antologia do conto português - pdf...

12

Upload: vunguyet

Post on 08-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português
Page 2: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português
Page 3: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

PRÓLOGO

1. Costuma dizer-se que o conto (mesmo enquanto narrativa oral) e a poesia destinada ao canto estiveram na origem de todos os géneros literários e, por conseguinte, também na génese das litera-turas do mundo. Em Portugal, essas mesmas tradições orais ante-cederam toda a escrita literária, mas coexistiram com a lírica trova-doresca galaico-portuguesa, com a historiografia medieval, com o Renascimento e com o Barroco. Usaram-nas os poetas e os cronistas como temas de inspiração ou como fonte documental do que preten-diam escrever. Mesmo quando, nos períodos mencionados, circulava já sob forma escrita, o conto português não foi além de uma narra-tiva incipiente, umas vezes sobrecarregada pela moralidade religiosa ou social, outras pelas mitologias do maravilhoso pagão, e portanto sem um modelo formal que a aproximasse da sua verdadeira au-tonomia literária. Nem mesmo o Renascimento lhe trouxe aquela moldura de modernidade e renovação que tanto impacto causou nas literaturas ocidentais. Confundindo-se com as tradições populares da oralidade, esteve quase sempre mais perto do folclórico que do literário.

Tal como o concebemos hoje, o conto chegou à literatura portu-guesa só no século XIX, e pela mão dos escritores românticos. Ainda que tardiamente, tanto bastou para que logo ele assumisse entre nós uma identidade e uma idiossincrasia eminentemente próprias. Não que tenha tido ou feito um percurso em separado dos outros modos de expressão; mas porque, mais do que a novela, o romance, a cró-nica ou outras formas similares, ele cedo se destacou pelo seu fulgor narrativo e pela essencialidade da linguagem. Talvez sobretudo por isso, ascendeu depressa no interior de uma escrita muito pautada pelo lirismo poético, pelo misticismo da prosa ou por um discurso complexo, de pendor barroco. Sem essa ascensão, a nossa ideia mais duradoura do «literário» enquanto categoria de linguagem ter-se-ia confundido durante muito mais tempo com a «arte de fazer esti-

Page 4: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

lo» — de que Bernardim Ribeiro, autor da novela Menina e Moça, poderia ser talvez o mestre e o pioneiro. Reagindo à doença infantil de uma escrita algo propensa à adopção do «estilo» como essência da arte literária (excesso retórico, casticismo vernáculo, pura exibi-ção oratória), o conto ganhou relevo e importância decisivos à luz de uma espécie de noção intuitiva acerca de um limite razoável do discurso e de uma economia narrativa, cujo modelo imitou a par-tir dos mais antigos rituais da narração oral. Tal imitação consistiu em readoptar o ritmo, a tensão e as prosódias típicas da literatura tradicional. A começar pela escolha da própria matéria narrável: as-sunto, ambiente, tom e colorido do real. A isso se associaram uma modelização estilística própria, a narratividade, a poética da prosa e uma inconfundível «frescura» romanesca. Dois dos nossos mais extraordinários «narradores» da prosa de viagens (Pero Vaz de Ca-minha, autor da Carta do Achamento do Brasil, e Fernão Mendes Pinto, de Peregrinação) só não podem, nem devem, ser considerados «contistas» porque não foi essa a finalidade nem a forma da sua escrita. Em tudo o mais, eles foram os precursores de um cânone de narração que só os verdadeiros contadores de histórias logram criar e fazer expandir em volta. A obra de Fernão Mendes Pinto, muito em especial, possui uma tal capacidade emotiva, e uma tão intensa concentração no episódio, que os seus muitos capítulos mais pare-cem constituir-se em contos sequenciais do que no encadeamento de um conjunto textual que ainda está por definir entre a pura crónica de viagens e uma ficção sem género.

São pois os melhores os atributos que mais contribuem para a tão específica subtileza narrativa do conto: equilíbrio e destreza na adequação da forma ao conteúdo, nítida percepção da narrativida-de como estratégia da eficácia verbal, criação espontânea de uma linguagem intrinsecamente consciente da própria literariedade. Na intuição dos ficcionistas (até mesmo em «estilistas» tão elaborados como Camilo Castelo Branco e Aquilino Ribeiro), é ponto de regra que não se pode dar ao conto a prosa do romance, e vice-versa. Pelo contrário, as respectivas prosódias e retóricas devem ser e parecer

Page 5: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

tão distintas quanto facilmente detectáveis pelo leitor — o que não acontece muito na obra dos nossos escritores mais canónicos.

