antologia - konstantinos kaváfis

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  • KONSTANTINOS KAVAFIS

    POEMAS ISIS BORGES B. DA FONSECA

  • 1. MURALHAS

    Sem considerao, sem piedade, sem pudor,

    Grandes e altas muralhas em torno de mim construram.

    E agora estou aqui e me desespero.

    Outra coisa no penso: este destino devora meu esprito;

    Porque muitas coisas l fora eu tinha que fazer.

    Ah! Quando construram as muralhas, como no dei ateno?

    Entretanto, jamais ouvi batidas ou rumores de pedreiros.

    Imperceptivelmente, encerraram-me fora do mundo.

    [1897]

    2. UM VELHO

    No interior do caf ruidoso,

    Inclinado sobre a mesa, est sentado um velho;

    Com um jornal sua frente, sem companhia.

    E no menosprezo da velhice miservel

    Pensa quo pouco fruiu dos anos

    Em que tinha a fora, o verbo e a beleza.

    Sabe que envelheceu muito; sente-o, observa-o.

    E entretanto o tempo em que era jovem se lhe afigura

    Como ontem. Que breve espao, que breve espao!

    E medita com a Prudncia o enganava;

    E como sempre confiava nela que loucura! A mentirosa que dizia: Amanh. Tens muito tempo.

    Lembra-se dos mpetos que reprimia; e quanta

    Alegria sacrificava. Cada oportunidade perdida

    Zomba agora de sua prudncia insensata.

    Mas por muito pensar e recordar, O velho atordoou-se. E adormece,

    Apoiado na mesa do caf.

    [1897]

    3. OS CAVALOS DE AQUILES

    Quando viram Ptroclo morto,

    que era to valente, e forte, e jovem,

    comearam os cavalos de Aquiles a chorar;

    sua natureza imortal se indignava

    por esta obra da morte que contemplava.

    Sacudiam suas cabeas e agitavam suas longas crinas,

    batiam no cho com as patas e lamentavam

    Ptroclo que reconheciam sem vida aniquilado uma carne agora ignbil seu esprito perdido

    indefeso sem alento restitudo da vida ao grande Nada.

  • Zeus viu as lgrimas dos imortais

    cavalos e afligiu-se. No matrimnio de Peleu, disse, eu no devia assim irrefletidamente agir;

    melhor que no vos tivssemos dado meus cavalos

    infelizes! Que procurveis l em baixo,

    na miservel humanidade, que o joguete do destino?

    Vs a quem nem a morte arma cilada, nem a velhice,

    efmeras desventuras vos torturam. Em seus tormentos

    vos envolveram os homens. Contudo, suas lgrimas pela eterna desventura da morte

    derramava os dois nobres animais.

    4. SPLICA

    O mar prendeu em suas profundezas um marinheiro. Sua me, ignorando-o, vai acender

    Diante da Virgem um alto crio

    para que ele volte logo, e favorvel lhe seja o tempo

    e fica sempre atenta ao vento.

    Mas enquanto ela ora e suplica,

    o cone, srio e compassivo, ouve,

    sabendo que no mais vir o filho que ela espera.

    [1898]

    5. VELAS

    Os dias futuros erguem-se diante de ns

    como uma srie de pequenas velas acesas pequenas velas douradas, quentes e vivas.

    Os dias passados ficam atrs,

    uma triste fileira de velas apagadas;

    as mais prximas ainda exalam fumaa,

    velas frias, derretidas e recurvadas.

    No quero v-las; entristece-me seu aspecto,

    e entristece-me lembrar seu primeiro claro.

    Adiante contemplo minhas elas acesas.

    No quero voltar-me para no ver, apavorado,

    com que rapidez a sombria fileira se alonga,

    com que rapidez se multiplicam as velas apagadas!

    [1899]

    6. O PRIMEIRO DEGRAU

    A Tecrito queixava-se

    um dia o jovem poeta umenes:

    H dois anos que escrevo e fiz um idlio somente.

    minha nica obra acabada.

    Ai de mim, alta, vejo-o,

    muito alta a escada da Poesia;

    e deste primeiro degrau em que estou

    jamais subirei, infeliz que sou.

  • Disse Tecrito: Essas palavras so inadequadas e so blasfmias.

    E se ests no primeiro degrau, deves

    estar orgulhoso e feliz.

    Aqui aonde chegaste no pouco;

    quanto fizeste, grande glria.

    E mesmo este primeiro degrau

    dista muito das pessoas comuns.

    Para que pises neste degrau

    preciso que sejas, de pleno direito,

    cidado na cidade das ideias.

    E naquela cidade difcil

    e raro que te inscrevam como cidado.

    Em sua gora encontras Legisladores

    aos quais no engana nenhum aventureiro.

    Aqui aonde chegaste no pouco;

    quanto fizeste, grande glria.

    [1899]

    7. CHE FECE IL GRAN RIFIUTO

    A alguns homens chega um dia

    em que devem o grande Sim ou o grande No

    dizer. Surge imediatamente aquele que tem

    pronto em seu ntimo o Sim, e dizendo-o

    prossegue na honra e em sua convico.

    Aquele que negou no se arrepende. Se lhe perguntassem de novo,

    no, diria outra vez. E contudo o acabrunha

    aquele no justo durante toda a sua vida.

    [1901]

    8. AS JANELAS

    Nestes compartimentos escuros onde passo

    dias opressivos , ando para c e para l

    a fim de achar as janelas quando se abrir uma janela, ser um consolo. Mas no se acham as janelas, ou no posso

    Encontr-las. E talvez seja melhor que no as encontre.

    Talvez seja a luz um novo martrio.

    Quem sabe que novas coisas ela mostrar.

