antiliberalismo e contra-revolução na i república (1910-1919) · os debates historiográficos...

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Miguel António Dias Santos Antiliberalismo e contra-revolução na I República (1910-1919) Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2009

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  • Miguel Antnio Dias Santos

    Antiliberalismo e contra-revoluo na I Repblica

    (1910-1919)

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2009

  • 2

    Miguel Antnio Dias Santos

    Antiliberalismo e contra-revoluo na I Repblica

    (1910-1919)

    Dissertao de Doutoramento em Histria, especialidade de Histria

    Contempornea, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de

    Coimbra, sob a orientao do Professor Doutor Amadeu Carvalho Homem

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2009

  • 3

    Abreviaturas

    ADG Arquivo Distrital da Guarda

    AHD - Arquivo Histrico-Diplomtico

    AHM Arquivo Histrico-Militar

    BNP Biblioteca Nacional de Portugal

    CEP Corpo Expedicionrio Portugus

    CTGL Corpo de Tropas da Guarnio de Lisboa

    DGAPC Direco Geral da Administrao Poltica e Civil

    EAO Esplio de Aires de Ornelas

    ELM Esplio de Lus de Magalhes

    GNR Guarda Nacional Republicana

    IAN/TT Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo

    MI Ministrio do Interior

    MNE Ministrio dos Negcios Estrangeiros

    TMEL Tribunal Militar Especial de Lisboa

    TMTL Tribunal Militar Territorial de Lisboa

    UON Unio Operria Nacional

  • 4

    Introduo

    A proclamao da Repblica foi recebida, de braos abertos, por toda a gente que em Portugal, directa ou indirectamente, intervinha na poltica. Melhor do que isso: a proclamao da Repblica foi recebida, de braos abertos, por todos os indiferentes que, afinal, a essa data, constituam a grande maioria das classes conservadoras, verdadeiras foras vivas de uma nao de iletrados. Por esse pas fora o comrcio, a lavoura ou a indstria no eram monrquicos nem republicanos: em regra a nica manifestao da sua solidariedade com as instituies consistia em votar com os amigos. Desobrigados desse compromisso voltavam ao seu negcio, s suas terras ou aos seus algodes. Para eles a Repblica era uma esperana, embora imprecisa.

    (Cunha e Costa, Balano Poltico, in O Dia, n. 374, 31-12-1912, p. 1.)

    Os debates historiogrficos que se produzem em torno da primeira

    repblica tm-se centrado na natureza poltico-ideolgica do regime e nas

    razes que ditaram o seu fracasso1. Entre a historiografia mais recente

    persistem vises interpretativas dspares, baseadas em metodologias ou

    concepes diferenciadas, algumas revelando mesmo preocupaes

    ideolgicas mais ou menos assumidas2. Para alguns historiadores, a

    repblica revelou-se um regime progressista e defensor dos direitos liberais,

    apesar das dificuldades e vicissitudes conjunturais, como o provam a sua

    1 Sob a historiografia da repblica, veja-se Armando B. Malheiro da Silva, A escrita da histria da I Repblica Portuguesa, in Ler Histria, 38 (2000), pp. 197-254.

    2 Uma sntese foi produzida por Manuel Baia, Partidos e sistema partidrio na crise do liberalismo em Portugal e Espanha nos anos vinte, in Elites e Poder. A Crise do Sistema Liberal em Portugal e Espanha (1918-1931), Lisboa, Edies Colibri e Centro Interdisciplinar de Histria, Cultura e Sociedades da Universidade de vora, 2004.

  • 5

    constituio poltica e alguns progressos sociais e culturais3. Para outros, a

    repblica representou a continuao do liberalismo oligrquico da monarquia

    constitucional, dada a predominncia da mesma elite liberal e a persistncia

    de uma estrutura econmica e social arcaica que pouco ou nada mudou

    durante a nova ordem poltica4. Finalmente, alguns especialistas acentuam a

    dimenso revolucionria e ditatorial da repblica, a partir do predomnio do

    Partido Democrtico5. Esta corrente sublinha a importncia do terror

    jacobino como responsvel pela perpetuao poltica do partido

    dominante6. Mais recentemente, Rui Ramos subscreveu a tese de um regime

    estruturalmente revolucionrio, cujo Poder se baseava numa constituio

    no-escrita que presumia que se a nao constitua patrimnio de todos os

    portugueses, o Estado era propriedade exclusiva dos republicanos. S a f

    republicana podia garantir a defesa da repblica, vedando assim o acesso ao

    Poder aos adversrios do regime. A ditadura da rua, instituindo uma

    legitimidade revolucionria persistente, explica assim o falhano da I

    Repblica por ausncia de legitimidade legal, na medida em que os poderes

    eram muitas vezes exercidos fora da alada da lei. Para Rui Ramos, esta

    arbitrariedade do poder coercivo de uma parte dos cidados desmente o

    carcter liberal do regime republicano, porque aquela no permitia a

    formao de uma verdadeira comunidade poltica7.

    No objectivo desta investigao retomar a discusso das teses

    abordadas, porque o seu objecto de estudo a oposio monrquica e os

    seus esforos para restaurar o trono em Portugal. Ainda assim, entendemos

    que esta investigao pode contribuir para o aprofundamento de um debate

    que est longe de se ver esgotado, questionando ou reforando perspectivas

    e abordagens explicativas j estabelecidas. A inteleco do fenmeno

    3 Cf. Amadeu Carvalho Homem, Constituio de 1911: Programa de uma Burguesia Livre-

    Pensadora, in Histria, n. 43, Maro de 2002, pp. 32-37. 4 Antnio Costa Pinto, A queda da 1. Repblica Portuguesa: uma interpretao, in

    Manuel Baia (ed.), ob. cit., pp. 165-183. 5 O estudo de Fernando Farelo Lopes sobre o sistema eleitoral prova a existncia de um

    regime parlamentar com partido dominante. Cf. Poder Poltico e Caciquismo na 1 Repblica Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1994.

    6 Especialmente Vasco Pulido Valente, A Repblica Velha (1910-1917), Lisboa, Gradiva, 1997.

    7 A tese foi apresentada no estudo Sobre o carcter revolucionrio da Primeira Repblica Portuguesa (1910-1926): uma primeira abordagem, in Polis, n.os 9/12, Lisboa, Universidade Lusada Editora, 2003, pp. 5-60. Foi depois retomada no estudo Foi a Primeira Repblica um regime liberal? Para uma caracterizao poltica do regime republicano portugus entre 1910 e 1926, in Manuel Baia (ed.), ob. cit., pp. 185-246.

  • 6

    republicano deve perspectivar-se, julgamos ns, dentro da conjuntura de

    crise que vai de 1890 a 1926 e na qual as foras monrquicas, no Poder ou

    na oposio, constituem dinmicas que importa estudar no quadro da

    chamada histria poltica e ideolgica8. Enquanto foras polticas e

    ideolgicas que lutaram pelo Poder, que ofereceram resistncia, como se

    relacionaram com a legitimidade e a autoridade republicanas? Contriburam

    para a paz e prosperidade necessrias construo de uma sociedade

    poltica ou adensaram o clima de discrdia permanente que anulou qualquer

    possibilidade de consenso? Como se relacionaram com as restantes foras

    de bloqueio e resistncia? Estas e outras questes no essenciais para

    compreender os meandros da contra-revoluo monrquica e a forma como

    esta condicionou a prpria evoluo do novo regime poltico e da sociedade

    em Portugal.

    Como acentua Cunha e Costa, ento advogado republicano, na

    transcrio em epgrafe, a repblica foi recebida por todos como uma

    esperana, embora imprecisa. Este optimismo inicial, esta crena nas

    virtudes regeneradoras do novo regime foi um lampejo que depressa

    esmoreceu, dando origem a um fenmeno de oposio que aqui designamos

    por contra-revoluo. A contra-revoluo assume em primeiro lugar a

    categoria de conceito operatrio investido do encargo de analisar os meios,

    aces e extenso de uma agremiao que tinha sido despojada do controlo

    do Estado. Ainda assim, veremos que o ressurgimento doutrinrio de pendor

    tradicionalista se far tambm dentro de alguns pressupostos da ideologia

    contra-revolucionria, visveis no renascimento do Partido Legitimista e da

    sua literatura pr-miguelista e das novas correntes do nacionalismo

    monrquico.

    As razes que ditaram a contra-revoluo monrquica, temtica nem

    sempre devidamente valorizada pela historiografia, correspondem quilo que

    a sociologia poltica identifica como ruptura ou inexistncia de um consenso,

    de que resultou o conflito ideolgico e a recusa da legitimidade poltica9.

    Antnio Costa Pinto identificou trs clivagens scio-polticas que

    8 Susan, Pederson, Que a histria poltica hoje?, in David Carradine (Coordenao), Que

    a Histria Hoje?, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 62. 9 Cf. Seymour Martin Lipset, Consenso e Conflito, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 15. Sobre a

    questo da legitimidade, leia-se Max Weber, Trs Tipos de Poder e outros Escritos, Lisboa, Tribuna, 2005.

  • 7

    contriburam para o fracasso da repblica e que podemos assumir como

    rupturas ou impedimentos formao do consenso: a questo do regime, a

    questo religiosa, que este autor identificou com a secularizao, e a

    oposio entre o campo e o mundo urbano10. foroso reconhecer que em

    todas estas dimenses a presena dos monrquicos central e relevante

    como instncia explicativa. Como procuraremos demonstrar, foi em torno

    destas clivagens polticas e ideolgicas que se concebeu a ruptura com o

    consenso inicial, foi a partir delas que se forjou a contra-revoluo.

    E se aceitarmos a hiptese do mesmo Costa Pinto, segundo a qual o eixo

    analtico que explica o fracasso da repblica reside na formao de um slido

    eixo civil-militar que contestou duramente a legitimidade da nova

    autoridade11, o campo monrquico tem pelo menos direito a uma posio de

    significativo relevo. Durante anos, a aco subversiva dos monrquicos mais

    activos minou a autoridade e a legitimidade da repblica, conspirando e

    aodando o descontentamento da sociedade civil e da caserna. toda essa

    actividade conspirativa, nem sempre fcil de reconstruir, e que culmina na

    restaurao da monarquia em 1919, que ser objecto de uma parte desta

    investigao. Corresponde ao estudo da contra-revoluo na sua faceta

    diacrnica, estabelecida a partir das conjunturas mais conturbadas do novo

    regime, articulando a dimenso narrativa com a explicativa que torne

    inteligveis os fenmenos polticos mas que permita, ao mesmo tempo, a

    revelao dos meios e a tipologia das aces subversivas. Resultou este

    esforo analtico de um conjunto assinalvel de fontes de arquivo, incluindo

    processos judiciais, relatrios e documentao militar, correspondncia

    particular e projectos polticos, em articulao com as fontes impressas e a

    imprensa, sempre teis na reconstruo dos ambientes polticos e

    ideolgicos. Algumas lacunas na reconstruo das dinmicas contra-

    revolucionrias esto relacionadas com o movimento externo. Devido

    impossibilidade de aceder a muitas fontes da emigrao e at das

    chancelarias diplomticas, ficou por confirmar a existncia de outras

    10 Antnio Costa Pinto A Queda da Primeira Repblica, in A Primeira Repblica Portuguesa

    entre o Liberalismo e o Autoritarismo, Lisboa, Edies Colibri, 2000, pp. 33-34. A tese foi repetida em A queda da 1. Repblica Portuguesa: uma interpretao, in Manuel Baia (ed.), ob. cit., pp. 165-183.

