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Análise Social, vol. XLII (3.º), 2007

Maria Manuela Cruzeiro, RuiBebiano, Anos Inquietos. Vozesdo Movimento Estudantil emCoimbra (1961-1974), Porto, Edi-ções Afrontamento, 305 páginas.

No panorama dos estudos relati-vos ao movimento estudantil portu-guês — e em particular coimbrão —saiu mais uma interessante contribui-ção de Rui Bebiano em colaboraçãocom Maria Manuela Cruzeiro. Am-bos os autores têm dedicado grandeparte do seu trabalho à análise daoposição à ditadura e aos seus prota-gonistas.

Rui Bebiano é professor na Fa-culdade de Letras da Universidade deCoimbra — onde integra também oInstituto de História e Teoria dasIdeias — e investigador no Centro deEstudos Sociais, onde é co-respon-sável pelo projecto de investigação«Culturas Juvenis e Participação Cí-vica: Diferença, Indiferença e Desa-fios Democráticos».

Entre as suas obras sobre o mo-vimento estudantil destaca-se O Po-der da Imaginação. Juventude, Re-beldia e Resistência nos Anos 60(Coimbra, Angelus Novus, 2003),que, como Anos Inquietos, mas atra-vés de instrumentos diferentes, con-segue reconstruir a atmosfera dacontestação durante os anos 60, asua carga de ruptura a nível culturale social — além de político — e oseu equilíbrio específico entre temá-ticas internacionais e condições lo-cais.

Maria Manuela Cruzeiro é investi-gadora no Centro de Documentação

25 de Abril da Universidade deCoimbra, onde é responsável peloprojecto de história oral, no âmbito doqual realizou dezenas de entrevistas eestudos das principais figuras e acon-tecimentos quer do período revolu-cionário, quer da oposição e resistên-cia ao Estado Novo. Autora, entreoutros trabalhos, de monografias so-bre alguns dos protagonistas da revo-lução, como Costa Gomes e VascoGonçalves, também colaborou emobras específicas sobre o 25 de Abril,como O Pulsar da Revolução — Cro-nologia da revolução de 25 de Abril,1973-1976 (Porto, Afrontamento,1997) e 25 de Abril — Outras Manei-ras de Contar a Mesma História (Lis-boa, Notícias, 2000).

A publicação de Anos Inquietosvem enriquecer os estudos sobre omovimento estudantil português, re-lativamente ao qual a investigaçãoainda tem muito para dizer. Além detrabalhos como os de Álvaro Garri-do (Movimento Estudantil e Crisedo Estado Novo: Coimbra 1962,Coimbra, Minerva, 1996), de MariaCândida Proença (Maio de 1968.Trinta Anos Depois. Movimentos Es-tudantis em Portugal, Lisboa, Coli-bri, 1999) e da já citada obra de2003 de Rui Bebiano, não existemmuitas outras monografias sobre otema, nomeadamente sobre a suadimensão nacional e internacional,sendo a maioria das investigaçõescentrada sobre o caso específico deCoimbra.

Neste sentido, embora tenha tam-bém uma abordagem local, a Univer-sidade de Coimbra, Anos Inquietos

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tem uma perspectiva mais ampla.Nos relatos dos protagonistas funda-mental é a vivência do «algures»,quer se trate do «além-mar», quer deoutras cidades portuguesas ou aindade outros países europeus, para osquais vários protagonistas viajaramcom uma bolsa de estudo, com ogrupo do teatro ou para fugir aoserviço militar e à guerra. Este «algu-res» parece, aliás, fundamental nopercurso de evolução e de tomada deconsciência política dos protagonis-tas, pelo contacto com ideias, situa-ções e pessoas que o meio deCoimbra, ainda sufocado pelo estritocontrolo social, político e cultural doregime, nunca teria veiculado.

Antes de passar ao próprio con-teúdo do livro é oportuno sublinharque Anos Inquietos não é em si umaobra analítica ou o resultado de umainvestigação — ainda que ambas es-tejam sempre presentes, seja na es-colha das pessoas a entrevistar, sejana formulação das questões —, masé uma narração em que as vozes dosprotagonistas descrevem percursosde vida nos quais a universidade,mas sobretudo a crise académica,constitui o epicentro. Trata-se desete entrevistas conduzidas por Ma-ria Manuela Cruzeiro entre 2004 e2005, feitas a protagonistas do movi-mento estudantil de Coimbra desde1961 até 1974, um período de tempoque abrange as três grandes crisesacadémicas de 1962, 1964-1965 e1969. A primeira parte de cada en-trevista é dedicada a fornecer umperfil do entrevistado antes do seucontacto com a realidade académica

e com o movimento estudantil, atra-vés de questões relativas às suas ori-gens sociais e vida familiar. Passa-sedepois a considerar o ingresso nafaculdade e, para os que não nasce-ram em Coimbra, o embate com acidade.