    [1903]

    9. TERMPILAS

    Honra queles que, em sua vida,

    decidiram guardar as Termpilas,

    jamais se afastando do dever;

    justos e retos em todos os seus atos,

    entretanto, no sem piedade, tambm, e compaixo;

    generosos quando so ricos, e quando

    so pobres, por sua vez, moderadamente generosos;

    ainda socorrendo na medida do possvel;

  • sempre dizendo a verdade,

    mas sem dio para com o mentirosos.

    E maior honra merecem

    quando preveem (e muitos preveem)

    que Efialtes, enfim, aparecer

    e que os medos finalmente passaro.

    [1903]

    10. DESLEALDADE Assim, elogiando muitas coisas de Homero, esta, porm

    no elogiaremos nem o excerto de squilo, quandoTtis diz que Apolo, cantando em sua npcias,

    exaltava sua feliz descendncia, de vida isenta de doenas, e de longa durao.

    Aps ter dito que meu destino era absolutamente caro aos deuses,

    Entoou o pe, enchendo-me de nimo. E eu esperava que no fosse falsa

    a boca divina de Febo, de onde jorrava a arte divinatria.

    Mas ele, ele que cantava .. ........foi ele mesmo que matou meu filho. PLATO, POLTICA B

    Quando casavam Ttis com Peleu,

    levantou-se Apolo no magnfico festim

    do casamento, e felicitou os recm-casados

    pelo rebento que sairia de sua unio.

    Disse: No o tocar, jamais, nenhuma molstia e ter uma longa vida. Quando disse isso, Ttis muito se alegrou, porque as palavras

    de Apolo, que era versado em profecias,

    lhe pareceram garantia para seu filho.

    Enquanto Aquiles crescia e era

    sua beleza a glria da Tesslia,

    Ttis rememorava as palavras do deus.

    Mas, um dia, vieram ancios com notcias,

    e contaram a morte de Aquiles em Tria.

    E Ttis rasgava suas vestes de prpura,

    e arrancava de cima de si e lanava

    ao cho as pulseiras e os anis.

    E, em meio sua lamentao, lembrou-se do passado;

    e perguntou: Que fazia o sbio Apolo? Onde andava o poeta que nos festins

    magnificamente falava? Onde andava o profeta

    quando matavam o filho dela em tenra juventude? E os ancios responderam-lhe que Apolo

    em pessoa tinha descido a Tria,

    e com os troianos matara Aquiles.

    [1904]

    11. ESPERANDO OS BRBAROS

    - Que esperamos reunidos na gora?

    que os brbaros chegaro hoje.

  • - Por que no Senado uma tal inao?

    Por que os Senadores esto sem legislar?

    Porque os brbaros chegaro hoje.

    Que leis faro agora os Senadores?

    Os brbaros quando chegarem legislaro.

    - Por que nosso imperador to cedo se levantou,

    e, diante da porta mais alta da cidade, est sentado

    em seu trono, solene, cingindo a coroa?

    Porque os brbaros chegaro hoje.

    E o imperador espera receber

    o chefe deles. Alm disso, preparou

    para dar-lhe um pergaminho, onde

    lhe registrou muitos ttulos e dignidades.

    - Por que nossos dois cnsules e nossos pretores saram

    hoje com suas togas vermelhas, bordadas?

    Por que puseram braceletes com tantas ametistas,

    e anis com esplndidas, brilhantes esmeraldas?

    Por que empunham hoje preciosos bastes

    de prata e de ouro excelentemente incrustados?

    Porque os brbaros chegaro hoje;

    e tais coisas deslumbram os brbaros.

    - Por que nossos hbeis oradores no vm como sempre

    proferir seus discursos, falar sobre suas preocupaes?

    Porque os brbaros chegaro hoje;

    e eles se aborrecem com eloquncia e arengas.

    - Por que de repente comeou esta inquietude

    e por que a confuso? (como se tornaram graves as fisionomias!)

    Por que rpido se esvaziam as ruas e as praas,

    e todos voltam para casa muito apreensivos?

    Porque anoiteceu e os brbaros no vieram.

    E alguns chegaram das fronteiras,

    e disseram que j no h brbaros.

    - E agora que ser de ns sem brbaros?

    Esses homens eram uma soluo.

    [1904]

    12. TROIANOS

    So nossos esforos, os dos infortunados;

    so nossos esforos como os dos troianos.

    Conseguimos um pouco; um pouco

    levantamos nossas foras; e comeamos

    a ter coragem e boas esperanas.

  • Mas sempre surge algo e nos detm.

    Aquiles no fosso, diante de ns,

    surge e com grandes gritos nos assusta.

    So nossos esforos como os dos troianos.

    Cremos que com deciso e coragem

    mudaremos a hostilidade da sorte,

    e ficamos do lado de fora para combater.

    Mas quando a grande crise chega,

    nossa coragem e deciso desaparecem;

    nossa alma perturba-se, paralisa;

    e em torno das muralhas corremos,

    procurando salvar-nos pela fuga.

    Contudo nossa queda certa. No alto,

    sobre as muralhas, j comeou o lamento.

    Choram lembranas e sentimentos de nossos dias.

    Amargamente Pramo e Hcuba por ns choram.

    [1905]

    13. MONOTONIA

    A um dia montono outro

    montono, idntico, segue. Ocorrero

    as mesmas coisas; essas novamente ocorrero os instantes, semelhantes, encontram-nos e deixam-nos.

    Um ms passa e traz outro ms.

    Essas coisas que chegam facilmente se presumem:

    so aquelas de ontem, as enfadonhas.

    E o amanh acaba por j no parecer um amanh.

    [1908]

    14. A CIDADE

    Disseste Irei outra terra, irei a outro mar. Uma outra cidade h de achar-se melhor que esta.