    11 Ibidem, p. 42.

  • 8

    movimentaes poltico-diplomticas e at conspirativas conduzidas a partir

    de outras latitudes.

    A anlise cronolgica da contra-revoluo perderia em riqueza explicativa

    se secundarizasse os debates doutrinrios e as questes ideolgicas. na

    esfera da ideologia, na existncia de uma mundividncia alternativa ao

    republicanismo, que a histria da oposio monrquica pode conquistar

    protagonismo numa anlise global da evoluo da sociedade portuguesa

    entre 1890 e 1926. Em nosso entender, a repblica procurou harmonizar-se,

    afinal, com os ecos progressistas e democratizantes propalados por

    diferentes correntes radicais desde o final do sculo XIX, para quem o

    parlamentarismo oligrquico da monarquia constitucional estava longe de

    responder s exigncias do liberalismo positivo. Para quem o Estado central

    e burocrtico, dominado pelas elites burguesas dos partidos dinsticos, e

    atolado num estado vegetativo de corrupo endmica, estava longe de

    responder s crescentes reclamaes das classes proletrias. No por

    acaso que as reivindicaes destes sectores mais progressistas se

    encontravam nas cidades, associadas ao parco desenvolvimento industrial e

    a uma certa conscincia de classe. Tal como na Europa, o partido socialista e

    os grupos radicais do anarco-sindicalismo pressionavam os governos no

    sentido de um alargamento democrtico, que pelo menos tendesse ao

    estabelecimento do sufrgio universal. Em Portugal, a propaganda

    republicana e, mais radical, a retrica anarco-sindicalista exigiam uma

    profunda reforma do sistema poltico que se traduzisse na abolio da

    monarquia e do princpio dinstico, instituindo esse liberalismo positivo onde

    os cidados se governam a si prprios, concebendo um Estado laico e

    secularizando a sociedade, a cultura e as mentalidades12.

    As propostas republicanas e anarco-sindicalistas de revoluo radical

    provocaram o medo da classe poltica liberal que, na esteira de pensadores

    contra-revolucionrios e conservadores, abominava a multido. Isto torna

    inteligvel o verdadeiro temor que se apossou dos sectores anti-republicanos

    que no aderiram ao novo regime, e que viam na repblica a evoluo para

    aquilo que ento classificavam de tirania democrtica. Na leitura

    12 Sobre a propaganda republicana, leia-se Amadeu Carvalho Homem, A Propaganda

    Republicana, Coimbra, Cmara Municipal, 1991; Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da Origem ao 5 de Outubro, vol. 1, Coimbra, Faculdade de Letras, 1991.

  • 9

    interpretativa que fazemos do fenmeno ideolgico deste perodo, seguimos

    as concepes epistemolgicas da histria poltica mais recente. Esta no se

    limita a analisar os comportamentos individuais ou colectivos e as suas

    consequncias. Procura tambm compreender as suas percepes e

    sensibilidades para a partir delas avaliar a formulao e transmisso de

    crenas e valores13. Trata-se portanto de analisar o pensamento poltico dos

    diferentes indivduos ou agrupamentos da direita monrquica tal como ele

    foi entendido pelos actores histricos14.

    Se verdade que a repblica nunca assumiu a feio de um sistema

    democrtico foi, como a monarquia constitucional, um sistema demoliberal

    o mundo conservador, identificado na epgrafe por Cunha e Costa, temia

    que o regime acabasse por consagrar a democracia de massas, na sua

    frmula mais tirnica e demaggica j ento contestada pela crtica

    antimoderna, de Nietzsche, Barrs, Maurras, Le Bon e alguns positivistas

    como Taine e Renan. Todos vislumbravam na democracia a forma poltica de

    declnio e essa leitura atravessou o pensamento da direita moderna,

    incluindo os conservadores liberais, e da direita antimoderna. A leitura

    atenta da sua imprensa (apesar da censura), dos seus livros, opsculos,

    manifestos, panfletos e todo um acervo de correspondncia particular e

    oficial, enfim, toda a retrica e toda a literatura da contra-revoluo deste

    perodo exprimem sem hesitao a repugnncia democrtica que tinham

    como inevitvel. Pode opinar-se que o campo monrquico tinha fraca

    expresso quantitativa15. Mas a sua influncia, que procuraremos

    demonstrar, no mundo rural, entre os indiferentes e passivos, a nao de

    iletrados a que se referia Cunha e Costa, que continuavam sob a alada das

    elites locais, era suficiente para causar problemas que a historiografia no

    pode, pensamos ns, continuar a desvalorizar.

    Por isso entendemos que o conflito entre republicanos e o mundo

    conservador que aqui se conota com os monrquicos e os catlicos e

    alguns republicanos convertidos realeza assume essa dimenso de pleito

    entre a modernidade poltica e a tradio, numa continuidade ideolgica feita

    13 Jean-Franois Sirinelli, LHistoire Politique et Culturelle, in Ruano-Borbalan, Jean-

    Claude (Coord.), LHistoire aujourdhui, Auxerre, ditions Sciences Humaines, 1999, p. 159. 14 Susan, Pederson, Que a histria poltica hoje?, in David Carradine (Coordenao),

    Que a Histria Hoje?, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 72. 15 Cf. Antnio Costa Pinto, A queda da 1. Repblica Portuguesa: uma interpretao, in

    Manuel Baia (ed.), ob. cit., p. 174.

  • 10

    de avanos e recuos16. Isto , apesar dos erros e vicissitudes que impediram

    a consagrao de uma verdadeira comunidade poltica, impossibilidade que

    se estendeu a toda a Europa liberal17, e que em Portugal se caracterizou pelo

    desrespeito pela sociedade civil18, havia uma clivagem ideolgica

    importante com os monrquicos e outras agremiaes. Se a propaganda

    realista pregava contra a inexistncia de liberdades constitucionais,

    tambm verdade que ao nvel dos princpios o seu pensamento poltico

    desprezava a existncia dessa comunidade poltica caracterizada pelo

    dinamismo poltico dos seus indivduos, por uma verdadeira cultura de

    cidadania, e pela emancipao face s tradies e herana histrica

    colectiva.

    A nova direita monrquica, cuja gnese se vislumbra nos movimentos

    nacionalistas e elitistas emergentes no final do sculo XIX, com afinidades

    estreitas com o ressurgimento catlico19, encontrar na repblica a

    legitimidade terica para iluminar o pensamento poltico com as verdades

    eternas da contra-revoluo, do nacionalismo e do tradicionalismo,

    institudas como barreiras contra a decadncia liberal e democrtica. No

    s o Estado liberal que alvo das diatribes desta mundividncia orientada

    pelas verdades universais e eternas, acima de tudo o homem massa,

    individual e abstracto, que ameaa os alicerces da civilizao crist.

    Esta oposio entre tradio e modernidade, mesmo que uma

    modernidade ferida em algumas das suas premissas ideolgicas bsicas,

    constituiu o eixo nevrlgico desta investigao e respectiva dissertao. A

    diviso do plano de trabalho em trs partes obedece, ipso facto,

    necessidade de articular a diacronia com as questes terico-doutrinrias. A

    primeira parte, que se estende do 5 de Outubro primeira Outubrada, em

    1913, corresponde ao surgimento da primeira reaco ao programa

    16 Sobre esse progresso da ideia democrtica, leia-se Luciano Cnfora, A Democracia.

    Histria de uma Ideologia, Lisboa, Edies 70. 17 Sobre as crise do liberalismo, leia-se Marcel Gauchet, LAvnement de la Dmocratie II La

    Crise du Libralisme, Paris, Gallimard, 2007. 18 inevitvel assumir, como faz Rui Ramos, que apesar da constituio consagrar um

    Estado moderno, como alis acontecia com a monarquia constitucional, no funcionava em Portugal uma verdadeira sociedade civil, porque a violncia e os mecanismos institucionais impediam o acesso ao Poder e a existncia de direitos polticos universais. Cf. Foi a Primeira Repblica um regime liberal? Para uma caracterizao poltica do regime republicano portugus entre 1910 e 1926, in Manuel Baia (ed.), ob. cit., pp. 186-188.

    19 Sobre ambiente reformista e regenerador que preparou o iderio monrquico, leia-se Jos Manuel Quintas, Filhos de Ramires. As origens do Integralismo Lusitano, Lisboa, Editorial Nova tica, 2004, pp. 45-63.

  • 11

    secularizador da repblica e definio, ainda que meramente embrionria,

    dos primeiros pressupostos ideolgicos da direita monrquica. tambm o

    perodo em que a reaco poltico-militar se organiza de forma muito

    dispersa, articulando os movimentos internos com a emigrao. No ainda,

    ou somente, a oposio monrquica, mas a predisposio do mundo

    conservador em defesa de crenas e tradies seculares. Na ausncia de

    estruturas organizativas e de instrumentos de propaganda, o movimento

    ficou sob a chefia simblica do inevitvel Paiva Couceiro, o paladino ou

    comandante de uma causa a que parecia faltar f, e que fervilhava em

    animosidades, dissenses e negativismos.

    A segunda parte comea com a amnistia republicana, de 1914, que

    permitiu o regresso a Portugal de milhares de emigrantes espalhados por

    diferentes latitudes, em Espanha, Frana, Blgica, Inglaterra e Brasil.

    Organizou-se ento a Causa Monrquica, ainda que sem estruturas formais,

    e formaram-se os diferentes agrupamentos poltico-ideolgicos, consociados

    entre diferentes sensibilidades ideolgicas que partilhavam apenas a

    fidelidade a D. Manuel. o perodo ureo da propaganda monrquica,

    marcada pela proliferao de um viveiro fluente de instrumentos de

    propaganda, especialmente de revistas doutrinrias que estimularam o

    debate poltico-ideolgico. Mas este perodo ficou tambm marcado pelo

    eclodir da I Guerra Mundial, fenmeno devastador cujas implicaes se

    fizeram sentir na vida pblica e no quotidiano de milhes de pessoas em

    diferentes continentes. Perodo frtil em debates e polmicas, a conjuntura

    belicista dividiu profundamente a sociedade portuguesa, dando aos sectores

    monrquicos mais irrequietos a oportunidade para disseminar a discrdia e o

    dio poltico ao partido da guerra e ao regime. Revisitaremos as tenses

    internas dos adeptos da coroa sobre a atitude a adoptar perante o conflito

    mundial e as expectativas emergentes sobre a fundao de uma nova ordem

    mundial assente num renovado paradigma ideolgico. Para os realistas, a

    guerra constituiu um perodo fecundo em aces subversivas e projectos de

    restaurao, de que resultou uma aproximao aos corredores do Poder

    durante os governos ditatoriais e antiguerra de Pimenta de Castro e de

    Sidnio Pais.

    Finalmente, na terceira parte, revisitamos o sidonismo, que j tnhamos

    estudado no livro Os monrquicos e a Repblica Nova, e analisamos a

  • 12

    evoluo poltico-militar que desemboca na restaurao da monarquia no

    Porto, a 19 de Janeiro de 1919, termo cronolgico desta demanda

    investigativa que praticamente coloca um ponto final na clivagem do regime.

