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O Leitor de Corações O Leitor de Corações Autor Anônimo Editora United Press Digitalizado por Sandra

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O Leitor de CoraçõesO Leitor de Corações

Autor Anônimo

Editora United Press

Digitalizado por Sandra

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1

O sonho ocorreu numa noite de domingo, depois de uma tarde de golfe e um início de noite assistindo a um debate político na televisão a cabo. Como se fosse a mão divina, ele pegou Sam Bennett pelo colarinho e o subjugou. Como se estivesse preso diante de uma imensa tela de cinema, ele viu uma mulher numa minúscula sala de telhado de zinco e chão imundo, procurando desesperadamente alguma coisa. Ela tirava objetos dos armários, das prateleiras, mudava-os de posição, erguia as almofadas do sofá, olhava atrás das portas e debaixo dos tapetes. Era um sonho frustrante, daqueles que parecem não ter fim, até que Sam viu uma moeda jogada, com pouco caso, no canto da sala. A mulher no sonho viu-a no mesmo instante, abaixou-se para pegá-la e pôs-se a chorar de alegria.

Uma moeda insignificante? Ele pensou. Por que ela ficaria tão entusiasmada com uma moedinha insignificante? Inquieto, Sam mudou de posição e enterrou a cabeça no travesseiro. As palavras do pastor no sermão daquele dia começaram a ecoar em sua mente. Ele havia falado a respeito de alcançar o mundo perdido e ouvir as necessidades espirituais das pessoas. Sam não havia escutado com muita atenção as palavras do pregador, mas naquele momento elas voltaram como frases gravadas repetindo-se sem parar em sua cabeça, recusando-se a deixá-lo até que penetrassem nele.

Então, ele ouviu a voz, a voz que o acordou como se reverberasse em sua mente com poder divino. "Ephphatha! Ephphatha!" Sam sentou na cama.

A palavra vibrou em seu interior, embora ele não entendesse seu significado. Era hebraico, pensou. Talvez grego. E de quem seria a voz?

Ele já se encontrava bem desperto, ensopado de suor frio, trêmulo. Kate, sua esposa, deitada ao seu lado, continuava serena. Em silêncio, Sam levantou da cama e saiu cambaleando pela casa. Foi até a pia da cozinha e jogou água no rosto; depois, procurou conforto e refúgio em sua poltrona reclinável. Eram quatro horas da manhã, cedo demais para levantar, mas ele não

conseguiria voltar a dormir. Não foi o sonho que o deixou tão perturbado; foi a voz. Ela possuía tanto poder, tanta autoridade!

Ephphatha! Qual seria o significado desta palavra? Refletindo sobre isto, Sam teve certeza de que a voz não fazia parte do sonho. Ele havia visto apenas a mulher e a moeda enquanto dormia. Não, a voz tinha a autoridade de Deus. Será que o Senhor havia falado com ele aquela noite? Mas por que Ele falaria em outra língua? Por que Deus expressaria algo que deixaria sua alma tão perturbada, algo que parecia importante mas que ele não era capaz de entender? Seria uma espécie de sinal ou iria esquecê-lo?

Sam respirou fundo para aliviar a mente. Pensou em voltar para a cama, mas a idéia de enfrentar tudo de novo foi descartada. Resolveu preparar um café. Serviu-se de uma xícara e sentou-se para tomá-lo, enquanto ponderava se valia a pena refletir mais sobre o sonho ou esquecê-lo completamente.

Será que ele tinha algo a ver com o sermão tão entediante do dia anterior? John, o pastor, havia sido muito eloqüente a respeito da ovelha perdida. Algo sobre deixar as 99 no aprisco para procurar uma.

Sam estava mais interessado nos ponteiros do relógio. Chegou até a imaginar que, se John não terminasse logo, haveria uma fila tremenda em todos os restaurantes da cidade.

Seria este o motivo do sonho? A palavra Ephphatha seria uma espécie de repreensão por não ficar atento na igreja? Pensando bem, John estava um pouco agitado no dia anterior. No final do sermão, o rosto dele estava vermelho, e ele, inclinado sobre o púlpito, sacudindo as mãos para enfatizar suas idéias. Sam não o via tão exaltado desde que John havia dedicado a vida ao ministério, no segundo ano da faculdade. Naquela época, ele costumava ficar enrubescido e falar alto quando tentava mudar o coração de Sam e o de seus amigos. A expectativa de Sam era que o pastor não se demorasse muito na bênção final e não pedisse para a congregação cantar as quatro estrofes do último hino, permitindo que os presbiterianos chegassem primeiro aos restaurantes.

— Você já pensou o que Deus ouve no coração das pessoas? — o pastor perguntou. — Que necessidades espirituais clamam por Ele? E se nós pudéssemos ouvir com os ouvidos de

Deus?

John correu o olhar pelo santuário, mirando rosto por rosto. Seus olhos encontraram os de Sam, que tentou se mostrar mais desperto. Sentiu-se culpado ao ver o desapontamento na face do pastor.

— Muitos de vocês nem mesmo ouvem com os ouvidos que possuem — John prosseguiu, com voz melancólica. — Seus ouvidos estão tampados e não são capazes de ouvir as coisas mais óbvias. Existem pessoas necessitadas pedindo para ser atendidas e, ainda assim, poucos obreiros de Deus estão prontos para ajudá-las. Se você quiser ouvir, se você quiser ver realmente, chegue-se à frente agora. Ajoelhe-se e peça a Deus para usá-lo.

Se Deus estava zangado com ele agora, foi por causa de sua atitude no dia anterior, Sam refletiu. Ele havia olhado para o relógio de novo. Lembrou de haver pensado que, se alguém fosse à frente durante a primeira estrofe e proferisse uma rápida oração de compromisso, eles conseguiriam sair dali por volta das 12 horas. Mas, depois da segunda estrofe, o pastor acenou para o regente do coro para continuar com o hino e disse que sabia que havia pessoas ali sentindo o chamado do Espírito Santo; portanto, não gostaria de encerrar o culto sem que elas tivessem a oportunidade de acertar sua vida com Deus.

Sam até pensou em ir, só para resolver o assunto.

Como ninguém atendeu ao apelo, o pastor finalmente desistiu e encerrou o culto. Sem perda de tempo, Sam pegou a esposa pela mão e saiu o mais depressa possível. Não se lembrou mais do assunto.

Tentou recordar os pontos básicos do sermão. Havia algo sobre moedas perdidas? John havia mencionado aquela palavra desconhecida? Será que, de alguma forma, tudo aquilo havia ficado submerso em sua consciência, embora ele não pudesse lembrar de nada?

Sam ainda estava tentando entender o sonho quando Kate se levantou, um pouco mais tarde.

— Você levantou cedo.

Ele tomou um gole de café.

— Não consegui dormir.

— Eu estava puxando o cobertor?

— Não. Tive uns sonhos.

— Sonhos ruins?

Sam deu de ombros.

— Não, apenas um tanto estranhos. Sabe como é. Alguma coisa está perdida e não se consegue encontrar.

— Eu tenho estes sonhos — Kate replicou, arregalando os olhos sonolentos. — Estou correndo pelo aeroporto para pegar o avião, mas parece que não vou chegar ao portão. Ou estou na faculdade para fazer o exame final mas não freqüentei o curso o semestre inteiro e não sei onde fica a classe. Ou tenho de dar uma palestra numa sala cheia de gente e vejo que ainda estou de pijama...

— Não foi nada assim — Sam interrompeu, irritado. — Foi um pouco mais assustador.

— Assustador? Por quê?

Ele franziu a testa.

— Não sei. Não tenho certeza.

Ela refletiu por alguns instantes.

— Às vezes, eu também tenho sonhos assustadores. Alguém está tentando me matar e não consigo gritar.

Kate se serviu de café e lembrou-se de outro sonho.

— Alguém está jogando fósforos em mim e não consigo tirá-los...

Sam fitou a esposa.

— Kate, você já pensou em procurar a ajuda de um psicólogo?

— Ora, foi você que não pôde dormir esta noite. Eu dormi como um bebê. — Ela levou a xícara aos lábios. — Só quero ser útil.

Sam franziu a testa com o comentário fora de contexto, mas achou que ela se referia aos sonhos dele.

— Não se preocupe comigo. — Pondo-se em pé, espreguiçou. — Vou tomar um banho.

Depois de tomar banho e se vestir, sentiu-se um pouco melhor. O sonho foi apenas um sonho, pensou, apenas uma colagem de imagens e frases que havia escutado nos últimos dias. A mensagem do pregador, algo sobre o que haviam conversado na Escola Dominical, algo que havia escutado por acaso com o subconsciente. Não tinha importância. As coisas haviam-se misturado como uma espécie de vírus de pensamentos, e seu cérebro o estava expelindo enquanto ele dormia. Não havia com que se preocupar.

2

Depois de levar Kate para o trabalho no hospital, ele estacionou no restaurante do outro lado da rua. Ela não gostava de tomar o café da manhã, mas Sam apreciava todos os complementos. Há anos, quando os filhos ainda estavam em casa, havia uma rotina estabelecida de tomar o café da manhã juntos e depois cada um seguia para suas atividades. Agora, quando a esposa ia para o hospital às sete, ele ia para o restaurante tomar o café da manhã.

Um pouco mais perturbado do que gostaria de admitir, Sam entrou no restaurante e sentou ao balcão. O local, bastante popular, era barulhento em meio ao caos meio controlado que sempre fazia sua adrenalina jorrar. Na parte da frente, garçonetes irritadas gritavam os pedidos umas para as outras, e de vez em quando Sam ouvia Leon, o cozinheiro, emitir uma enxurrada de palavrões que o faziam pensar em não voltar mais ali. Mas ele acabava voltando. Em nenhum outro lugar encontraria ovos preparados exatamente ao ponto.

Sam apanhou o jornal que alguém havia deixado sobre o balcão c correu os olhos pelas manchetes. Janie, a garçonete que costumava atendê-lo, parecia distraída ao se aproximar dele.

— Bom-dia, Sam. Chegou cedo hoje.

— É — ele murmurou, sem fitá-la — , não consegui dormir.

"Um pouco de descanso mudaria toda a minha vida."

Sam olhou-a. Janie demonstrava cansaço; estava com olheiras e rugas que ele ainda não havia notado. Qual seria a idade dela? Quarenta, 45 anos?

— Você também não dormiu direito? — perguntou.

Ela franziu a testa e encarou-o.

— Como?

— Você disse alguma coisa sobre descansar. Os olhos dela se estreitaram.

— Sam, eu só falei que você chegou cedo. Tem certeza de que está tudo bem?

Ele fitou-a por alguns instantes. Não a havia escutado dizer alguma coisa a respeito de descanso? Balançou a cabeça.

— Tudo bem. Quero o de sempre.

Perplexo, observou-a enquanto gritava o pedido para o cozinheiro zangado.

A voz da mulher sentada dois bancos adiante fez com que se esquecesse de Janie.

"A gravidade vai me libertar, e vou sair voando pelos ares."

Divertido, Sam olhou-a.

— É uma nova variação do tema "parem o mundo, que eu quero descer".

Espantada, a mulher encarou-o.

— Como é?

O sorriso dele desvaneceu.

— Desculpe. Pensei que estivesse falando comigo.

Ela tocou os cabelos com mão trêmula.

— Eu não disse nada.

— Pois me desculpe. — Sam obrigou-se a ler o jornal. Um segundo depois, tornou a ouvir a voz.

"Vou me arremessar no espaço sideral, e ninguém sentirá a minha falta."

Ele tornou a fitar a mulher. Havia lágrimas em seus olhos;

sem dúvida, as palavras de desalento tinham partido dela.

Sam pigarreou e inclinou-se para ela.

— Desta vez... estava falando comigo?

Ela demonstrou aborrecimento.

— Eu não estava falando com ninguém. Estou sentada aqui cuidando da minha vida.

Sam já estava ficando irritado. A quem ela tentava enganar? Tinha certeza de que havia escutado a voz dela.

— Você não disse nada?

— Não.

Janie chegou com o café na hora em que a mulher emitiu a resposta.

— Sam, você não está incomodando os outros fregueses, não é? — perguntou, com uma piscadela.

Ele sacudiu a cabeça. A mulher provocava-lhe arrepios.

— Devo estar ouvindo coisas. Olhe, vou sentar naquela mesa.

Janie assentiu. Ele enfiou o jornal embaixo do braço, pegou o prato e o café e foi para a mesa vazia do canto. Ajeitou a bandeja, sentou e começou a comer. O local havia começado a se encher de enfermeiras e estudantes de medicina do hospital do outro lado da rua. Em geral, Sam via os mesmos rostos todos os dias, mas raramente conversava com qualquer um deles.

"Não há objetivo nenhum" — disse o homem que se encontrava na mesa ao lado.

Sam olhou por sobre o ombro.

— No quê?

O homem encarou-o.

— Como?

— Você disse que não há objetivo. No quê?

O homem mostrou-se abalado.

— Bem... acho que pensei em voz alta. Creio que estou pior

do que imaginava. Perdão.

— Tudo bem. Não se preocupe.

Sam começou de novo a comer, mas o homem tornou a falar.

"Se eu pudesse ao menos conversar por mais de dez minutos... se alguém realmente escutasse..."

Sam encarou-o mais uma vez, já meio zangado. Qual era o problema daquele sujeito? Por que ele insistia em derramar o coração para ele? Mas o homem não o olhava — estava fitando o prato. As palavras continuavam fluindo, embora seus lábios não se mexessem.

"Todo mundo anda apressado. Ninguém tem tempo."

Pouco a pouco, Sam se deu conta de que o homem não estava falando. Nem a mulher, nem Janie... Ele não estava escutando palavras ou vozes audíveis, embora lhe parecessem audíveis.

Encostou-se com força na cadeira. O que estava acontecendo? Sabia que não estava sonhando e, sim, que estava muito bem acordado — o café até lhe havia queimado a língua. Estava tudo normal, exceto as vozes.

Deixando a refeição de lado, Sam saiu apressado do restaurante e dirigiu-se para o carro. Uma mulher com uma longa trança ruiva achava-se parada ao lado dele, aguardando para atravessar a rua. As mãos dele tremiam enquanto procurava a chave para abrir a porta do veículo.

"Eu sou o meu passado" — disse a mulher.

Sam voltou-se. Concluiu, mais uma vez, que ela não havia falado em voz alta.

"Serei sempre aquilo no que ele me transformou. Jamais escaparei disto."

Ele permaneceu ali por alguns instantes, perplexo, ouvindo a voz que parecia vir de lugar nenhum. Viu lágrimas brilhando nos olhos dela enquanto ela observava os automóveis que passavam e percebeu que as palavras que havia escutado eram algo que brotava bem lá no fundo do seu interior.

Estaria perdendo o juízo?

"Abuso é uma palavra tão pura, tão estéril" — a mulher continuou, e Sam notou que a preocupação dela em aguardar uma brecha no tráfego era realmente o desespero que, pensava, ninguém poderia ouvir.

Ela olhou em sua direção, e ele cogitou em se aproximar dela, dizer algo como não é o seu passado que determina seu futuro. Jesus Cristo existe. Ele pode mudar tudo.

Mas, movido pelo pânico, Sam entrou no carro. E se ele estragasse tudo? E se ela o encarasse como um desses pregadores fanáticos que andam por aí empurrando sua crença garganta abaixo das pessoas? E se ele desse a impressão de ser um idiota? Ou, pior ainda, um louco?

Finalmente a mulher atravessou a rua, correndo entre os veículos, desistindo de esperar por uma brecha no tráfego. Sam ouviu o ruído estridente de pneus e um motorista de táxi praguejando, porém ela desapareceu no meio da multidão que caminhava pela calçada. Ele ficou paralisado atrás do volante, espantado com seu desprezo pela vida... ou pela morte. Será que na próxima vez que atravessasse a rua o desespero dela a arrastaria para um perigo ainda maior? Sua vontade de morrer seria atendida?

E como ele fora capaz de ouvir seus pensamentos desesperados?

Sam continuou imóvel por trás do volante. Sua cabeça começou a doer, seus olhos se encheram de lágrimas. Suas mãos tremiam tanto que não conseguia colocar a chave na ignição.

Olhou para o relógio. Já estava na hora de ir para o escritório. Se conseguisse sentar à sua mesa e mergulhar no trabalho, iria esquecer aquela manhã esquisita.

Por fim, deu partida no carro, embrenhou-se no trânsito e venceu os três quarteirões que o separavam do prédio de escritórios. Entrou no estacionamento e encontrou a vaga com a placa em que se lia "Sam Bennett, VP, Simpson Advertising". Desceu do automóvel e respirou o ar fresco da manhã, na expectativa de que ele limpasse seu cérebro da loucura e o capacitasse a desempenhar suas funções.

No elevador, Sam conversou com Jimmy, o ascensorista, um rapaz com síndrome de Down que trabalhava ali nove horas por dia.

— Olá, Jimmy!

— Olá, Sr. Bennett. Como o senhor está hoje?

Ele olhou para o piso, esperando que o rapaz apertasse o botão.

— Bem, muito bem. — Enquanto subiam para o décimo terceiro andar, Sam tornou a ouvir a voz de Jimmy.

"Eu gostaria de ser uma pessoa de verdade."

Ele ergueu os olhos e viu Jimmy sentado no banquinho, atento à mudança dos números. O coração de Sam se confrangeu com as palavras simples que ouvira. — Jimmy? — chamou.

— Pois não, Sr. Bennett.

— Você é uma pessoa de verdade.

— Sim, Sr. Bennett.

Confuso e sem saber ao certo se havia ou não escutado a voz do rapaz, Sam cambaleou para fora quando as portas se abriram. Às suas costas, Jimmy falou:

— Tenha um bom dia, Sr. Bennett.

Sam acenou com a cabeça e abanou a mão, dirigindo-se ao escritório. Na recepção, passou pela secretária.

— Bom-dia, Sam. Como vai?

— Bem, Sally. Algum recado?

— Por enquanto, não.

Ele se deteve para verificar na agenda dela quais eram seus compromissos para aquele dia. Sally puxou a cadeira e começou a anotar seus compromissos numa folha de papel à parte.

"Onze, seis, 57."

Sam relanceou o olhar para cima e viu que estava ocupada, escrevendo.

— O que foi? — perguntou.

A secretária fitou-o, perplexa.

— O quê?

— Você não mencionou alguma coisa? — Ele começou a suar. A gravata estava apertada e comprimia sua respiração.

— Eu disse que não havia recados.

— Não, depois disto!

Devagar, ela se pôs em pé.

— Sam, tem certeza de que está tudo bem? Você está um pouco pálido.

— Estou bem — ele retrucou. — Talvez precise de um copo de água.

— Vou buscar.

Enquanto Sally se dirigia ao saguão, ele entrou em sua sala e sentou. As coisas estavam ficando muito estranhas. Nada fazia sentido. A secretária trouxe a água, e ele a tomou, mas não ajudou muito.

— Você está com febre? — ela indagou, tocando-lhe a testa num gesto maternal.

— Não, só que não dormi muito bem a noite passada. E não consigo deixar de pensar que estou ouvindo as pessoas falarem. — Sam franziu a testa, imaginando o que Sally estaria pensando. Ele havia enlouquecido. Mas não ouviu nenhum pensamento semelhante da parte dela. Ela apenas repetiu: "Onze, 6, 57... Tem de ganhar. Tem de ganhar."

Sam prendeu a respiração.

— É um bilhete de loteria? — indagou.

A pergunta a assustou. Foi como se tivesse sido pega furtando.

— Eu não...

— Não precisa ficar na defensiva. Eu não me importo. Só quero saber. Você está querendo ganhar na loteria?

Sally mostrou-se constrangida por alguns instantes, mas depois apertou os lábios e ergueu o queixo.

— Estou sim, Sam. Eu não ganho tanto dinheiro quanto você e preciso aproveitar outras oportunidades.

— Os números são 11, 6 e 57?

Ela inspirou tão fundo que poderia ter sugado uma mosca do outro lado da cidade.

— Eu sabia! — gritou. — São os números da sorte. Primeiro eu os ouvi no rádio. O sujeito tinha filhos de 11 e seis anos, e a temperatura, quando me levantei, era de 57 graus. E estes são os números do meu aniversário. E havia 11 semáforos vermelhos no caminho para o escritório e seis placas de parada, e eu vi uma revoada de pássaros que devia ter 57...

Sam gemeu e sentou outra vez.

— Sally, isto é uma interpretação forçada. Você está procurando estes números, mas a probabilidade de ganhar...

— Pois então, como você acabou de mencioná-los? E uma afirmação, Sam! Se eu não tinha muita certeza, agora tenho. O Senhor me deu estes números!

— Sally, o Senhor faz muitas coisas, mas duvido que Ele escolha números da loteria. Para mim, Ele não é um grande jogador.

— Pois espere e verá — ela retrucou.

"Se eu vencer, ele vai ver o quanto valho."

Desta vez, os lábios dela não se mexeram.

Aconteceu de novo. Mais um daqueles pensamentos. Sam enxugou o suor da testa e tapou os ouvidos.

— Você não parece muito bem, Sam. Talvez eu deva chamar a Kate para levá-lo ao médico.

— Não preciso de médico. São estas vozes estúpidas!

— Eu tive uma amiga que ficava ouvindo vozes, e o que acontecia era que ela captava ondas de rádio com os sentidos.Você tem algum sentido novo?

— Não é o rádio. São... vozes de verdade. — Ele não estava conseguindo explicar. Era loucura. É lógico que as vozes não eram reais, pois, do contrário, ele veria os lábios se movendo. Talvez ainda estivesse sonhando. Talvez só precisasse acordar.