    Cada esforo meu uma condenao fatal;

    e est meu corao como morto enterrado. Meu esprito at quando ficar neste marasmo?

    Para onde volte meu olhar, para qualquer lugar que atente

    runas negras de minha vida vejo aqui,

    onde tantos anos passei, e a destru e arruinei.

    Novos lugares no encontrars, no encontrars outros mares.

    A cidade te seguir. s mesmas ruas voltars.

    E nos mesmos bairros envelhecers;

    e nestas mesmas casas encanecers.

    Sempre a esta cidade chegars. Quanto a outros lugares no tenhas esperanas no h navio para ti, no h caminho.

    Assim como destruste tua vida aqui

    neste pequeno recanto, em toda a terra arruinaste-a.

    [1910]

  • 15. QUE O DEUS ABANDONA ANTNIO

    Quando de repente, meia-noite, ouvir-se

    um invisvel taso passar

    com msicas maravilhosas, com vozes tua sorte que j decai, tuas obras

    que fracassaram, os projetos de tua vida

    que se tornaram todos decepes, no lamentes em vo.

    Como homem preparado h muito tempo, como homem corajoso,

    despede-te dela, da Alexandria que se distancia.

    Sobretudo no te enganes, no digas que foi

    um sonho, que teu ouvido se enganou:

    no aceites tais esperanas vs.

    Como homem preparado h muito tempo, como homem corajoso,

    como convm a ti que mereceste uma tal cidade,

    aproxima-te firmemente da janela,

    e escuta com emoo, mas no

    com as splicas e os lamentos dos covardes,

    tal qual um ltimo deleite, os sons,

    os maravilhosos instrumentos do misterioso taso,

    e despede-te dela, da Alexandria que perdes.

    [1911]

    16. TACA

    Quando partires em viagem para taca

    faz votos para que seja longo o caminho,

    pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.

    Os Lestriges e os Ciclopes,

    o feroz Poseidon, no os temas,

    tais seres em teu caminho jamais encontrars,

    se teu pensamento elevado, se rara

    emoo aflora teu esprito e ter corpo.

    Os Lestriges e os Ciclopes,

    O irascvel Poseidon, no os encontrars,

    se no os levas em tua alma,

    se tua alma no os ergue diante de ti

    Faz votos de que seja longo o caminho.

    Que numerosas sejam as manhs estivais,

    nas quais, com que prazer, com que alegria,

    entrars em portos vistos pela primeira vez;

    pra em mercados fencios

    e adquire as belas mercadorias,

    ncares e corais, mbares e banos

    e perfumes voluptuosos de toda espcie,

    e a maior quantidade possvel de voluptuosos perfumes;

    vai a numerosas cidades egpcias,

    aprende, aprende sem cessar dos instrudos.

    Guarda sempre taca em teu pensamento.

    teu destino a chegar.

    Mas no apresses absolutamente tua viagem.

    melhor que dure muitos anos

    e que, j velho, ancores na ilha,

    rico com tudo que ganhaste no caminho,

    sem esperar que taca te d riqueza.

    taca deu-te a bela viagem.

  • Sem ela no te porias a caminho.

    Nada mais tem a dar-te.

    Embora a encontres pobre, taca no te enganou.

    Sbio assim co te tornaste, com tanta experincia,

    j deves ter compreendido o que significam as tacas.

    [1911]

    17. REIS ALEXANDRINOS

    Reuniam-se os alexandrinos

    para ver os filhos de Clepatra,

    Cesrio e seus pequenos irmos,

    Alexandre e Ptolomeu, aos quais pela primeira

    vez faziam sair para o Ginsio,

    a fim de ali proclam-los reis,

    no meio da brilhante parada dos soldados.

    Alexandre proclamaram-no rei da Armnia, da Mdia, e dos partos.

    Ptolomeu proclamaram-no rei da Cilcia, da Sria, e da Fencia.

    Cesrio encontrava-se mais adiante,

    trajado de seda cor-de-rosa,

    em seu peito um ramalhete de jasmim,

    seu cinto, uma dupla fileira de safiras e ametistas,

    seus calados, atados com brancas

    fitas bordadas com prolas rseas.

    A ele proclamaram superior aos pequenos irmos,

    a ele proclamaram Rei dos Reis.

    Os alexandrinos compreendiam certamente

    que tudo isso eram palavras e teatro.

    Mas o dia estava quente e potico,

    o cu, de um azul claro,

    o Ginsio de Alexandria,

    uma proeza triunfal da arte,

    o luxo dos cortesos, extraordinrio,

    Cesrio, todo graa e formosura

    (filho de Clepatra, sangue dos Lagidas);

    e os alexandrinos j acorriam festa,

    e entusiasmavam-se, e aclamavam,

    em grego, em egpcio, e alguns em hebreu,

    encantados com o belo espetculo embora certamente soubessem o que valia isso,

    que palavras ocas eram esses reinos.

    [1912]

    18. RETORNA

    Retorna frequentemente e apodera-te de mim,

    sensao amada, retorna e apodera-te de mim quando a memria do corpo desperta,

    e um desejo antigo torna a passar pelo sangue;

    quando os lbios e a pele se lembram,

  • e as mos sentem como se tocassem de novo.

    Retorna frequentemente e apodera-te de mim noite,

    Quando os lbios e a pele se lembram

    [1912]

    19. MUITO RARAMENTE

    um velho. Esgotado e encurvado,

    estropiado pelos anos e por abusos,

    andando lentamente atravessa a ruela.

    Entretanto, quando entra em sua casa, para esconder

    seu mau estado e sua velhice, medita

    na parte que ele ainda tem diante da juventude.