    Com base no estudo de novas provas arquivsticas, muitas delas ainda

    inditas, tentaremos contribuir para a elucidao desse perodo conturbado,

    cunhado pela inaugurao dos mltiplos pronunciamentos que, como bem

    viu Douglas Wheeler, definiram Portugal at emergncia da Ditadura

    Militar e do prprio Estado Novo20.

    Antiliberalismo e contra-revoluo na I Repblica (1910-1919) sugere

    assim uma articulao da aco poltico-militar e subversiva com um

    projecto ideolgico de matiz conservador e antiliberal para a futura

    monarquia. Mesmo a resistncia de algumas das figuras de proa do

    liberalismo no impede que se vislumbre neste campo poltico a emergncia

    de um iderio conservador que afinal haveria de governar a Europa entre as

    duas guerras21, perodo que alguns historiadores j caracterizaram como

    Guerra civil europeia22. Procuramos assim estabelecer o contributo da

    Direita Monrquica, tambm ela exposta a divergncias ideolgicas e

    organizativas profundas, para a formao desse imaginrio conservador,

    nacionalista e autoritrio que caracterizou a longa Guerra civil europeia e

    que em Portugal, sob o signo da Ditadura Militar e depois do Estado Novo,

    se estendeu num ciclo de longevidade que s terminou com nova

    interveno militar, em 1974.

    A terminar, deve referir-se que optmos por actualizar a grafia em todas

    as citaes, atendendo amplitude e diversidade cronolgica da

    documentao utilizada. Mantivemos, por outro lado, inaltervel a pontuao

    utilizada pelos autores dos textos e documentos.

    20 Wheeler, Douglas L. Histria de Portugal 1910-1926, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica,

    1978, pp. 216 e ss. 21 Cf. Susan, Pederson, Que a histria poltica hoje?, in David Carradine (Coordenao),

    Que a Histria Hoje?, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 72. 22 Cf. Luciano Canfora, ob. cit., p. 205. A expresso teria sido cunhada por Isaac Deutscher

    numa conferncia dada na Universidade de Cambridge, em 1967.

  • 13

    A investigao que agora termina contou com a colaborao de muitas

    pessoas e instituies. Quero em primeiro lugar manifestar ao Professor

    Doutor Amadeu Carvalho Homem, que me orientou nesta longa caminhada,

    a minha sincera gratido pelas sugestes e crticas que foi produzindo.

    Sendo especialista reputado na histria do republicanismo, nunca a sua

    viso dos problemas investigados se procurou sobrepor s minhas prprias

    interpretaes, dando-me um exemplo de tolerncia intelectual que muito

    me apraz encarecer publicamente. Naturalmente que quaisquer lacunas ou

    limitaes encontradas nesta dissertao so da minha exclusiva

    responsabilidade. Ao Professor Doutor Antnio Pedro Vicente agradeo o

    interesse com que sempre acompanhou o meu trabalho e a sua

    generosidade, franqueando-me o acesso sua biblioteca, onde encontrei

    livros e fontes que muito facilitaram a minha consulta. No mbito da

    Faculdade de Letras, recordo tambm o interesse e as sugestes dos

    Professores Doutores Fernando Catroga e Vtor Neto. O reconhecimento

    tambm devido ao Centro de Estudos Interdisciplinares, na pessoa da sua

    coordenadora, Professora Doutora Maria Manuela Tavares Ribeiro, que me

    tem permitido apresentar e discutir publicamente algumas das problemticas

    nodais desta dissertao.

    No plano das instituies, agradeo a simpatia e o profissionalismo com

    que fui sempre tratado na Torre do Tombo, Biblioteca Nacional, Biblioteca

    Geral da Universidade de Coimbra, Arquivo do Ministrio dos Negcios

    Estrangeiros e sobretudo no Arquivo Histrico-Militar, onde a diligncia dos

    seus funcionrios me permitiu aceder a alguns arquivos ainda inditos e

    outros pouco estudados. Uma palavra de apreo devida aos amigos e

    colegas pelo interesse e solidariedade, em especial ao Fernando Fava e

    Lina Madeira. Devo uma referncia particular ao Antnio Maduro, amigo

    sincero de longa data com quem existe uma comunho de interesses, com

    quem debati muitas dvidas e incertezas e que arranjou tempo e pacincia

    para ler este texto.

    Finalmente, recordo a famlia e em especial a minha mulher, Madalena,

    porque sem o seu estmulo e o seu apoio incondicional esta dissertao

    simplesmente no existia.

  • 14

    Parte I

    Gnese da contra-revoluo (1910-1913)

  • 15

    Captulo I

    A reaco monrquico-clerical

    1. A Repblica dos Sapateiros

    A I repblica instalou-se em Portugal sob os auspcios de um vasto

    programa doutrinrio e ideolgico elaborado durante dcadas e que em

    Portugal tinha a sua origem distante na teorizao de Jos Flix Henriques

    Nogueira. Herdeiro da memria de 1848, o republicanismo no se limitava

    contestao poltica da monarquia, mas apresentava-se como proposta de

    matriz ontolgica, em que a eliminao da realeza constitua uma exigncia

    no s da natureza humana mas tambm do progresso universal23. Mais do

    que simples recusa antidinstica, consubstanciava um sistema de

    representaes, ideias e valores que almejava a completa realizao do

    Homem pela emancipao do indivduo face s formas tradicionais de vida

    e pela capacidade de construir o seu destino24. A sua filiao iluminista, a

    crena no progresso contnuo e no aperfeioamento do Homem, colocavam a

    repblica como finalidade da Histria, regime que Tefilo Braga antecipava

    como a forma poltica exigida pela natureza e pela sociedade e a nica

    capaz de proceder cientificamente regenerao intelectual, moral e

    econmica da nao portuguesa25.

    O positivismo e o cientismo, cultivados por intelectuais e pelas

    principais figuras do republicanismo, como Tefilo Braga, Manuel Emdio

    Garcia, Miguel Bombarda e Jlio de Matos, inoculavam o pensamento

    republicano da certeza cientfica, numa poca em que a cincia acreditava

    23 Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da Formao ao 5 de Outubro, vol.

    2, Coimbra, Faculdade de Letras, 1991, p. 168. 24 Jurgen Habermas, O Discurso Filosfico da Modernidade, Lisboa, Publicaes D. Quixote,

    1990, p. 89. 25 Fernando Catroga, Os incios do Positivismo em Portugal. O seu significado poltico-

    social, in Revista de Histria das Ideias, n. 1, Coimbra, Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 1977, p. 370.

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    poder decifrar as leis que presidiam marcha da humanidade e prever o

    futuro. Para os discpulos de Comte e especialmente Littr, que teve em

    Portugal mais proslitos que o mestre26, as transformaes no poder

    temporal exigiam a formulao de um novo poder espiritual. A dimenso

    pedaggica de uma espcie de enciclopedismo renovado, veiculado atravs

    de mltiplas publicaes, como a revista Positivismo (1878-1883), visavam

    a educao das elites e a renovao mental e moral necessria s

    transformaes polticas e sociais27. A repblica era ento antecipada pela

    cincia social e por isso adivinhava-se a sua emergncia como uma

    consequncia implcita na ordem das coisas28.

    Entre as componentes mais importantes do sistema poltico-filosfico do

    republicanismo contavam-se o anticlericalismo e o laicismo, correspondendo

    ao patrimnio ideolgico herdado da Revoluo Francesa e que o cientismo

    aprofundou, perseguindo a dessacralizao da natureza e da sociedade. O

    anticlericalismo tinha tradio em Portugal no combate ao jesuitismo, ao

    congreganismo e ao ultramontanismo e radicava na crena de que as

    corporaes religiosas contribuam para o obscurantismo da populao e

    impediam o progresso. Mas este primeiro anticlericalismo no contestava a

    existncia de Deus e a importncia social das religies, limitando-se a exigir

    a moralizao do clero e a liberalizao da Igreja29. A sua evoluo ao longo

    da segunda metade do sculo XIX, e j sob a influncia do livre-pensamento

    europeu, do positivismo e do cientismo, conduziu a um aprofundamento dos

    debates e ao alargamento das exigncias anticlericais.

    Segundo Fernando Catroga, na base da questo religiosa estava a

    necessidade de se produzir uma secularizao externa da sociedade e

    interna das conscincias. neste contexto que devem entender-se as

    exigncias no sentido de separar o Estado das Igrejas, da laicizao do

    ensino, da assistncia e da famlia, no ltimo caso pela introduo do

    divrcio; e a secularizao completa dos actos essenciais da vida, como o

    nascimento, o casamento e a morte, estabelecendo o registo civil

    26 Amadeu Carvalho Homem, A Ideia Republicana em Portugal. O contributo de Tefilo

    Braga, Coimbra, Minerva Histria, 1989, pp. 98 e ss. 27 Fernando Catroga, Tefilo Braga e o movimento positivista, in Sociedade e Cultura

    Portuguesa II, Lisboa, Universidade Aberta, 1994, p. 220. 28 Amadeu Carvalho Homem, ob. cit., p. 232. 29 Fernando Catroga, O livre-pensamento contra a Igreja. A evoluo do anticlericalismo

    em Portugal (sculos XIX e XX), in Revista de Histria das Ideias, vol. 22, Coimbra, Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 2001, p. 275.

  • 17

    obrigatrio30. Estas exigncias conformavam-se com a vasta campanha de

    descristianizao operada sob a influncia da Cincia e da Razo, e com

    razes nas Luzes, que inseria o homem na Natureza, transferindo para o

    campo da imanncia a idealizao da prpria humanidade31.

    O anticlericalismo tornou-se mais radical a partir do final do sculo XIX,

    quando a questo religiosa se tornou capital nos debates poltico-ideolgicos.

    A reaco da Igreja aos avanos do anticlericalismo e do prprio

    materialismo ateu seria coordenada pelo Vaticano. Primeiro por Pio IX, que

    condenou toda a doutrina liberal e promoveu o ressurgimento de uma nova

    religiosidade e da espiritualidade catlica. Depois, por Leo XIII, que no s

    procurou harmonizar o liberalismo com a religio, como ofereceu uma

    alternativa crist para a questo social com a encclica Rerum Novarum

    (1891)32. No campo poltico, o Vaticano envidou todos os esforos para

    organizar os catlicos, visando a reconquista da sociedade para os valores

    cristos e menos a conquista do Poder. A Democracia Crist assumiu-se

    ento como alternativa ao liberalismo poltico33.

    A reaco da Igreja Catlica acendrou o combate religio, entendida

    como suporte ideolgico e cultural da monarquia. S ento a religio se

    transformou no verdadeiro inimigo para republicanos e livres-pensadores,

    que acreditavam que s a eliminao de Deus permitia a emancipao das

    conscincias e a liberdade individual. Isso explica o recrudescimento do

    combate anticlerical no ataque religio vindo dos sectores republicanos,

    carbonrios e manicos que se conluiaram para derrubar a repblica por via

    revolucionria34. A questo religiosa foi ento o elemento congregador, o

    cimento ideolgico dos sectores radicais no combate Monarquia, como

    30 Ibidem, p. 276. 31 Amadeu Carvalho Homem, A crise contempornea da noo de divino, in Progresso e

    Religio. A repblica no Brasil e em Portugal 1889-1910, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007, p. 196.