Mas se o conto português forjou e moldou um «imaginário» de certo modo específico, é também certo que lhe deu um norte, uma finalidade: diversificou o modelo formal, fez com que o conceito do narrativo evoluísse sobre as estruturas mais opacas da linguagem, reagindo contra a pura retórica verbal e banindo o culto excessivo da imagem, a representação metafórica, o virtuosismo dos jogos es-tilísticos — que podem, mais livremente, praticar-se em certos tipos de romance do que no conto em geral.

Assim, entre essas primitivas artes de narrar histórias de ficção e o conto português dito contemporâneo, decorreu todo um proces-so aquisitivo que não teve precedentes nem conheceu qualquer para-lelo com outros textos de criação: a síntese e a unidade da narrativa, a integração do ritmo na espessura melódica do texto, a prática da «simplicidade profunda» de que falaram Sócrates e Platão (a qual se aplica mais ao conto do que aos demais textos da nossa convenção literária). Hoje, essa escrita simples e expedita, centrada na «essen-cialidade» a que me refiro atrás, é já parte indissociável quer da bio-logia quer da estética do conto. E da sua ética, também.

2. Temos pois que, ainda em plena Idade Média, antes de o ser em teoria, já o conto português o era na prática — enquanto narrativa oral e popular: caso, lenda, fábula, prodígio, exemplo, sá-tira, moralidade ou poema para cantar. No período de transição da literatura «palaciana» para a do Renascimento (mas na sua vertente tradicionalista), os poemas obrigados a «mote» (tema) e a «voltas» (desenvolvimento) apenas careciam de ser transcritos em prosa; em tudo o mais configuravam estrutura narrativa. O mesmo aconteceria depois com os chamados «romances» populares mais não sendo do que prosificações de antigos textos poéticos, igualmente orais, assim circularam na tradição até serem passados a escrito e só depois su-jeitos a outros processos de elaboração.

O Barroco, tido por um tempo da eloquência e da oratória,

Page 6: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

deu-nos prosadores eméritos (como o padre António Vieira, autor dos mais belos sermões e textos proféticos da literatura portugue-sa). Mas a escrita barroca, não obstante a insistência na fugacidade da vida e na efemeridade do ser (que até se adequaria a um tipo de narrativa tão breve), acabou por não trazer contributos notáveis ao conto português, e ainda bem. É que tanto a retórica como a estilística da estética barroca teriam constituído um óbice ou um retardamento à modernização — que exigiu linearidade temática, ritmo narrativo, leveza e proporção de conteúdo, estrutura sumária e acção única: nuclear, absoluta.

Os Românticos descobriram e estudaram o romanceiro pe-ninsular, instituindo-o como disciplina nos estudos literários; tra-balharam as lendas e tradições do povo português, introduziram o romance histórico entre nós, revolucionaram a poesia e a literatura em geral, mas o conto muito em particular. Por um lado, deram--lhe uma estrutura definitiva; por outro, fizeram dele um texto de eleição para os temas mais recorrentes da sua literatura: as histórias dos amores contrariados, a morte (física, mundana, espiritual) dos amantes, o conflito conceptual na educação familiar, os episódios históricos (tendo em Alexandre Herculano — poeta, historiador, romancista, insigne autor de Lendas e Narrativas — o seu grande precursor). Foram ainda os contistas românticos que insistiram nos imaginários do sobrenatural: as crenças e superstições populares, o mundo luciferino, as intrigas do maravilhoso cristão, o fantástico, o etno-fantástico. O social não deixava de estar subjacente a essa escrita de evasão, com visões mais ou menos oníricas da realidade. Contudo, só o Realismo deu ao conto a sociabilidade, a grandeza de um género que ainda hoje inspira um imenso «desejo» de literatura, e que o elegeu como meio susceptível, e por excelência, de no mesmo plano abordar o geral, o particular, o local (ou seja, o regional) e o universal. Acresce a isso, mais do que tudo, o facto de o Realismo ter libertado o conto dos constrangimentos ou preconceitos român-ticos: os da linguagem, primeiro, e os temáticos e ideológicos e seus imaginários algo consabidos, depois. O conto realista veio instaurar

Page 7: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

na literatura portuguesa uma ideia/noção de modernidade que ain-da hoje supera o tempo estrito da escrita, fazendo de nós, leitores de agora, seus contemporâneos literários com um século e meio de idade.