    Adolescentes agora dizem seus versos.

    Pelos olhos vivos deles passam suas prprias vises.

    Suas mentes ss, voluptuosas,

    sua carne harmoniosa, firme,

    comovem-se com sua prpria expresso do belo.

    [1913]

    20. QUANTO POSSAS

    E se no podes fazer tua vida como a queres,

    esfora-te pelo menos nisto,

    quanto possas: no a degrades

    na convivncia demasiada com as pessoas,

    nos demasiados movimentos e colquios.

    No a degrades levando-a,

    trazendo-a frequentemente e expondo-a

    estupidez cotidiana

    das relaes e das companhias,

    at que se torne pesada como uma estranha.

    [1913]

    21. CANDELABRO

    Num quarto vazio e pequeno, s quatro paredes,

    e cobertas com tecidos inteiramente verdes,

    um belo candelabro est aceso e arde;

    e, em cada chama sua, abrasa-se

    uma paixo lbrica, um impulso lbrico.

    No pequeno quarto, que brilha alumiado

    pelo forte fogo do candelabro,

    no absolutamente habitual esta luz que jorra.

    Para corpos tmidos no feita

    a volpia desde calor.

    [1914]

  • 22. E OS SBIOS, AS QUE SE APROXIMAM

    Pois os deuses percebem as coisas futuras; os homens, aquelas que ocorrem; e os sbios, as que se aproximam.

    FILSTRATO, VIDA DE APOLNIO DE TIANA, VIII, 7.

    Os homens conhecem as coisas que ocorrem.

    As futuras, os deuses as conhecem,

    plenos e nicos possuidores de todas as luzes.

    Das coisas futuras os sbios percebem

    as que se aproximam. Sua audio

    s vezes, em horas de srios estudos,

    perturba-se. O misterioso clamor

    vem-lhes dos acontecimentos que se aproximam.

    E, respeitosos, ficam atentos a ele. Enquanto na rua,

    l fora, nada escutam os povos.

    [1915]

    23. TEDOTO

    Se s dos verdadeiramente eleitos,

    observa como adquires teu poder.

    Por mais que sejas glorificado, por mais que teus feitos,

    na Itlia e na Tesslia,

    os proclamem as cidades,

    por mais decretos honorficos

    que te tenham destinado em Roma teus admiradores,

    nem tua alegria, nem teu triunfo permanecero,

    nem homem superior por que superior? te sentirs quando, em Alexandria, Tedoto te traz

    sobre uma bandeja ensanguentada,

    a cabea do infortunado Pompeu.

    E no creias que em tua vida

    limitada, regular e prosaica,

    tais coisas espetaculares e terrveis no aconteam.

    Talvez neste momento, na casa organizada

    de algum vizinho teu, entre invisvel, imaterial Tedoto, trazendo uma cabea horrorosa dessa espcie.

    [1915]

    24. JURA

    Jura de quando em quando comear uma vida melhor.

    Mas quando vem a noite com seus prprios conselhos,

    com seus compromissos e com seus promessas;

    mas quando vem a noite com sua prpria fora,

    para a mesma alegria fatal de seu corpo,

    que quer e que reclama, perdido, ele retorna.

    [1915]

  • 25. UMA NOITE

    O quarto era pobre e vulgar,

    oculto no alto da taverna suspeita.

    Da janela via-se a ruela,

    suja e estreita. De baixo

    vinham as vozes de alguns operrios

    que jogavam cartas e que se divertiam.

    E ali, na cama rstica e humilde,

    possu o corpo do amor, possu os lbios

    voluptuosos e rseos da embriaguez rseos de uma tal embriaguez que, mesmo agora

    quando escrevo, depois de tantos anos!,

    em minha casa solitria, novamente me embriago.

    [1915]

    26. COISAS PINTADAS

    Por meu trabalho zelo, e a ele quero bem.

    Mas a lentido da composio hoje me desanima.

    O dia influi sobre mim. Seu aspecto

    torna-se continuamente sombrio. Sem cessar venta e chove.

    Mais desejo olhar que falar.

    Nesta pintura vejo agora

    um belo rapaz que, perto da fonte,

    se estendeu, depois de ter-se cansado talvez de correr.

    Que belo menino! Que divino meio-dia

    j o arrebatou para adormec-lo! Fico a olhar assim por muito tempo.

    E, dentro da arte novamente, descanso de sua labuta.

    [1915]

    27. PARA AMNIS, QUE MORREU AOS 29 ANOS, EM 610

    Rafael, pedem-te que componhas alguns versos

    para epitfio do poeta Amnis.

    Algo muito primoroso e bem articulado. Tu poders,

    s o indicado para escrever como convm

    sobre o poeta Amnis, nosso poeta.

    Certamente falars de seus poemas mas fala tambm de sua beleza,

    de sua delicada beleza que amamos.

    Sempre belo e musical teu grego.

    Contudo tua mestria toda pretendemos agora.

    lngua estrangeira vo passar nossa dor e nosso amor.

    Lana teu sentimento egpcio na lngua estrangeira.

    Rafael, que teus versos sejam escritos de sorte

    que tenham, sabes, algo de nossa vida dentro deles,

    que o ritmo e cada frase mostrem

    que sobre um alexandrino escreve um alexandrino.

    [1917]

  • 28. CINZENTOS

    Olhando uma opala meio cinzenta,

    lembrei-me de dois belos olhos cinzentos

    que vi; deve fazer vinte anos

    ..

    Por um ms nos amamos.

    Depois, ele partiu, creio, para Esmirna,

    para a trabalhar, e nunca mais nos vimos.

    Devem ter-se afeado se ele vive os olhos cinzentos; deve ter-se estragado o belo rosto.