    32 Cf. Rerum Novarum, Sobre a situao dos Operrios, 15-05-1891; Vtor Neto, O Nacionalismo Catlico em Jacinto Cndido, in Revista de Histria das Ideias, vol. 22, Coimbra, Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 2001, p. 397;

    33 A doutrina social da igreja foi instituda pela encclica Graves de communi. Cf. Richard A. H. Robinson, Os catlicos e a Primeira Repblica, in Nuno Severiano Teixeira e Antnio Costa Pinto (Coord.), A Primeira Repblica entre o Liberalismo e o Autoritarismo, Lisboa, Edies Colibri, 2000, p. 93.

    34 Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal, cit., vol. 1, pp. 135-157. Leia-se, tambm, Antnio Ventura, Anarquistas, Republicanos e Socialista em Portugal. As convergncias possveis (1892-1910), Lisboa, Edies Cosmos, 2000.

  • 18

    reconheceu o prprio Sebastio de Magalhes Lima, mestre do Grande

    Oriente Lusitano35.

    O combate ordem poltico-constitucional da monarquia constituiu

    outra das preocupaes centrais dos republicanos e dos seus aliados

    radicais. A interpretao histrica do Antigo Regime mostrava que as

    revolues liberais tinham substitudo a representao divina pela

    representao popular e o sbdito pelo cidado. Em Portugal, porm, a

    burguesia instalada aceitou na Carta Constitucional a consagrao plena de

    uma representao hbrida, plasmada na glorificao da origem divina do

    poder rgio com a sua aceitao nacional por plebiscito tcito36. Ao

    outorgar a Carta nao e reservando para si o poder moderador, o

    monarca tornava-se no eixo nevrlgico do sistema poltico, controlando o

    poder executivo e legislativo, e reservando para si importantes atribuies

    de natureza judicial37.

    Na substncia do combate monarquia encontramos a recusa do

    sufrgio censitrio, que estabelecia a existncia de duas formas de cidadania

    na ordem jurdico-social, a cidadania passiva e a cidadania activa. O sufrgio

    censitrio ou capacitrio, que muitos republicanos de tradio liberal

    tambm acatavam, decorria da presuno de que o estatuto de proprietrio

    consignava o mrito e as capacidades administrativas dos indivduos, que

    elegiam ou eram elegveis em funo dos seus nveis de tributao e

    portanto do seu contributo para o progresso colectivo38. A defesa de um

    parlamentarismo genuno sado da vontade popular, a eleio do chefe de

    Estado e a diminuio gradual das limitaes capacitrias em direco ao

    sufrgio universal, constituam importantes reivindicaes polticas do

    republicanismo e dos sectores mais progressistas, que acreditavam que s a

    instaurao da repblica poderia regenerar um pas em crise e eliminar os

    miasmas de uma sociedade anquilosada.

    Este simples bosquejo do iderio republicano torna inteligvel a opo

    do Governo Provisrio de arrancar imediatamente com um programa de

    35 Fernando Catroga, O livre-pensamento contra a Igreja. A evoluo do anticlericalismo

    em Portugal (sculos XIX e XX), cit., pp. 339-340. 36 Amadeu Carvalho Homem, A Ideia Republicana em Portugal. O contributo de Tefilo

    Braga, cit., p. 239. 37 Idem, Ibidem, pp. 237-238. Entre as prerrogativas rgias contava-se a possibilidade de

    vetar diplomas aprovados na cmara dos deputados, nomear os Pares hereditrios, convocar Cortes extraordinrias, a homologao de diplomas, etc.

    38 Idem, Ibidem, pp. 256 e ss.

  • 19

    reformas que fosse coerente com as exigncias da opinio pblica radical e

    do livre-pensamento, a comear pela expulso das congregaes religiosas.

    No incio do sculo XX, o dio anticongreganista tinha como alvo os jesutas,

    corporao cuja influncia na sociedade e na Igreja Catlica tinha

    aumentado no decurso da segunda metade do sculo XIX39 e que uma lei de

    Hintze Ribeiro, de 1901, legalizou de forma capciosa. Os jesutas eram

    objecto de uma exagerada mitologia originria no sculo XVIII que os

    colocava ao servio de foras obscuras e que os responsabilizava pela

    decrepitude nacional40. Compreende-se assim que o Governo Provisrio

    tenha iniciado a sua obra revolucionria combatendo o congreganismo e

    expulsando os jesutas de Portugal41.

    Seguiu-se um conjunto de medidas que visavam a secularizao da

    sociedade e das conscincias. A laicizao do Estado implicou um vasto

    programa reformador que teve incio com a proibio do juramento religioso

    nos actos civis (18 de Outubro), a proibio do ensino religioso nas escolas

    (22 de Outubro), a supresso dos dias santos e feriados religiosos (26 de

    Outubro); a proibio dos militares de participar em cerimnias religiosas

    (11 de Novembro), a lei do divrcio (3 de Novembro) e, mais tarde, o

    decreto sobre o registo civil obrigatrio (18 de Fevereiro). Este vasto

    programa de secularizao tinha implicaes poltico-ideolgicas

    importantes. Com efeito, os republicanos aceitavam que a influncia da

    religio nas conscincias se operava atravs dos mecanismos exteriores do

    culto, da sua atraco cultural e simblica e do controlo da Igreja sobre a

    vida particular das pessoas. No entanto, no se tratava de uma eliminao

    pura e simples do contedo simblico e espiritual das manifestaes

    religiosas, mas a sua substituio por um conjunto de manifestaes cvicas

    que aprofundassem a cidadania e o reforo dos valores patriticos42.

    39 Leia-se Jos Caldas, Os Jesutas e a sua influencia na actual sociedade portuguesa: meio

    de a conjurar, Porto, Livraria Chardron, 1901; Manuel Borges Grainha, A propsito do caso das Trinas. Os Jesutas e as Congregaes Religiosas em Portugal nos ultimos trinta annos, Porto, Typ. Da Empreza Litteraria e Typogrphica, 1891; Trindade Coelho, Manual Politico do Cidado Portuguez, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1906.

    40 Cf. Maria Lcia de Brito Moura, A Guerra Religiosa na Primeira Repblica, Lisboa, Notcias Editorial, 2004, pp. 25-26.

    41 O diploma de 8 de Outubro, cujo contedo se manteve no art. 3. da Constituio de 1911, anulava o decreto de 18 de Abril de 1901 e repunha em vigor a legislao pombalina de 3 de Setembro de 1759 e de 28 de Agosto de 1767 sobre a expulso dos jesutas; e ainda a lei de 28 de Maio de 1834, que extinguia as casas religiosas e todas as ordens regulares.

    42 Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da Formao ao 5 de Outubro, cit., pp. 323-376.

  • 20

    A questo religiosa culminou na Lei de Separao do Estado das

    Igrejas, de 20 de Abril de 1911, da autoria de Afonso Costa, poltico que

    estivera na vanguarda do combate anticlerical desde que em Coimbra

    defendera como tese A Igreja e a Questo Social (1895)43. A lei de

    separao institua o Estado neutro em matria religiosa, consignao

    decorrente da veiculao da liberdade de conscincia e religiosa. Lei

    verdadeiramente estruturante da I Repblica, com ela se nacionalizou a

    propriedade da Igreja e proibiu o ensino religioso, para alm de todo um

    complexo normativo com que o Estado interferia efectivamente na

    administrao da religio e do culto. Entre mltiplas disposies, a nova lei

    criou as comisses cultuais, que no podiam ser presididas por sacerdotes e

    a quem competia organizar e fiscalizar o culto, proibiu o uso de vestes

    talares no espao pblico e condicionou todas as manifestaes exteriores

    de culto ao espao privado dos templos, com o argumento de que podiam

    alterar a ordem pblica. A lei prescrevia ainda um conjunto de normas sobre

    o funcionamento do culto, instituiu o beneplcito que herdara da

    monarquia - e criou um regime de penses para os padres que solicitassem

    auxlio material ao Estado. Mais tarde, a Constituio da Repblica

    Portuguesa limitou-se a consagrar a existncia do Estado laico e a consolidar

    no sistema jurdico-social os preceitos definidos na lei de separao.

    A poltica anticlerical da repblica parecia encontrar, no incio, um

    terreno favorvel entre os sectores mais liberais e progressistas da

    sociedade portuguesa. A expulso das ordens religiosas foi recebida com um

    entusiasmo freme nas hostes antijesuticas, entusiasmo que a Capital

    anunciou triunfalmente em parangonas exageradas: J hoje foram expulsos

    dos coios religiosos centenas de frades e freiras44. O seu significado poltico

    e ideolgico ficava claro nos comentrios do mesmo peridico, para quem

    este quadro legislativo se limitava a satisfazer as aspiraes do povo

    liberal45.

    O povo liberal, que assim demandava a mais completa secularizao

    da sociedade portuguesa, no englobava apenas os republicanos. Integrava

    43 A Igreja e a Questo Social constitui a crtica doutrina social da Igreja Catlica

    instituda por Leo XIII atravs da encclica Rerum Novarum (15-05-1891), que acusa de apenas pretender reafirmar o poder social e poltico da Igreja e do catolicismo.

    44 A Capital, ano 1, n. 100, 08-10-1910, p.1. 45 Ibidem.

  • 21

    todos os sectores poltico-sociais que marcaram presena na manifestao

    anticlerical de 2 de Agosto de 1909, no auge da campanha de

    descristianizao, desenvolvida no final da monarquia46. Na verdade, parte

    da opinio pblica expressava-se no sentido de uma reforma radical,

    incluindo a antiga esquerda monrquica, que partilhava o dio clerical com

    os republicanos47. O jornal O Dia, que acompanhou o adesivismo de Jos de

    Alpoim, desde a primeira hora48, explanar o sentimento dos sectores

    monrquicos liberais que comungavam do esprito secularizador e anticlerical

    dos republicanos. Sob o ttulo Trabalho Formidvel Imprensa Divrcio

    Registo Civil Separao da Igreja do Estado - Amnistia, o jornal elogiava

    o programa republicano, reafirmando que a Repblica portuguesa tem,

    como o fez o liberalismo monrquico pela mo de Mouzinho, de destruir a

    obra encontrada e construir uma sociedade nova49.

    Aparentemente, a repblica florescia num quadro optimista, com os

    polticos de diferentes quadrantes, incluindo os sectores monrquicos mais

    liberais, a expressarem a sua benvola expectativa50 para com um regime

    em que todos, incluindo Paiva Couceiro51, depositavam as maiores

    esperanas. Com a dissoluo dos partidos monrquicos, hordas de polticos

    e oficiais do exrcito acorreram a aplaudir estrondosamente o novo regime,

    a filiar-se no Partido Republicano, num processo de adeso que causaria

    muitos dissabores repblica.

    Mas a profunda transformao da sociedade portuguesa exigia do

    republicanismo uma poltica revolucionria. A via revolucionria impusera-se

    definitivamente no Congresso de Setbal, em 1909, substituindo a via

    46 Cf. Fernando Catroga, O Laicismo e a questo religiosa em Portugal, Anlise Social,

    vol. XXIV (100), 1988, (1.), p. 236. 47 O jornal O Dia [n. 3173, de 07-10-1910], rgo do partido dissidente, afirmaria ento

    que da mesma forma que queramos uma monarquia amplamente democrtica, anticlerical, desejamos que a nova Repblica tenha um carcter radical, olhando para as questes de justia social, e extinguindo de vez alis ter graves sobressaltos e perturbaes! todas as foras, conventuais e jesuticas, do ultramontismo [sic] catlico.