Mas não parecia sonho.

Sam se pôs em pé.

— Sabe, pensando melhor, talvez eu precise consultar um médico. — Ele passou as mãos trêmulas pelos cabelos. — Ah!... me dê cobertura por umas duas horas, certo? Preciso sair daqui, respirar ar fresco.

— Claro, Sam. Sua primeira reunião está marcada para as 11 horas, não se preocupe.

Ele praticamente saiu correndo pelo saguão, mas mudou de idéia antes de entrar no elevador. Não queria se encontrar com Jimmy de novo e desceu os 13 andares pela escada. Estava transpirando e sem fôlego ao chegar ao carro. Era melhor tomar um Tylenol. Iria à farmácia mais próxima comprar um remédio para aliviá-lo.

Havia uma loja de conveniências a algumas quadras dali, e dirigiu-se para lá o mais depressa que pôde, quase atropelando um pedestre ao entrar no estacionamento. Parou o carro na vaga de deficientes e permaneceu sentado por alguns instantes, sentindo-se tão incapacitado quanto alguém que não podia andar. Saiu do automóvel e entrou.

Nunca fora àquela loja e não sabia onde procurar o tylenol. Foi caminhando entre as gôndolas e passou por uma mulher com um pote de pasta de amendoim na mão.

"Vamos ficar com fome e não posso fazer nada" — ouviu-a dizer.

Sam voltou-se e percebeu na hora que ela não havia falado em voz alta. A mulher lançou-lhe um olhar espantado e colocou o pote no lugar. Ele deu de ombros e quase esbarrou num casal de adolescentes parado diante da gôndola de artigos escolares. Eles discutiam o tamanho de fichário de que precisavam, mas, ao passar, Sam ouviu duas vozes simultâneas.

"A pressão... é muito grande."

"Eu só queria que alguém me amasse."

Ele virou às pressas para o outro corredor e, felizmente, achou o Tylenol. Pegou a primeira embalagem que viu, derrubando as outras da prateleira. Trêmulo, ajoelhou-se e

começou a pegar as caixas. A funcionária que trabalhava ali aproximou-se e pôs-se a ajudá-lo.

— O senhor está bem?

— Sim... estou bem... só um pouquinho desajeitado. — Sam ficou em pé e tentou empilhar as caixas.

"Não sou ninguém. Ele nem me olhou nos olhos" — ouviu a voz.

Ele disse a si mesmo que não estava ouvindo o que ouvia e dirigiu-se ao caixa. Seu coração batia enquanto aguardava que o homem à sua frente pagasse.

"Eu perdi a minha família. O que fui fazer?" — os lábios do homem estavam rigorosamente cerrados, enquanto mexia na carteira.

Sam voltou-se e viu a mulher com a pasta de amendoim atrás dele.

"Eles vão dormir com fome de novo. Não consigo cuidar de mim e muito menos deles."

Ele tentou abrir a caixa de Tylenol, mas suas mãos tremiam muito. Ouviu a moça do caixa murmurar:

"Não é tão bom quanto parece."

Achando que o Tylenol não iria resolver nada, Sam largou-o na esteira, passou pelo outro cliente e voltou apressado para o carro.

Entrou, fechou a porta e ficou sentado por alguns instantes, deleitando-se com o silêncio. Não queria sair dali. Não iria se arriscar a ver-se rodeado de pessoas e a ouvir aquelas vozes.

Precisava de ajuda, ponderou. Alguém com quem falar. Alguém que lhe explicasse o que estava acontecendo com ele. Lembrou de John, seu pastor. John sempre o ouvira, mesmo antes de Sam entregar a vida a Cristo. Ele era um bom ouvinte. Nada era capaz de deixar John chocado, nem mesmo o passado pecaminoso de Sam.

Ele saiu do estacionamento e, dirigindo como se sua saúde mental dependesse de sua velocidade, foi para a igreja.

3

John havia acabado de entrar no estacionamento da igreja quando Sam chegou. Parecia tarde — já devia ter-se passado metade da manhã. Mas, enquanto o pastor acenava e descia do carro, Sam se apercebeu de que ainda não eram oito horas. Os outros membros da equipe ministerial ainda não haviam chegado.

Ele saiu do carro e apoiou-se, cansado, no capô. John aproximou-se dele:

— Sam, você está bem?

— Não. Não estou bem. Podemos conversar em particular?

John olhou ao redor como se dissesse que estavam a sós e respondeu:

— Claro.Vamos para o meu gabinete.

Sam conseguiu controlar sua perplexidade enquanto o pastor o acompanhava até o escritório. Há muito tempo que não ia ao gabinete de John, desde que ajudara a pintá-lo, três anos atrás. Entrou e jogou-se na poltrona que havia em frente da escrivaninha.

John acomodou-se na outra poltrona e encarou-o. Cotovelos nos joelhos, inclinou-se para a frente, denotando preocupação.

— Diga-me, Sam, qual é o problema?

— Estou ouvindo coisas - Sam respondeu, depressa. — Em todos os lugares aonde vou... ouço vozes. Elas falam comigo de todas as direções, todas as pessoas que encontro. Acho que estou ficando louco!

John endireitou o corpo, deixando que as palavras penetrassem em seu cérebro.

— Que tipo de vozes?

Sam ficou em pé, foi até a janela, olhou para fora e passou as mãos pelos cabelos.

— Só... vozes. Como se fossem pensamentos.

— E falam com você?

— Não exatamente comigo. É como... na verdade, não tem nada a ver comigo. Eu apenas ouço. Como se estivesse bisbilhotando...

Ele se voltou e notou a expressão alterada do pastor. Deu-se conta de que estava parecendo drogado.

— Sam, desde quando você está assim?

— Desde que acordei. — Lembrou-se do sonho e arqueou as sobrancelhas. Voltou depressa para a poltrona.

— Eu tive um sonho a noite passada. Foi muito vívido, John. Era sobre uma mulher procurando dinheiro pela casa inteira.

— Dinheiro? Você está com problemas financeiros?

— Não! Não era bem dinheiro. Era uma moeda, algo assim. Ela a encontrou e começou a festejar como se fosse realmente uma coisa importante. Não fazia sentido, mas eu estava lá,participando e não participando... pensando sobre a importância de uma moeda perdida.

John recostou-se na poltrona e assentiu, como se já tivesse escutado tudo aquilo antes.

— Sam, você, por acaso, pegou no sono ontem enquanto lia a Bíblia? Você estava lendo Lucas 15?

Ele sacudiu a cabeça.

— Lucas 15? Não. Por quê?

— Porque eu fiz menção dessa passagem no sermão de ontem, lembra?

Sam gostaria de ter prestado mais atenção.

— Não... refresque minha memória. John não demonstrou surpresa.

— Em Lucas 15, Jesus fala sobre uma moeda perdida, uma ovelha perdida e um filho perdido. Parece que você esteve sonhando com isto, talvez processando mentalmente meu sermão.

Sam fitou os pés. Não achava que aquilo tivesse brotado da Bíblia — há muito tempo que não lia Lucas. Em seguida, lembrou-se da palavra estrangeira que tanto o abalara e, depressa, ergueu a cabeça.

— Eu acordei, e tenho certeza de que estava acordado... e ouvi aquela voz... cheia de poder e autoridade, como se fosse o próprio Deus... e Ele disse algo em outra língua.

John franziu a testa, num esforço visível para acompanhar cada palavra.

— E o que Ele disse?

— Ephphatha, creio. Ou algo parecido. Você sabe o que significa?

— Não. — John refletiu por alguns instantes. — Então foi uma voz que você ouviu? É este o motivo pelo qual acha que está ficando louco?

— Não, não é apenas isto. — Sam ficou em pé e começou a andar pela sala, passando a mão nos cabelos úmidos de suor. — Eu estava no restaurante onde costumo tomar o café da manhã e ouvi a garçonete — seus pensamentos ou seja lá o que for. Olhei e ela não havia dito nada. E a senhora ao meu lado... ela disse que a gravidade iria abandoná-la, que iria voar pelos ares e ninguém perceberia. Olhei para ela, John, e ela não havia pronunciado uma palavra. Estava apenas com os olhos pregados na xícara de café. E depois o homem na mesa ao lado, a mulher atravessando a rua, o rapaz do elevador, minha secretária...

— Você ouviu todos os pensamentos deles?

— Os pensamentos, não. Não posso ler seus pensamentos... Acho que apenas seus sentimentos. Não sei.

Sam tornou a sentar.

— John, você precisa me ajudar. Não sei o que fazer.

O pastor respirou fundo e, demonstrando preocupação, aproximou-se de Sam.

— Vou encaminhá-lo a um conselheiro. Você precisa conversar com um profissional.

— Um psiquiatra?

Sam lembrou-se de que havia dito à esposa que ela precisava de ajuda psiquiátrica. Ele estava brincando, mas John, não. A idéia não o entusiasmou, mas faria qualquer coisa para chegar à raiz daquilo tudo. Era bem provável que um psiquiatra

estivesse acostumado a tratar de ocorrências semelhantes quase todo dia. Talvez houvesse uma explicação lógica. Comida envenenada ou um golpe na cabeça do qual ele tivesse esquecido. Talvez as vozes pudessem ser interrompidas.

— Está bem — concordou, como se sua mente estivesse avaliando todas as possibilidades. — Ótimo. Talvez ele possa me ajudar.

John procurou um nome no arquivo, puxou um cartão e anotou um número. Sam sabia que ele não acreditava na história das vozes, mas não tinha importância, desde que lhe conseguisse ajuda.

— "O ministério não é o meu lugar. Ninguém presta atenção. Não estou causando nenhum impacto."

Sam ergueu o olhar.

— Claro que está.

John parou de escrever.

— O quê?

— Você provoca impacto. Não há dúvida de que você provoca impacto. Não está pensando em abandonar o ministério por causa de excêntricos como eu!

O rosto de John mudou radicalmente, e ele sentou, assombrado, o olhar pregado em Sam.

Sam percebeu, então, o que havia feito.

— Você não disse nada, não é? Você pensou ou sentiu aquilo. Eu ouvi, John. Está vendo?

O pastor parecia tão perplexo quanto ele.

— Eu não comentei isto com ninguém. Nem com minha esposa. Mas tem passado pela minha cabeça...

— Eu ouvi John! Não estou inventando nada! Entende agora o que estou enfrentando?

John começou a transpirar. Coçou o queixo, encarando Sam com uma expressão assustada. Levantou bem devagar, deu a volta na escrivaninha e sentou de frente para o amigo.

— Você é capaz de ouvir o que estou pensando neste

momento?

Sam fechou os olhos e tentou ouvir. Foi inútil. Não conseguia ouvir só para atender a um pedido. Não possuía nenhum controle em relação ao que estava lhe acontecendo.

— Não. Não sou médium. Não funciona assim. É como se eu ouvisse... necessidades. Necessidades específicas.

— Necessidades? Você ouviu os pedidos das pessoas no restaurante? Antes que falassem?

— Não, não são pedidos deste tipo. Parecem... com o que você falou na igreja domingo, sobre o que aconteceria se pudéssemos ouvir as necessidades espirituais das pessoas.

John recostou-se na poltrona e permaneceu em silêncio durante algum tempo.

— Achei que você não estivesse prestando atenção.

— E eu não estava — Sam confessou. — Lembrei-me vagamente do sermão esta manhã. Depois que Deus falou aquela palavra.

— Você realmente sentiu que foi Deus quem lhe falou?

Mais uma vez, Sam se esforçou para raciocinar com lógica, mas chegou à mesma conclusão.

— Sim, eu creio que foi Deus. Isto é, acho que foi. Eu estava sonhando a respeito de Lucas 15, ouvi uma palavra em outra língua, lembrei de parte do seu sermão... Nunca me aconteceu uma coisa destas.

— Muito obrigado.

— Mas comecei a ouvir todas aquelas coisas...

John foi até a estante e pegou a concordância bíblica.

— Pode repetir a palavra?

— Ephphtha ou algo assim.

— Epithet?

— Não. Tenho certeza de que era em outra língua.

— Ephah? É uma medida.

— Não. Tinha outra sílaba, acho. Deixe-me ver. — Sam

pegou o livro e buscou as palavras iniciadas por Eph, repetindo em voz baixa a pronúncia de cada vocábulo. — Epher, Ephesus... — arregalou os olhos quando deu com a palavra. — Ephphatha. Achei, John. E esta a palavra!

John tomou-lhe o livro e encontrou a referência.

— É Marcos 7.34.

— Pegou a Bíblia, examinou os versículos e caiu sentado na poltrona. — Puxa!

— O que foi?

Sam tirou-lhe a Bíblia e achou o versículo. Começou a ler bem devagar:

— "Depois, erguendo os olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá, que quer dizer: Abre-te!" — Cenho franzido, ele fitou o pastor: — O que Deus está querendo me dizer?

— Veja o contexto. Eles trouxeram um surdo e gago até Jesus. Ele pôs os dedos nos ouvidos do homem e disse: Ephphatha! Abre-te. E o homem passou a ouvir e a falar.

— E o que isto tem a ver comigo? Não tenho problemas de audição.

John exibia aquela expressão no olhar que costumava exibir quando achava que o Espírito Santo estava operando nos cultos da igreja. Era evidente que estava ficando entusiasmado.

— Você não está entendendo, Sam? Por algum motivo, o Senhor veio até você na noite passada e abriu seus ouvidos. Será possível que você esteja ouvindo o que o Espírito Santo ouve? Em voz alta?

Sam relembrou as coisas que havia escutado e começou a assentir com a cabeça.

— Ouvi uma mulher que não tinha meios para alimentar a família, outra que achava que nunca escaparia do passado, outra que se considerava ninguém, um ser insignificante...

— Necessidades espirituais. Como Deus as ouve.

Sam refletiu por alguns instantes.

— É, acho que sim. Mas... por que eu? Por que Deus escolheria amaldiçoar-me?

— Sam, não é uma maldição! É um dom! O que eu não daria para obtê-lo!

— Mas por que eu? Por que não alguém como você, que sabe falar sobre Jesus? Alguém que não se constranja em compartilhar sua fé?

— Todos nós devemos ser testemunhas, quer nos sintamos à vontade quer não. Foi sobre isto que preguei domingo. Devemos sair pelo mundo com um sentimento de urgência, porque existem pessoas perdidas, e não há ninguém que saia à procura delas!

— Eu não consigo fazer isto! — Sam gritou. — Sou um sujeito comum. Não sou pregador. Não estudei no seminário. O que devo fazer? Pregar pelas esquinas? Sair falando de Jesus no topo das montanhas?

— Isto mesmo! — John exclamou, pondo-se em pé.

Sam exalou um suspiro de incredulidade e murchou na poltrona.

— John, você precisa me ajudar. Não consigo fazer isto.

— Claro que pode — o pastor retrucou, pegando-o pelo ombro. — Sam, se você é cristão, você é capaz de fazer isto. Foi-lhe concedido um dom poderoso, e o Senhor não concede um dom sem preparar a pessoa para usá-lo.

— Mas isto é uma loucura. Kate vai achar que fiquei maluco.

— Não se ela ouvir suas necessidades espirituais verbalizadas, como você fez comigo. As pessoas vão ouvi-lo, Sam. Elas desejam encontrar respostas para suas necessidades mais profundas — vão querer que você converse com elas! Entende como isto é especial?

Subitamente Sam se sentiu esmagado. Cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a chorar, algo que não fazia desde o enterro da mãe, anos atrás. Era muita coisa para um só homem administrar.

John colocou a mão na cabeça dele.

— Quero orar por você. Parece muita coisa, eu sei. Mas Deus lhe concedeu este dom. Você precisa agradecer e reconhecer que não pode usá-lo sem Ele. O poder é dele.

Sam entendeu; não era algo que pudesse fazer sozinho. Só Deus poderia fazer surgir algo tão extraordinário.

Inclinou a cabeça, ainda chorando, enquanto John orava por ele. Na oração, o pastor pediu que ele confiasse que o Senhor iria supri-lo de palavras e de coragem e que fosse capaz de falar a todos com quem se encontrasse como satisfazer suas necessidades, à semelhança de Paulo e Pedro. Sam, porém, não conseguia se imaginar neste papel. Desde quando era um missionário evangelista? Quando John disse "Amém", Sam fitou-o com uma expressão de desalento.

— Vou ajudá-lo — o pastor animou-o. — O que acha de nós dois tirarmos o dia de folga? Podemos sentar em algum lugar. E você vai me contar tudo o que ouvir. A partir daí, eu tomo conta. Vou ensinar-lhe como deixar Deus assumir a direção.

Sam sentiu pela primeira vez naquele dia uma onda de serenidade engolfá-lo e fitou o amigo através das lágrimas.

— Você faria isto por mim?

— Claro que sim. Mal posso esperar para ver como funciona.

Ele abriu as mãos.

— Muito bem. Para onde vamos?

John refletiu durante alguns instantes.

— Que tal a estação rodoviária? Às vezes, fica lotada neste horário. Pense em todas aquelas almas perdidas. Todas aquelas vozes.

— Não. — Sam sacudiu a cabeça com firmeza. — Não dá para administrar isto. Um pouco de cada vez. Vamos para algum lugar que eu conheça bem. Vamos voltar para o restaurante.

— Está bem.Vou deixar um recado para o pessoal.

Ao saírem para pegar o carro de John, Sam sentiu uma espécie de vertigem, uma sensação no estômago de que Deus havia cometido seu primeiro erro.

4

Como Sam se mostrava perturbado, John assumiu o volante e foi seguindo sua orientação para chegar ao restaurante. O local estava ainda mais cheio do que estivera nas primeiras horas da manhã. Sam olhou o relógio e deu-se conta de que não era muito tarde — não passava das nove e meia. Seu dia começara muito cedo. Dezenas de pessoas ainda esperavam para tomar o café da manhã antes de ir para o trabalho.

John seguiu-o e olhou ao redor em busca de um reservado. Janie, a garçonete, levantou a voz para se fazer ouvir acima de todo aquele burburinho.

— Ainda bem que voltou, Sam, pois você foi embora sem pagar.

Ele não havia pensado no assunto até aquele momento. Constrangido, chegou ao balcão.

— Desculpe, Janie. Eu não estava pensando com clareza. Mas você sabia que eu voltaria, não é?

— Claro — ela replicou, com um gesto de mão para indicar que não estava aborrecida. — Você nunca me enganou. — A garçonete indicou um reservado no canto. Dois funcionários do hospital estavam saindo. — Por que vocês não pegam aquela mesa ali? Vou pedir ao Joe que venha limpá-la.

Ao se acomodarem ao redor da mesa pegajosa, John olhou ao redor, como se fosse um neurótico de guerra perturbado com todo aquele barulho e com a pequena multidão. Sam fez um sinal em direção a Janie.

— Eu ouvi a voz dela hoje de manhã.

— O que ela disse?

— Alguma coisa sobre descansar. Que isto mudaria toda a vida dela. Não me parece uma necessidade espiritual. O que acha?

John ponderou o assunto por alguns instantes.

— Jesus disse: "Venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso."

Sam esfregou o queixo.

— Disse mesmo, não é? O que você acha disto?

— Você disse a ela?

— Não, não lhe disse nada. Eu não sabia o que estava acontecendo. Fiquei surpreso quando percebi que ela não sabia que eu a havia escutado. E quando aquela senhora ao meu lado falou aquela coisa sobre a gravidade libertá-la e...

— Ela está aqui? Sam olhou ao redor.

— Não, já foi embora.

— Como você lhe respondeu?

Sam resmungou seu aborrecimento.

— Não respondi. Ela se irritou quando tentei puxar conversa, e mudei de lugar.

— Oh! — John mostrou-se claramente desapontado. — Você contou para alguém o que ouviu?

— Claro que não. Eles teriam chamado a polícia ou coisa que o valha.

Ele encarou o pastor do outro lado da mesa, imaginando o que ele esperava.

— E o que você está ouvindo agora?

Sam respirou fundo e ajeitou-se na cadeira, atento.

"Não consigo fazer isto sozinha."

A voz o surpreendeu. Voltou-se para a mesa ao lado e viu uma moça grávida com uma criança pequena. Virou-se para John e cobriu a boca com a mão.

— A moça do lado — ela disse que não consegue fazer isto sozinha.

Os olhos do pastor brilharam como os de um garoto no portão de um parque de diversões.

— Vá dizer-lhe que ela não precisa resolver nada sozinha.

Sam mudou de posição na cadeira. Estava arrependido de ter colocado John naquilo.

— Não posso.

— Por que não?

— Porque não. Ela não sabe que ouvi seus pensamentos. Vai pensar que estou tentando lhe passar a conversa.

— Não vai, não. Se você for lá e falar de sua necessidade espiritual mais profunda, acha que ela vai mandá-lo embora?

— Bem, não, mas... ora, John, venho aqui todos os dias. Conheço algumas destas pessoas. Não quero que comecem a fugir de mim.

A expressão do pastor se abateu.

"Ele não ouviu uma palavra do que eu disse."

As palavras não foram emitidas, mas Sam enrubesceu. Inclinando-se, encarou o amigo com firmeza.

— Ouvi muito bem o que você disse. Pare de pensar que é um fracassado, porque eu não sou nenhum Billy Graham.

— Deus não está pedindo que você seja Billy Graham. Sam, por que você acha que Deus lhe deu esta capacidade?

— Não sei. Tenho me perguntado isto a manhã inteira. Acho que é um castigo por ser morno ou outra coisa semelhante.