    Memria minha, conserva-os tu como eram.

    E o que possas, memria, desse meu amor,

    o que possas traze-me de volta esta noite.

    [1917]

    29. NO MS DE ATHIR

    Penosamente leio na pedra antiga:

    Senhor Jesus Cristo. Distingo um termo: Al[m]a. No me[s] de Athyr Lukio]s a[dorm]eceu. Na meno da idade Vi[ve]u anos, o Kappa Zta mostra que jovem adormeceu.

    Nos lugares danificados vejo A el[e] alexandrino. Depois h trs linhas muito mutiladas;

    mas algumas palavras compreendo como nossas l[]grimas, dor, em seguida outra vez lgrimas, e luto para n[s] os amigos. Parece-me que Lukios deve ter sido muito amado.

    No ms de Athyr Lukios adormeceu.

    [1917]

    30. DIAS DE 1903

    No mais os reencontrei to depressa perdidos os olhos poticos, o plido

    rosto no anoitecer da rua

    No mais os encontrei aos conquistados s por acaso, que to facilmente abandonei;

    e que depois com angstia desejava.

    Os olhos poticos, o plido rosto,

    aqueles lbios no mais os encontrei.

    [1917]

    31. A VITRINA DA TABACARIA

    Perto de uma bem iluminada vitrina

    de tabacaria, estavam entre muitos outros.

    Seus olhares por acaso se encontraram,

    e expressaram o ilcito desejo de sua carne,

  • timidamente, com vacilao.

    Depois, poucos passos inquietos na calada At que sorriram, e fizeram um leve gesto.

    E ento, por fim, o carro fechado a aproximao sensual dos corpos;

    as mos unidas, os lbios unidos.

    [1917]

    32. ENTENDIMENTO

    Os anos de minha juventude, minha vida voluptuosa como vejo agora claramente seu sentido.

    Que arrependimento suprfluos, que fteis ...

    Mas no via ento seu sentido.

    Na vida dissoluta de minha juventude

    formavam-se as inclinaes de minha poesia,

    delineava-se o campo de minha arte.

    Por isso mesmo, os arrependimentos nunca foram consistentes.

    E as decises de conter-me, de mudar

    duravam duas semanas, quando muito.

    [1918]

    33. EMILIANO MONAE, ALEXANDRINO, 628-655 D.C.

    Com palavras, com feies de rosto, e com maneiras

    uma excelente armadura me farei

    e, assim, enfrentarei os homens maus,

    sem ter medo ou fraqueza.

    Vo querer prejudicar-me. Mas, de todos os que

    se aproximarem de mim, ningum saber

    onde esto minhas feridas, meus pontos vulnerveis,

    sob as mentiras que me encobriro.

    Palavras da presuno de Emiliano Monae.

    Porventura pde um dia fazer essa armadura?

    Em todo caso, no se serviu dela por muito tempo.

    Aos vinte e sete anos, morreu na Siclia.

    [1918]

    34. DESDE AS NOVE

    Meia-noite e meia. Rpido passou a hora

    desde as nove quando acendi o candeeiro,

    e me assentei aqui. Permanecia sem ler

    e sem falar. Com quem falar,

    completamente s nesta casa?

  • A imagem de meu corpo jovem,

    desde as nove quando acendi o candeeiro,

    veio encontrar-me e fez-me lembrar

    quartos fechados aromatizados,

    e volpia passada que ousada volpia! E trouxe-me diante dos olhos, tambm,

    ruas que agora se tornaram desconhecidas,

    locais de divertimento cheios de movimento que acabaram,

    e teatros e cafs que existiram outrora.

    A imagem de meu corpo jovem

    veio trazer-me tambm as lembranas tristes:

    lutos da famlia, separaes,

    afeies dos meus, afeies

    dos mortos, to pouco apreciadas.

    Meia-noite e meia. Como passou a hora.

    Meia-noite e meia. Como passaram os anos.

    [1918]

    35. PARA PERMANECER

    Devias ser uma hora da noite

    ou uma e meia.

    Num canto da taverna:

    Atrs da divisria de madeira.

    Exceto ns dois, o estabelecimento estava completamente vazio.

    Uma lmpada de petrleo apenas o iluminava.

    Dormia, porta, o empregado tresnoitado.

    Ningum nos veria. Mas j

    nos tnhamos inflamado tanto,

    que nos tornamos incapazes de precaues

    As roupas entreabriram-se no eram muitas porque abrasava um divino ms de julho.

    Deleite de carne entre

    as roupas entreabertas:

    rpida nudez da carne cuja imagem atravessou vinte e seis anos e agora veio para permanecer nesta composio potica.

    [1919]

    36. MENOS

    Que seja mais amada ainda a volpia que morbidamente e com depravao se alcana;

    achando raramente o corpo que sente como ela o quer que, morbidamente e com depravao, proporciona

    uma intensidade ertica que a sade no conhece

    Extrato de uma carta

  • do jovem menos (filho de patrcios), clebre

    em Siracusa por sua libertinagem,

    nos tempos libertinos de Miguel Terceiro.

    [1919]

    37. DARIO

    O poeta Fernazes a parte importante

    de seu poema pico est elaborando:

    de que maneira assumiu o reino dos persas

    Dario, filho de Histaspes. (Dele

    descende nosso ilustre rei,

    Mitridates, Dioniso e Euptor). Mas, aqui,

    necessita-se de filosofia; preciso analisar

    os sentimentos que teria tido Dario:

    talvez arrogncia e embriaguez; mas no provavelmente como que uma compreenso da futilidade das grandezas.

    Profundamente pensa no assunto o poeta.

    Mas interrompe-o seu criado, que entra

    correndo, e anuncia a grave notcia:

    comeou a guerra com os romanos;

    a maior parte de nosso exrcito atravessou a fronteira.