    48 Cf. O Dia, n. 3172, 06-10-1910, p.1. 49 O Dia, n. 3189, 26-10-1910, p.1. 50 Para lvaro Pinheiro Chagas, Na sua maioria, mesmo na sua maioria, os monrquicos

    entendiam ento que a Repblica e os seus homens, quando no merecessem a adeso, mereciam uma expectativa benvola, mesmo muito benvola, pois eram homens de saber e respeitabilidade, pois era um regime que se apresentava bem intencionado [O Movimento Monarchico. II O Correio da Manh, Porto, Leito & C., 1913, p. 69].

    51 Essa esperana na capacidade regeneradora da Repblica est bem expressa nas Aclaraes Proposta Apresentada ao Governo Provisrio, documento com a data de 6 de Maio de 1911. Vem transcrito, com outros manifestos, em Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monarchica, Lisboa, Edio do Autor, 1912, pp. 92-93.

  • 22

    evolutiva que em tempos enformara republicanos do calibre de Tefilo

    Braga, para quem o vocbulo revoluo se limitava a assumir o culminar

    de uma renovao filosfica de contedo de conscincia52. Desde 1909,

    pelo menos, que a tarefa do ressurgimento nacional depende

    necessariamente de um esforo revolucionrio53. Assim se explica que o

    Governo Provisrio, em vez de se limitar a garantir a ordem pblica e a

    preparar a eleio para a assembleia constituinte, tenha operado uma

    reforma poltico-ideolgica que marcou a evoluo do regime republicano em

    Portugal.

    A revoluo visava afinal a transformao violenta da estrutura poltica,

    social e cultural de Portugal. Bernardino Machado exps esta ideia numa

    conferncia que realizou no Centro Radical, afirmando que a poltica deve

    ser profundamente radical. Dantes havia um governo reaccionrio e uma

    sociedade progressista. Hoje temos o dever de completar a obra de

    revoluo de sociedade. A poltica tem de ser revolucionria, a fim de

    completar o movimento de 5 de Outubro, e de se assentarem as bases do

    novo governo54. Herdeiro da Revoluo Francesa e da revoluo vintista, o

    5 de Outubro institua uma legitimidade revolucionria que substitura a

    legitimidade tradicional representada pelo princpio dinstico55.

    Nos alvores do regime parecia existir um consenso na sociedade

    portuguesa sobre essa legitimidade revolucionria. Mas o consenso tinha

    apenas a feio de aparncia. Com efeito, pouco tempo decorrido aps a

    revoluo, quando j ecoavam nas ruas agitadas de Lisboa os primeiros

    vagidos da Delenda Repblica, o conselheiro Lus de Magalhes, antigo

    ministro regenerador-liberal e figura proeminente da futura contra-

    revoluo, descrevia assim a reaco: a Reaco apenas um fundo de

    opinio tradicionalista, pouco activa, embora resistente; o pli conservador

    de um pas que no tem, na verdade, motivos de qualquer ordem para

    abandonar esse caminho poltico, nem profundas exigncias orgnicas, que

    52 Cf. Amadeu Carvalho Homem, ob. cit., p. 231. 53 Afirmao de Duarte Leite no Porto, transcrita por David Ferreira, in Histria Poltica da

    Primeira Repblica Portuguesa, vol. 1 (1910-1915) I Parte, p. 27. 54 O Dia, 3. srie, 12. ano, n. 109, 16-11-1910, p.1. 55 Sobre os trs tipos de poder legtimo veja-se Max Weber, Trs tipos de Poder e outros

    Escritos, Lisboa, Tribuna, 2005, pp. 19-32. Para uma leitura do carcter revolucionrio da I Repblica, veja-se Rui Ramos, Sobre o carcter revolucionrio da Primeira Repblica Portuguesa (1910-1926): uma primeira abordagem, in Polis, ns 9/12, Lisboa, Universidade Lusada Editora, 2003, pp. 5-60.

  • 23

    s possa satisfazer por processos revolucionrios; o hbito nacional duma

    instituio oito vezes secular, a que se ligam os perodos mais brilhantes da

    nossa histria; [...] , enfim, e para resumir, a desiluso profunda,

    completa, de todos os que, velhos republicanos sinceros ou monrquicos

    sem obcecao doutrinria, tiveram a ingenuidade de esperar que fosse fcil

    a uma nova camada de homens fazer, dentro da Repblica o bom governo

    representativo, que os maus monrquicos no souberam, ou no quiseram,

    fazer dentro da velha monarquia56.

    Nas palavras de Lus de Magalhes ficava claro que existia uma reaco

    instaurao da repblica, de filiao poltica e ideolgica de direita que

    este conotava vagamente com o tradicionalismo e o conservadorismo.

    Era uma formulao ideolgica de direita ainda pouco precisa, que pouco

    podia significar em termos doutrinrios. Quanto aos sectores da sociedade

    supostamente implicados nesta reaco tradicionalista, descriminava-se a

    enormssima maioria da propriedade, do capital, do alto comrcio, do clero,

    das profisses liberais, do funcionalismo e exrcito, vencidos mas no

    convencidos, e da massa esmagadora das populaes rurais57.

    A verdade que este fundo de opinio, no incio meramente intuitivo,

    emocional, e exprimindo-se apenas em estado latente, no constitua aquilo

    a que poderamos chamar de reaco monrquica. A gnese da contra-

    revoluo reside na oposio que lenta mas desveladamente se foi

    desenhando ao projecto de modernizao da sociedade portuguesa, mas

    tambm aos excessos do radicalismo revolucionrio. sabido que a nica

    resistncia digna desse nome se perfilou em torno de trs peridicos, o

    Correio da Manh, o Dirio Ilustrado e, mais tarde, o Liberal. Apesar de

    reaco tmida, a encontramos as primeiras notas de desencanto e de

    contestao poltico-ideolgica: E comparando com esta viso de sonho a

    decepcionante realidade, reconhecendo os primeiros erros, os primeiros

    desvarios, as primeiras incoerncias, os primeiros despotismos, os primeiros

    ataques liberdade e justia do regime em que puseram as suas melhores

    esperanas da redeno da ptria, talvez exclamem j como o cantor de

    56 Veterano [Lus de Magalhes], Sob a velha bandeira Os Inimigos da Repblica, in

    Correio da Manh, ano I, n. 232, 28-12-1910, p. 1. 57 Ibidem.

  • 24

    Lisette exclamava em 1848: La Republique! Jaimerais peut-tre mieux en

    rver que lavoir58.

    Entre a imprensa realista mais belicosa importa destacar o Correio da

    Manh, ligado a figuras gradas da reaco, como lvaro Pinheiro Chagas,

    Anbal Soares e Joaquim Leito, e que pertencera ao universo jornalstico do

    Partido Regenerador-Liberal. Foi por isso nas pginas do Correio da Manh

    que a contra-revoluo explanou os primeiros argumentos vagamente

    doutrinrios, enunciando o apego do pas monarquia e ao rei: Abstraindo

    de pessoas, de processos e da doutrina, continuamos persuadidos de que

    dadas as condies de tradio, de raa e de temperamento do povo

    portugus e ainda as da poltica europeia, o regime monrquico o que

    convm ao nosso pas59.

    Antes de analisar a aco poltico-militar da reaco monrquico-

    clerical, parece haver vantagem em penetrar no mago do seu contedo

    poltico-ideolgico. Trata-se no fundo de tornar inteligveis as motivaes

    ideolgicas da contra-revoluo, na medida em que a sua gestao parece

    irromper directamente dos efeitos que a poltica revolucionria e reformista

    da repblica provocou nos mais variados sectores da sociedade portuguesa.

    No se trata, portanto, de penetrar um conjunto coerente e sistematizado de

    ideias polticas e ideolgicas, porque esse conjunto no existia ainda. As

    limitaes criadas pelos ataques dos radicais imprensa monrquica, a

    inexistncia de estruturas polticas que dinamizassem e orientassem o

    esforo da opinio anti-republicana e o exlio de antigos polticos, impediram

    a criao de mecanismos formais de propaganda.

    A imprensa, que fora uma arma poderosa nas arremetidas radicais

    contra a monarquia, tinha desaparecido porque h o medo da tirania

    sangrenta60. Em 4 de Outubro existiam em Lisboa onze jornais

    monrquicos, mas em 1912, depois da segunda incurso, apenas o Dia e a

    58 Veterano [Lus de Magalhes], Sob a velha bandeira, in Correio da Manh, ano I, n. 203, 27-11-1910, p. 1.

    59 Repblica, in Correio da Manh, ano I, n. 175, 27-10-1910, p. 1. O Dirio Ilustrado [39 ano, n. 13297, 3-11-1910, p. 1] escrevia tambm a propsito: Portugal, pela ndole do seu povo, foi sempre absolutamente tradicionalista. Daqui o ns estarmos convencidos de que o sistema governativo da repblica lhe no satisfazia as suas aspiraes de conservantismo, no existindo portanto a necessidade imperiosa duma mudana de regime, cuja afirmao foi dita e redita pelos propagandistas vermelhos nos seus tempos de lutas em prol do ideal republicano.

    60 Jos de Arruela, in A Voz do Direito, ano 1, n. 4, 24-04-1912, p. 60: Porque no se fundam jornais catlicos? Porque no se fundam jornais monrquicos? Porque h o medo da tirania sangrenta.

  • 25

    Nao resistiram aos furiosos ataques do radicalismo republicano61. No

    existia um jornalismo de propaganda que s aparecer com a Causa

    Monrquica, organizada em 1914, num contexto poltico diferente. Resta

    assim um conjunto de textos disseminados por cartas particulares,

    panfletos, manifestos, algum jornal de ocasio, atravs dos quais

    procuraremos reconstruir os fios cerzidos pelo discurso contra-

    revolucionrio.

    A abrir esta exegese terico-doutrinria, necessariamente concisa,

    importa estabelecer como prembulo que o discurso ideolgico da primeira

    contra-revoluo (1910-1911) no prescrevia a realeza como finalidade. As

    fraquezas da monarquia estavam ainda muito presentes nos espritos para

    que fosse possvel faz-la reviver como regime morigerador. O prprio D.

    Manuel, numa missiva acintosa e autojustificativa, foi incapaz de esconder o

    desprezo que os polticos da monarquia lhe provocavam: Comecei o meu

    reinado aos 18 anos, na mais trgica das circunstncias possveis, terminei-o

    aos 20, aps 32 meses, por uma revoluo, na qual, fora alguns, poucos,

    bem poucos, nomes hericos, todos s compunham um rebanho de covardes

    e infames e de traidores!62.