— Não é castigo — John sussurrou. — É um dom maravilhoso. Do que você tem medo?

— Não sei. De confundir a cabeça das pessoas. De falar a coisa errada. De afastá-los completamente da religião por acharem que sou um maníaco brandindo a Bíblia.

John parecia enxergar tudo o que havia em seu íntimo. Sam detestava aquilo.

— Na verdade, não é nada disto, não é mesmo, Sam?

— Você também recebeu o dom? Você acha que é capaz de olhar dentro do meu coração e ver o que estou sentindo? Por que não me diz logo o que é?

John encarou-o com firmeza.

— Acho que você está constrangido. Envergonhado.

— Envergonhado! — Ele pensou, indignado, em ir embora dali. — Não tenho vergonha da minha fé!

— Quantas vezes você falou a alguém sobre ela?

— Muitas! As pessoas a podem ver pela minha vida. Elas sabem que não faço negócios escusos. Trato a todos com gentileza. Todos sabem que sou ativo na igreja. Eles sabem, está bem?

— Mas quantas vezes você compartilhou sua fé em voz alta? Em palavras? Quantas pessoas levou a Cristo?

— Que eu saiba, nenhuma. O que não significa que tenho vergonha e, sim, que não houve oportunidade. — Ele fez uma pausa e encarou seu pastor do outro lado da mesa. Mesmo sem o dom, sabia o que John estava pensando — que ele estava arrumando desculpas. Sam esfregou o rosto.

— Olhe, John, eu gostaria muito de dizer que levei um monte de gente a Cristo. Todo cristão gostaria de pensar assim. Mas não sou como você. Este não é o meu dom. Não tenho esta ousadia. E, se eu for lá e começar a falar de Jesus para aquela moça e ela me fizer uma pergunta teológica que eu não saiba responder, porque, para ser franco — e estou sendo bem sincero — , não tenho estudado muito a Bíblia...

— Você conhece Jesus?

Sam fitou-o, atônito.

— Claro, John! Logo você vem me fazer esta pergunta? Você me batizou. Posso não ser o melhor cristão do mundo, mas tenho um relacionamento com Cristo.

— Pois converse com ela sobre isto. É tudo o que ela precisa saber no momento. É tudo o que você precisa saber no momento.

Sam não conseguia acreditar que o pastor estivesse colocando-o na berlinda daquele jeito. John achava mesmo que era assim tão fácil?

— Nem sei como iniciar a conversa. O que eu faço? Aproximo-me da mesa dela sem mais nem menos e vou dizendo que ela não precisa fazer isto sozinha? E se ela nem perceber que era o que estava pensando? E se...

John exibia uma expressão sorridente.

— Sabe, Sam, Satanás não precisa fazer nada para frustrar

suas tentativas de anunciar a Palavra. Você mesmo faz o trabalho dele.

Sam encostou-se na parede com força.

— Foi um golpe baixo. Foi um golpe realmente baixo, John.

— Por que Deus está permitindo que você ouça estas vozes?

Ele cerrou os punhos.

— Para me deixar louco.

— Não. É óbvio que Ele quer que você responda a elas. Você não iria ouvir estas coisas se não fosse para responder a elas de alguma forma.

— Toda vez, então, que eu ouvir estas vozes, devo iniciar um sermão de amador?

— Talvez seja este o plano.

— É provável que eu tenha escutado seis vozes ao mesmo tempo lá no supermercado. Deveria ter subido num engradado de ovos e pregado para eles?

— Você é quem sabe.

— Ora, John!

O pastor olhou para a moça, e Sam acompanhou seu olhar. Ela estava ajudando a criança a comer os bolinhos de batata e, com a outra mão, massageava o abdome.

"Estou com medo", Sam ouviu-a dizer, embora, na realidade, ela não tivesse pronunciado uma palavra. "Não quero fazer isto."

Ele se pôs a imaginar se a moça havia ido ao hospital para uma consulta. Se existia um marido na vida dela. Se ela era realmente sozinha ou apenas se sentia sozinha. Sam, de súbito, esqueceu-se de onde ele e John haviam interrompido a discussão.

Era evidente que o pastor também havia esquecido. John ameaçou levantar-se da cadeira. Sam segurou-o pelo braço.

— Aonde você vai?

— Vou até ali conversar com aquela moça — o amigo

respondeu, em voz baixa.

Sam soltou-o e ficou observando John se aproximar dela.

— Minha senhora, meu nome é John Ingalls, pastor da Igreja do Salvador, situada na Rua Post, e estava prestando atenção nesta linda garotinha — disse ele, com gentileza.

A moça sorriu.

— Obrigada.

— Incomoda-se se eu me sentar por alguns instantes? Gostaria de lhe falar, se puder dispor de alguns minutos.

Ela deu de ombros.

— Claro, à vontade.

Era naquele ponto que ele deveria cair fora, Sam ponderou. A moça olharia para ele e gritaria pedindo socorro. Costumava provocar este efeito nas mulheres.

John, no entanto, possuía um rosto bondoso e nada ameaçador. Podia-se notar, a quilômetros de distância, que o indivíduo era um pregador.

Janie lhe trouxe o café, e ele pôs-se a mexer o açúcar bem devagar, atento à conversa na mesa ao lado.

— Notei como está massageando o estômago e fiquei imaginando se está se sentindo bem — John comentou.

Ela riu.

— Bem, para ser franca, talvez não esteja.

— Como assim?

— Estou em trabalho de parto. Sam ergueu a cabeça.

— Por que não está no hospital? — John indagou.

— Já estive lá. Disseram-me que estou bem no início. Que seria melhor voltar quando as contrações fossem mais seguidas. Que eu devia andar um pouco, relaxar...

— E você avisou seu marido? A moça sacudiu a cabeça.

— Não tenho marido.

— O pai do bebê, então. Não tem...?

Lágrimas brotaram em seus olhos, e ela cobriu a boca com a mão. A garotinha olhou-a, tocou-a, como se as lágrimas fossem comuns, embora desagradáveis.

John inclinou-se sobre a mesa e fitou-a.

— Você deve estar se sentindo muito só neste momento.

Sam olhou para o pastor. Ele estava usando o que lhe havia contado sobre a necessidade dela. A moça assentiu com violência.

— É exatamente como estou me sentindo.

— Tem alguém para cuidar desta linda garotinha enquanto estiver no hospital?

Ela limpou os olhos.

— Não. A assistência social vai tomar conta dela até eu receber alta. Não sei por que ela não pode ficar lá comigo. Ela é muito boazinha... — a voz dela falhou ao passar o braço ao redor dos ombros pequeninos da criança.

John estava balançando a cabeça.

— Olhe, minha esposa e eu gostaríamos muito de cuidar dela enquanto você estiver no hospital. Gostamos muito de crianças, e nosso caçula foi para a faculdade este ano. Ela pode ficar conosco o tempo que você quiser.

A perspectiva pareceu perturbá-la ainda mais. A moça entrelaçou os dedos com os da filha.

— Obrigada, mas não sei...

— Claro que você não pode confiar em mim assim de pronto. Telefone para a minha igreja e faça indagações a meu respeito. Vou pedir à minha esposa que venha até aqui para que a conheça. Caso você não goste de nós, iremos embora e a deixaremos sozinha.

— E por que você faria uma coisa destas? Cuidar de uma criança para ajudar alguém que não conhece?

— Porque alguém me disse que você está sozinha e necessitada. Para ser franco, eu precisava de uma abertura para explicar-lhe que você não está realmente só, que existe alguém que a amou a ponto de morrer por você. E, porque ele a ama

muito, colocou-me na mesa ao lado da sua para que eu pudesse vir falar com você.

Como se ele fosse a pessoa a quem John se referia, a moça olhou para Sam, ainda sozinho na outra mesa.

— Alguém me amou? — indagou, meio zangada. — Quem?

— Jesus Cristo.

A expressão dela se transformou, e ele notou o cinismo que marcava seu rosto jovem.

— Ora, pare com isto. Dê um tempo.

— Ouça, por favor — John continuou, sem querer entrar em discussão —, você não está sozinha. Você pode achar que está, mas existem pessoas que podem amá-la e se interessar por você, e por uma única razão — porque Jesus a ama.

Ela massageou o abdome.

— Se eu pudesse acreditar nisto.

— Você pode acreditar. É verdade.

O rosto dela ruborizou-se e se retorceu quando se pôs a chorar. A garotinha largou a colher e fitou a mãe. John tocou no ombro dela.

— Moça, você não precisa continuar com este sentimento de solidão. Hoje, quando trouxer seu bebê ao mundo, poderá trazê-lo para um lar cristão.

Ela olhou para o ventre e depois para a criança.

— Eu nunca a levei à igreja. Nunca lhe ensinei nada a respeito da Bíblia. Há tanta coisa que eu poderia ter aprendido.

— Você não precisa aprender nada antes de vir a Cristo. Tudo o que tem a fazer é orar e dizer a Jesus que seu desejo é que Ele tome conta de sua vida. Quer tomar esta decisão?

Ainda chorando, ela assentiu.

— Não pode ser pior do que tem sido — falou, soluçando. — Sim, eu quero tomar esta decisão.

John trocou um olhar com Sam, dizendo, em silêncio: Está vendo? Você é capaz de fazer isto. Mas ele não ia cair nessa — John era um evangelista nato.

— Vamos orar — disse John.

A moça olhou ao redor, constrangida.

— Não sei se consigo fazer isto em público...

— Ele morreu em público — John disse em voz baixa. — Não permita que o constrangimento a impeça de aceitar este amor.

John fechou os olhos, e ela o imitou. Sam ouviu o início da oração e sentiu a emoção de testemunhar uma nova convertida ser conduzida ao reino de Deus. Era inacreditável como havia sido fácil. Ouvira histórias de portas sendo batidas no rosto das pessoas e até de perseguições. Lera a este respeito na Bíblia.

Ocorreu-lhe, então, um pensamento. Eu o facilitei para você, Sam.

Ele respirou fundo quando a oração chegou ao fim. A tensão no rosto da moça começou a se dissipar, e ela se pôs a rir em meio a lágrimas. Não passava de uma adolescente, ele notou. Praticamente uma criança. Talvez tivesse a idade de sua filha. O coração dele se confrangeu ao pensar em Jennifer, caloura na faculdade, em trabalho de parto, sem ninguém ao lado. Como aquilo teria acontecido com a jovem?

John continuou conversando com ela e, depois de alguns instantes, levantou-se e foi até o telefone público. Sam teve a certeza de que estava ligando para a esposa, para que viesse buscar a garotinha. Pôs-se a imaginar com que freqüência John transformava o amor de Cristo em ação concreta. Talvez todos devessem agir desta forma, pensou. Talvez os cristãos, como os médicos, devessem curar as doenças espirituais fatais, as moléstias terminais da alma.

Quando voltou, John o colocou em apuros.

— Sam, venha até aqui um instante. Quero que conheça o membro mais novo de nossa família.

Ele se levantou meio sem jeito e estendeu a mão. — Vocês são irmãos?

— Não — Sam retrucou, mais que depressa.

— Somos irmãos em Cristo — John explicou — , e agora você é nossa irmã.

Os olhos dela lacrimejaram, e ela sorriu.

— Ah! sim.

Sam sentou. Não sabia o que dizer.

A criança ficou em pé, exibindo a calça molhada.

— Vejam só! — a moça exclamou. — Nós ainda não conseguimos tirar a fralda. — Ergueu-se da cadeira, a mão sobre o ventre. — Vocês me dão licença? Vou deixar minha sacola aqui.

Sam olhou sob a mesa e viu a mochila preparada para o hospital. Ela levava a bolsa e a sacola de fraldas no ombro.

— Tomem conta para mim, por favor, voltarei logo.

— Claro — John replicou. — Tem certeza de que está bem?

— Oh! sim. É provável que ainda demore algumas horas. Se houver alguma coisa, eu grito.

Elas foram para o toalete, e John sorriu para Sam.

— Então, o que você acha disto?

— Acho que foi maravilhoso.A coisa mais surpreendente que já vi.

— Você também é capaz de fazer isto. É muito simples. Você conhece as necessidades deles. Fale com eles.

Sam, porém, continuava cético. Conhecer as necessidades deles era uma coisa, supri-las era muito diferente.

— "Sou tão vil."

A voz atrás dele soou tão alto como se tivesse sido sussurrada diretamente em seu ouvido. Ele se voltou e viu o homem sentado, vestindo um terno limpo e bem passado, lendo o jornal como se não houvesse nada de errado.

— "Não agüento mais esta vida. Sou corrupto, desprezível."

Sam virou-se para John.

— O homem atrás de mim. Disse que se acha vil, corrupto, desprezível.

John fitou-o com intensidade.

— Vá falar com ele. Diga-lhe como pode ficar purificado.

Sam fechou os olhos. Não queria estar ali. Não queria aquele encargo, aquela responsabilidade sobre ele. Estava começando a ter dor de cabeça. Precisava deitar.

— Vá — o pastor instou.

Ele massageou as têmporas.

— E melhor você ir. Você tem mais experiência com estas coisas.

— Sam, apenas fale com ele.

— O que eu digo? — Sam sussurrou, áspero. — Como vou entrar no assunto? Desculpe, mas não pude deixar de ouvir sua alma lamentando?

— Não. Conte o que lhe aconteceu.

Sam suspirou. A moça e a filhinha já voltavam para a mesa. Era óbvio que John precisava continuar a conversar com ela a respeito da fé recém-descoberta e do bebê que iria nascer. Sam se deu conta de que estava numa enrascada. Se não se dispusesse a agir, o pastor iria considerá-lo um covarde. Pôs-se em pé, bem devagar, e voltou-se para a cadeira às suas costas.

— Com licença.

O homem tirou os olhos do jornal.

— Pois não?

— Desculpe incomodá-lo. Eu só... bem, sabe, parece que eu tenho um dom... sou capaz... de ouvir coisas...

Os olhos do homem se estreitaram. Não estava conseguindo acompanhar o que ele dizia. Sam fez menção de puxar uma cadeira.

— Posso?

O homem recostou-se na cadeira, desconfiado.

— Claro, à vontade.

— Bem, sabe, eu não pude deixar de ouvir... O homem permaneceu calado, escutando.

— ...algo que talvez você disse sem perceber. — Sam fez

uma pausa, percebendo que havia tomado o caminho errado. Não precisava ser tão direto.

— Desculpe. Eu não estou entendendo.

— Lógico que não está. Humm..., veja bem, amigo. — Ele apoiou os cotovelos na mesa e aproximou-se, mantendo a voz baixa, em tom confidencial. — Talvez não faça sentido para você, mas senti que deveria vir aqui para falar a meu respeito.

A expressão do homem era a de quem estava se preparando para agüentar um discurso de vendedor.

— Há alguns anos... fiz algumas coisas... vi algumas coisas... coloquei algumas coisas na cabeça que... bem, elas fizeram com que me sentisse realmente sujo.

A expressão do interlocutor se transformou. Sam notou que havia despertado sua atenção e continuou:

— Não vou entrar em detalhes, mas eu sentia que não iria mais suportar a minha vida. Cheguei a ponto de pensar que, se existia um Deus, Ele deveria estar muito desgostoso comigo.

O homem, imóvel como uma pedra, ouvia.

— Então, uma noite, quando eu estava em casa com minha esposa, uma cristã convicta, que há anos vinha me arrastando para a igreja... me senti desorientado. Comecei a chorar sem parar e confessei a ela tudo o que eu havia feito. Minha esposa... foi buscar a Bíblia e abriu-a numa passagem que eu não conhecia. — Sam deu de ombros — claro que eu não conhecia, pois não ouvia nada na igreja, não prestava atenção, não lia nada, mas o versículo dizia que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.

O homem fitou a mesa. Suas mãos tremiam. Sam achou que o estava alcançando, que ia dar certo.

— E ele realmente me atingiu, entende, porque eu estava contando à minha esposa meus segredos mais tenebrosos, achando que ela não iria me perdoar, e ela começou a falar de alguém que morreu por mim para livrar-me do castigo por tanta imundície, embora eu fosse seu inimigo.

As narinas do homem fremiram. Ele cerrou os punhos e o encarou.

— Já terminou?

O coração de Sam quase parou. Pensara que o havia ganho, mas era óbvio que havia ido longe demais.

— Bem... sim. Eu só queria contar-lhe isto porque...

— Quer fazer o favor de me deixar comer em paz? — o interlocutor rosnou.

Sam não soube o que dizer. Confuso, empurrou a cadeira.

— Sim, claro. Está bem... mas se quiser conversar ou...

— Com você? — o homem indagou, com um sorriso de desdém. — Obrigado, companheiro, mas, se eu precisar conversar, não será com um convertido de segunda classe que comercializa sua religião como relógios baratos. Eu tenho a minha vida. — E com estas palavras ele dobrou o jornal e ficou em pé.

Sam procurou um cartão no bolso.

— Leve isto, caso um dia...

— Não ouviu o que eu disse, companheiro? Não preciso do que você está vendendo.

— Precisa, sim.

O homem riu. Sacudindo a cabeça, deixou sobre a mesa o dinheiro da refeição e dirigiu-se para a saída.

Sam sentiu-se sem ar para respirar. Permaneceu à mesa, rememorando a conversa, tentando descobrir onde havia errado.

Mais tarde, quando a esposa do pastor chegou para levar a garotinha para casa e a mãe dela saiu para uma caminhada a fim de apressar as contrações, Sam e John deixaram o restaurante.

— Acho que me saí muito mal lá dentro, não? — Sam indagou.

John lançou-lhe um olhar divertido por sobre o capô do carro.

— Você deve estar brincando! Você foi formidável!

— Formidável? O sujeito praticamente saiu correndo. Não poderia ter sido pior.

— A culpa não foi sua. O Senhor revelou-lhe a necessidade daquele homem, e você, obediente, entrou em ação. Se ele rejeitou, ele é responsável diante de Deus, não você.

— Como é que você sabe?

Antes que Sam percebesse o que estava acontecendo, John tirou uma pequena Bíblia do bolso da camisa e abriu em Ezequiel.

— Está bem aqui. Capítulo 3 de Ezequiel. Leia você mesmo.Versículos 18 e 19.

Sam pegou a Bíblia e começou a ler em voz baixa:

— "Quando eu disser ao perverso: Certamente, morrerás, e tu não o avisares e nada disseres para o advertir do seu mau caminho, para lhe salvar a vida, esse perverso morrerá na sua iniqüidade, mas o seu sangue da tua mão o requererei."

Sam se deteve na última palavra, lembrando-se da mulher de tranças ruivas daquela manhã, andando no meio do tráfego, sem respeito pela própria vida. Ele não lhe havia falado sobre o que sabia. Se ela tivesse sido atingida pelo carro e morrido sem conhecer a Cristo, ele seria o responsável. Sentiu o sangue fugir do rosto.

— Continue a ler - John falou. — Só o versículo seguinte.

— "Mas, se avisares o perverso, e ele não se converter da sua maldade e do seu caminho perverso..."

— Como o indivíduo que o rejeitou — o pastor interrompeu.

— "...ele morrerá na sua iniqüidade, mas tu salvaste a tua alma."

— Você não será responsável, porque você o avisou.

— Para mim, está ótimo. Mas, e quanto a ele? Por que não me ouviu, se eu me referi à sua verdadeira necessidade espiritual?

— Alguns não ouvirão. Sempre haverá aqueles que rejeitam a verdade. Mas isto não nos deve deter.

Sam fechou os olhos e encostou a cabeça no vidro da janela.

— Continuo me sentindo um fracassado. Se eu o tivesse

abordado de outra forma... de um jeito diferente... De que vale este dom?

— Ele fez bem para a moça. Eu não poderia saber da necessidade dela se você não tivesse me contado.

— Não obstante... você estava certo a meu respeito, John. Sou desprezível. Sou cristão há dez anos e nem uma vez, nestes anos todos, levei alguém a Cristo. Até uma hora atrás, eu nem queria fazer isto.

— Bem, talvez não pareça, mas creio que as coisas vão mudar. Com este dom, Deus vai levá-lo direto para a linha de frente.

Sam permaneceu em silêncio durante alguns minutos.

— Não sei se estou preparado para isto, John.

— Deus não espera até você ficar pronto. Às vezes, Ele simplesmente o joga lá. Não é difícil falar a respeito de Jesus. Você não precisa fazer um curso, ler um livro nem memorizar um esboço. Tudo o que tem a fazer é contar aos outros o que Ele fez por você. É o melhor testemunho que existe.

Sam balançou a cabeça devagar, desejando possuir a mesma confiança e a mesma paixão que o amigo possuía, mas teve a sensação nauseante de que iria decepcionar o Senhor. Era bem provável que, no céu, os anjos estivessem assustados com o estrago que iria, com certeza, causar.

5

Depois de muita persuasão, John convenceu Sam a acompanhá-lo nas visitas ao hospital. Ao atravessarem a rua, Sam começou, mais uma vez, a sentir-se apreensivo.

— Sabe, não sei lidar muito bem com enfermos. Espero que sua intenção seja a de dirigir toda a conversa. Creio que quase provoquei um enfarte naquele sujeito lá do restaurante. O rosto dele estava vermelho como um pimentão quando parei de falar.

John não parecia preocupado. Na verdade, Sam quase podia ver as engrenagens girando em sua mente.

— Uma de minhas maiores frustrações como pastor é quando os membros da minha congregação encontram-se à beira da morte e não consigo penetrar em suas almas para certificar-me de que conhecem o Senhor. É por isto que desejo que me acompanhe. Creio que me ajudaria muito se você pudesse dizer o que ouvir em seus quartos, para que eu possa saber como conduzir a conversa e como atender às suas necessidades.