    O poeta fica aturdido. Que desgraa!

    Agora, como nosso ilustre rei

    Mitridates, Dioniso e Euptor,

    vai ocupar-se de poemas gregos?

    Em plena guerra imagine-se poemas gregos!

    Fernazes aflige-se. Que m sorte!

    Na ocasio em que tinha como certo, com Dario

    destacar-se, e a seus crticos,

    invejosos, reduzi-los definitivamente ao silncio.

    Que atraso, que atraso em seus planos.

    E se fosse apenas um atraso, ainda bem!

    Mas vejamos se temos mesmo segurana

    em Amiso. No uma cidade extraordinariamente fortificada.

    So inimigos terrveis os romanos.

    Podemos enfrent-los

    ns, capadcios? possvel?

    Devemos medir-nos agora com as legies?

    Grandes deuses, protetores da sia, socorrei-nos.

    Contudo, no meio de toda a sua agitao e da calamidade,

    insistente a ideia potica vai e vem o mais provvel , certamente, arrogncia e embriaguez;

    arrogncia e embriaguez teria tido Dario.

    [1920]

    38. SEU COMEO

    A satisfao de seu prazer ilcito

    efetuou-se. Levantaram-se do leito,

  • e vestem-se s pressas, sem falar.

    Saem em separado, furtivamente, da casa; e como

    caminham um tanto apreensivos na rua, parecem

    suspeitar que alguma coisa neles trai

    em que espcie de leito h pouco se deitaram.

    Mas como ganhou a vida do artista!

    Amanh, depois de amanh ou aps anos, sero escritos

    os vigorosos versos cujo comeo aqui ocorreu.

    [1921]

    39. MELANCOLIA DE JASO, FILHO DE CLEANDRO; POETA EM COMAGENA; 595 D.C.

    O envelhecimento de meu corpo e de meu rosto

    uma ferida de terrvel punhal.

    No tenho resignao alguma.

    A ti recorro, Arte da Poesia,

    que entendes um pouco de remdios:

    tentativas do entorpecimento da dor, na Imaginao e no Verbo.

    uma ferida de terrvel punhal. Traze, Arte da Poesia, teus remdios,

    que fazem por algum tempo que no se sinta a ferida.

    [1921]

    40. EU TROUXE ARTE

    Ponho-me a meditar. Desejos e sensaes

    eu trouxe Arte certas coisas entrevistas, rostos ou linhas; de amores incompletos

    algumas lembranas indefinidas. Que eu me entregue a Ela,

    que sabe configurar o Semblante da Beleza,

    quase imperceptivelmente completando a vida,

    associando impresses, associando os dias.

    [1921]

    41. OS QUE COMBATERAM PELA CONFEDERAO ACAICA

    Valentes sois vs que combatestes e tombastes gloriosamente;

    sem temer os que venceram por toda a parte.

    Daio e Critolau falharam, mas irrepreensveis sois vs.

    Quando os gregos quiserem vangloriar-se,

    Tais homens produz nossa nao diro de vs. Assim, admirvel ser vosso elogio.

    Foi escrito em Alexandria por um aqueu;

    stimo ano do reinado de Ptolomeu Latiro.

    [1922]

  • 42. EM DESESPERO

    Perdeu-o completamente. E agora j procura

    nos lbios de cada novo amante

    os lbios dele; na unio com cada

    novo amante, procura cair na iluso

    de que o mesmo jovem, que a ele se entrega.

    Perdeu-o completamente, como se nem mesmo tivesse existido.

    Porque queria disse ele queria salvar-se da estigmatizada, da mrbida volpia;

    da estigmatizada, da vergonhosa volpia.

    Ainda era tempo como disse de salvar-se.

    Perdeu-o completamente, como se nem mesmo tivesse existido.

    Pela imaginao, pelas falsas sensaes

    nos lbios de outros jovens procura os lbios dele;

    procura sentir novamente seu amor.

    [1923]

    43. TEATRO DE SDON

    Filho de cidado honrado sobretudo, formoso adolescente do teatro, agradvel de vrias maneira,

    s vezes componho em lngua grega

    versos bem ousados que ponho em circulao

    muito furtivamente, entende-se deuses! que no os vejam os que se vestem de cinzento, que falam de moral versos da volpia apurada, que leva

    a um amor estril e reprovado.

    [1923]

    44. JULIANO EM NICOMEDIA

    Coisas irrefletidas e arriscadas.

    Os elogios aos ideais dos gregos.

    As teurgias e as visitas aos templos

    dos idlatras. Os entusiasmos pelos deuses antigos.

    As frequentes conversas com Crisntio.

    As teorias do filsofo Mximo consumado alis .

    E a est o resultado. Galo manifesta grande

    preocupao. Constncio tem certa suspeio.

    Ah! os que aconselharam no eram absolutamente prudentes.

    Essa histria diz Mardnio excedeu os limites.

    e preciso forosamente que cesse seu rumor. Juliano vai de novo como leitor

    igreja de Nicomedia,

    onde, em alta voz e com piedade

  • profunda, l as sagradas Escrituras

    e sua devoo crist o povo admira.

    [1924]

    45. ANTES QUE O TEMPO OS MUDASSE

    Afligiram-se muito em sua separao.

    Eles no o queriam: foram as circunstncias.

    Necessidades vitais fizeram um deles

    partir para longe Nova York ou Canad. Seu amor certamente no era o mesmo de antes;

    tinha enfraquecido gradualmente a atrao,

    tinha enfraquecido muito a atrao.

    Contudo, separar-se, eles no o queriam.