    Mas o contrrio era igualmente verdadeiro. Entre os seus

    correligionrios, as debilidades governativas de D. Manuel continuavam

    ainda muito evidentes para que os conservadores acorressem a exaltar-lhe

    as virtudes pessoais ou institucionais. Na verdade, o ltimo monarca ser

    alvo de uma forte campanha de oposio e contestao interna, que no

    deixar de o perseguir e atormentar at sua morte, em 193263. Muitos no

    lhe perdoavam ter deposto Joo Franco aps o assassinato de D. Carlos e do

    herdeiro ao trono, o prncipe Lus Filipe64. Parte dessa desconsiderao

    assentava, porm, em pressupostos falsos. Muitos criticavam-lhe a fuga em

    61 Cf. Carlos Malheiro Dias, ob. cit., pp. 121-122. 62 BNP, ELM, doc. n. 9424, carta de D. Manuel a Lus de Magalhes, de 16-12-1910. Pode

    ler-se em anexo. 63 Leia-se Antnio Cabral, Cartas dEl-Rei D. Manuel II, Lisboa, Livraria Popular de Francisco

    Franco, 1933. 64 BNP, ELM, doc. n. 1906, carta de Jaime de Magalhes Lima a Lus de Magalhes, de 20-

    12-1910: O meu pessimismo a esse respeito extremo. Afigura-se-me que isto vai em uma incapacidade e uma anarquia... galopante. Jogmos na repblica a ltima cartada, e perdemos. pavoroso. Que se segue a isto? A restaurao dos Braganas, ou melhor, dos Orlees parece-me impossvel e nada para desejar desde que me lembro que o ltimo reinado comeou por uma indignidade, - o insulto do rei memria do pai, ainda a esse tempo a seu lado e quase quente, - para acabar em um delrio de imbecilidades - a confiana no Venceslau e no Teixeira de Sousa.

  • 26

    5 de Outubro, apodam-no de cobarde65, mas hoje sabe-se que ainda no

    Terreiro do Pao procurou colocar-se frente do seu exrcito. tambm

    facto incontestvel que depois do embarque da Ericeira, o jovem monarca

    exigiu que o conduzissem ao Porto para a iniciar a contra-revoluo, no que

    foi contrariado pelo seu tio, D. Afonso, e pelos oficiais a bordo do iate D.

    Amlia66.

    A contestao, que lavrava j no final de 1910, agravou-se nos

    primeiros meses de 1911, quando vrias figuras da monarquia lhe exigiram

    que apresentasse um manifesto poltico ao pas. Lus de Magalhes advertia

    o ex-monarca, logo em Outubro, para a possibilidade de uma restaurao do

    trono, intimando-o a no abdicar dos seus direitos dinsticos e que,

    perante os portugueses, o manifesto se tornava urgente. O futuro da

    Causa Monrquica impunha ao monarca uma declarao pblica pois

    quando mesmo o destino no queira que Vossa Majestade volte a sentar-se

    no trono de Portugal, a existncia dum partido monrquico dentro do regime

    republicano uma necessidade imprescindvel para a boa marcha das coisas

    pblicas67.

    Ao repto ingente respondeu D. Manuel a partir do exlio ingls,

    afirmando que o seu manifesto a sua vida como Rei e como homem e

    que as suas intenes teriam ficado claras na carta que escreveu no dia do

    seu embarque68. Mas os seus correligionrios no entendiam que o rei

    destitudo no tomasse uma posio clara e inequvoca, redigindo um

    65 Cf. lvaro Pinheiro Chagas, O Movimento Monarchico. II O Correio da Manh, Porto,

    Leito & C., 1913, pp. 53-54. 66 Cf. Maria Cndida Proena, D. Manuel II, Rio de Mouro, Crculo de Leitores, 2006, p. 119.

    Veja-se, tambm, Fernando Honrado, Da Ericeira a Gibraltar vai um rei: a queda da monarquia, Lisboa, Acontecimento, 1993.

    67 BNP, ELM, doc. n. 12050, carta de Lus de Magalhes a D. Manuel, de 31-10-1910. 68 BNP, ELM, doc. n. 12051, carta de Lus de Magalhes a D. Manuel, de Janeiro de 1911.

    Quanto declarao de D. Manuel, redigida pelo conde de Sabugosa e copiada pelo monarca, para ser entregue a Teixeira de Sousa, presidente do governo, antes do embarque, foi publicada apenas em 27 Janeiro de 1911 no jornal Correio da Manh e rezava assim: Meu caro Teixeira de Sousa. Forado pelas circunstncias, vejo-me obrigado a embarcar no iate real Amlia. Sou portugus e s-lo-ei sempre. Tenho a convico de ter sempre cumprido o meu dever de rei em todas as circunstncias e de ter posto o meu corao e a minha vida ao servio do meu pas. Espero que ele, convicto dos meus direitos e da minha dedicao, o saber reconhecer. Viva Portugal! D a esta carta a publicidade que puder. Sempre muito afectuosamente, Manuel. Iate real Amlia, 5 de Outubro de 1910. Lus de Magalhes rebateu o valor da carta: A Carta de Vossa Majestade que o Correio da Manh publicou, e que mto nobre, mto generosa, mto simptica, e em todos produziu a melhor impresso, no contm, todavia, meu Senhor, uma positiva declarao poltica. A Palavra notou mesmo que essa carta, quando foi publicada na imprensa estrangeira, terminava com esta frase no texto actual: a minha partida no deve, por ttulo algum, ser tomada por um acto de abdicao. Porque se suprime agora esta afirmao essencialssima? [Ibidem].

  • 27

    manifesto em que afirmasse os seus direitos coroa ou assumisse

    frontalmente a abdicao69.

    Na verdade, a ausncia de um manifesto levantava mltiplos

    embaraos polticos. Em primeiro lugar dificultava a organizao de um

    movimento contra-revolucionrio de cariz monrquico, que carecia sempre

    da chancela rgia. Em segundo, porque dava alento aos sectores miguelistas

    e reavivava uma velha ferida poltico-institucional, relacionada com as

    pretenses dinsticas de D. Miguel. Os legitimistas consideravam que a

    queda da monarquia constitucional permitia ao partido de D. Miguel arvorar

    o problema da restaurao sem restries: J no se tratava como at

    aqui, de manter o Rei liberal no trono em nome do princpio fundamental da

    Ordem. Tratava-se antes de mais da restaurao da monarquia

    tradicionalista, respeitadora das liberdades legtimas, popular e no

    democrtica, paternal e no absoluta70.

    Os monrquicos queixavam-se das complicaes e embaraos criados

    pela inexistncia de uma proclamao que estorvava os contactos com os

    oficiais para os planos de restaurao71. Por outro lado, os oficiais que

    69 Cf. Carlos Malheiro Dias, Do Desafio Debandada. I O Pesadelo, Lisboa, Livraria Clssica

    Editora, 1912, p. 91. Leia-se, igualmente, D. Jos Lus de Almeida (Lavradio), Memrias do Sexto Marqus do Lavradio, Lisboa, Edies tica, 1947. No esplio de Lus de Magalhes encontra-se um manifesto que este teria escrito para D. Manuel, tal como viria a escrever o Manifesto Emigrao, em 1912. Nesse Manifesto, dirigido Nao Portuguesa, o monarca exilado refere-se polmica sobre a carta que deixara em 1910 e as dvidas que acossavam a opinio pblica sobre os seus direitos ao trono, esclarecendo que pelo amor do meu povo eu no abdico de nenhum dos meus direitos dinsticos, que tem o largo e slido fundamento da legalidade, e da vontade nacional, duma tradio secular e da ltima unio da Coroa Portuguesa com todas as altas empresas a que heroicamente se abalanou o gnio de uma raa. No mesmo documento, refere-se repblica como um acto de usurpao e acredita que, sem meios violentos a monarquia representativa h-de retomar o seu papel. BNP, ELM, Manifesto, escrito em Janeiro ou Fevereiro de 1911. Vai transcrito, na ntegra, em anexo.

    70 Manuel de Bethencourt e Galvo, D. Miguel II e o seu Tempo, Lisboa, Edies Gama, 1943, p. 164.

    71 Cf. lvaro Pinheiro Chagas, O Movimento Monarchico. II O Correio da Manh, Porto, Leito & C., 1913, p. 88. Para O Dia, j sob a direco de Moreira de Almeida e convertido em jornal independente, se D. Manuel de Bragana no houvesse empreendido aquela fuga desordenada, se tivesse sido um vencido, at um prisioneiro, com as honras da guerra, batendo-se com bravura pela sua coroa, e escrevendo uma pgina pica no fecho da histria da sua dinastia, que nasceu e viveu entre duas revolues, ainda hoje, apesar de todos os erros gravssimos dos monrquicos, de que o ltimo soberano fora o menos responsvel, a sua restaurao no seria uma aspirao de todo irrealizvel, ainda quando de uma grande improbabilidade. Os monrquicos teriam algum, para os congregar e reunir. Sucedeu assim? [...] fuga da Ericeira, seguiu-se o silncio tumular de Richmond. Em quatro meses a nao no recebeu do que fora seu rei um documento que fizesse, com a defesa das instituies vencidas, a reivindicao da realeza aos seus direitos coroa. No houve uma proclamao, um manifesto aos portugueses, alguma coisa que tivesse grandeza ou significao poltica e alentasse nos amigos que foram do regime derrubado em 5 de Outubro, algum sentimento mais vivo e mais impulsivo do que essa piedade que o tempo ir murchando, ainda quando de

  • 28

    davam a sua adeso aos comits militares discutiam a questo do monarca

    a restaurar, ainda chocados com o desprestgio que o desembarque de D.

    Manuel tinha acarretado sobre o seu nome72. A hiptese de uma

    restaurao com D. Miguel era comentada nos diferentes crculos realistas,

    mas outras possibilidades eram aventadas, como o prncipe D. Pedro, do

    Brasil, e o prncipe Guilherme de Hohenzollern73.

    Os embaraos criados pela figura de D. Manuel no se limitavam sua

    pessoa, estendiam-se igualmente aos governos do seu curto reinado. A

    rejeio da monarquia dos ltimos anos era generalizada, e muitos polticos

    no se coibiam de o afirmar publicamente no tom mais categrico e

    exaltado, alienando assim muito do capital conspiratrio que a repblica

    potenciava. Antnio Cabral, antigo ministro progressista, escrevia nas

    pginas do Liberal que o regresso velha monarquia seria voltarmos

    antiga, com imbecis conselheiros encartados, de ofcio, com estadistas

    dessorados, com intrigas e manejos de ambiciosos, cheios de dios e de

    rancor, com violncias estpidas como as do ltimo governo da monarquia

    no! Mil vezes no!74. O tom de repdio ser o mesmo que encontramos na

    imprensa dos monrquicos acadmicos de Coimbra, onde Fernando Cortez

    Sampaio e Melo expressa a veemente recusa da monarquia dos escndalos,

    da corrupo e da veniaga75.

    No critrio de muitos monrquicos bem posicionados, a restaurao no

    dispunha do pessoal poltico capaz de arrostar com as responsabilidades da

    governao, pois num ano no se educam homens, nem se formam

    caracteres e os homens de hoje so os mesmos de ontem76. A primeira e

    todo no apague, e que, impregnada da melancolia duma saudade, nunca foi cimento assaz forte para a reedificao dum trono. [21. ano, 3. srie, n. 2, 03-02-1911, p.1].

    72 Depoimento do Conde de Mangualde, in Maria Teresa de Souza Botelho e Mello, Memrias da Condessa de Mangualde. Incurses monrquicas 1910/1920, Lisboa, Livros Quetzal, 2002, p. 210.