— Mas não posso simplesmente repetir o que ouvir. Eles vão perceber.

— Perceber o quê? Que alguém sabia de suas necessidades espirituais? Aquela última pessoa é uma prova de que eles não têm consciência do que estão pensando. Você pode reproduzir palavra por palavra o que ouvir, e talvez eles nem se dêem conta disso.

— Você se deu conta quando eu mencionei suas necessidades.

— Mas sou cristão. Eu já havia orado a respeito do que você ouviu. Já havia enfrentado meus problemas.

Sam recordou as necessidades de John.

— Você está pensando seriamente em abandonar o ministério?

Depois de alguns minutos, John respondeu: — É, na verdade, estou.

— Por quê? Pensei que você gostasse muito de pregar.

— Gosto muito de servir ao Senhor, mas não estou provocando nenhum impacto; então, preciso largar tudo. Por vezes, é uma ocupação frustrante, Sam. Você fica diante de um púlpito, derramando seu coração e sua alma, e metade da congregação fica só a olhá-lo com uma expressão vítrea, tentando evitar os bocejos. Cinco minutos depois, nem conseguem lembrar qual foi o tema principal. As igrejas devem crescer. Os cristãos devem produzir frutos. Se estes resultados não estão lendo obtidos em minha igreja, é porque estou fracassando. Sam fitou-o, perplexo.

— Não acho. Você não está fracassando — não é possível que pense assim. Nossa igreja é vibrante. É formidável.

John esboçou um sorrisinho.

— É, vencemos o campeonato municipal de basquete este ano, e nosso time de futebol promete sair-se vencedor. Mas não é isto que me interessa. São as incômodas almas perdidas que me preocupam. E os cristãos bocejantes que não se importam com elas.

— Ora, o que é isto? Eu me importo. Mas é um assunto difícil. Isto é, você mesmo disse que muitas pessoas nem ao menos sabem quais são suas necessidades espirituais mais profundas. Se elas não sabem, qual é o problema? Quero dizer, o que você pode fazer? Até este dom que eu possuo, como pode servir de auxílio, se elas não reconhecem suas necessidades quando as menciono?

— A questão é que suas almas podem reconhecê-las. Algo no interior delas vai se agitar, quer reconheçam quer não. As pessoas que vamos visitar no hospital... algumas estão assustadas. Precisam saber o que Jesus pode fazer para ajudá-las.

— Mas já não têm problemas que bastem, estando doentes?

John lançou-lhe um olhar:

— Algumas vão morrer. Talvez esta seja a última oportunidade delas. Este é um dos motivos pelos quais eu insisto em visitar os membros da minha igreja. Não quero que ninguém morra sem ter compreendido tudo direitinho.

Sam permaneceu calado, pensativo, enquanto completavam o percurso até o hospital. A esposa dele trabalhava ali como enfermeira, e, ao entrarem, ele foi agredido pelo odor combinado de limpeza e doença. Conhecia outras pessoas que não conseguiam suportá-lo, mas aquele odor sempre parecia sobressaltá-lo. Era por isto que fugia de hospitais como da peste. Sua mãe havia morrido numa enfermaria do quarto andar; desde então, ele não voltara ali. Quando vinha buscar Kate, ela o encontrava no estacionamento.

Pôs-se a imaginar o que a esposa diria sobre sua visita ou sobre o estranho dom com o qual havia sido amaldiçoado. Naquela manhã, quando tomaram café juntos, ele ainda não sabia de nada. Por que não ouvira as necessidades dela?

Rememorou a conversa dos dois.

"Eu só quero ser útil!"

As palavras brotaram em sua mente. Ele a ouvira dizer estas palavras, mas, refletindo melhor, não estava olhando para a esposa. Ela as havia mesmo pronunciado ou as havia sentido ?

John fitou-o ao chegarem ao elevador.

— Você está bem?

— Sim, estou bem. Só estava pensando se devo contar a Kate.

— Por que guardar segredo dela?

— Não sei. Ela pode se sentir invadida, sabendo que sou capaz de ouvir o que se passa dentro dela.

John sorriu.

— Está brincando? É o sonho de toda mulher saber que seu companheiro é capaz de ouvir suas necessidades mais profundas. O problema será convencê-la; mas, se fizer com ela como fez comigo esta manhã, ela acreditará em você.

As portas do elevador se abriram, e John entrou. Sam estava começando a se sentir apreensivo de novo.

— A quem vamos visitar?

— Annabelle York.

— Eu a conheço?

— Ela é idosa. Está doente há algum tempo, mas até poucos meses atrás sentava-se na primeira fileira e dizia amém a tudo o que eu falava.

— Ah! sei. A senhora miúda de cabelos brancos. Há muito tempo que ela não aparece.

Sam envergonhou-se por não ter-se lembrado dela até aquele instante.

— Está com câncer no fígado. Já fizeram tudo o que era possível.

— Você não está preocupado com sua situação espiritual, não é? Quer dizer, é claro que ela é cristã.

— Talvez, mas nunca se pode ter certeza. Você sabe o que a Bíblia ensina, nem todo aquele que diz "Senhor, Senhor" entrará no reino dos céus.

As portas do elevador se abriram, mas Sam não fez menção de sair.

— Por que ela iria à igreja todos os domingos, sentaria na primeira fila, diria "amém", se não era realmente cristã?

— Não estou afirmando que é o caso — John respondeu, segurando a porta do elevador antes que se fechasse. — Se eu fosse o juiz, diria que esta mulher é uma cristã de verdade. O problema é que muitas vezes as pessoas o enganam. Muitas vezes, elas enganam a si mesmas. Eu não gosto de correr riscos quando alguém está prestes a deixar a terra. Quero que você me diga aquilo que ouvir.

Eles saíram do elevador, e Sam começou a sentir a apreensão que sentia ao se aproximar do quarto da mãe. Procurou uma porta de saída enquanto caminhavam.

— John, como vou atender ao seu pedido? Não posso falar o que ouvir na frente dela.

— Descubra um jeito. Não me importa como vai fazê-lo; mas faça-o. Eu preciso saber.

Mais uma vez, Sam se sentiu irado por causa do dom que não pedira nem desejara. Diminuiu o passo ao se aproximarem da porta do quarto. John bateu e, sem ouvir resposta, empurrou a porta e entrou.

— Sra. Annabelle, como vai?

De má vontade, Sam o seguiu. Não era polido, pensou, entrar daquela maneira no quarto de uma pessoa que não estava passando bem. Mas era tarde demais para deter o pastor. John já se encontrava ao lado da cama, inclinado sobre ela. A senhora idosa sorriu e estendeu-lhe a mão. Ele a apertou e perguntou, com doçura, como se sentia. A mulher mal conseguia falar.

— A senhora se lembra do Sam lá da igreja, não é? Ele está me acompanhando nas visitas hoje.

Ela deu um leve sorriso e acenou com a cabeça, como se o

conhecesse bem. Sam, porém, não tinha certeza de haver estado perto dela o suficiente para fitá-la nos olhos.

— Como vai, senhora?

— Bem — ela mexeu os lábios como se estivesse muito fraca para falar. Então ele ouviu uma voz forte, que não provinha de seus lábios: — "É tarde demais. Muito tarde. Tantos anos desperdiçados."

Sam deu um passo atrás e tentou mostrar a John, com o olhar, que havia escutado algo. Deu-se conta, no entanto, de que, caso se inclinasse e falasse em voz baixa, ela nem teria forças para perceber.

Os olhares de ambos se cruzaram, e o pastor fez um sinal com a cabeça para que falasse.

— Ela acha que é tarde demais - Sam disse em voz baixa, notando que a mulher o observava, esforçando-se para ouvir.— Acha que desperdiçou muitos anos.

John franziu a testa, como se não soubesse o que fazer com a informação.

— Ela conhece o Senhor? — sussurrou.

Como se respondesse, a voz se fez ouvir de novo.

"Tantas pessoas que eu poderia levar comigo para o céu, mas eu estava mais preocupada com o trabalho da igreja e em manter a casa limpa."

Sim, Sam pensou, ela conhece a Cristo. Foi engolfado, de súbito, por um ímpeto de ousadia e quis falar com ela, ajudá-la. Não queria enganá-la, falando com John em tom baixo. Deu a volta ao redor da cama e aproximou-se dela.

— Sra. Annabelle, o Senhor me revelou algo a seu respeito. Incomoda-se se eu disser o que é?

Ela sacudiu a cabeça.

— O Senhor me revelou que a senhora está preocupada porque não levou mais pessoas a Cristo. Que se ocupou mais com o trabalho da igreja e com as tarefas domésticas do que em ganhar almas.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e ela abriu a boca

como se tentasse falar. Olhou para Sam e para o pastor e apertou-lhe a mão.

— Pense... quantas pessoas... eu teria ajudado. John inclinou-se, ainda segurando a mão áspera.

— Sra. Annabelle, deixe-me orar por você.

Sam abaixou a cabeça quando John começou a orar pela mulher que estava vivendo seus últimos momentos na terra, preocupada em encontrar-se face a face com Aquele que conhecia todo o seu potencial.

Mais tarde, já no corredor, John sorriu mansamente.

— A Sra. Annabelle irá para o céu em breve.

— É mesmo. Ela é realmente cristã, mas parecia triste em relação ao que deixou de fazer.

— Creio que muitos de nós vamos nos sentir desta forma quando chegarmos ao fim. Já vi muito isto.

Foram para o próximo quarto da lista de John.

— Quem vamos visitar agora? — Sam indagou.

— Sid Beautral. O marido de Hattie Beautral, você o conhece?

Sam franziu a testa.

— Pensei que ela fosse viúva.

— Não, ela vai à igreja sozinha. Ele não gosta muito de igreja. Passou por uma cirurgia de vesícula.

— Então não está morrendo?

— Não, está apenas em recuperação.

— Ainda bem! — Sam exclamou. Estacaram à porta, e John bateu.

— Entre — uma voz de mulher respondeu. John empurrou a porta.

— Olá, Sra. Hattie. Como vai, Sid?

O pastor abraçou a mulher tranqüilamente, depois apertou a mão do homem que se encontrava na cama. Parecia ser uma segunda natureza de John abraçar os frágeis, enquanto Sam

procurava formas criativas de evitá-los.

— O que o traz aqui, pastor? — o doente perguntou, com aspereza. — Sabe muito bem que não estou morrendo.

— Claro que não está morrendo. Não visito só as pessoas que estão à morte. Visito todas as ovelhas do meu rebanho que se encontram hospitalizadas.

— Então faço parte do seu rebanho? — Sid indagou, cético.

— Sim, quer acredite ou não. E então, como vai?

O doente deu de ombros.

— Acho que vou bem.

Então Sam ouviu-lhe a voz, mais uma vez, mas os lábios dele não se moveram.

"Sou frágil. Não posso me defender. A minha vida está sob o controle de outra pessoa."

Ele cutucou o pastor. John assentiu, encorajando-o a falar. Sam pigarreou e bateu a mão, nervoso, na guarda da cama.

— Ahn... Sr.Beautral, talvez o senhor se sinta impotente deitado aí, como se não estivesse no controle... como se não pudesse se defender.

— Defender-me do que? — o homem perguntou, estreitando os olhos.

Sam sentiu-se perdido.

— De alguma coisa. Não sei. O que o ameaça?

Via-se em sua expressão que Sid estava achando Sam meio louco.

— Nada está me ameaçando. Pelo menos, não me ocorre nada.

Felizmente, John assumiu as rédeas, e Sam exalou um forte suspiro e se afastou.

— Sid, você não precisa se sentir frágil. Existe alguém no controle, alguém que o ama e sabe quantos fios de cabelo há em sua cabeça.

Hattie sorriu, e o marido o fitou, seu rosto se transformando

enquanto prestava atenção no que o pastor dizia. Sam orou para que John levasse aquele homem a Cristo antes que saíssem dali.

Quando terminaram as visitas e voltaram ao carro, os olhos de John dançavam.

— Acho que este foi um dos melhores dias da minha vida cristã.

Sam desejou sentir-se assim animado, mas todos os músculos de seu corpo estavam duros como pedra. Sabia que a tensão levaria horas para desaparecer.

— Creio que este é um dos piores dias da minha vida cristã — confessou.

— Por quê? Não se sente bem ao saber que nunca chegará ao ponto em que Annabelle se encontra, perto do fim da vida e arrependida por não ter levado ninguém a Cristo? Pense em quantas pessoas nós influenciamos só esta manhã.

— Você influenciou. Eu não fiz nada, exceto repetir o que ouvi.

— Você fez muito mais do que imagina. Você ouviu, Sam. Nem todo mundo ouve.

— Nem todo mundo tem de ouvir o que eu ouço — ele resmungou. — E agora, o que vou fazer com isto? Como vou me acostumar com isto?

— Talvez nunca se acostume. Talvez se torne conhecido como o sujeito que conserta a alma das pessoas. Podem falar coisas ainda piores a seu respeito.

— Não quero ter uma reputação destas. Este dom ou seja lá como você o chama. Não estou preparado para estas coisas.

— Claro que está. Se eu o deixasse no terminal de ônibus neste instante, você saberia o que fazer ao ver todas aquelas pessoas reunidas.

— Não saberia, não. Eu ficaria assustado. Esta manhã, na farmácia, quando comecei a ouvir todas aquelas vozes ao mesmo tempo, pensei que estivesse ficando louco.

— Bem, se fosse possível transferir seu dom para mim, eu o aceitaria antes que você pudesse dizer Ephphatha.

Sam encontrava-se exausto quando John concordou em voltar à igreja. Depois de entrar em seu carro, permaneceu sentado, refletindo. Não conseguiria ir para o escritório. Ligou para Sally do celular e avisou que ficaria fora o resto do dia.

— Comprei o bilhete de loteria, Sam. É melhor ir procurando outra secretária.

Ele cerrou os olhos e encostou a cabeça no volante.

— Que tal aguardar até você receber o cheque?

— Tudo bem, mas não posso prometer duas semanas de aviso prévio.

Sam desligou o telefone e lembrou da necessidade que ouvira dela naquela manhã. "Onze, seis, 57... tem de ganhar. Tem de ganhar!"

E se ganhasse? Ele havia escutado em tom alto, sem que ela emitisse as palavras. Não se enquadrava na categoria de "necessidade espiritual" como as demais coisas que ouvira naquele dia. Talvez ela soubesse de alguma coisa.

Sam pegou um bloco de anotações do porta-luvas e anotou os números — 11, 6, 57. Talvez ainda desse tempo de comprar um bilhete.

Deu partida no carro e dirigiu-se à loja de conveniências mais próxima que vendia bilhetes, parou no estacionamento e ficou por ali durante algum tempo. Então lembrou-se do que a alma dela ainda dissera:

"Se eu ganhar, ele vai ver o quanto eu valho."

Seria por este motivo que ouvira os números? Por que eram parte da necessidade espiritual dela?

Ganhar na loteria poderia ser mesmo a necessidade espiritual de alguém? Ou seria uma forma de Deus lhe fornecer uma informação particular?

Onze, seis, 57.

Qual seria o prêmio daquela semana? Como Sally se sentiria se tivesse de dividir a bolada com ele? Iria se sentir traída ou perplexa? E o que sua esposa iria pensar? Aceitaria o dinheiro, mesmo sendo contrária a loteria, ou iria compreender

que seu novo dom lhe proporcionava informações importantes das quais também podia utilizar? Além do mais, ser rico lhe proporcionaria mais tempo para ajudar os outros.

De súbito, seus pensamentos desencontrados cessaram. O que ouvira era realmente importante, sem dúvida, mas bem lá no fundo ele sabia que seu objetivo não era ganhar na loteria, mas ganhar almas para Cristo.

Devia estar louco. Ou Satanás estava tentando se infiltrar em sua vida. Ele fechou os olhos e pediu perdão a Deus.

Talvez a fome e o cansaço, somados ao estresse, o tivessem levado a pensar tantas tolices. Ele não precisava de um bilhete de loteria, como Sally também não precisava. Ele precisava de alimento. Duas idas ao restaurante e ainda não havia comido nada. Ele e John haviam estado muito ocupados indo de um lugar para outro, como Paulo e Silas, cheios de boas-novas e sem tempo suficiente para contar a todos.

Não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos. Foi uma citação que vira quando sua classe de Escola Dominical estudou Atos e que o tocou naquele momento. Convencera-se de que havia algo errado com os cristãos que paravam de falar sobre o que haviam visto e ouvido.

Só que ele era um deles. Havia se sentido mal a este respeito quase todo o dia e, depois, voltara ao normal.

Seria esta a forma de Deus discipliná-lo? Deus cegou Paulo para trazê-lo de volta. Talvez Sam não tivesse tanto o que reclamar.

Ele deu partida no carro e rumou para o restaurante pela terceira vez naquele dia. Janie ainda se encontrava atrás do balcão, acomodando os clientes com a economia de gestos de uma garçonete veterana. Sentou-se a uma mesa de canto, a uma distância segura para não ouvir ninguém, e observou Janie servir o último cliente. Recordou do que ela havia dito naquela manhã a respeito de precisar de descanso — ou o que a alma dela havia dito — e deu-se conta de que alguma coisa não ia bem na vida dela. Janie tinha uma necessidade.

Quando, por fim, ela terminou de atender a todos, foi até a mesa dele.

— Sam, acho que você está apaixonado por mim. Vir aqui três vezes no mesmo dia? Você não é casado?

Ele riu.

— Sou, sim. Foi um dia estranho, Janie.

— Não está trabalhando hoje?

— Estou de folga hoje. Não estou me sentindo muito bem.

— Sinto muito. Não é contagioso, é? Não posso me dar ao luxo de ficar doente.

Sam sorriu.

— Como se eu pudesse.

Ela franziu a testa.

— O que foi?

— Não foi nada.

Janie pegou o bloco de anotações.

— Bem, o que vai querer desta vez?

— Um hambúrguer. Com tudo. E que tal tirar uma folga para me fazer companhia enquanto como?

Ela ficou boquiaberta.

— E o que sua esposa vai dizer?

— Vai concordar que você está precisando de um descanso. Pelo menos durante alguns minutos.

O sorriso dela se desvaneceu, e Janie o fitou. Sam pôs-se a imaginar se ela havia se dado conta de que era daquilo que precisava.

— Puxa, bem que eu poderia descansar um pouco. Está bem, Sam. Volto já.

Ela voltou depois de alguns minutos com o pedido dele e um copo de chá gelado para si e sentou-se do outro lado da mesa, com um suspiro de alívio.

— Hoje está um dia daqueles.

— Fale-me a respeito.

Janie riu e baixou os olhos para o copo de chá.

— Estou falando sério. Quero realmente que me fale sobre o seu dia.

Ela o fitou, e naquele instante Sam tornou a ouvir a voz: "Não posso continuar assim. Parece que tudo vai desmoronar."

— Está bem movimentado — Janie disse, em voz alta. — Meus pés estão me matando.

Sam franziu o cenho, preocupado. — Você acha que não vai agüentar, não é? É como se tudo fosse desmoronar. Ela o olhou com desagrado e recostou-se na cadeira.

— Como sabe?

— Você conhece aquele versículo da Bíblia... não sei bem onde se encontra, mas é onde Jesus diz: "Venham a mim todos os que estão cansados... ou algo parecido... e eu lhes darei descanso?"

Ao observar a reação lenta dela, Sam repreendeu-se mentalmente por ser tão inepto com as Escrituras. Havia mesmo dito "ou algo parecido"? Seria melhor desistir logo. Não havia a menor possibilidade de levá-la a Cristo.

— Repita, por favor.

Ele teve vontade de chorar. Não poderia improvisar de novo e achou melhor parafrasear.

— Jesus disse para ir a Ele, e Ele lhe dará descanso.

— Já ouvi falar sobre este descanso — Janie replicou. — Um túmulo no cemitério.

— Não! — Sam riu. — Ele quer dizer descanso agora, aqui. Ajudá-la com seus fardos.

Ela sorriu, mas sem alegria.

— Não se ofenda, Sam, mas estou cuidando muito bem dos meus fardos.

— Então, por que sua alma está tão fatigada?

— Alma fatigada? Quem disse que minha alma está fatigada?

— Eu tenho esta impressão. Jesus disse que veio para nos

dar vida abundante — e isto é para você também, Janie.

— O que isto significa? Vida abundante?

— Uma vida tão cheia que transborda.

— Minha vida está transbordando, está certo. Está respingando para todo lado.

— Mas poderia estar fluindo como água viva. — As próprias palavras o surpreenderam.

Janie ficou em silêncio, refletindo. A obstinação em seu rosto como que se derreteu e ela parecia ter dificuldade em se expressar.

— Água viva, hein? Vida abundante? Descanso? — Sam não teve certeza, mas achou que ela estava segurando as lágrimas. — Para ser franca, parece muito bom.

O coração dele pulou. Será que as Escrituras, ainda que mal citadas, haviam atingido o coração dela? Seria possível que ela estivesse receptiva a Jesus a despeito de sua tentativa falha de ajudá-la? Talvez ele fosse mesmo capaz de falar de Cristo!

— Sabe... às vezes fico acordada à noite — Janie continuava falando, — preciso levantar cedo e estou tão cansada...

— Por que você fica acordada à noite? — Sam interrompeu.

O olhar dela tornou-se distante.

— Eu fico pensando.

— Sobre o quê?

— Sobre tudo estar desmoronando. — Janie arregalou os olhos ao se dar conta de que ele havia dito as mesmas palavras há alguns instantes. — Fico pensando que nada vai melhorar, que as coisas vão continuar piorando cada vez mais.