    Foram as circunstncias. Ou, talvez como um artista, apresentou-se o Destino separando-os agora;

    antes que se extinguisse o sentimento deles antes que o Tempo os mudasse.

    Assim, um ser para o outro, como se permanecesse sempre

    o belo rapaz de vinte e quatro anos.

    [1924]

    46. NA ALDEIA ENFADONHA

    Na aldeia enfadonha onde trabalha Empregado num estabelecimento

    comercial; muito jovem e onde espera ainda dois ou trs meses passarem,

    ainda dois ou trs meses, para que diminuam os negcios,

    e para que possa, assim, ir cidade lanar-se

    sem demora ao movimento e aos prazeres

    na aldeia enfadonha onde espera lanou-se ao leito esta noite, doente de amor,

    toda a sua juventude inflamada no desejo da carne,

    em bela tenso toda a sua bela juventude.

    E, no sono, veio o prazer; no sono

    v e possui o corpo, a carne que desejava

    [1925]

    47. APOLNIO DE TIANA EM RODES

    Sobre a conveniente instruo e educao

    Apolnio falava com um

    jovem que construa uma luxuosa

    casa em Rodes. Eu, entrando num templo, disse o tianeu por fim,

    muito mais agradavelmente veria nele, embora pequeno, uma esttua de marfim e de ouro

    do que, num tempo grande, uma de argila e vulgar.

    O que feito de argila e vulgar; o abominvel: que, alm disso, a alguns (sem bastante experincia)

    engana com charlatanismo. O de argila e vulgar.

    [1925]

  • 48. SACERDOTE DO SERAPEU

    Meu bom velho pai,

    que sempre me votava o mesmo amor,

    choro meu bom velho pai,

    que morreu ante ontem, pouco antes de despontar o dia.

    Jesus Cristo, observar os mandamentos

    de tua santssima igreja,

    em cada ato meu, em cada palavra,

    em cada pensamento, meu esforo

    dirio. E aos que te renegam

    eu os detesto. Mas agora choro; lastimo-me, Cristo, por meu pai,

    embora tivesse sido horrvel diz-lo sacerdote no maldito Serapeu.

    [1926]

    49. JULIANO E OS ANTIOQUENSES

    O Khi, dizem, no causou nenhum prejuzo cidade nem o Kappa E ns, tendo achado exegetas soubemos que as letras so iniciais

    de nomes, e que querem designar uma, Cristo,

    e a outra, Constncio.

    JULIANO, MISOPGON

    Em tempo algum seria possvel que renunciassem

    sua bela vida, variedade

    de suas distraes cotidianas, ao seu magnfico

    teatro onde se dava uma unio da Arte

    com as inclinaes erticas da carne!

    Imorais at certo ponto eles eram e provavelmente at demais Mas tinham a satisfao de que sua vida

    era a renomada vida de Antioquia,

    deleitosa, absolutamente requintada.

    Renunciar a isso para dar ateno doravante a que?

    A suas parvoces sobre os falsos deuses,

    a suas enfadonhas gabarolices;

    sua infantil fobia do teatro;

    sua inspida gravidade afetada, sua barba ridcula.

    Ah! certamente preferiam o Khi,

    ah! certamente preferiam o Kappa: cem vezes.

    [1926]

    50. DIAS DE 1896

    Aviltou-se completamente. Uma propenso ertica

    assaz proibida e desprezada

    (contudo inata) foi a causa:

    a sociedade era muito pudica.

    Perdeu gradualmente seu reduzido dinheiro;

    depois, a posio e sua reputao.

    Aproximava-se dos trinta, sem jamais passar

  • um ano num trabalho, ao menos conhecido.

    s vezes, seus gastos ganhava-os por

    Mediaes que se consideram vergonhosas.

    Reduziu-se a um tipo que, se com ele te vissem

    muitas vezes, era provvel ficares extremamente comprometido.

    Mas no s isso. No seria justo.

    Vale mais a lembrana de sua beleza.

    H outra perspectiva da qual sendo visto

    ele impressiona como atraente; impressiona como simples e legtimo

    filho do amor, que acima da honra

    e de sua reputao colocou sem premeditao

    a pura volpia de sua carne pura.

    Quanto sua reputao? Mas a sociedade, que era

    muito pudica, fazia tolas comparaes.

    [1927]

    51. EM ESPARTA

    No sabia o rei Clemenes, no ousava no sabia como falar de uma tal questo

    sua me: Ptolomeu exigia,

    em garantia de seu pacto, que ela tambm fosse enviada

    ao Egito e ficasse sob guarda;

    coisa muito humilhante, desairosa.

    E sempre procurava falar-lhe; e sempre hesitava.

    E sempre comeava a falar, e sempre parava.

    Mas a mulher excepcional o compreendeu

    (j tinha ouvido alguns rumores a respeito),

    e encorajou-o a explicar-se.

    E riu; e disse que certamente iria.

    E sobretudo alegrava-se por poder ser,

    na velhice, ainda til a Esparta.

    Quanto humilhao ora! era-lhe indiferente. O sentimento elevado de Esparta, um lagida

    de ontem seguramente no era capaz de compreend-lo;

    por isso a sua exigncia no podia

    realmente humilhar uma Dama

    Ilustre como era ela : me de um rei espartano.

    [1928]

    52. MRIS: ALEXANDRIA DE 340 D.C.

    Quando tive a notcia penosa de que Mris falecera,

    fui sua casa, embora evite

    entrar nas casas de cristos

    sobretudo quando tm tristezas profundas ou festas.

    Parei num corredor. No quis

    ir mais para dentro, porque percebi

    que os parente do falecido me olhavam

    com evidente perplexidade e com desagrado.

    Tinham-no exposto numa sala grande

  • da qual vi, do canto onde me detive,

    uma parte: somente tapetes valiosos

    e utenslios de prata e de ouro.