    73 Cf. BNP, ELM, doc. n. 12051, carta de Lus de Magalhes a D. Manuel, datada de Janeiro de 1911.

    74 O Liberal, ano X, n. 3133, 20-12-1910, p.1. Para o conde de Mangualde, quando se iniciou em actividades conspiratrias o ponto de vista era o mesmo em todos Antes isto que voltarmos aos ltimos tempos do regime monrquico no pode voltar [ob. cit. p. 211].

    75No para restabelecer a monarquia dos escndalos, da corrupo e da veniaga. Queremos uma monarquia, mas uma monarquia sria, honesta e equitativa. nossa convico que, sob regime monrquico, Portugal poder ser grande ainda e que este mesmo regime que melhor serve este pas. Mas para restabelecer o sbado do sr. Teixeira de Sousa, ou restaurar a preponderncia do sr. Alpoim, no daremos um passo [Patria Nova Semanario Monarchico Academico, n. 53, 30-11-1910, p. 1].

    76 Jos Lopes Dias, Cartas Polticas do Marqus do Lavradio a Tavares Proena, Separata de Estudos de Castelo Branco, Revista de Histria e Cultura, 1966, carta de 27-10-1911, p. 36.

  • 29

    mais rdua tarefa do movimento monrquico consistia em depurar as

    suas fileiras de todos os elementos que revelaram incapacidade moral ou

    intelectual e iniciar um processo de auto-educao de costumes e

    valores77.

    Um dos primeiros comits militares da reaco, onde predominavam os

    titulares conde de Mangualde e conde de Penela, no hesitou em enviar este

    ltimo a Londres, no incio de 1911, com exigncias formais que

    condicionavam a continuao dos trabalhos de conspirao. Entre essas

    exigncias contava-se a aprovao de uma nova constituio, recusa de todo

    o pessoal poltico dos velhos partidos monrquicos (exceptuando o partido

    franquista), a substituio da casa civil e militar de D. Manuel e, por ltimo,

    a irreversvel predisposio de recusar o regresso da rainha D. Amlia a

    Portugal78. Na carta em que o conde de Mangualde escreveu ao marqus do

    Lavradio, secretrio de D. Manuel, procedendo apresentao do conde de

    Penela, este afirmava que tais exigncias correspondiam a uma imposio

    da quase unanimidade dos oficiais de que temos obtido o concurso e

    adeso79. A resposta de antigo monarca no podia ser mais categrica:

    Por este preo, nem todas as coroas do mundo!80.

    Tais dissenses no podem ser entendidas como meras divergncias de

    conjuntura, pois elas antecipam o clima de profunda crispao e desacordo

    77 Correio da Manh, Ano I, n. 177, 29-10-1910, p. 1. 78 Cf. D. Jos Lus de Almeida (Lavradio), Memrias do Sexto Marqus do Lavradio, Lisboa,

    Edies tica, 1947, p. 184; Maria Teresa de Souza Botelho e Mello, ob. cit., p. 210. Para o padre Avelino de Figueiredo, que liderava os grupos civis de conspiradores, as condies impostas a D. Manuel eram necessrias: A El-Rei impusemos condies para fazermos a contra-revoluo monrquica. [...] Embora as condies, principalmente a primeira, fossem dolorosas para El-Rei, o comit julgava-as necessrias para que a monarquia no voltasse a ser o que fora depois do 28 de Janeiro de 1908. No teramos o flagelo da Repblica, a lanar-nos em todos os seus latrocnios, crimes, assassnios e negociatas escandalosas, nem o abismo certo se sua Majestade a Rainha D. Amlia seguisse outra poltica em 1 de Fevereiro. No se demite um Ministro porque se assassina um Chefe de Estado, mas exige-se-lhe o castigo imediato, rigoroso dos assassinos, seja eles quais forem. [...] Ora o comit temia que a Monarquia restaurada viesse a cair nas mos criminosas do Ferreira do Amaral e para livrar El-Rei de qualquer sugesto impunha-lhe que sua Augusta Me no voltasse a Portugal, sem licena das Cortes. [...] Outra condio era a substituio radical da casa civil e militar de El-Rei. Quase todos os membros destas duas casas nada fizeram no acto da queda da Monarquia. [...] A terceira, era proibio de voltarem a Ministros os Presidentes de Conselho do Senhor D. Manuel II. A quarta, a reunio do parlamento, alterao da Carta Constitucional e votao de nova Constituio Parlamentar. El-Rei no anuiu e a revoluo foi adiada [A Minha Priso. O primeiro movimento monrquico em Portugal, Lisboa, Edio do Autor, pp. 55-58].

    79 D. Jos Lus de Almeida (Lavradio), ob. cit., p. 183. 80 O rei exilado acrescentaria a esta frase que todos entendem que tm direito a impor-me

    condies, e condies destas! E se eu no aceitar porque no quero voltar! No terei eu direito de impor tambm condies? [Ibidem, p.184].

  • 30

    que cunhar as relaes de D. Manuel com os seus correligionrios.

    provvel que tamanha animosidade possa ser imputada aos conselheiros

    mais prximos, que o condenaram a uma verdadeira clausura, procurando

    furt-lo envolvncia dos meios agitadores. O conde de Sabugosa, em carta

    de 7 de Fevereiro, considerava inoportuna qualquer tentativa contra-

    revolucionria por lhe parecer que a situao em Portugal no estava

    madura para tentar qualquer esforo tendente a afirmar qualquer

    pretenso por parte de El-Rei ou sequer a organizar em Richmond um

    bureau politique que servisse de quartel general do movimento

    restaurador81. J o conde de Mafra, em visita a Londres, lamentava a

    influncia do marqus do Soveral e da condessa de Figueir sobre D.

    Manuel, que o aconselhavam a no receber jornalistas, criando assim um

    vazio em torno do jovem monarca82. O marqus do Soveral, que exercia

    grande influncia sobre D. Manuel e apenas admitia a restaurao quando

    ela resultasse de uma imposio da Inglaterra83, foi mais tarde acusado do

    insucesso das incurses monrquicas84.

    O descrdito geral da monarquia, o pessimismo acendrado de muitos

    notveis85 e a ausncia de uma propaganda positiva em torno da realeza,

    explicam que a retrica da primeira fase da contra-revoluo praticamente

    tenham ignorado a restaurao. A evidncia no passou despercebida ao

    conde de Penha Longa, para quem preciso no se imaginar que a reaco

    que hoje vai no pas reaco monrquica; no tal. apenas reaco

    contra o governo, contra os homens, contra certas leis. No um

    movimento afirmativo, mas apenas negativo86.

    A verdade que desaparecida a imprensa monrquica, por aco do

    radicalismo republicano, a monarquia constitucional carecia de meios de

    propaganda que lhe tecessem os panegricos e lhe apregoassem as virtudes.

    81 Ibidem, pp. 182-183. 82 Thomaz de Mello Bryner (Conde de Mafra), Dirio de um monrquico 1911-1913,

    transcrio, seleco, anotaes e nota prvia de Gustavo de Mello Bryner, [s/l], [s/n], 1994, pp. 33 e 35. O conde de Mafra abominava as movimentaes restauracionistas, desde que a restaurao servisse para colocar outra vez no Trono a condessa de Figueir [p. 21].

    83 Jos Lopes Dias, Cartas Polticas do Marqus do Lavradio a Tavares Proena, cit., carta de 23-10-1912, p. 73.

    84 Cf. D. Jos Lus de Almeida (Lavradio), ob. cit., p. 18. 85 Esse pessimismo atravessa muitas das memrias e epistolografias consultadas. Veja-se,

    entre outros, Jos Lopes Dias, Cartas Polticas do Marqus do Lavradio a Tavares Proena, cit.; Jacinto Cndido, Memrias ntimas para o meu filho (1898-1925), Prefcio do Dr. Jos Lopes Dias, Castelo Branco, Estudos de Castelo Branco, Revista de Histria e Cultura, 1963.

    86 Transcrito em D. Jos Lus de Almeida (Lavradio), ob. cit., p. 172.

  • 31

    Coube aos miguelistas fazer a defesa da monarquia, num panfleto distribudo

    em Abril de 1911 a oficiais da 2. diviso do exrcito (Viseu), mas para

    acusar a imoralidade e a corrupo dos homens do constitucionalismo

    monrquico de arruinar o regime tradicional. Para os miguelistas, a

    monarquia era perfeitamente compatvel com a felicidade do povo e o

    progresso das naes, realidade que as ricas monarquias europeias podiam

    comprovar87. A Nao aproveitava todos os ensejos para flagelar D. Manuel,

    que apodava de tmido e sem ligao afectiva com o povo portugus88.

    Os panfletos de Paiva Couceiro, obedecendo aos intuitos plebiscitrios

    do seu mentor, consignaram a neutralidade do movimento poltico-militar. O

    panfletarismo da Galiza exaltava a ordem e a autoridade do Estado,

    mas silenciava quaisquer referncias natureza formal do regime. Outros

    panfletos produzidos internamente vinculavam vagamente o fenmeno

    contra-revolucionrio esperana de uma restaurao monrquica e

    bandeira azul e branca89. As referncias ao ltimo rei s muito

    ocasionalmente se encontram na literatura contra-revolucionria de 1911.

    Apenas um poema de Nemo, pseudnimo do antigo conselheiro Jos

    Fernandes de Sousa, fazia a apologia inequvoca da monarquia de D.

    Manuel, num texto carregado de inferncias histricas ao velho herosmo

    conquistador da raa lusitana. Apelando s armas Portugal! Por El-Rei Dom

    Manuel, Nemo elaborou um poema pejado de invectivas belicistas que no

    escondiam a nostalgia do retorno a uma velha sociedade regida pelos

    preceitos tradicionais: Deus, Ptria, Rei90.

    A ausncia da monarquia nos discursos da reaco monrquico-clerical

    acentua todavia a relevncia da ideologia no confronto da primeira repblica.

    No erraremos muito se afirmarmos que a questo de regime secundria

    face ao confronto ideolgico entre duas concepes poltico-sociais e duas

    mundividncias que tm a sua gestao na crise geral do liberalismo. J em

    1903, Jacinto Cndido, fundador do Partido Nacionalista, defendia que o seu

    partido no era monrquico nem republicano, pois a forma de governo

    Monarquia ou Repblica era uma questo secundria, sem valor91.

    87 AHM, 1. diviso, 34. seco, caixa 2, pasta 2. 88 A Nao, ano 64, n. 15084, 21-03-1911, p. 1. 89 IAN/TT, MI, DGAPC, 1. Rep., caixa 3, Mao 215, doc. n. 15. 90 IAN/TT, MI, DGAPC, 1. Rep., caixa 3, mao 215. 91 Jacinto Cndido, ob. cit., p. 55.

  • 32

    No plano poltico-ideolgico, a contra-revoluo devedora do

    reformismo monrquico, que vislumbrava no engrandecimento do poder

    rgio e na aco de uma elite esclarecida a regenerao do trono e o incio

    de uma vida nova92. Esta reforma imposta de cima para baixo era ento

    defendida por sectores polticos e militares que vislumbravam na existncia

    de um Poder forte e interventivo o dique necessrio para impedir a exploso

    revolucionria das foras radicais. Jacinto Cndido expressou assim este

    esprito reformista: Queria reforma de costumes pblicos e de processos

    polticos: queria a revoluo pacfica e ordeira, feita pelo poder do Estado,

    dalto abaixo, do centro para a periferia, para evitar a revoluo de baixo

    para cima, torva, impetuosa, sanguinria, demolidora, e anrquica93.