— Que coisas?

Ela tapou os olhos e sacudiu a cabeça.

— Não acredito que estou conversando assim com você.

Respirando fundo, prosseguiu: — A minha vida. — Ela mostrou-se atenta aos veios da madeira da mesa e depois ergueu os olhos úmidos para Sam: — Meu papel é animá-lo. É para isto que você me dá gorjeta.

— Você está me animando. Mas, se é tudo encenação, qual é o seu envolvimento nisto?

O sorriso dela transformou-se em irritação.

— Não quero ofendê-lo, Sam, mas qual é seu interesse? Você vem aqui todos os dias e nunca disse mais do que "Olá, como vai?", e eu lhe pergunto se quer o de sempre, e você responde que sim, come, paga e vai embora.

— Bem, talvez este fosse meu antigo eu.

Ela tornou a rir.

— Seu antigo eu? Quer dizer que existe um "você novo, melhorado"?

— Digamos que há um novo eu. Não sei se melhorado ou não. Só o tempo dirá. — Se ela soubesse, pensou.

— E quem é o culpado desta inovação? — Janie indagou, com sarcasmo.

Sam sabia que ela estava caçoando, mas não fazia mal.

— Jesus Cristo.

Janie revirou os olhos e assentiu como se já tivesse escutado aquilo antes.

— Ah! não!

Ele sorriu.

— Ah! sim! Estou falando sério. Sou cristão há muitos anos, mas ocorreu uma coisa a noite passada. Eu tive um sonho.

— Um sonho? O que aconteceu no seu sonho?

Ele se inclinou sobre a mesa. Ela não desviou o olhar.

— O Senhor falou comigo. Começou fazendo com que eu me importasse com o estado de alma das pessoas. Eu hoje descobri que existem almas amedrontadas, almas vazias, almas culpadas, almas cansadas...

Os olhos dela encheram-se de lágrimas e ela olhou ao longe. Sam nunca a vira chorar. Não sabia se ia chorar também, mas alguma coisa naquelas lágrimas incipientes o comoveram. Não tinha o que dizer a seguir. Gostaria que a esposa estivesse ali, pois poderia abordar a situação sob a perspectiva feminina.

Gostaria de estar com sua Bíblia nas mãos ou com um folheto para oferecer-lhe e sair correndo.

Estava abalado, temeroso de tê-la aborrecido ainda mais, porém obrigou-se a continuar:

— Janie, não quer este descanso?

— Se eu pudesse entender como funciona, eu o aceitaria no mesmo instante. Não é porque a Bíblia diz que é verdade.

— Porque a Bíblia diz é o melhor motivo para acreditar que é verdade.

— Você acredita nisto?

Sam assentiu.

— Então, o que eu preciso fazer? Começar a ir à igreja? Mudar minha maneira de vestir? Pentear o cabelo de um jeito diferente? Deixar de sair com homens?

Ele deu de ombros.

— Ei, você acha que tenho uma lista de regras?

— O cristianismo não é isto, um conjunto de regras?

— De jeito nenhum. Não se trata de uma lista de faça e não faça. Trata-se de Deus tê-la escolhido porque Ele a ama.

— Escolhido a mim? Espero que Deus não tenha me escolhido para alguma coisa.

Sam deu uma mordida no hambúrguer e mastigou durante alguns minutos. Então, tornou a falar:

— Janie, deixe-me contar-lhe o quanto Deus a ama.

— Ah! quanto? — ela replicou, zombeteira.

— O bastante para enviar seu único Filho para morrer por você.

Ela deu um sorriso forçado.

— Olhe, é isto que eu não entendo. Nunca pedi a ninguém para morrer por mim. E quando vocês, cristãos, vêm com esta história de Deus ter enviado seu único Filho para morrer por mim, minha primeira pergunta é: por quê? Com que objetivo?

— Ele morreu pelos seus e pelos meus pecados. Por causa

do pecado, nós todos estávamos destinados ao inferno, mas Jesus veio para buscar e salvar o que estava perdido, e tudo o que temos de fazer é crer nele para podermos mudar de rumo.

— Conheço muitas pessoas horrorosas que crêem em Jesus. Algumas bebem comigo, à noite. Alguns homens tentam ir para casa comigo. Muitos são jogadores. Eles têm aqueles adesivos onde se lê "Se você ama Jesus, buzine" e peixinhos pregados no carro. Só que não são nada diferentes de mim.

— Você tem razão.

Ela o fitou de soslaio, claramente surpresa:

— Como?

— Eles deveriam ser diferentes, e você tem razão ao dizer que são um bando de pecadores. Os cristãos são pecadores salvos pela graça.

— E o que isto significa? Olhe, eu ouço esta história de salvo pela graça no rádio todos os domingos pela manhã, mas, palavra de honra, não entendo o que significa.

— Significa que, enquanto éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós, porque Deus havia prometido que puniria o pecado. Nós não merecíamos que Cristo recebesse esta punição em nosso lugar e continuamos a não merecer, mas esta situação não torna o fato menos verdadeiro. E não é porque alguns cristãos são hipócritas e outros decepcionam a Deus que as coisas vão mudar. O importante é que Cristo é real, e Ele me mandou aqui hoje três vezes para conversar com você.

Janie endereçou-lhe um olhar incrédulo.

— Ele não o mandou aqui para falar comigo; Ele o mandou aqui para tomar café e almoçar.

— Desculpe, Janie, mas a comida não é assim tão boa. Ele me enviou aqui porque sua alma está cansada e porque existe um descanso à sua espera.

Os olhos dela ficaram marejados.

— É mesmo? E como eu consigo isto?

— Crendo, apenas. — Sam mudou de posição na cadeira. — Não só reconhecendo sua necessidade, mas apegando-se a Deus

para supri-la. Agarrando-se a Ele como se fosse para salvar a vida. Aceitando-o.

— Você está querendo dizer que, se alguém crer nele de todo o coração, isto o tornará diferente.

— É exatamente o que estou dizendo. Não é um monte de regras. Apenas aceitar. — Ele sorriu e inclinou-se sobre a mesa. — O fato é que, quando você crê, quando crê de verdade, o Espírito Santo começa a transformá-la, não por causa de uma lista de regras, mas porque Ele a ama e quer o melhor para você.

— Humm. Não sei, não. — Janie raspou o tampo da mesa com a unha. — Sabe, você precisa tomar cuidado. Você começa a falar com uma pessoa como eu sobre Deus e, antes que se dê conta, eu posso mesmo aparecer na sua igreja.

— E por que não seria bom você aparecer na minha igreja?

Ela deu de ombros e passou os dedos pelas raízes escuras dos cabelos tingidos.

— Não sou exatamente o tipo de pessoa que cresceu freqüentando a Escola Dominical.

— Nem eu. Mesmo sendo crente, às vezes não faço o tipo, porém Deus está trabalhando em mim. Ele ainda não desistiu de mim e, também, não desistiu de você.

Janie deu mostras de estar refletindo sobre suas palavras.

— Então não é paixão por mim ou seu estômago que o trouxe aqui hoje por três vezes?

— Não. Eu vim porque Deus a ama.

— Olhe, estas duas coisas — Deus e amor — não combinam. Minha imagem de Deus é o de um monarca com um bordão enorme, acertando todo mundo que o deixa irritado. E acho que tenho jeito para irritá-lo.

— Sua imagem está errada. Jesus contou uma história sobre o filho que pegou sua herança e desperdiçou-a em festas e numa vida pecaminosa até perder tudo o que possuía e precisou trabalhar cuidando de porcos.

Janie olhou ao redor.

— É, entendo bem a situação.

— Ele se conscientizou de como era melhor viver com o pai e voltou para casa para pedir-lhe um emprego. Imaginou que o pai jamais o receberia de volta no seio da família, mas que, no mínimo, o contrataria como um dos demais trabalhadores. O pai, no entanto, viu-o à distância e correu para beijá-lo. Mandou que lhe trouxessem a melhor roupa, colocou um anel em seu dedo e preparou uma grande festa para celebrar a volta do filho. Este pai é o retrato de Deus esperando por você, Janie, não com condenação mas com amor ardente e profundo.

Pela primeira vez Janie não teve o que responder. Seus olhos brilharam, presos aos dele, por alguns instantes, e, depois, se desviaram, pensativos.

— Se fosse verdade... se eu pudesse ter um amor assim...

— Você pode Janie.Tudo o que precisa fazer é estender os braços e abraçar seu Pai, que está à sua espera.

Os olhos dela se encheram de lágrimas, que Janie ia enxugando à medida que rolavam por seu rosto.

6

Pelo meio da tarde, Sam foi para casa, ainda agitado depois dos momentos que passara com Janie. Kate, que saía do trabalho às 15h, chegaria logo, a não ser que a pessoa que lhe dava carona não a trouxesse direto para ali. Ele notou a lâmpada da secretária eletrônica piscando, apertou o botão e jogou-se no sofá para ouvir os recados.

"Oi, Sam, sou eu , Bill. Eu e os rapazes vamos buscá-lo às 18h para o jogo. Jeff e Steve vão também, mas John, o pastor, não pode ir porque tem uma reunião hoje à noite. Ligue para mim, caso haja algum problema."

Sam ergueu-se depressa. Havia se esquecido completamente do jogo para o qual já comprara os ingressos. Era o melhor jogo do ano, entre as duas maiores universidades estaduais. Eles iam todo ano, mas naquele ano seria particularmente empolgante porque os dois times não haviam

perdido nem um jogo.

Aquele não seria como os outros anos, pensou, porque ele estava diferente.

Como seria sentar nas arquibancadas e ouvir as almas necessitadas ao seu redor? Sentiu vontade de desistir.

Deitou no sofá para um cochilo e, assim, recuperar o sono que perdera na noite anterior. Todavia, as vozes que ouvira naquele dia não paravam de ecoar em sua mente. A mulher que achava que a gravidade ia soltá-la, a outra que acreditava que ela era seu próprio passado, o homem que se sentia vil...

Sam sentou e pensou nos vizinhos, todos com vozes e necessidades. E se pudesse conversar com eles? Ajudá-los como havia ajudado a Janie? Apercebeu-se de que seu "dom" iria persegui-lo. Até Cristo teve seus momentos de descanso, ponderou. Em seguida, repreendeu-se. Havia falado com algumas pessoas a respeito de Jesus e já estava louvando a si mesmo, achando que merecia um cochilo, como se houvesse se dirigido a multidões, expulsado demônios, curado enfermos...

O que estava acontecendo com ele? Poderia agir melhor do que havia feito. Não precisava se esconder em casa com medo de ouvir o que não queria ouvir. Deveria sentir seu dom como John o fazia — como oportunidades. Escutou a porta da cozinha se fechar e Kate chamar por ele: — Sam?

— Estou aqui.

Ela veio até à porta da sala de estar, ainda com o uniforme de enfermeira. Ela ajuda pessoas todos os dias, Sam ponderou. Talvez Deus devesse dar o dom a ela, pois, sem dúvida, a esposa saberia utilizá-lo melhor. Kate, com toda a certeza, jamais pensaria em apostar aqueles números na loteria.

— O que você está fazendo em casa tão cedo?

Ele recostou-se no sofá e bateu na almofada ao seu lado. — Venha sentar aqui - pediu.

Kate aproximou-se devagar.

— Você está passando bem? Sam sacudiu a cabeça.

— Sente aqui.

A esposa sentou ao lado dele e tocou-lhe a testa.

— Você não está com febre. Está doente?

— Mais ou menos. Bem, para falar a verdade, não.

Ele engoliu em seco e fitou-a.

— Lembra do sonho da noite passada? O que eu lhe contei?

Kate assentiu.

— Vagamente. Você estava tentando embarcar num avião...

— Não, este foi o seu sonho. O meu foi o da moeda. A voz.

— Ah! é!

— Ele mexeu comigo. Isto é... Deus fez alguma coisa comigo.

— O quê?

— Ele me deu ouvidos... para ouvir. Digo... como Ele ouve.

A expressão de Kate refletiu sua perplexidade, e Sam sentou, quase encostando o rosto no dela.

— Sei que parece loucura, mas você tem de acreditar em mim. Chame John. Ele sabe. Eu ouvi a alma dele e depois...

— A alma dele? — Kate interrompeu.

— É. E de outras pessoas. Daquelas de quem me aproximei hoje. Ouvi suas necessidades espirituais. Aquilo que Cristo ouve. John foi comigo, conversamos com algumas pessoas...

— Foi com você aonde? — Ela não estava conseguindo acompanhá-lo.

— Ao restaurante e ao hospital.

— Você esteve no hospital hoje? No meu hospital?

— Sim, mas não a procurei porque estava um pouco atordoado, sem saber como explicar tudo isto. Kate, nós falamos de Jesus para as pessoas! Melhor dizendo, John falou. Eu fiquei do lado dele, como um peso morto. Não é novidade nenhuma. E depois... Janie, a garçonete, aceitou a Cristo hoje, depois que conversei com ela, Kate! E também a moça grávida com a garotinha e o marido da Sra. Beautral. Você sabia que ela tem marido?

A esposa o fitava como se estivesse tirando as medidas para a camisa-de-força.

— Não.

— Pois tem! Ele se submeteu a uma cirurgia de vesícula e agora é cristão.

— Por causa da cirurgia de vesícula?

— Não, por causa da nossa visita. Kate, você não está prestando atenção!

Ela ficou de pé e se afastou.

— Sam, você está me assustando.

— Eu estou me assustando! — ele exclamou, endireitando o corpo. — Kate, eu estava na loja de conveniências e ouvi uma porção de vozes ao mesmo tempo. Só que os lábios não se moviam, eu estava ouvindo as almas deles. Exatamente o que o Espírito Santo ouve.

— Agora tenho certeza de que é uma fantasia. Há anos que você não entra numa loja de conveniências.

— Fui comprar Tylenol. Kate, estou lhe dizendo, ouço coisas que as pessoas nem sabem que estão sentindo.

Ela deu meia-volta e foi para a cozinha. — Vou buscar o termômetro.

— Kate!

Sam seguiu-a até a cozinha. Enquanto a esposa remexia na gaveta à procura do termômetro, ouviu a voz dela. "Eu gostaria de ter novamente o coração quebrantado."

— Ahá! — ele gritou. — Você disse que gostaria de ter o coração quebrantado. Eu ouvi.

— A expressão dele se alterou ao perceber que as palavras não faziam sentido. — Por que você deseja um coração quebrantado?

Kate parou de mexer na gaveta e encarou-o.

— Não falei nada sobre coração quebrantado.

— Falou! Você falou. Vou repetir literalmente o que disse: "Eu gostaria de ter novamente o coração quebrantado."

Aturdida, ela fechou a gaveta e se afastou dele.

— O que você está querendo dizer quando fala que ouviu isto?

— Era sua voz. Eu ouvi, Kate. Deve estar em algum lugar, em sua alma, mesmo que você não saiba. Mesmo que não expresse em voz alta.

A expressão dela mudou. Kate abriu a boca, espantada.

— Está mesmo.

— Viu? Eu lhe disse. O que... por que você deseja um coração quebrantado?

Ela parecia procurar palavras que nunca havia pronunciado.

— Tenho me sentido como... como se não fosse mais sensível ao Espírito Santo. Como se estivesse exausta, como se meu fervor tivesse desvanecido. Fico pensando o tempo todo que Deus precisa quebrantar meu coração para que eu possa voltar a ter sintonia com Ele. Você sabe, "bem-aventurados os pobres de espírito, bem-aventurados os que choram". Há muito tempo que não choro por Cristo.

— É isto! — Sam exclamou, com um salto.

Atônita, Kate recuou ainda mais e pegou uma espátula, como se precisasse se proteger.

— Querida, sei exatamente como você se sente!

— Você ouviu mesmo aquilo? — ela indagou, assustada. — Em minha voz?

— Pensei que fosse uma maldição — Sam observou, com lágrimas nos olhos. Cruzou a cozinha e, ignorando a espátula, segurou-a pelos ombros. — Até que levei Janie a Cristo. Depois vim para casa exausto, como se tivesse declamado o Sermão da Montanha para 5.000 pessoas. Falei a uma pessoa como ir a Jesus e estou me sentindo um Elias.

O espanto foi se desvanecendo, e Kate encarou-o com atenção.

— Você realmente levou alguém a Cristo?

— Sim! Dá para acreditar? Eu!

— Eu nunca fiz isto.

— Vá comigo ao jogo esta noite. Os rapazes virão me apanhar às 18h, mas posso telefonar e dizer que vou encontrá-los no estádio. John não vai mais, e podemos passar por lá e pegar o ingresso dele para você.

— Você quer que eu vá ao jogo? — Kate pôs a mão na testa dele mais uma vez. — Você nunca me levou ao jogo. É a noite dos rapazes.

— Quero que vá e veja. Vou ouvir as vozes. Você pode me ajudar. Talvez eu não me atrapalhe tanto se você estiver comigo.

— E o que vai dizer aos rapazes? Eles vão achar que o obriguei a me levar. Vão chamá-lo de marido dominado pela esposa.

— Não me importa o que vão pensar. Também vou ouvir as necessidades deles. Talvez eu possa acender uma chama neles para que me ajudem a falar com as pessoas. Pense nisto. Podíamos nos espalhar, todos nós, e falar de Jesus às pessoas até o final do jogo. Podíamos falar de Jesus a dezenas de pessoas esta noite. Podíamos...

Kate segurou-o pelo braço e começou a tomar-lhe o pulso.

— Você não vai dizer a eles que está ouvindo vozes, vai?

— Bem... não sei. São os meus melhores amigos. Meus parceiros de responsabilidade pessoal. Eles vão entender.

— Vão nada — Kate retrucou, largando o braço dele. — Confie em mim. Não fale a mais ninguém sobre isto. Encontre... um outro jeito.

— Está bem. Mas... você vai comigo?

— Como recusar? Tenho medo de deixá-lo longe da minha vista. Isto pode ser o prenuncio de um derrame ou algo parecido. Seu braço está amortecido, Sam?

— Não. Kate, estou me sentindo ótimo. Não tem nada amortecido. Não estou com febre nem com palpitação. Tenho este dom, mais nada.

Ela ainda não podia deixar as preocupações de lado. Rugas profundas marcavam-lhe o rosto quando o fitou.

— Eu vou, mas com a condição de levá-lo ao médico depois do jogo, se achar conveniente.

Ele sorriu e abraçou-a.

— Ótimo. Aquelas pessoas também precisam de Jesus.

7

Sam e Kate chegaram ao estádio logo depois de iniciado o jogo. Ele abriu caminho por entre a multidão até o setor onde costumava sentar com os amigos. Os três rapazes já se encontravam ali, sentados lado a lado e gritando com a movimentação em campo. Sam conduziu Kate até os dois assentos desocupados.

— Oi, amigos, como vai indo o jogo? Bill olhou e cumprimentou-o

— Olá, Kate, resolveu acompanhá-lo esta noite? Ela endereçou-lhe um sorriso contrito. — Vocês serão capazes de me perdoar?

— Cara, isto vai nos deixar com má fama — Jeff interrompeu. — Quando Andréa descobrir que você veio, vamos ser obrigados a trazer nossas esposas.

Sam lançou um olhar sobre Kate, na esperança de que ela não tivesse se ofendido.

— Sabe, não seria a pior coisa do mundo.

— Olhe, eu vou para casa...

— Estou brincando - Jeff atalhou. — Foi uma brincadeira.

Sam, porém, sabia que não era. Apertou a mão de Kate ao tomarem seus lugares. Olhou para o campo para saber o que estava acontecendo. O Smathers estava com a bola, e o State acabara de fazer o primeiro ponto. Gritos de aplauso os cercaram, e os amigos ficaram em pé.

Então ele ouviu as vozes.

"Preciso de um milagre."

Sam olhou ao redor para descobrir de onde surgira a voz. Procedia de alguém à sua esquerda, mas não conseguiu localizar.

"Vou morrer bem aqui. Vou morrer e ficar paralisado."

A voz estava às suas costas. Ele se voltou. Todos os torcedores estavam em pé, gritando a plenos pulmões.

Ouviu a voz de Bill ao seu lado, aguda e estridente, ao gritar com o juiz por ter feito uma marcação errada. Era, no entanto, outra voz que vinha do amigo. Uma voz mais calma que parecia sussurrar no ouvido de Sam: "Não posso ser usado. Sou um inútil."

Olhou-o, a testa franzida. Não podia acreditar que um pensamento tão sombrio se abrigava em sua alma ao mesmo tempo em que, em pé, aplaudia e gritava com as jogadas que se desenrolavam no gramado. Antes que pudesse esboçar uma reação, Sam ouviu outra voz que vinha da fileira da frente.

"Nada faz sentido. É tudo obra do acaso. Coincidência."

Depois, a voz de uma mulher. "Não sei para onde ir quando sair daqui. Esqueci o caminho de casa."

Nem um dos rostos que acompanhavam as vozes mostrava-se deprimido ou angustiado. As pessoas pareciam atentas ao jogo, como se fosse a coisa mais importante de suas vidas. Sam surpreendeu-se com o contraste entre o que via e o que ouvia brotando bem do íntimo delas.

Começou a se sentir mal e notou que estava transpirando. Kate examinou-o ao vê-lo desabotoar o colarinho.

— Querido, está se sentindo bem? — indagou. Ele sacudiu a cabeça.

— Não, não estou bem. As vozes... estão por todo lado.

A esposa o fitou, a preocupação estampada no rosto. As mãos dele tremiam. Era como se estivesse na loja de conveniências, só que pior. As vozes o cercavam, perseguiam. Não havia como escapar delas.