A parte relativa ao associativismoestudantil é claramente a mais desen-volvida, sobretudo no que diz respeitoà análise dos percursos de socializa-ção política que levam ao activismo,os quais talvez constituam o verdadei-ro objecto de estudo da obra. Trata--se de um processo que em algunscasos é coerente com a tradição deoposição familiar, noutros representaalgo de completamente inovadorquanto às próprias raízes. Semprefundamental é, todavia, por um lado,o exemplo das grande figuras, quasemíticas, da resistência portuguesa(como Álvaro Cunhal), por outro, aexigência de abertura do espaço cul-tural e social — sufocado pela perma-nência de códigos de comportamentoconservadores e pela rigidez das nor-mas autoritárias — e, por fim, a in-fluência dos acontecimentos e da li-teratura política internacional.

As entrevistas aprofundam aindaas consequências pessoais da partici-pação política — sempre mais dra-máticas para os rapazes, que, alémda prisão, podiam sofrer a guerracolonial — e, por último, os percur-sos profissionais e políticos depoisdo 25 de Abril, evidenciando os ele-mentos de continuidade quanto àsescolhas ideológicas feitas duranteos anos do activismo estudantil.

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Os critérios de selecção dos en-trevistados não são explicitados, masé evidente que os autores procuraramincluir no grupo figuras muito dife-rentes entre si — quer quanto à pró-pria actividade política, quer, nomea-damente, quanto às origens familiarese à proveniência —, conseguindo re-construir, através de uma abordagemqualitativa e da metodologia da histó-ria oral, algumas das possíveis trajec-tórias de formação política dos prota-gonistas do movimento estudantil.Além disso, a obra também fornecetraços importantes para eventuais fu-turas análise quantitativas do fenóme-no, não existindo ainda no panoramaportuguês estudos deste tipo — nosentido, por exemplo, de determinarcom mais precisão a influência dasorigens familiares, quer a nível so-cial, quer político, na formação deuma atitude dissidente —, comoseja, por exemplo, o trabalho relativoao caso espanhol realizado por JoséMaria Maravall (Dictadura yDisentimiento Político: Obreros yEstudiantes bajo el Franquismo,Madrid, Alfaguara, 1978).

Os entrevistados têm origens fa-miliares e provêm de lugares diferen-tes, com uma idade entre os 56 e os60 anos, e só em alguns casos par-ticiparam na mesma fase da crise.É natural que a idade pessoal tenhauma influência no foco da entrevista,pois a luta académica em Coimbramudou durante toda a década de 60e, ainda que os elementos comunssejam muitos, a crise de 1962 foialgo de diferente, por exemplo, da de1969. Entre os elementos de conti-

nuidade emerge claramente a repres-são, quer através de cargas de polí-cias contra manifestantes, quer atra-vés de verdadeiras invasões doespaço universitário e da prisão dosactivistas. Comuns são ainda algumasformas de luta, como o «luto acadé-mico» e a greve aos exames, assimcomo parece constante a exigência dedefesa da autonomia dos organismoassociativos dos estudantes, em pri-meiro lugar da Associação Académi-ca.

Quase em todos os casos é a li-mitação desta autonomia por partedo governo a desencadear a crise.Ocorreu por exemplo em 1962,quando a contestação — que de fac-to já tinha começado nos últimosmeses de 1961, com a prisão devários estudantes por terem manifes-tado posições contra a guerra colo-nial — eclodiu em Março depois daproibição do Dia do Estudante.Como sempre acontece — e comolembram alguns entrevistados, comoa jurista Eliana Gersão —, a violentarepressão teve o êxito de exacerbar eampliar o movimento, que em Junhochegou a pôr em causa o Decreto--Lei n.º 40 900, de 1956, o qual de-terminava um controlo do governosobre a eleição dos dirigentes asso-ciativos.

Voltando à obra, são duas as mu-lheres entrevistadas: Eliana Gersão eFátima Saraiva. A primeira, origináriade Coimbra, licenciou-se em Direitonuma altura em que os estudos jurí-dicos ainda eram considerados umaquestão masculina. Participou na cri-se académica de 1962 e na suaformação teve bastante importância

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o meio familiar, caracterizado poruma grande abertura cultural, aindaque não directamente política. Comomuitos outros representantes domovimento estudantil, começou oseu percurso numa associação cató-lica, no seu caso a JUC, afastando--se depois para entrar no conselhofeminino da AAC e para integrar oCentro de Iniciação Teatral da Uni-versidade de Coimbra.

Fátima Saraiva, geógrafa, provém,por seu lado, de uma família bastanteconservadora de Castanheira dePêra. Frequentou o liceu em Lisboa,onde teve a possibilidade de ampliaros seus horizontes culturais, umaabertura que ela reconhece comobastante importante no seu percursode adesão a valores e ideais políticosopostos aos do seu meio familiar.No ambiente coimbrão, destacou-sepor ir contra todas as regras consi-deradas «adequadas» para uma rapa-riga — como, por exemplo, não «fre-quentar os cafés» — e participounas crises de 1964 e de 1969.