    A revoluo pacfica e ordeira, que muitos polticos liberais

    entreviam no engrandecimento do poder rgio94, estabelece o primeiro

    postulado terico da reaco anti-republicana em 1910: o repdio das

    revolues. J na monarquia se encontrara o temor das revolues e das

    suas ameaas tranquilidade dos povos por aco do terror jacobino e

    esta ideia ganhar centralidade no combate nova ordem poltica. Na

    verdade, ainda sem o necessrio substrato terico, o reformismo

    monrquico entrevia numa transio para a democracia a vitria da anarquia

    sobre a ordem e a autoridade do Estado95. As primeiras impresses da

    92 Sobre este perodo, leia-se Amadeu Carvalho Homem, O Primeiro Conde de Arnoso e o

    seu Tempo, Vila Nova de Famalico, Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico, 1998. 93 Ob. cit., p. 54. 94 Cf. Miguel Dias Santos, Lus de Magalhes, Oliveira Martins e a Vida Nova, in Revista

    de Histria das Ideias, vol. 24, Coimbra, Faculdade de Letras, 2003, pp. 311-353. 95 Lus de Magalhes descrevia assim a ameaa jacobina em 1897: O que desejo pr em

    evidncia o perigo do jacobinismo, perigo que todas as revolues contemporneas trazem no bojo e cujas causas so o orgulho igualitativo, prprio das democracias, junto incompleta educao intelectual das massas e dos elementos politicantes que as dirigem e as exploram. O estpido fetichismo da frmula e do smbolo poltico, germinando em naturezas violentas e grosseiras, que no querem reconhecer nenhuma superioridade; as dissidncias de opinio tornadas em dio faccioso; uma fria de justia estreita, cega, dura, brutal, como a que acendia as fogueiras inquisitoriais do Santo Ofcio e que mais parece uma inspirao de rancorosa vindica do que um pensamento de ordem moral e social; a violncia arvorada em processo poltico; a intransigncia elevada categoria de virtude cvica - tais so os elementos fundamentais do esprito jacobino, os filamentos psicolgicos que, entretecendo-se, o constituem. Tem sido este esprito anarquizador que tem conspurcado as mais nobres revolues e as tem comprometido nas suas horas de triunfo. Foi ele o espectro que, durante muitos anos, tornou as monarquias receosas do princpio da liberdade. ele que, por toda a parte, semeia a desordem nos espritos, agrava o dissdio entre os governos e os povos, impede a consolidao das tradies administrativas e polticas, mancha com suspeies caluniosas os mais eminentes homens pblicos, buscando inutiliz-los, inflama o esprito de rebelio e passa enfim, sobre as naes como um simoun destruidor que lhes enterra, nas sua nuvens de areia estril e v, a ordem, a liberdade, a paz e a riqueza [A Tarde, ano X, n. 2991, 17-11-1897, p. 1].

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    repblica pareciam confirmar os piores vaticnios dos conservadores. Lus de

    Magalhes haveria de apontar ao novo regime os terrveis efeitos de uma

    governana produzida sob influncia do esprito jacobino: A revoluo,

    para derruir as organizaes polticas que combate, ataca sempre, entre

    declamaes insensatas e desvairadas, todas as formas e todos os

    representantes da autoridade []. Esta magna questo da autoridade, da

    ordem, da disciplina social, para a Repblica nada mais, nada menos do

    que uma verdadeira questo de vida ou de morte. A anarquia mansa que

    fermentava dentro do velho sistema monrquico explodiu estimulada pelo

    triunfo da revoluo e vai a caminho de se tornar em anarquia brava. No

    faltam sintomas disso: so os estudantes que impem a expulso da ctedra

    aos professores com que no simpatizam, os empregados postais que

    reclamam a demisso dos seus chefes, os do caminho de ferro que exigem a

    destituio de todo o alto pessoal director, e muitos, muitos outros

    prenncios de insubmisso hierrquica, que se rumorejam apenas e cuja

    gravidade no menor96.

    Os conceitos de ordem e autoridade definem desde muito cedo a

    ideologia da contra-revoluo e a cultura poltica conservadora,

    predominante em boa parte do sculo XX portugus. Na ausncia de uma

    teorizao profunda, que estava ainda numa fase de incubao, estes

    conceitos nevrlgicos tomavam forma a partir da prpria experincia

    republicana. Pragmtico por essncia, o mundo conservador no acreditava

    nas virtudes morigeradoras dos abalos histricos e violentos97, enquanto as

    leis histricas demonstravam que as sociedades no mudam

    bruscamente de regimes polticos98.

    Paiva Couceiro haveria de reforar este elemento nuclear, afirmando que

    a Natureza no salta, e a Inovao, e a Conservao no so ideias

    opostas99. Inovar, Conservando era o lema do paladino, explanando

    nesta sntese um dos elementos de decifrao da ideologia contra-

    revolucionria. Compreende-se o empenho da imprensa monrquica antes

    de ser empastelada no incio de 1911 em recusar que a restaurao

    resultasse da aco empreendedora de um qualquer movimento

    96 Veterano [Lus de Magalhes], in Correio da Manh, ano I, n. 203, 27-11-1910, p. 1. 97 Correio da Manh, ano I, n. 175, 27-10-1910, p. 1. 98 Dirio Ilustrado, ano 39, n. 13 296, 01-01-1911, p. 1. 99 In Carlos Malheiro Dias, ob. cit., 100.

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    revolucionrio e de tramar conspiraes, organizar intentonas, fabricar

    bombas, armazenar armamento, criar canteiros, choas e lojas carbonrias,

    indisciplinar o exrcito e a armada. No est isso na nossa ndole, nas suas

    tradies, no seu feitio pacfico e ordeiro100.

    A recusa ideolgica da Revoluo estava em conformidade com a

    natureza do movimento neutro de Paiva Couceiro, que preconizava uma

    soluo sada do escrutnio nacional. No seu Manifesto ao Povo Portugus,

    divulgado na vspera da primeira incurso, Paiva Couceiro propunha-se

    assumir provisoriamente o Poder, com a colaborao duma Junta

    Governativa que no legisla nem reforma, apenas garante o

    estabelecimento dum regime de Ordem e de Liberdade igual para todos.

    Quanto ao futuro poltico, Couceiro propunha-se realizar eleies que fossem

    a expresso da Vontade Nacional, isto , que decidissem entre a

    monarquia e a repblica101. Nas palavras do paladino, o movimento tinha

    como objectivo imediato fazer cessar o estado Revolucionrio do pas.

    O Estado-Maior da realeza, por seu lado, defendia a restaurao por

    interveno do exrcito, instituio que garantia o carcter nacional do

    movimento e lhe conferia legitimidade.102 Apesar da doutrina e dos

    projectos, as contradies perseguiram a reaco conservadora, que

    conspirou e organizou grupos de civis e militares para derrubar a repblica

    atravs de uma linha violenta e destrutiva, assunto que ser objecto de

    anlise no captulo seguinte103.

    As reflexes produzidas em torno do conceito de Revoluo

    colocaram no centro do debate ideolgico a questo da violncia poltica. J

    no estertor do antigo regime, os conservadores monrquicos temiam a

    violncia revolucionria, no s aquela que derrubava regimes ancestrais,

    mas a violncia arvorada em processo poltico104. Colocada no cerne do

    combate poltico, por aco do radicalismo republicano, a violncia poltica

    seria tambm objecto de intensa propaganda dos adversrios do regime.

    100 Veterano [Lus de Magalhes], in Correio da Manh, ano I, n. 232, 28-12-1910, p. 1. 101 Cf. Carlos Malheiro Dias, ob. cit., 101. Apesar do plebiscito, as medidas governativas

    propostas visavam anular imediatamente a legislao da repblica e substituir as autoridades e corporaes administrativas, procurando assim garantir o controlo sobre o aparelho burocrtico-administrativo do Estado. Paiva Couceiro estava naturalmente convencido de que a consulta popular daria lugar restaurao da monarquia.

    102 BNP, ELM, doc. n. 12052, carta de Lus de Magalhes a D. Manuel, de Maro de 1911. 103 Cf. AHM, 2. TMTL, caixa 166, processo 206, Manifesto de 1912 com o ttulo Pra

    Revoluo. 104 Lus de Magalhes, in A Tarde, ano X, n. 2991, 17-11-1897, p. 1.

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    Estruturante na evoluo dos dezasseis anos da repblica, a violncia

    poltica foi tambm determinante para a interpretao historiogrfica ulterior

    e para a propaganda anti-republicana. Na historiografia do Estado Novo, a

    violncia demaggica dominou um discurso histrico que legitimava as

    solues ditatoriais da Nova Ordem, apresentadas como a anttese da

    Balbrdia sanguinolenta anterior105. A tese, apesar de desprovida de

    algumas das suas nuances ideolgicas, foi recuperada por outras leituras

    historiogrficas mais recentes, para as quais a sobrevivncia da repblica e o

    domnio do Partido Democrtico se aliceraram no terror jacobino106.

    No aqui o lugar para empreender o estudo do papel da violncia

    poltica na compreenso geral da I Repblica. Arredada da reflexo

    historiogrfica como objecto autnomo107, pode aceitar-se genericamente

    que a violncia tem grande influncia nas mudanas operadas na estrutura

    poltica e institucional108. No mbito do nosso estudo, interessa sobretudo

    abordar, ainda que sumria e esquematicamente, os planos da violncia

    como elemento de estrutura social, de regulao poltica e de contedo

    simblico-cultural109. Se evidente, para a generalidade da historiografia, o

    papel central do radicalismo urbano, em especial de Lisboa, na preservao

    do regime110, no pode desprezar-se a importncia da violncia para o

    campo adversrio, persistente tanto no combate poltico e na propaganda

    como na construo ideolgica. Em 1919, uma fonte integralista procedia ao

    inventrio exaustivo da violncia poltica que ocorrera desde 1910, e atribua

    a responsabilidade pelas revoltas e pronunciamentos monrquicos ao

    patritico intuito de resgatar a Ptria desta misria e, portanto, de indirecta

    105 Leia-se Joo Ameal, Histria de Portugal das Origens at 1940, 6. ed., Livraria Tavares

    Martins, Porto, 1968, pp. 693-712. Adepto da contra-revoluo e antiliberal, Joo Ameal viu na monarquia constitucional a mesma aco deletria da demagogia. Cf. Realeza e Demagogia, in ob. cit., pp. 669-686.

    106 Veja-se, entre outros, Vasco Pulido Valente, A Repblica Velha (1910-1917), Lisboa, Gradiva, 1997.

    107 Recentemente foi publicado um livro sobre a violncia social na I Repblica. Leia-se Maria Rita Lino Garnel, Vtimas e Violncias na Lisboa da I Repblica, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007.

    108Jlio Arostegui (ed.), Violncia y Politica en Espaa, in Ayer, 13, Madrid, Marcial Pons, 1994, p. 20. Para este autor, a historiografia deve analisar o papel que a violncia desempenha na mudana histrica e