— Quer tomar alguma coisa? Quer que eu chame uma ambulância?

— Preciso beber alguma coisa. Nada de ambulância. Vou com você.

Sam ficou em pé, e Jeff indagou:

— Aonde vai, cara? Acabou de chegar.

— Estou com dor de cabeça e...

As palavras pareciam superpostas, bloqueando o que Jeff realmente dizia. "O que há comigo? Por que não produzo frutos?"

Sam encontrou os olhos de Jeff e teve vontade de responder à pergunta, mas não conseguia raciocinar. Uma súbita sensação de pânico o engolfou — o que o amigo diria a respeito de seu dom de ler corações? Agarrando a mão de Kate, ele quase derrubou uma pessoa ao sair da fileira de assentos. Depois, passaram pelas arquibancadas até desembocar no corredor onde estavam instaladas as lanchonetes. Não havia muita gente ali, pois o jogo mal começara. Sam abrigou-se em um local vazio e encostou-se à parede. Num instante, Kate acercou-se dele.

— Sam, há algo errado com você. Está transpirando e respirando como se estivesse participando de uma maratona. Não será um ataque cardíaco?

— Não. São as vozes sobre as quais lhe falei. Ouço-as em todo lugar. E uma tortura.

Ela o fitou por alguns instantes, os olhos cheios de lágrimas. Cobriu a boca com as mãos e virou-se para o outro lado. Sam voltou-a para si.

— Kate, o que está acontecendo? Por que está chorando?

— Porque não quero que você enlouqueça — a esposa replicou, com voz estridente.

— Não estou louco. Eu não falei o que você estava pensando?

— Sim, mas... é tão estranho, Sam. Não sei se sou capaz de entender isto.

— Foi justamente o que pensei, mas daí eu usei o dom e... posso fazê-lo de novo. Você vai ver. Estas pessoas estão sofrendo.

Como se as palavras dele fossem mais uma prova de que

estava maluco, Kate sacudiu a cabeça.

— Estas pessoas estão vibrando com um jogo de futebol. Metade delas está bêbada. Não estão sofrendo!

— Elas estão sofrendo. Eu ouço sua dor. Posso oferecer-lhes uma resposta.

— Está bem — Kate retrucou, tentando se acalmar. — Secou os olhos. — O que vamos fazer? Tirá-las do jogo, uma por uma, e enumerar suas necessidades mais profundas?

— Não sei. — Sam olhou para as poucas pessoas que se encontravam ao lado da lanchonete. — Só sei que não vou conseguir nada parado aqui. — Ele rumou para o balcão, e a esposa, em dúvida, o seguiu. Um casal pediu pipoca e cachorro-quente.

Kate observou-o, receosa, porém ele sabia que a preocupação dela tinha mais a ver com sua saúde e estado mental do que com seu dom espiritual. Ela ainda não havia entendido.

"O que vou dizer à minha esposa?" Era a voz de um homenzarrão que se encontrava ao lado dele, mastigando pipoca enquanto esperava o refrigerante. "Ela vai me abandonar. Vou ficar sozinho. Não sei como resolver as coisas."

As palavras eram tão pessoais e assustadoras que Sam teve vontade de desmaiar bem ali e esquecer que as havia escutado. Obrigou-se, no entanto, a dar um passo à frente.

— Desculpe, mas... bem... tenho a sensação de que está acontecendo alguma coisa em sua vida.

O homem endereçou-lhe um olhar aborrecido.

— Como assim?

— Estou me referindo a sua esposa. Você está imaginando o que vai dizer a ela a respeito de alguma coisa e tem medo de que ela o abandone.

O homem prendeu a respiração e deu um passo atrás. Kate segurou o braço de Sam e apertou-o, como se o aconselhasse a acalmar a situação, pois estava prestes a ser nocauteado.

— Você é detetive? Ela o contratou? — indagou o homem.

A pergunta o surpreendeu.

— Não, nada disto.

— Porque, se ela o contratou, pode dizer-lhe que está perdendo tempo. Não vai me pegar nunca, entendeu?

— Cara, não se trata de pegá-lo em alguma coisa. Não sei no que está envolvido. Não sei o que está acontecendo com sua família. O que eu sei é que você não precisa ficar aqui imaginando como é viver sozinho.

O rosto do homem se retorceu. O rapaz da lanchonete trouxe o refrigerante, mas ele nem o viu.

— São seis dólares — disse o rapaz, a mão estendida. O freguês ignorou-o e continuou a encarar Sam.

— Entregue tudo a Deus. Creia nele, e ele... ahn... vai endireitar os seus caminhos. — Sam prometeu a si mesmo que iria reler a Bíblia assim que tivesse uma oportunidade.

Finalmente o homem se deu conta de que o rapaz estava esperando o dinheiro, enfiou a mão no bolso, contou seis dólares e jogou-os sobre o balcão. Antes de pegar o refrigerante, fitou Sam com expressão preocupada.

— O que ela viu? Você andou me seguindo? Tirou fotos?

Sam olhou para Kate. Ela apertou o braço dele com mais força.

— Não, nada disto. Nem sei quem você é. O homem pegou o refrigerante e virou-se.

— Olhe, vou assistir ao jogo.

— Claro, à vontade. Mas não se esqueça do que eu disse.

O homem pôs-se a andar cada vez mais depressa, até sumir na esquina.

Kate prendeu a respiração.

— Por que fez isto?

— Porque eu o ouvi. Ele estava preocupado com o que iria dizer à esposa, que ela seria capaz de abandoná-lo e que ficaria sozinho. É sua necessidade imediata. Eu estava tentando supri-la.

— Bem, foi muito bom. Mas, da próxima vez, é melhor você escolher um sujeito que não tenha a compleição física de um robocop. Ele poderia ter amassado o seu nariz. — Kate soltou o braço do marido e fitou-o. — Desculpe, querido, mas é tudo muito esquisito. As pessoas não vão admitir que você apareça na frente delas sem mais nem menos, como se surgisse do nada.

— Mas eu estava certo. Você não viu a expressão dele?

— Vi! Por isto foi tão estranho. — Ela abaixou o tom de voz ao perceber que alguém se aproximava.

— Sam, você acredita mesmo que Deus lhe deu este dom?

— De que outro jeito eu poderia obtê-lo? Não sou vidente. Estou lhe dizendo, isto é real e funciona. Observe. Você pode me ajudar. Nós dois podemos abordar as pessoas. Você abranda o que eu disser, para não intimidá-las.

Parecia que Kate ia começar a chorar outra vez.

— Sam, você sabe que tenho vontade, mas acho que não consigo chegar perto de alguém e começar a falar e pronto.

"Meu vazio é tão profundo", disse uma voz atrás dele.

Sam se voltou e notou outro rapaz ao balcão, espiando a vitrine de doces, como se aquilo pudesse preenchê-lo.

"Se eu virasse do avesso, desapareceria."

A expressão dele se transtornou, e Kate aproximou-se mais.

— Você tornou a ouvir alguma coisa? — indagou, em voz baixa.

— Sim. O rapaz, ali. Ele disse que seu vazio é muito profundo.

Ela o fitou, comovida.

— Que coisa mais triste.

— Você tem razão. Fique aqui. Vou conversar com ele.

Com relutância, Kate virou-se para o balcão como se fosse pedir algo. Sam postou-se atrás do homem, na fila.

— Como vai? — perguntou, estendendo a mão para cumprimentá-lo. — Meu nome é Sam. Posso falar um minutinho com você?

— Sobre o quê?

— Sobre sua alma.

— Ora, não venha com essa. — O rapaz revirou os olhos e dispensou-o com a mão, começando a se afastar.

— O vazio é tão grande que se você se virasse do avesso, desapareceria — Sam deixou escapar.

Ele parou e deu meia-volta, devagar, boquiaberto, a cabeça inclinada, desconfiado.

— Quem é você?

O coração de Sam disparou.

— Um amigo. Alguém, creio, que o Senhor enviou para falar com você a respeito deste vazio.

O garçom, do outro lado do balcão, tentou chamar a atenção do rapaz.

— Com licença, deseja alguma coisa? Ele se virou.

— Ahn... não.— Voltou-se para Sam, a surpresa estampada no olhar. — Onde quer conversar? — perguntou.

— Vamos até ali. E um lugar tão bom como outro qualquer.

O rapaz assentiu e o acompanhou. Kate permaneceu no lugar, do outro lado do corredor, observando, atônita.

Os primeiros 15 minutos de jogo iam chegando ao fim quando Sam dirigiu o rapaz em oração. Seus olhos encontraram os da esposa, e ele notou que ela chorava e já não o via como se fosse o portador de um problema mental. Era óbvio que estava assustada.

E ele também. O rapaz havia sido magoado e precisava ouvir o que Sam tinha para lhe dizer. Considerou-o um instrumento da intervenção divina, e Deus estava respondendo a uma oração que Sam nunca havia imaginado ser capaz de emitir.

Os dois trocaram cartões de visita para que Sam pudesse localizá-lo mais tarde, e, quando o rapaz voltou para o seu lugar, Kate se aproximou e abraçou-o.

— Foi a coisa mais incrível que já vi.

Sam sentiu-se leve como uma pena, capaz até de flutuar.

— Foi incrível, não foi? Puxa, se eu soubesse que era tão bom levar uma pessoa a Jesus, já estaria fazendo isto há muito tempo.

— Aí estão vocês!

Sam localizou a voz e viu Jeff, que vinha ao seu encontro.

— Estávamos imaginando o que teria acontecido com você! Os primeiros 15 minutos terminaram. Pratt marcou um ponto. Foi lindo. Você deveria ter visto.

— Eu acabei de marcar meu próprio ponto - Sam replicou.

Jeff franziu a testa, olhou para Kate e deu um passo à frente.

— Como assim?

— Eu estava bem aqui, ao lado de um rapaz, comecei a conversar com ele a respeito de Jesus e, Jeff... você não vai acreditar, mas ele aceitou Cristo. Orei com ele e tudo.

— Você está brincando!

— Não, não estou brincando. É verdade. Kate viu o que aconteceu.

— Puxa, o sermão de domingo o deixou impressionado, hein?

A vontade de Sam era dizer que o sermão havia entrado por um ouvido e saído pelo outro e só fez efeito quando o Senhor mesmo falou com ele, porém apenas sorriu.

— Você deveria experimentar. Para todo lado que se olha, pode-se ver pessoas que precisam de Cristo. E existem tantas!

— Cara, se eu fizesse isto, o ateísmo ia atingir níveis jamais vistos. — Jeff inclinou-se sobre o balcão e pediu uma bebida.

Sam lembrou do que havia escutado de Jeff na arquibancada:

— Você acha que não pode ser usado.

O amigo virou-se: — Bem... acho que sim. Isto é, há muita coisa em meu passado e, depois que me converti a Cristo, algumas coisinhas podem manchar minha credibilidade.

— O que foi mesmo que Jesus disse? Se a tua mão direita te ofender, corta-a fora?

Jeff sorriu.

— Nunca ouvi você citar as Escrituras.

Sam deu de ombros.

— Cara, passei o dia citando as Escrituras. É provável que a maior parte das citações tenha saído errado, mas, pelo menos, estou tentando. Esta estava correta?

— Acho que sim.

— O que eu sei é que há poucas pessoas por aí que conhecem Jesus. Imagine como suas vidas seriam transformadas se o conhecessem!

Jeff começou a exibir um certo desconforto.

— Eu nem saberia por onde começar.

— Venha comigo. Fique um pouco por aqui e verá o que Kate viu. É incrível! Eu me aproximo de uma pessoa e começamos a conversar e...

— Cara, eu não paguei 40 dólares por um ingresso para passar o tempo do jogo aqui atrás.

Sam procurou esconder o desapontamento.

— Não faz mal, tentaremos mais tarde.

— Tudo bem. — Jeff mostrou-se irritado ao pagar a bebida e, depois, dirigiu-se a Sam: — Você vai voltar?

— Não sei. Está um pouco barulhento, e meus ouvidos estão meio sensíveis.

— Ele está doente? — Jeff perguntou a Kate.

— Acho que não.

Jeff tomou um gole de refrigerante e encaminhou-se para as escadas.

— Sabe, talvez ele não seja cristão de verdade. Talvez tenha algum conhecimento sobre Jesus e não perceba que isso é diferente de ter uma experiência pessoal com Ele — Kate comentou.

Sam sacudiu a cabeça.

— Não, eu ouvi a necessidade dele — era a respeito de dar frutos. Ele não teria este tipo de necessidade se não fosse cristão. O problema é que ele ainda não sabe como pode ser usado.

— Nem eu.

— É só contar o que Jesus fez por você. Foi isto que John me disse hoje de manhã. É o suficiente, não é nada complicado.

— Mas eu não posso ouvir as necessidades dos outros. Não tenho a vantagem que você tem.

— Tem, sim. Eu lhe conto o que ouvir.

Uma mulher aproximou-se para pegar um canudinho, e ele silenciou ao ouvir a voz dela. "Não confio em ninguém. Não se pode contar com ninguém. Preciso de uma pessoa para dizer o que devo fazer, mas não encontro."

— Fale com ela — Sam encorajou a esposa, em voz baixa. — Vá lá e comece a conversar.

Kate parecia apavorada.

— Eu não sei o que dizer. O que você ouviu?

— Ela não confia em ninguém, precisa de alguém que lhe diga o que fazer. Vá, Kate, converse com ela.

— Mas, Sam...

— Kate, Deus está lhe dando uma oportunidade. Você não vai estragar tudo, vai?

— Não é justo. Ele deu a oportunidade a você, não a mim.

Ele sacudiu a cabeça.

— Eu vou falar com aquele rapaz ali daqui a pouco. Se você conversar com ela e eu falar com ele, em poucos minutos poderemos levar duas pessoas a Cristo.

Kate olhou para a mulher. Ela estava colocando as coisas numa bandeja para ir embora.

— Não consigo!

— Mesmo sabendo como ela está se sentindo por dentro,

que está magoada, você é capaz de não fazer nada a respeito? Você é enfermeira. Se ela caísse com um ataque de coração, você iria fazer uma massagem cardíaca nela. Qual é a diferença?

Kate ficou observando enquanto a mulher foi até o outro balcão para pegar o ketchup. Olhou para Sam, respirou fundo e foi até ela.

— Com licença!

A mulher voltou-se.

— Ah!... - Pela expressão de Kate, percebia-se que lhe havia dado um branco; ela não conseguia lembrar de mais nada. — Você... estou vendo suas mãos tão carregadas. Gostaria de ajudá-la.

A mulher lançou-lhe um olhar desconfiado.

— Tudo bem, está sob controle. Não vou muito longe.

Kate olhou para Sam, meio constrangida. Ele piscou para ela, então dirigiu-se ao rapaz que estava ao balcão.

— Sabe, é meio estranho — ouviu-a dizer — , mas tenho a impressão... de que você precisa falar com alguém, mas não consegue confiar em ninguém e, bem... eu entendo que você não me conhece, mas sou boa ouvinte e...

Sam sorria ao se aproximar do rapaz.

"Se houvesse alguém maior no controle", ele dizia, "e se eu não estivesse à mercê daquele tirano para quem trabalho."

Sam ameaçou pegar alguns canudinhos e, acidentalmente, deixou-os cair. O rapaz se abaixou e começou a ajudar a recolhê-los.

— Estou tão desajeitado hoje — Sam comentou, estendendo a mão. — Meu nome é Sam Bennett.

E, quando começaram a conversar, Sam contou-lhe quem realmente estava no controle.

8

Sam só voltou para a arquibancada quando o jogo estava perto do fim. Os amigos que, em geral, aceitavam sem restrições as atitudes uns dos outros, por mais estranhas que fossem, perguntaram a Kate, em particular, se ele estava bem. Eram todos bons rapazes. Os quatro, mais John, o pastor, haviam-se tornado amigos íntimos numa reunião dos Promise Keepers, três anos atrás. Depois da reunião, formaram um "grupo responsável" que se encontrava uma vez por semana no escritório de Bill. Oravam uns pelos outros com assiduidade e responsabilizavam-se entre si pela vida cristã de cada um deles. Ocorreu a Sam, no entanto, enquanto abriam caminho entre a multidão até o estacionamento, que nenhum deles havia dado muito fruto no decorrer dos anos. Haviam permanecido enclausurados no pequeno grupo e não tinham feito coisa alguma para atingir as pessoas necessitadas. Ao se aproximarem dos carros, Kate voltou-se:

— Acho que vou para casa. Estou exausta, porque trabalhei muito hoje. Sam, não quer pegar uma carona com um dos rapazes?

Ele ia pedir-lhe para ficar, porém deu-se conta de que precisava ter uma conversa séria com os amigos.

— Eu o levo para casa — Bill se prontificou.

— Ótimo. Vejo-os mais tarde, rapazes. — Kate beijou o marido nos lábios e sussurrou: — Vá com calma.

Depois que ela entrou no carro, Sam juntou-se aos amigos.

— Que história é esta de você ter ficado o jogo inteiro no corredor, levando pessoas a Cristo? — Bill indagou, enquanto se dirigiam para o carro dele.

— Cara, parece loucura, e provavelmente você não vai acreditar. Foi um dos dias mais incríveis da minha vida. Não fui trabalhar e passei o dia com John. Conhecemos algumas pessoas e fizemos visitas no hospital. Ele falou de Cristo para todo mundo, e eu participei. Foi uma coisa incrível!

Os olhos de Bill brilharam ao entender a história.

— Parece formidável, mas você acha mesmo que pessoas

que fazem uma oração num estádio de futebol sabem realmente no que estão se metendo?

— O que você está querendo dizer com "no que estão se metendo?"

— Não acha que lhes está vendendo uma crença fácil? Uma fé tipo repita-comigo?

— Não é isto que estou fazendo — Sam replicou. — Elas precisam de Jesus Cristo, e minha intenção é mostrar-lhes como podem encontrá-lo.

— Desculpe — Bill continuou —, não quero ser desmancha-prazeres, mas, em minha opinião, quando as coisas acontecem assim tão fácil, talvez não tenham realmente acontecido.

Aproximando-se do carro, ele abriu a porta, e todos entraram.

— O que eu sei — Sam retrucou, sentando-se no banco de trás ao lado de Jeff — é que nos encontramos uma vez por semana, conversamos sobre Deus e tudo o que Ele está operando em nossas vidas, oramos uns pelos outros, fazemos nossa devocional e, no fim das contas, quantos de nós influenciaram realmente outras pessoas?

Todos permaneceram em silêncio enquanto Bill entrava na fila de automóveis que aguardavam para sair do estádio.

— Há uma colheita a ser feita, e Deus precisa de trabalhadores — Sam continuou.

— Creio que posso influenciar as pessoas com meu estilo de vida — Steve replicou, olhando por sobre o ombro. — Onde trabalho, elas sabem que sou diferente. Sempre comentam isto comigo, e aproveito para compartilhar que Deus é quem faz a diferença.

— Quantas vezes ocorreu um fato semelhante? — Sam indagou, genuinamente curioso. — Não estou criticando, verdade. Quantas vezes alguém lhe perguntou por que é diferente?

Steve refletiu por alguns instantes.

— Bem, no ano passado, as pessoas comentaram sobre como me comportei quando Joan teve câncer. Várias delas

mencionaram isto.

— E o que você disse a elas?

— Eu disse que confiava em minha fé para vencer.

— Você falou de Jesus? Orou com elas?

— Não, não precisei.

— E estas pessoas atualmente são cristãs?

Steve começou a se zangar.

— O que está querendo fazer, cara? Arrumar encrenca?

Sam suspirou.

— Não, de jeito nenhum. Estou tentando demonstrar como é falho esperar que alguém descubra isto pela expressão de nosso rosto.

Os outros dois amigos também estavam se mostrando irritados, e Sam calou-se enquanto Bill estacionava o carro no restaurante Shoney's. Entraram mudos. Sam fechou os olhos. Sua vontade era que não pudesse ouvir a alma da garçonete dizendo como se sentia inútil e frágil. Tentou bloquear a voz do homem que passou por ele, o qual achava que ninguém se importava com o que lhe acontecia, da mãe que achava a vida um caos, da garota que carregava um grande temor no coração, do idoso que se lastimava por não conseguir fazer nada sozinho. Quantas necessidades, quantas apreensões, quantos temores, quanto vazio! Os olhos dele ardiam de emoção ao sentar-se à mesa.

Há tantas pessoas aqui. Nunca terei tempo de ir, de uma a uma, conversar sobre suas necessidades. Ele precisava de auxílio, precisava de outros para repartir a carga.

Eles se sentaram, e os outros três puseram-se a ler o cardápio em silêncio.

- Olhem ao redor, vejam quantas pessoas estão aqui. Aquela garota lá, está apavorada, achando que a vida é demais para ela. Sente-se tão pressionada que nem consegue respirar.

Bill olhou para a garota. Ela não parecia nem um pouco desesperada.

— Sobre o que você está falando? — perguntou.

— E aquele homem ali, ele acha que nunca conseguirá nada.

— Bem, se não conseguiu ainda — Jeff atalhou —, é provável que jamais conseguirá.

— Ele pode descobrir que Deus já o tornou valioso por criá-lo à sua imagem, que é especial porque alguém morreu por ele. Ele pode ser santo e co-herdeiro com Cristo. Nós temos esta informação. Por que o estamos impedindo de conhecê-la?

— Impedindo-o? — Steve indagou. — Ora, Sam, você está sendo um tanto melodramático.