Os relatos de Fernando Martinhoe Carlos Baptista são significativospelo esboço da África que trazem.Nascidos em famílias — embora demeio social diferente — de colonosportugueses, ambos sublinham amaior abertura cultural das colónias,onde o controlo do regime, pelomenos até ao começo da guerra co-lonial, não chega a ser tão eficazcomo na metrópole. Esta abertura ea experiência diária do racismo e dadiscriminação dos negros foram fun-damentais para a formação política,assim como o contacto com militan-tes dos movimentos de libertação.

Em Coimbra, onde chegou em1961, Fernando Martinho integrouuma célula do MPLA que tinha comoobjectivo recrutar jovens angolanospara o movimento de libertação eorganizar uma rede de deserção.Empenhado nas actividades da Asso-ciação Académica, foi preso pelaPIDE durante alguns meses. Comooutros dois entrevistados, Pio Abreue José Cavalheiro, sofreu a experiên-cia da guerra colonial, embora tenhaconseguido evitar um envolvimentodirecto nas acções militares graças asua profissão de médico.

Médico, no seu caso psiquiatra, étambém Pio Abreu, originário deSantarém, onde nasceu, numa famíliabastante católica e conservadora, emque a política era uma coisa proibida.Chega a Coimbra em 1962, em plenacrise académica, e liga-se, como Fá-tima Saraiva, ao Conge, uma estrutu-ra que será fundamental na crise de1969. Também nesta entrevista aexperiência da guerra na Guiné ocu-pa um lugar essencial, em que se sa-lienta sobretudo a forte contradiçãoentre a formação política do entre-vistado e a participação num conflitoque se baseava em fundamentoscompletamente opostos. Assim comoFernando Martinho e José Cavalhei-ro, Pio Abreu descreve a sua atitudede «boicote passivo» das acções mi-litares, favorecida, também nestecaso, pela sua formação de médico,que sempre tentou desenvolver se-gundo a sua própria ética contra a doexército.

José Cavalheiro, engenheiro, nas-ceu no Porto, numa família de es-querda que contribuiu para a suaformação política sobretudo no

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sentido do desenvolvimento de umespírito crítico face à verdade im-posta pelo regime. Chegado aCoimbra em 1968, desenvolveu umpapel de destaque na crise queeclodiu no ano seguinte, durante aqual foi preso e enviado para a tropa,primeiro em Mafra e depois em Mo-çambique. Na crise de 1969 partici-pou também o pediatra Luís Januário,o mais jovem entre os entrevistados.Nasceu em Coimbra, numa famíliacom uma clara tradição de oposição aoEstado Novo, pois o seu avô materno,anarquista, morreu no Tarrafal, en-quanto o pai, compagnon de route doPCP, sofreu alguns meses de prisãoem 1962.

A actividade política de Luís co-meçou logo no liceu e continuou naFaculdade de Medicina, onde per-tenceu, antes de aderir ao PCP, aosgrupos mais radicais, sobretudotrotskistas, apelidados de «contes-tas» pelos outros estudantes. Inte-ressante é a visão que este entrevis-tado traz dos organismos estudantisque tinham sido fundamentais nasoutras crises, como o Conselho dasRepúblicas, que, em 1969, aos seusolhos, já aparece como algo de anti-go, como um grupo de «veteranosdos copos, uma coisa arcaica».

É com esta entrevista que melhornos apercebemos da clivagem gera-cional que separa os protagonistasdas crises de 1962, 1964-1965 e1969, em que todas as temáticas sãorenovadas também à luz dos aconte-cimentos internacionais e sobretudodo Maio francês. Diferente pareceainda a vivência do dia a dia doactivismo, a dimensão quase «lúdica»,festiva, da política, que não se conhe-

cia antes. Assim, entre os protago-nistas das crises anteriores há quemdefina o movimento de 1969 como«uma bolha», um acontecimento fol-clórico, contestando-lhe sobretudoo abandono da luta de classe e aingénua confiança na força revolu-cionária do «estudantariado».

Mas, se o movimento tinha muda-do, a repressão continuava a mesmae Luís Januário, preso pela PIDE, nodia em que o homem chegou à Luaestava numa cela, sem poder assistirao evento, uma situação que, signifi-cativamente, também outros entre-vistados lembram. Assim, esta ima-gem de forte carga simbólica parecequase resumir em si o conteúdo maisprofundo das várias experiênciasnarradas pelos entrevistados, a lutacontra aquele obscurantismo social,cultural e político que o regime con-tinuava a perpetuar, procurando blo-quear o poderoso e irreversível pro-cesso de mudança e modernizaçãoque estava a envolver também a so-ciedade portuguesa.

GUYA ACCORNERO

Nuno Estêvão Ferreira, A Sociolo-gia em Portugal: da Igreja à Uni-versidade, Lisboa, Imprensa deCiências Sociais, 2006, 258 páginas.

Em 1959, sob a égide de ManuelFranco Falcão, é criado na Diocesede Lisboa o Secretariado de Infor-mação Religiosa (SIR). O seu órgão