3. Importa, assim, conhecer o conto português à luz dessa ideia de contemporaneidade literária. Tal significa dizer que ele tem de moderno e de contemporâneo não apenas o facto de se enquadrar num conceito de literatura actual, mas sobretudo o de dizer respeito a um modelo social, isto é, da sociedade que é ainda a nossa, em Portugal. Por outras palavras, através dele temos a possibilidade de nos revermos no tempo e no país em que vivemos — e não apenas historicamente, mas também social, estética e até literariamente fa-lando. Em matéria de história e de sociedade, o conto será sempre subsidiário do romance (que cobre, como se sabe, âmbitos bem mais vastos e pode penetrar muito mais fundo no coração e na cabeça dos sistemas). Desse e de outros pontos de vista (incluindo o problema da sua actualidade), todos os caminhos do conto português moder-no remontam inequivocamente ao Realismo literário do século XIX e, dentro dele, à obra de Eça de Queirós, o maior escritor português do género. Com efeito, Eça representa tanto o nosso génio absoluto desta e de outras formas de ficção, como tem de ser visto ainda no lugar do verdadeiro patrono da sua modernidade. À luz e ao redor do autor dessa obra--prima do conto português, que é Singularida-des de Uma Rapariga Loira, seja por convergência ou por divergên-cia do modelo por ele adoptado, seguimos nós ainda a evolução do género e da escrita, e também as suas manifestações estéticas, temá-ticas e até geracionais.

Historicamente falando, a abordagem do conto português im-põe, como método, sobretudo dois critérios de valoração: a «noto-riedade» e a «notabilidade» dos textos e dos contistas. (Nem sem-pre os conceitos coincidem no mesmo texto e na mesma pessoa. Há contos e contistas «notórios» que de «notáveis» pouco terão. Mas também o inverso será verdadeiro.) Ainda assim, suponho ser fácil

Page 8: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

obter-se um consenso relativamente amplo acerca dos melhores es-critores portugueses de contos. Correspondem, em parte, também aos melhores romancistas. Com excepções óbvias: Camilo Castelo Branco, autor das magníficas e longas Novelas do Minho, mantém nos contos a mesma índole e a verve do romancista de proa que indiscutivelmente é, mas perde-se em expedientes temáticos e em algumas desproporções de estilo em Vinte Horas de Liteira e Doze Casamentos Felizes. Em todo o caso, passa também por ele, autor excelente de Noites de Lamego, uma mestria que viria a influenciar inúmeros contistas do norte português. Outro caso: Alexandre Her-culano, cujas belas e muito bem escritas Lendas e Narrativas (tam-bém longas e exclusivamente históricas, com a relativa excepção da mais que conhecida A Dama Pé-de-Cabra), não podem, a nenhum título, inscrever-se hoje na modernidade do conto português, e sim nas suas raízes; ou, ainda, o caso de alguns romancistas nossos con-temporâneos que ou não escreveram contos ou não admitem como tal os textos narrativos que esparsamente têm vindo a publicar.

4. É bem possível que o conto português, em toda a sua am-plitude histórica, comporte em si os temas, as sensibilidades de ge-ração, os sinais, as estéticas de grupo e os imaginários míticos ou territoriais de toda a literatura portuguesa (ou mesmo europeia e até mundial). Na verdade, não existe praticamente um domínio ou um modo de ficção que seja estranho ao nosso conto, sobretudo desde o Romantismo. Mais ainda: a sua história e a sua evolução endó-gena comportam uma tão grande e tão profunda concomitância de temas, motivos, ambientes e modelos, que há nelas suporte mais do que suficiente para uma teoria própria e para uma visão portuguesa do mundo, de nós mesmos, do nosso tempo. Não seria sequer exces-sivo acrescentar que o conto português incorre tanto nessa dinâmica de diversidade como nos pressupostos de uma possível universalida-de literária, nossa. A «portugalidade» pode servir-lhe de ponto de partida e sobretudo de meio, mas não de limite ou de horizonte. A condição humana dos Portugueses é, tal como noutros povos, ape-

Page 9: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

nas e só a condição humana de um povo entre os demais, e esta é uma dimensão de «universalidade» em qualquer literatura que se preze. É por isso que nele, conto, podemos encontrar histórias de todos os tempos e lugares. E temas dificilmente cingíveis à realida-de mais evidente, que não seja a da vida quotidiana, do amor, das paixões, da humanidade e dos seus contrários: a violência, a guerra, a pobreza, a injustiça dos modelos sociais, a morte e o mistério de viver — o que pode ser (e é) tão comum a nós como a qualquer ou-tro sistema literário do mundo. Porém, o caso é outro, e a mim cabe dizê-lo: só os Portugueses poderiam ter sido autores e escritores dos seus contos. Para além dos temas e dos dados que derivam da expe-riência histórica e da realidade portuguesa, há neles um modo de ser, um mundo vivido, um «dizer» apenas nosso; e também esta escrita de raiz telúrica e consuetudinária, e uma poética de contar que se foi enchendo de ritos e ritmos que não se confundem com os dos ou-tros; e talvez um sentido de criação pela linguagem que acrescentou corpo e mundo à língua portuguesa (para que ela não se perdesse, e para que evoluísse na sua própria condição literária).