— Alguém precisa falar com ele, Steve. Está vendo aquela mulher ali? Acha que ninguém liga para ela. Sente-se sozinha. E a garçonete que nos trouxe até a mesa sente-se totalmente insignificante.

Steve fitou-o, aborrecido.

— Como você sabe destas coisas?

— Eu apenas sei. Cada pessoa aqui tem uma necessidade espiritual. Vocês três, por exemplo... você precisa dar frutos e fazer a obra que Cristo começou. Só que não faz isto. E, assim, sua necessidade não está sendo suprida. Você é aquele que segue seu próprio caminho. Não a igreja, não suas obras, nem nada. Só você.

Bill ficou atento ao cardápio, o maxilar apertado. Steve o fitava, ainda aborrecido. Jeff começou a tamborilar na mesa.

— Sam, nós só queríamos sair para nos divertir, assistir ao jogo, contar piadas. Por que você tem de deixar o clima tão pesado?

— Porque as pessoas estão morrendo. Existe um inferno, que é real, e as pessoas estão indo para lá. Talvez alguém neste salão não chegue em casa hoje.

Bill bateu na mesa. Os clientes olharam para ele.

— Desde quando você está tão preocupado com a alma da pessoas? — indagou, em voz baixa, com rispidez.

— Deveria ter passado a me preocupar quando me converti a Cristo, mas só aconteceu esta manhã.

— Vamos ver se entendi direito. Você saiu com John hoje, falou de Jesus a algumas pessoas e já está pensando que é o apóstolo Paulo?

— Não, não estou achando nada disto. Sou cristão. Ponto final. Apenas isto.

A garçonete interrompeu para anotar os pedidos, e Sam fitou-a, cheio de vontade de dizer-lhe que ela era valiosa, preciosa aos olhos de seu Criador. Achava-se, no entanto, no meio de uma argumentação com os amigos e não sabia o que era mais importante.

A moça deu a volta à mesa e anotou os pedidos: café e refrigerantes. Assim que ela se retirou, Sam dirigiu-se a cada um deles:

— Vamos traçar um plano. Amanhã à noite, deixaremos de lado o que estivermos fazendo, iremos ao shopping, ao hospital, a qualquer lugar... e começaremos a falar de Jesus para as pessoas.

Os amigos se entreolharam como se ele tivesse acabado de sugerir que fossem nadar nas águas de um esgoto.

— Eu tenho uma reunião de escoteiros com meu filho amanhã à noite. Não posso ir com você — Bill replicou.

— E você, Jeff?

Jeff sacudiu a cabeça.

— Não dá. Prometi a Andréa que ficaria em casa amanhã à noite. Saí hoje, o ensaio do coro na quarta-feira...

— Leve-a com você. Ela vai gostar. E ficará interessada.

O amigo cerrou os lábios.

— Já disse que não, Sam. Amanhã, não.

Sam olhou para Steve, que se encontrava do outro lado da mesa.

— Vamos, Steve, você pode ir comigo.

Steve balançou a cabeça.

— Desculpe. Eu não estou preparado para isto.

— Preparado para quê? Como assim?

— Não estou preparado. Não sei o que dizer às pessoas. Sabe de uma coisa, já pensei em fazer o curso de evangelismo que John mencionou no domingo, talvez aprender alguns versículos bíblicos, treinar um pouco, aprender como compartilhar minha fé, antes de sair por aí pregando.

— Olhe, você não precisa de um roteiro.

Sam fitou um por um, oprimido por não conseguir persuadi-los.

— Se vocês pudessem ouvir o que se passa no coração das pessoas!

Bill perguntou, atônito: — Como você?

Sam gostaria de contar-lhes, mas sabia que jamais acreditariam.

— Bill, é nossa tarefa sairmos para falar às pessoas.

Bill suspirou e olhou o relógio.

— Já é tarde, e estou cansado. Sam enrijeceu.

— Nossos pedidos ainda não chegaram!

— Eu sei, mas estou ficando com dor de cabeça. — Bill se pôs de pé. — Vamos embora.

— Estou deixando-o tão constrangido assim? Puxa, cara, eu já o mirei direto nos olhos e questionei seu desempenho como pai, desafiei-o para uma vida de oração, tornei-me responsável para mudar seu linguajar. Você nunca se zangou comigo. Por que agora?

Bill sentou e coçou o rosto.

— Não estou zangado, Sam. Só não estou entendendo de onde vem tudo isto.

— De Deus, talvez? Já pensou nisto?

Os outros o encararam fixamente, e, de súbito, Sam percebeu que estava no caminho errado. Não precisava envergonhá-los para se sentirem obrigados a falar de Jesus; só precisava deixá-los entusiasmados, contar-lhes o que havia ocorrido com ele naquele dia. As alegrias e as vitórias.

— Rapazes, ouçam só por um instante. Quero falar-lhes

sobre algumas pessoas com quem conversei hoje. Abram suas mentes e escutem.

A garçonete voltou com as bebidas, e os quatro permaneceram sentados enquanto Sam contava da moça grávida com a garotinha, de Janie, a garçonete, do homem no estádio que havia chorado e recebido Cristo. Ao terminar de falar, eles permaneceram calados, num silêncio constrangedor.

— Não fui nada animador esta noite, hein?

— Já é tarde. — A voz de Bill soou insípida. — Estou cansado. Preciso ir para casa.

— Está bem. — Sam ficou em pé e acompanhou-os, exausto, até o carro.

Foram entrando, um por um, sem dizer uma palavra. Sam foi o primeiro a ser deixado em casa. Ao estacionarem à entrada da casa, Sam esperou um instante antes de sair.

— Rapazes, sinto muito ter exagerado hoje, mas trata-se de uma coisa séria. — Ele hesitou, aguardando alguma resposta, mas o silêncio persistiu. Abriu a porta do carro. Quando se tornou evidente que os amigos só estavam esperando que saísse, ele desceu do carro. — Até mais, rapazes — despediu-se, com voz fraca.

Eles resmungaram suas despedidas, e Sam fechou a porta. Respirou fundo e exalou o ar devagar, encaminhando-se para a porta. "Ajuda-os, Senhor", murmurou, antes de entrar. "Opera neles como o Senhor operou em mim. Dá-lhes a chance de conhecer esta alegria."

9

Kate já estava deitada, quando Sam chegou. Inclinando-se, ele a beijou no rosto. Kate sorriu e o abraçou.

— John telefonou. Precisa falar com você, não importa a hora.

— Está bem.

— Como foi com os rapazes?

Sam começou a desabotoar a camisa.

— Talvez eles nunca mais falem comigo.

— Por que não?

— Porque eu os deixei constrangidos.

Ele se deixou cair sobre a cama, os cotovelos nos joelhos.

— Oh! Kate, foi horrível! Fui irônico e acusador... não deve causar espanto não ter eu conseguido nada com eles.

— Você deveria ter testemunhado para alguém bem na frente deles, como fez comigo. Deixá-los escutar como fala de Jesus para as pessoas. Com certeza, ficariam impressionados.

— Tem razão — Sam concordou, lamentando as oportunidades perdidas. — Havia uma garçonete do Shoney's com uma profunda necessidade. Eu estava muito entretido com eles e não conversei com a moça.

— Você pode voltar lá amanhã.

— É. — Sam se levantou. — É melhor você dormir, pois precisa acordar cedo.

Kate se acomodou para dormir de novo, e Sam foi para a sala de estar, agitado demais para se deitar. Passava um pouco das dez. Será que John ainda estava acordado? Ainda bem que o pastor precisava conversar, pois necessitava de alguém que o escutasse.

Sam discou o número de John.

— Alô!

— John? Sou eu, Sam.

— Oi, Sam. Eu só queria bater um papo com você para saber como vão as coisas. Kate disse que vocês viraram o estádio de cabeça para baixo.

— Foi mesmo — a alegria dele retornou — cara, você deveria estar lá. Esta noite, durante o jogo, eu não parei de ouvir vozes. Elas estavam me deixando louco. Fui, então, para o setor de lanchonetes e comecei a conversar com as pessoas que passavam.

— Sozinho? — John emitiu uma risadinha. — Ainda hoje de

manhã, você estava morrendo de medo de falar com estranhos.

— É, mas você me ajudou a enfrentar a situação. Eu incentivei Kate a se envolver, e ela também começou a falar.

John se pôs a rir, e Sam sorriu.

— O que foi?

— Não sei por que costumo me surpreender quando orações são respondidas.

— Você orou sobre isto?

— Oro por todos vocês o tempo todo. Eu oro, suplico e rogo a Deus para que nos dê um reavivamento a fim de que os membros da igreja sejam ousados em compartilhar sua fé, e isto está acontecendo. Sinto-me como um adolescente que acabou de ganhar um carro novo ou algo assim. Você já imaginou o que pode acontecer à nossa igreja por causa disto? Se outras pessoas começarem a seguir seu entusiasmo, se pessoas forem levadas a Cristo, e...

— Não fique tão animado — Sam atalhou. — Parece que não está funcionando bem assim.

— Como não?

- Bem, esta noite contei a Bill, Jeff e Steve sobre as pessoas com quem conversei durante o dia e como eu estava me sentindo.

— Contou sobre as vozes?

— Não. Achei que eles não iriam entender. Você tem de admitir que parece coisa de filme de mistério. Comentei apenas que seu sermão de domingo havia me impressionado e que eu passei a ter um senso de urgência.

— Muito bom.

— E é verdade. O problema, porém, é que eles não se mostraram muito interessados. Na verdade, todos estão meio zangados comigo.

— Por quê?

Sam sacudiu a cabeça.

— Eu contei a eles sobre o que passei a entender hoje,

sobre as pessoas que visitamos no hospital e o que havia ocorrido. Eles ficaram me olhando como se eu fosse doido, como se estivessem aborrecidos por eu ter tido o atrevimento de falar a respeito destas coisas.

— Sentiram-se desafiados. Eu posso me safar quando toco neste assunto de púlpito, mas falar frente a frente, individualmente, as pessoas não gostam muito disto.

— Mas eu ouvi suas necessidades, John. Ouvi o que sentiam — que precisam ser usados. É algo que eles desejam. O Espírito Santo está clamando dentro deles para fazer alguma coisa.

— Só que a carne é tão fraca que eles não se dão conta daquilo que estão querendo.

— Apresentaram umas desculpas: reunião de escoteiros, tempo com as esposas — o que nunca os impediu de fazer algum programa antes — e medo de falar algo errado. Foi a situação mais espantosa que já vi.

— Pois não me surpreende nem um pouco. Lido com isto todos os dias. Noventa e nove por cento da congregação é como eles.

— E quanto ao curso de evangelismo que você mencionou? Começou mesmo ontem?

— Começou. — John demonstrou um certo desânimo em seu tom de voz.

— E como foi? Talvez eu possa contar com alguns deles.

John permaneceu em silêncio, como se estivesse refletindo.

— Eu tinha grandes expectativas para este curso. Pensei que os preparativos iriam acabar com algumas desculpas, que pelo menos umas trinta pessoas iriam aparecer, mas não deu certo.

— Quantos foram?

— Só um punhado. Menos do que um punhado.

— Bem, já é alguma coisa. Se eu ligar, talvez eles possam sair comigo amanhã à noite.

— Está bem. Vou lhe passar os nomes. São pessoas que realmente desejam dar fruto. Talvez concordem em ir.

Quando desligou o telefone, Sam percebeu que já era muito tarde para telefonar para alguém. Deixou a lista ao lado do aparelho e caiu na cama, exausto, pensando no sonho que o havia incomodado na noite anterior. Pôs-se a imaginar se iria sonhar de novo, se, ao acordar, ainda teria o dom.

Na manhã seguinte, porém, quando acordou, Sam soube que ainda possuía o dom ao ouvir a voz de Kate ansiando por levar outra pessoa a Cristo naquele dia. Incapaz de esperar mais tempo, ele começou a telefonar para os nomes contidos na lista que John lhe havia fornecido. A primeira pessoa que o atendeu disse que não poderia sair porque sentia um certo temor e esperava que o curso a ajudasse a superar o medo.

— As palavras não me ocorrem com facilidade — o homem explicou. — Eu me sentiria mais à vontade se você aguardasse algumas semanas.

O próximo da lista disse algo parecido.

— Já fiz planos para esta noite. Comprei ingressos para o musical. Minha esposa seria capaz de me matar se eu desistisse.

Sam entrou em contato com cada um dos relacionados na lista e, embora seu telefonema fosse recebido com um pouco mais de interesse do que o demonstrado na noite anterior, restou-lhe a forte impressão de que aquelas pessoas achavam-se bastante temerosas de agir como ele havia agido um dia antes. Não haveria ninguém na igreja para ajudá-lo na ceifa? Ninguém mais, além do pastor?

Ele levou Kate para o trabalho e dirigiu-se ao restaurante para tomar o café da manhã, ponderando se Janie havia mudado de idéia da noite para o dia ou esquecido da conversa do dia anterior. Ao entrar, porém, notou que havia algo de diferente nela. Ela estava radiante, com aparência descansada. Era evidente que Cristo ainda estava com ela. O caos normal do restaurante parecia mais tranqüilo naquela manhã e até mesmo o cozinheiro mostrava-se mais quieto.

Sam arrumou um lugar ao balcão e aguardou para ouvir as vozes que iriam bombardeá-lo assim que alguém se aproximasse. Janie veio rapidamente até ele assim que o viu.

— Oi, Sam. Olhe, tentei ligar ontem à noite, mas não o encontrei em casa. Preciso perguntar uma coisa.

— Claro, o que é?

— Minha irmã. Quero contar-lhe o que você me falou ontem, só que tenho medo de não saber o que dizer. Quero que ela também conheça Jesus e fiquei pensando se você poderia ir comigo para conversar com ela. Quero dizer, eu falo, mas acho que seria melhor se você fosse junto; se ela ou eu tivermos dúvidas, você estará lá para responder. Não há nada pior do que eu tentar explicar alguma coisa que não entendo muito bem.

Ele fitou-a, os olhos brilhando de emoção. — Janie, eu me sentirei honrado.

— Pode ser esta noite, depois que você sair do escritório? Eu disse a ela que chegaria por volta das 19h.

— Perfeitamente.

— Então, se não for muito incômodo, será que você iria comigo ao restaurante onde meu filho trabalha como garçom? Ele tem uma folga às 21 horas, e estou realmente ansiosa para falar com ele e com seus amigos...

Sam mal podia acreditar. Havia passado a noite e o início da manhã tentando encontrar alguém da igreja para ajudá-lo com a ceifa, e um de seus frutos do dia anterior já estava ansioso para reproduzir. Será que era assim que funcionava?, pensou. Talvez fosse.

— Vamos fazer o seguinte. Caso você não ache que é muita gente, trarei Kate comigo logo mais à noite. Assim, se precisarmos nos dividir entre seu filho e os amigos para conversar particularmente com cada um, haverá mais de nós.

Janie mostrou-se radiante ao ponderar sobre esta idéia.

— Encontre-me aqui às 18h30 para sairmos. Vai ser muito divertido!

10

Como sempre, Sam chegou ao escritório mais cedo do que a maioria das pessoas que trabalhavam no prédio. Sua secretária ainda não havia chegado, mas alguém já havia feito o café. Ele

se serviu de uma xícara e foi para sua sala. Abriu a última gaveta do armário e pegou a Bíblia. Um velho boletim marcava a folha em que parara a leitura, mas ele não se lembrava da última vez que a lera.

Havia tanta coisa que precisava saber, ponderou. Tanta coisa a respeito de Cristo que havia esquecido. As pessoas fariam perguntas. Precisava estar preparado. Gostaria de ter memorizado mais trechos das Escrituras. Gostaria de tê-los escondido no coração.

Uma fome desconhecida para aprender a Palavra o engolfou, e ele pôs-se a ler, marcando os textos e escrevendo nas margens, tentando decorar versículos. Nem percebeu a entrada dos funcionários que encheram o prédio e o início de mais um dia normal de trabalho. E, quando bateram à porta, assustou-se. Era seu chefe, Rob Simpson, acompanhado por um de seus maiores clientes de publicidade.

— Sam, achei que você gostaria de saber que o Sr. Hagle está aqui.

Sam ficou em pé e contornou a escrivaninha para cumprimentá-lo.

— Sr. Hagle, prazer em vê-lo.

— Pena não tê-lo encontrado ontem. Levei Rob para almoçar.

— Eu não estava me sentindo bem — Sam explicou-se. — É uma longa história, mas hoje estou melhor.

O cliente olhou de relance para a mesa de Sam.

— O que está lendo?

— A Bíblia. — Olhando para o relógio, ele percebeu que já passara das oito. — Creio que já está na hora de deixá-la de lado.

Sam ouviu a voz que provinha do cliente, embora ele continuasse a conversar sobre banalidades. "Gostaria que houvesse algo ali para mim. Uma luz no fim do túnel."

Sam agarrou a oportunidade à unha antes que perdesse a coragem.

— Não sei, Sr. Hagle, se o senhor já leu a Bíblia algum dia. Se não leu, deveria experimentar. Com certeza, ela vai iluminar o fim de um túnel comprido e escuro.

O rosto dele se transformou. Testa franzida, olhou fixamente para Sam.

— Vou me lembrar disto.

Sam assentiu. Rob apressou-se em tirar o cliente da sala. Sam parou na soleira da porta e observou-os até que dobraram o corredor. Voltou à mesa, fechou a Bíblia, guardou-a e pôs-se a trabalhar na conta que reclamava sua atenção. Depois de alguns minutos, o telefone tocou.

— Sam Bennett.

— Sam, é Rob. Quero que venha à minha sala. Agora.

Ele fechou os olhos. Talvez tivesse cometido um erro mencionando a Bíblia e sua fé ao cliente. Será que Rob iria despedi-lo? Dirigiu-se rapidamente ao escritório do chefe e bateu à porta. Ouviu um grunhido:

— Entre. Entrou, devagar.

— Quer falar comigo?

— Sim, quero falar com você — Rob replicou, recostando-se na poltrona. — Quero conversar sobre o que acabou de acontecer.

— O que acabou de acontecer? — Sam perguntou, sentando-se defronte à escrivaninha.

— Levo um cliente à sua sala e o encontro lendo a Bíblia. E, como se o fato já não fosse bastante desagradável, você ainda tem a coragem de dizer-lhe que ele precisa lê-la. — Rob ficou em pé e começou a andar de um lado para o outro. — O que as pessoas vão pensar desta empresa? Você acha que aquele homem vai confiar em nós depois de vê-lo se encharcando com um punhado de superstições filosóficas e dizendo-lhe que ele precisa fazer o mesmo?

Sam sentiu o rosto em chamas.

— Olhe, Rob, eu não sabia que vocês iam passar pela minha sala. Cheguei aqui mais cedo e comecei a ler. Não percebi o

tempo passar.

— Você estava lendo no tempo que nos pertence. Não era o seu tempo — era nosso. Nunca se sabe quando um cliente vai aparecer. Você não pode deixar que o apanhem fazendo uma coisa tão estúpida...

— Não era estúpida — Sam atalhou, pondo-se em pé. — É a Palavra de Deus, não uma superstição ou uma filosofia idiota, como você diz. — Foi a primeira vez que ele perdeu a calma com o chefe e percebeu que corria um grande risco de ficar desempregado.

Ouviu, então, a voz que vinha da alma de Rob, bem do íntimo, alta demais para ser ignorada. "Não agüento mais a minha vida."

As palavras o deixaram enregelado.

"Meu túnel é tão escuro e tão comprido que já tragou toda a luz."

A ira de Sam desvaneceu. Olhou bem para o chefe e sentiu uma compaixão que jamais sentira.

— Rob, a luz não pode ser tragada.

Ele fitou-o, aborrecido.

— Sobre o que você está falando? Que luz?

— A luz no fim do túnel. A escuridão jamais engolirá a luz, porque é a luz de Deus, e está lá, na Palavra dele.

— É só um livro! — Rob esbravejou. — Apenas palavras num pedaço de papel, e não quero saber disto na minha empresa. Não quero que ele acabe com a credibilidade que temos com nossos clientes. Enfie isto na sua cabeça ou pode pegar suas coisas e ir embora daqui.

Sam percebeu que ele estava sofrendo. Alguma coisa vinha ocorrendo em sua vida, e, como não podia ler os próprios pensamentos e sentia tão-somente o grande vazio da sua alma, Rob não fazia a menor idéia do que poderia ser. Sam pegou um bloco na mesa do chefe e começou a escrever.

— O que você está fazendo?

Sam rasgou a folha e entregou-a a ele.

— É o número do telefone da minha casa. Pode me ligar a hora que quiser conversar. A qualquer hora, de dia ou de noite. Às duas da manhã. Não tem importância.

— E por que eu iria telefonar para você no meio da noite?

Sam deu de ombros.

— Não sei. Tenho o pressentimento de que você precisa conversar.

— Estou conversando agora! Disse para você desaparecer com a Bíblia ou juntar suas coisas!

— Eu sei, mas estou falando sério. Se precisar conversar, ligue para mim. Ou pode ir à igreja no domingo. Freqüento a Igreja do Salvador, na Post Road. Vá e ouvirá mais a respeito...

— Saia da minha sala!

— Está bem, Rob. Desculpe se o aborreci.

Antes que o chefe pudesse responder, ele voltou para sua sala e trancou-se lá. Sentou-se à escrivaninha. Poderiam proibi-lo de ler a Bíblia no tempo pertencente à empresa, mas não poderiam proibi-lo de orar. Silenciosamente, Sam começou a orar por Rob e pela necessidade espiritual que ouvira de sua alma. Enquanto orava, sentiu uma sensação de paz — Deus estava atuando em Rob da mesma forma que atuara nele.

