoiar as pessoas

    aprovadas pela opinio dominante", quanto de "excluir e cortar relaes." (2000:125)

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA 89

    5 Um processo social aparentemente unvoco, quando descrito com categorias

    antagnicas, releva os paradoxos vividos pelos envolvidos. Entre os trabalhadores da

    cana pesquisados por Sigaud, eram acionadas duas justificaes para suas demisses:

    terem sido "botados para fora" ou terem sado por "gosto e vontade". Por meio de am-

    bas, dependendo do grau de assimetria em sua relao com o patro, o trabalhador po-

    deria expressar sua "ida para a rua" (1979:197, nfase no original).

    6 Em um dos comcios que eu prpria assisti, pude ouvir o governador declarar:

    "Eu gostaria de ter arranjado um lote muito grande para vocs. O Brasil o maior pas

    do mundo. No direito que cada um no tenha o seu pedacinho de cho."

    7 Papis, em um sentido lato, seriam considerados documentos tambm nesse con-

    texto (Peirano no prelo), a ponto de impressos de outras ordens, como notas fiscais, por

    exemplo, poderem servir como comprovante do tempo de fixao daquela pessoa capi-

    tal federal. Em outro mbito, relativo a invases de terra capitaneadas por camponeses,

    Hobsbawm retrata a importncia de se portar pequenos pedaos de papel indicativos do di-

    reito terra: "Possuir papelitos muito importante para a comunidade camponesa latino-

    americana. Reais ou forjados os mesmos so cuidados, preservados, escondidos de possveis

    ladres pois perd-los afetaria seus direitos de alguma forma, mesmo que no se possa dizer

    que a perda dos papelitos enfraqueceria seu sentido de existncia." (Hobsbawm 1974:125)

    8 A cada nova eleio com troca de governo h uma enorme alterao no quadro

    de funcionrios. Esta mudana tem um efeito contundente na vida daqueles que pe-

    regrinam pelos corredores com papis que os lancem classificao necessria para

    ganhar um lote ou daqueles que montam seus barracos em reas proibidas aguardan-

    do uma remoo seguida de assentamento. Quando a pessoa com quem se tratava,

    em quem se confiava, "desaparecia", tudo poderia recomear do zero. O papelzinho,

    nestes casos, representava a prova material de um elo que, no raro, alm de incuo

    poderia ser malvisto pelos recm-eleitos, j que simbolizava o governo anterior.

    9 "Apesar de no ter sido publicado, no decreto de criao do Programa [de

    Assentamento de Populao de Baixa Renda] foi estipulado o prazo de 3 (trs) dias

    para os favelados construrem seus barracos e o de 45 (quarenta e cinco) dias para

    os inquilinos [caso de Dona Maria] ocuparem seus lotes. Decorrido o prazo, desde

    que justificado, havia uma prorrogao e posteriormente a retomada dos lotes para

    serem redistribudos" (Gonalves 1998:101).

    10 "O evento inaugural a possibilidade de uma crnica e a crnica, embora

    possa no ser histria, fornece o pergaminho sobre o qual o histrico (e mesmo

    uma histria no narrativa) pode ser escrito." (Daniel 1996:50)

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA90

    11 "Desapropriadas as fazendas dentro das fronteiras do Distrito Federal, e passa-

    das as terras para o patrimnio da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capi-

    tal), passou o Estado, proprietrio fundirio, a lote-las e vend-las." (Oliveira 1987:130)

    12 Para uma interpretao dos significados dos termos "candango" e "pioneiro"

    ver, especialmente, Laraia (1996). Nos documentos oficiais, o pioneiro definido

    como aquele que "fixou residncia ou domiclio em Braslia at 1970".

    13 No primeiro governo de Joaquim Roriz (durante o regime militar, quando

    esses cargos eram ocupados por governadores indicados, ditos "binicos") foi de-

    cretado o "programa de assentamento de populao de baixa renda" (Decreto n

    11.476, de 9 de maro de 1989).