    De p, eu chorava num canto do corredor.

    E pensava que nossas reunies e excurses

    sem Mris j no teriam valor;

    e pensava que j no o veria

    em nossas belas e lascivas noitadas

    regozijar-se, rir e recitar versos

    com seu perfeito sentido do ritmo grego;

    e pensava que tinha perdido para sempre

    sua beleza, que tinha perdido para sempre

    o jovem a quem eu adorava loucamente.

    Algumas velhas, perto de mim, falavam baixo

    do ltimo dia que viveu nos lbios dele continuamente o nome de Cristo,

    em suas mos ele segurava uma cruz. Entraram depois na sala

    quatro sacerdotes cristos, e com fervor proferiam

    preces e splicas a Jesus,

    ou Maria (no conheo bem a religio deles).

    Sabamos, sem dvida, que Mris era cristo.

    Ns o sabamos desde o primeiro momento, quando

    no penltimo ano entrara em nosso grupo.

    Mas vivia absoltamente como ns.

    De todos ns, o mais entregue aos prazeres;

    Gastando larga seu dinheiro nos divertimentos.

    Despreocupado da considerao do mundo,

    lanava-se por gosto nas brigas noturnas nas ruas,

    quando acontecia que nosso bando

    encontrava um bando adverso.

    Nunca falava de sua religio.

    Alm disso, uma vez lhe dissemos

    que o levaramos conosco ao Serapeu.

    Todavia, parece-me que ele se aborreceu

    com essa brincadeira nossa: lembro-me agora.

    Ah! dois outros momentos vm agora minha mente.

    Quando fazamos libaes a Poseidon,

    afastou-se de nosso grupo e voltou o olhar para outro ponto.

    Quando, entusiasmado, um dos nossos

    disse: Que nosso bando esteja

    sob a benevolncia e a proteo do grande,

    do belssimo Apolo Mris murmurou (os outros no ouviram): com exceo de mim.

    Os sacerdotes cristos em alta voz

    suplicavam pela alma do jovem. Eu observava com quanto cuidado,

    e com que grande ateno

    nas formalidades da religio se preparava

    tudo para o funeral cristo.

    E, de repente, dominou-me uma estranha

    impresso. Indefinidamente, sentia

    como se Mris partisse de perto de mim;

    sentia que se tinha unido, cristo,

    com os seus, e que me tornava

    eu um estranho, muito estranho; senti enfim

  • uma dvida aproximar-se de mim: talvez tivesse sido enganado

    por minha paixo, e sempre tivesse sido para ele um estranho. Lancei-me fora da horrvel casa deles,

    parti rpido antes de ser arrebatada, antes de ser alterada

    pelo cristianismo deles a lembranas de Mris.

    [1929]

    53. NO MESMO ESPAO

    Ambiente da casa, de locais muito frequentados, do bairro

    Que vejo e por onde ando: anos e anos.

    Criei-te no meio de alegria, no meio de tristezas:

    com tantas circunstncias, com tantas coisas.

    E te transformaste, inteiro, em sentimentos, para mim.

    [1929]

    54. SEGUNDO AS RECEITAS DE ANTIGOS MGICOS GRECO-SRIOS

    Que extrato se pode achar de ervas de feitiaria, disse um esteta; que extrato, preparado segundo as receitas de antigos magos greco-srios

    que, por um dia (se mais

    no alcana sua eficincia), ou mesmo por um instante,

    me traga de novo meus vintes e trs anos;

    que me traga de novo meu amigo

    em seus vinte e dois anos sua beleza, seu amor?

    Que extrato se pode encontrar, preparado segundo as receitas de antigos magos greco-srios,

    que, em consequncia do retorno,

    traga tambm nosso pequeno quarto?

    [1931]

    55. NOS ARREDORES DE ANTIOQUIA

    Ficamos perplexos em Antioquia, quando soubemos

    dos novos feitos de Juliano.

    Apolo tinha-se entendido com ele, em Dafne!

    No queria dar orculo (ficamos aturdidos!),

    no tinha a inteno de falar como adivinho, se primeiro

    no purificassem seu santurio em Dafne.

    Aborreciam-no, declarou, os mortos das adjacncias.

    Em Dafne encontravam-se muitos tmulos. Um dos ali sepultados

    era o admirvel, a glria de nossa igreja,

    o santo, o vitorioso mrtir Babilas.

    A ele referia-se, a ele temia o falso deus.

    Enquanto o sentia perto, no ousava

    proferir seus orculos: silncio.

  • (Temem a nossos mrtires os falsos deuses).

    O mpio Juliano tinha arregaado as mangas,

    Irritou-se e gritava: Levantai-o, transportai-o,

    Arrancai este Babilas imediatamente.

    Ouves a? Apolo est magoado.

    Levantai-o, arrebatai-o imediatamente.

    Desenterrai-o, levai-o para onde quiserdes.

    Tirai-o, mandai-o embora. Estamos brincando agora?

    Apolo determinou que o santurio fosse purificado.

    Ns os pegamos, ns os levamos os santos despojos mortais para outro lugar.

    Pegamo-los, levamo-los com amor e com respeito.

    E, realmente, progrediu bem o santurio!

    No se fez absolutamente esperar, e um incndio

    imenso irrompeu, um terrvel incndio:

    e o santurio foi consumido pelo fogo e tambm Apolo.

    Cinza, o dolo: para varredura com o lixo.

    Juliano estourou de raiva e divulgou que mais ia fazer? que o incndio tinha sido ateado por ns, cristos. Que ele tente afirmar.

    No foi provocado; que tente afirmar.

    O essencial que estourou de raiva.

    [1933]