Acredito no conto como numa secreta e comovida visitação dos mitos do homem, que em nós entraram sempre em relação com a geografia e com a história do vivido. E com a sua memória culta. Trata-se de uma literatura de emergência e de imanência. Escrita por nós, por assim a termos vivido, também. Uma literatura do real que se foi distendendo pela vicissitude do quotidiano, pela porta de saí-da desse «território» imaginário, o mar, que como tal se insinuou à alma e ao olhar de todos e cada um de nós. Eis-nos, assim, perante uma literatura histórica, mística, mitológica, mágica, etno-fantás-tica, trágica, realista, moderna, pós-moderna, como só ela sabe ser — e como todas as outras o são também, afinal.

João de Melo

Madrid, Março de 2002

Page 10: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

ALEXANDRE HERCULANO 28.03.1810, Lisboa; 13.09.1877, Vale de Lobos

A Dama Pé-de-Cabra

Fez estudos no Colégio dos Oratorianos, com vista ao ensino supe-rior, mas teve de optar por um curso de índole prática que lhe garantis-se trabalho (o pai cegara e as condições familiares a isso obrigavam). Cedo se manifestou vocacionado para a literatura e, depois, para a po-lítica. Leu os românticos estrangeiros, que o influenciaram a escrever os primeiros versos, frequentou tertúlias e salões literários. Compro-metido com a revolta de 1831 contra o absolutismo de D. Miguel, fugiu para Inglaterra, de onde regressou integrado no exército de D. Pedro. Com ele seguiu para os Açores em 1831, e daí para o Mindelo. Como simples soldado, participou no cerco à cidade do Porto, nas lutas da guerra civil e no triunfo da causa liberal. Daí para a frente, a sua vida irá repartir-se entre o jornalismo (fundou e dirigiu a revista O Panora-ma, e depois vários periódicos), a investigação histórica, a literatura e a política. Protagonista de inúmeras polémicas, bateu-se contra o clero obscuro, desempenhou cargos institucionais, foi, com Almeida Garrett, o introdutor do Romantismo e da novela histórica em Portugal (e tam-bém o primeiro historiador digno desse nome). Figura referencial da ética política e da cultura, recusou distinções e honrarias, apesar dos altos postos que ocupou. Cansado e desiludido com a vida pública, ca-sou com uma antiga namorada e retirou-se em 1867 para a sua quinta de Vale de Lobos, onde passou a dedicar-se à agricultura. A sua morte deixou o país consternado pelo luto.

Obras principais: Conto: Lendas e Narrativas (1851); Ro-mance: O Bobo (1843); Eurico, o Presbítero (1844); 0 Monge de Cister (1848); Poesia: A Voz do Profeta (1836); A Harpa do Crente (1838); Historiografia: História de Portugal (4 vols., 1846/

Page 11: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

/47/50/53); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (3 vols., 1854/55/59).

A DAMA PÉ-DE-CABRA

1

Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.

E não me digam no fim: «Não pode ser.» Pois eu sei cá inventar cousas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho, qua-se tão velho como o nosso Portugal. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.

É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague.

Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez ve-zes mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou.

Silêncio profundíssimo; porque vou principiar.

2

Page 12: Antologia do Conto Português - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/antologia_do_conto_portugues_dryr.pdf · cederam toda a escrita literária, ... já sob forma escrita, o conto português

D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis dos estevais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.

Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco-montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.

Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lin-do, lindo cantar.

Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava.

O porco fica desta vez livre e quite, porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.

— Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sois, que logo me cativastes?

— Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.

— Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.

— Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas são para seguires tuas montarias; para o desporto e folganças de bom cava-leiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem a caça.

— Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vós e de mim; que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espa-nha o rico-homem mais abastado?

— Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras cousa é de pouca valia; mas, apesar disso, não creio que mo conce-das; porque é um legado de tua mãe, a rica-dona de Biscaia.

— E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não te cede-ria qualquer dos seus muitos legados?

— Então, se queres ver-me sempre ao pé de ti, não jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.

— A la fé de cavaleiro, não darei uma; darei milhentas palavras.