    14 No Recanto das Emas, a idia de ser candidato assim alastrada, para alm

    do universo dos polticos profissionais. As pessoas candidatam-se a um lote, a uma

    cesta bsica. Se bem colocadas no ranking, so eleitas. Uma senhora, cabo eleitoral

    de Joaquim Roriz, declarou ter sido "eleita para um emprego" quando aquele foi elei-

    to governador e ela indicada para um cargo comissionado.

    15 interessante notar que, ainda no governo de Cristovam Buarque, esse teto se

    elevou "A famlia de baixa renda, para efeito desta lei, aquela cuja soma dos ganhos

    de todos os seus integrantes no ultrapassa a doze salrios mnimos" (conforme a Lei

    n 2.130, de 12 de novembro de 1998) , indicando que um aumento no espectro dos

    provveis beneficirios no abarcava somente a populao de renda mais baixa.

    16 "O programa 'Braslia Legal', ao propor um legalismo exacerbado e reprimir, de

    forma violenta, os setores populares de ocuparem terras sem uso, acaba por beneficiar a

    populao mais rica que se apropria da terra e garante, por meio da lei e de seus advo-

    gados, o lucro fcil, enquanto o trabalhador removido pela polcia para localidades

    distantes ou simplesmente fica ao desabrigo" (Gouva 1999:269).

    17 Para uma discusso da categoria "filho do municpio" em outros contextos

    etnogrficos, ver Peirano (1986).

    18 "A crena [] um hbito da mente essencialmente persistente por algum

    tempo, e em grande parte (ao menos) inconsciente como outros hbitos (at encon-

    trar algo que a surpreenda e comece a dissolv-la) perfeitamente auto-satisfatria.

    A dvida [...] no um hbito, mas a privao de um hbito." (Peirce 1998:337).

    19 Guardando as devidas e importantes singularidades de cada caso, no se

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA 91

    trata de merca coincidncia que Strathern e outros percebam em outros mbitos

    (por vezes bastante prximos academia) um processo anlogo que nomeiam co-

    mo "culturas da auditoria" (audit cultures)

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  • SOBRE PESSOAS E VARIVEIS: ETNOGRAFIA DE UMA CRENA POLTICA 93

    Resumo

    No Distrito Federal brasileiro, a distribui-

    o de lotes feita pelo governo local inci-

    ta milhares de pessoas a se inscreverem

    em seus programas habitacionais. Para

    tal, cada sujeito fornece provas docu-

    mentais que sero classificadas de acor-

    do com as variveis que figuram em

    uma equao destinada a estabelecer o

    quantum de merecimento dos inscritos.

    Depois de devidamente quantificadas as

    pessoas so hierarquizadas. Mudanas

    nos governos implicam modificaes

    nas formas de clculo. Mudanas na vi-

    da das pessoas implicam alteraes na

    sua classificao. Neste artigo, procuro

    interrogar como essas vicissitudes de

    uma e outra parte se equilibram a partir

    de uma crena poltica a um s tempo

    comum e instvel.

    Palavras-chave Teoria Etnogrfica, Ri-

    tuais, Antropologia da Poltica

    Abstract

    In the Brazilian Federal District (Brasi-

    lia), the local government's distribution

    of lots encourages thousands of people

    to enlist on its housing programs. Appli-

    cants are required to provide documen-

    tary proofs; these are classified accord-

    ing to variables, which are then fed into

    an equation designed to calculate the

    'quantum' of worthiness of each appli-

    cant. After being quantified, each appli-

    cant is duly hierarchized. Changes in

    government mean alterations to the for-

    mulas used in this calculation, while

    changes in people's lives mean altera-

    tions to their classification. In this article,

    I explore how these vicissitudes on both

    sides balance out on the basis of a politi-

    cal belief which is at once shared and

    unstable.

    Key words Ethnographical Theory,Rituals, Anthropology of Politics

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