11

Por todo o resto da semana, Sam deleitou-se com seu dom. Começou a ansiar por ouvir as vozes das almas nos lugares que freqüentava. Até buscava multidões para que tivesse acesso a mais e mais pessoas. Kate também contraiu seu entusiasmo e corria para casa depois do trabalho a fim de que pudessem jantar fora e encontrar pessoas com quem falar. Sally, sua secretária, ao descobrir que não havia ganho na loteria, ficou vários dias sem aparecer no escritório. Preocupado, ele foi visitá-la.

Enquanto aguardava na varanda, onde as plantas precisavam de água, para ser atendido, sua expectativa era que

seu dom não houvesse sido responsável pelo afastamento dela. Não deveria ter repetido os números para Sally. Se não o tivesse feito, talvez ela não houvesse depositado tantas esperanças neles, considerando-os presentes de Deus.

A porta se abriu, com um rangido, e Sally espiou para ver quem era. Seus olhos estavam vermelhos e inchados.

— Sam?

— Sally, você está bem?

Ela assentiu e assoou o nariz com um lenço de papel.

— Posso entrar? — A secretária hesitou por alguns instantes e depois, com relutância, afastou-se para deixá-lo entrar.

— Não esperava visitas agora que não sou milionária. — Ela escandiu as palavras como se tivesse sido despojada de sua fortuna e todos os amigos a tivessem abandonado.

— Tudo bem. — Sam passou por cima de lenços de papel amassados jogados no carpete. Caixas de aparelhos cobriam o piso — um computador, um novo aparelho de televisão, um sistema de som. Ele olhou ao redor, imaginando se Sally havia comprado tudo aquilo com o cartão de crédito, planejando pagar com o dinheiro da loteria. A sala encontrava-se às escuras, como se ela estivesse sentada ali, chorando e observando as coisas que havia cobiçado.

— Tive tantas confirmações — disse ela, numa voz entrecortada e chorosa, jogando-se, sofrida, no sofá. — Até você repetiu os números que eu tinha na cabeça. Como isto seria possível se não fossem os números corretos?

Sam deu-se conta de que, sem querer, a havia levado para o caminho errado. E quase havia usado seu dom para seguir, também, por ele.

— Eu não sabia os números, Sally. Como eu iria saber?

— Mas você os repetiu!

— Eu apenas tive uma intuição... quanto à sua situação espiritual. Que sua auto-estima estava vinculada àquela loteria, que talvez eu fosse uma das pessoas para as quais você desejava mostrar seu valor.

Ela pegou outro lenço de papel e assoou o nariz.

— Se eu tivesse me tornado multimilionária, então veríamos quem era superior.

— Por que você deseja ser superior?

— Porque estou cansada de ser inferior. Se eu fosse uma igual, já seria bom, só que continuo a ser apenas um peão.

— Você nunca será um peão, Sally. Eu não conseguiria desempenhar meu trabalho sem você.

— Você contrataria outra secretária em dez minutos. Eu não seria nem uma boa recordação. — Ela se pôs a chorar novamente e secou as lágrimas com o lenço embolado.

— Sally, parece que você não sabe o quanto é importante para Deus.

— Deus? O que isto tem a ver com Deus?

— Deus se importa muito mais com você do que com um bilhete de loteria.

— É claro que ele não se importa nem um pouco com o meu bilhete de loteria. Nem um pingo. Nada vezes nada!

— Você não está prestando atenção. Ele se importa com você. E ele sabe que você vale muito mais do que dinheiro. Você vale tudo o que ele teve para dar — Jesus deu a vida por você.

— Ora, não me venha com esta — ela atalhou, irônica. — Eu sei tudo sobre a cruz. Fui criada na igreja. Sou a primeira a chegar. Ensino na Escola Dominical. Levo comida para as famílias pobres no Dia de Ação de Graças. Sei muito mais sobre Jesus do que você!

— Mas ter conhecimento de Jesus não leva a nada, Sally. A Bíblia diz que você precisa confessar com seus lábios que Jesus é Senhor e crer no íntimo que Deus o ressuscitou dos mortos e, assim, será salva. Se você acredita em seu coração que Deus fez isto, Sally, então por que não pode confiar nele quanto à sua situação financeira? Por que não acreditar que você vale muito mais do que dinheiro?

— Bem... eu acredito nisto... acredito mesmo.

Sam, no entanto, ouviu sua alma e percebeu que ela não

acreditava realmente naquilo. Não com o coração. Eram apenas palavras, palavras que ela ouvira muitas vezes, durante toda a vida. Palavras que não tinham muito significado. No coração, que era o importante, ela não acreditava.

— Eu só... queria ser rica. Se Deus me amasse tanto assim, ele também gostaria que eu fosse rica.

— O que a faz pensar que a ocupação de Deus é tornar rico o seu povo? Talvez Ele queira que você permaneça na classe média porque tem um objetivo mais alto e pretende usá-la de determinada maneira. Seus filhos valem muito mais do que dólares e centavos. Ele tem um plano muito melhor para você do que ganhar na loteria.

Sally começou a se zangar.

— Se você não fosse meu chefe...

— O que você faria, se eu não fosse seu chefe?

Ela levantou o queixo.

— Se você não fosse meu chefe, eu o agarraria pelo colarinho e o expulsaria da minha casa!

— Por quê?

— Porque você tem muita coragem de vir pregar para mim. Sou um dos pilares da minha igreja. Não preciso que venha aqui falar de Jesus quando estou sofrendo.

Sam se pôs em pé, as mãos inocentemente estendidas.

— Não era minha intenção ofendê-la. Só achei que devia saber que Deus se importa com você.

— E eu sei. Creio que depois disto você vai me despedir. Aproveite para chutar enquanto estou no chão!

— Não, não vou despedi-la. Vou orar por você, para que entenda como é preciosa para Deus.

— Pois vou lhe mostrar. Vou mostrar a vocês todos. Vou ganhar na loteria na próxima semana. Tenho certeza de que, se eu comprar muitos bilhetes, um dia destes eu ganho. Não sou de desistir assim tão fácil!

Sam saiu da casa dela e entrou no carro, sentindo-se triste por não ter sido capaz de agir melhor. Como é difícil, pensou.

Fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Senhor, ajuda a Sally. Minha vinda aqui não adiantou nada. Só tu podes atraí-la para ti. Não consigo fazer nada por mim mesmo. Sem tua presença ao meu lado, minhas palavras são vazias. Inúteis.

Ao dar partida no carro, Sam olhou para a porta da casa da secretária com lágrimas nos olhos. Afastou-se, cheio de humildade, mais consciente do que nunca de que seu dom possuía limitações.

Sam, todavia, não permitiu que sua visita a Sally o fizesse desistir e resolveu depender mais do Espírito Santo para orientá-lo. Perdeu a conta do número de pessoas que levou a Cristo, bem como do número daquelas que o rejeitaram. Quanto mais falava, mais aumentava sua vontade de falar e maior era a urgência que sentia na alma.

Não podia esperar até o domingo e, assim, apelou para alguns amigos cristãos da igreja, convidando-os para sair com ele. Vinha orando sincera e diligentemente a respeito disto, e também Kate, e confiava em que o Senhor proveria trabalhadores para a ceifa.

Na manhã de domingo, ele e Kate foram tomar o café da manhã na Waffle House e compartilharam o Evangelho com um senhor de idade que ali se encontrava, sozinho. Por causa disto, quase chegaram atrasados à igreja. Sam deixou o carro no estacionamento assim que o órgão começou a tocar e, apressado, entrou pelas portas duplas que se abriam para o templo.

E então parou. A igreja estava lotada. Ele se deu conta de que nunca a vira assim tão cheia desde que haviam terminado o novo prédio há três anos. Nem mesmo na Páscoa. O prédio novo havia sido construído na expectativa de que a igreja iria crescer, mas o número de membros só diminuiu, desde então. Naquele domingo, porém, todos os bancos estavam tomados, e foram colocadas cadeiras dobráveis bem atrás da nave. Havia pessoas até nas galerias.

Sam olhou para Kate e notou que os olhos dela brilhavam. Tomando-a pela mão, acomodou-se num banco quando a congregação se levantou e começou a cantar. O pastor postou-se à frente do salão, radiante, cheio de entusiasmo e alegria. Enquanto cantavam, Sam olhou ao redor. Viu Janie, a garçonete,

ao lado da irmã que havia aceitado a Cristo dias antes. Um pouco adiante, achava-se o filho dela com dois amigos.

Kate deu-lhe uma cutucada, e ele acompanhou o olhar dela até o outro lado da nave. Era a mulher com quem ela havia falado no jogo de futebol. Duas fileiras à frente, viu uma das pessoas que conhecera no supermercado. Bem na frente, ainda abatido mas com expressão alegre, achava-se Sid Beautral, a quem visitara no hospital, ao lado da esposa.

Quando terminou o período de louvor, John deu início ao sermão, muito semelhante ao do domingo anterior. Naquele dia, porém, ninguém havia prestado atenção. Ele falou mais uma vez sobre Lucas 15 — sobre a moeda, a ovelha e o filho perdidos — e comentou que para muitas pessoas eram coisas insignificantes, mas Jesus considerou-as tão importantes que deixou tudo de lado para procurá-las. Enquanto John pregava, Sam orava em silêncio a fim de que outros cristãos ali presentes ouvissem e respondessem, para que seus corações se tornassem acessíveis ao seu verdadeiro potencial: alcançar o mundo perdido.

— Hoje vou fazer algo diferente — John anunciou. — Creio que alguns dos que aqui se encontram gostariam de confessar sua fé em Deus diante dos homens. Vou convidá-los a vir à frente, caso se sintam convictos para partilhar o que Cristo tem feito em suas vidas.

— Desta vez, Sam não olhou para o relógio, como havia feito na semana anterior. Continuou a orar, sem se importar de ser visto com os olhos fechados.

Kate cutucou-o de novo, e ele olhou. Uma multidão estava se juntando na frente do salão enquanto as pessoas ceiavam. Sam esticou o pescoço para ver quem havia ido à frente. Lá estavam Janie, a irmã e o filho, a senhora do jogo de futebol, Sid Beautral e inúmeros outros que ele havia encontrado naquela semana.

Seus olhos começaram a marejar, e ele cobriu a boca e começou a chorar. Kate já estava chorando, como se estivesse com o coração partido. Sam percebeu, no entanto, a alegria que borbulhava em seu coração quando a esposa se abraçou a ele. Enquanto o ministro de música os conduzia em mais uma estrofe, sua esperança era que não fosse encerrado o convite para a ida à frente. Havia muitos outros, a maioria deles ainda

necessitando assumir um compromisso. Precisavam de mais uma estrofe, de mais um hino, mais uma oportunidade. Ele cantou bem alto, sua voz entoando ao Pai uma oração de agradecimento e súplica.

E, então, Sam notou um homem que ia se chegando à frente.

— É alguém que você conhece? — Kate sussurrou.

Ele limpou as lágrimas e estreitou os olhos para enxergar através da névoa que os encobria. Quando o homem ficou de lado para falar com John, Sam descobriu de quem se tratava.

— É Rob. Meu chefe.

Kate colocou-se na ponta dos pés para enxergar por sobre as cabeças. Rob pôs-se a chorar, a cabeça próxima à de John, e Sam precisou se conter para não sair correndo pela nave. Depois, mais uma pessoa, e mais outra, e outra, e, por fim, ele se deu conta de que quase todas haviam ouvido do Evangelho por intermédio de Kate, dele mesmo ou de John. As pessoas começaram a sair dos bancos da frente para dar lugar aos que vinham chegando. Ele não estava preparado para ver algo tão maravilhoso.

Quando John certificou-se de que ninguém mais iria à frente, fez um sinal para o ministro de música, e ele terminou o hino. John voltou ao púlpito com o rosto molhado de lágrimas.

— Irmãos, disse John, com a voz cheia de emoção —, quero apresentar-lhes algumas pessoas. Elas aceitaram Cristo esta semana, e a história é a mesma. Eu falei com um punhado delas, as demais, porém, foram levadas a Cristo e convidadas a vir até aqui por Sam Bennett e sua esposa, Kate.

Sam não esperava que seu nome fosse mencionado, e, quando as cabeças se voltaram para vê-lo, ele olhou para o chão, incapaz de enfrentar os olhares. Não desejava reconhecimento, mas, sim, que apenas outros cristãos o ajudassem.

— Sam — John o chamou, do púlpito.

Ele ergueu os olhos.

— Poderia vir até aqui, por favor?

Sam não podia imaginar o que John queria que fizesse, mas se pôs em pé, limpou o rosto e foi até o púlpito, a face molhada de lágrimas.

— Aconteceu uma coisa com Sam esta semana — John continuou. — Ele começou a ouvir as necessidades das pessoas. Ele e Kate trouxeram estas pessoas aqui hoje, uma por uma. Mas elas precisam de ajuda. Eu gostaria de pedir a vocês, àqueles que desejam ser como Sam, àqueles que desejam ajudar a mudar a vida das pessoas, que venham ao meu curso hoje, às 16h. Vamos aprender alguns textos bíblicos que poderão usar quando compartilharem sua fé, ensinar algumas formas de buscar as pessoas que precisam ouvir a Palavra. Vamos descobrir como nos ligar à Videira, Cristo, para que nossos galhos dêem frutos. E venham até aqui, por favor, para dar as boas-vindas aos nossos novos irmãos.

Então, ele começou a apresentar um por um, recebendo-os na família de Deus e abraçando-os. Sam também foi alvo de abraços e agradecimentos de cada um deles. Quando Rob se aproximou, Sam estendeu a mão. Rob o abraçou.

— Obrigado — disse em voz baixa, comovido.

— Você não telefonou. Não o vi no escritório — disse-lhe Sam.

— Estive pensando sobre isto a semana inteira. Não conseguia parar de pensar no que você disse. Você salvou a minha vida. Devo-lhe esta, amigão.

— Não é a mim que você deve.

Sam mostrava-se radiante depois que todos foram cumprimentados e a maioria da congregação havia deixado a igreja. Um grupo de pessoas se deixou ficar para trás.

Lawrence Shipman, presidente do conselho de diáconos, aproximou-se dele com uma expressão de preocupação.

— O que você está fazendo para trazer estas pessoas para a igreja? Subornando-as? Oferecendo-lhes alimento? O quê?

Sam não esperava uma pergunta deste tipo.

— Falei com elas a respeito de Jesus.

— Eu quero saber qual é a expectativa delas — ele insistiu,

como se não houvesse escutado as palavras de Sam — para vir aqui e trazer seus amigos desta maneira. Será que pensam que vão lucrar alguma coisa?

— Pois estão certas, se pensam assim. Elas vão lucrar alguma coisa — Sam replicou.

— Mas algumas destas pessoas não se enquadram em nossa congregação. Você notou como algumas delas estavam vestidas? Como se tivessem vindo direto de um bar. Talvez a igreja não seja o lugar apropriado para elas.

O rosto de Sam começou a pegar fogo, como havia acontecido no escritório, quando estava conversando com Rob. Abriu a boca para dizer a Lawrence que eram pessoas com aquele tipo de atitude os responsáveis pela estagnação da igreja nos últimos anos, mas, antes que conseguisse formular a resposta, ouviu a voz interior do diácono. "Sou frágil. Não tenho nenhum controle." A ira de Sam desvaneceu.

— Lawrence, até onde eu sei, não existe uma pessoa na face da terra que não seja bem-vinda a esta igreja.

— Precisamos de um pouco de decoro. Estas pessoas não podem aparecer aqui de tênis, jeans desbotados e cabelos descoloridos com as raízes escuras. Dê uma olhada. Nossa aparência não é esta.

— Não, não é. Nós deixamos todos os nossos pecados pelo lado de dentro, bem arrumadinhos, em caixas bem limpinhas.

Pela expressão dele, parecia que Sam o havia esbofeteado.

— Lawrence, sei que você se sente um tanto frágil agora, mas não somos nós que estamos no controle; é Deus. Aqui é a casa dele, não a nossa.

— Frágil!? Não se trata de poder!

— Claro que se trata de poder. Há pessoas nesta igreja que preferem morrer a abrir mão do poder para o Espírito Santo.

— John! — Lawrence ergueu a voz, chamando o pastor.

John deixou os dois diáconos com quem conversava e juntou-se a eles. — Você não pode deixar que isto aconteça. Eles vão arruinar nossa igreja e mudar as características da nossa congregação. John sorriu de orelha a orelha.

— Pois é isto mesmo que eu espero que aconteça, Lawrence. Venho tentando fazer isto há muito tempo. Parece que o Espírito Santo resolveu atender às minhas orações.

Lawrence sacudiu a cabeça e resmungou alguma coisa sobre fazer uma reunião com os diáconos e apresentar o problema à comissão de evangelização. Com o rosto vermelho, ele saiu pisando duro do templo.

A expressão de alegria abandonou o rosto de John quando ele observou a partida do diácono.

— O que você entendeu disto tudo, Sam? Sam balançou a cabeça.

— Não creio que ele seja cristão.

— Mas ele acha que é. Do tipo farisaico, que estabelece um monte de regras mas esquece os relacionamentos.

Sam pôs a mão no ombro do pastor.

— Não deixe que ele estrague as coisas para você. O rosto de John reanimou-se devagarinho.

— Não vou deixar. Obrigado, Sam, por colaborar para o maior domingo que já tive neste púlpito.

— Só fiz o que você me ensinou e o que o Espírito Santo me dotou para fazer.

— Você pretende voltar à tarde para participar do curso?

— Com certeza. Vamos orar para que alguns deles nos ajudem.

Naquela tarde, porém, havia apenas oito pessoas no curso de evangelismo, e todos apresentaram as razões pelas quais ainda não se sentiam preparados para falar a outros a respeito de Jesus. Todavia, sentiram-se inspirados pelo número de pessoas que haviam ido à frente naquela manhã, e um deles sugeriu que organizassem uma festa de júbilo para a próxima sexta-feira, convidando toda a igreja para celebrar com os novos crentes, da mesma forma que os anjos nos céus se rejubilaram. John achou a idéia fantástica e uma excelente oportunidade para batizá-los.

— Teremos de preparar muita comida — John comentou. —

Kate, posso contar com você para organizar tudo?

— Sem dúvida. Talvez não consigamos recrutar pessoas para testemunhar, mas sempre há pessoas dispostas a fazer comida.

Sam não teve muito a dizer a respeito da festa. Sua alegria em levar pessoas a Cristo não esmorecia em nenhum momento. Não via razão para celebrar quando ainda existiam tantos que não conheciam Cristo. Havia tantas necessidades, tantas pessoas sofrendo. Cada momento que passava com pessoas temerosas de obedecer à ordem de evangelizar o mundo era um momento que usurpava daqueles que precisavam dele. Não podia esperar pelo fim da reunião para que ele e Kate pudessem ir ao shopping.

Naquela noite, eles levaram 18 pessoas a Cristo.

Na sexta-feira à noite, Sam apareceu na festa de júbilo e cumprimentou todos que havia levado a Cristo. Recebeu, com humildade, os elogios dos membros da igreja por seu bom trabalho, os quais tiveram muitos dias para refletir sobre o que ele havia feito. Chorou durante os batismos, e, quando estes terminaram e a festa começou, Sam sentiu-se inquieto. Havia lugares aos quais precisava ir, pessoas que precisava encontrar, pensou. Necessidades que precisava ouvir. Disse a Kate que ia sair sem ser notado e desapareceu.

Era aquela história de Lucas 15, ponderou. Tinha de virar a casa de cabeça para baixo e encontrar a moeda. Tinha de deixar as 99 ovelhas e procurar a que faltava. Tinha de perscrutar o horizonte pelo filho perdido.

Naquela noite, alguma coisa lhe dizia que muitos filhos perdidos chegariam à cidade.

Dirigiu-se à estação rodoviária, onde havia se recusado a acompanhar John alguns dias atrás, e entrou, timidamente. Não havia nenhum ônibus ali, mas algumas pessoas se encontravam à espera do próximo que iria chegar. Ele sentou num banco ao lado de uma senhora com um bebê... e começou a ouvir.

Mas, em vez da voz dela, ele ouviu a campainha do seu celular. Passara a levar o celular no bolso para que as pessoas para as quais havia testemunhado pudessem entrar em contato dia e noite, caso lhes surgisse alguma dúvida. Atendeu o

telefone depressa.

— Sam, é Bill. Onde você está, cara?

Ele hesitou. Bill, com quem não se comunicara desde a noite do jogo, encontrava-se na festa quando ele saiu.

— Estou na estação rodoviária. Por quê?

— Porque eu estive pensando. Vi todas estas pessoas com uma expressão tão feliz e refleti que eu nunca teria levado nenhuma delas a Cristo... — a voz dele fraquejou. — Olhe, cara, o Senhor vem operando em mim desde a noite do jogo, e acho que talvez deva ir ajudá-lo.

Sam se pôs em pé, lentamente.

— É mesmo?

— É sim. Você tem alguém para ajudá-lo? Jeff e Steve estão aqui comigo. Eles gostariam de ir junto.

Sam atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Era bom demais para ser verdade.

— Vai chegar um ônibus daqui a 20 minutos. Todos nós teremos o que fazer.

— Está bem, não saia daí. Estamos a caminho.

Uma lágrima rolou pelo rosto de Sam quando guardou o telefone no bolso.

12

Kate já se encontrava em casa quando Sam chegou. Ele entrou e chamou-a. Kate foi depressa até a sala, as mãos nos quadris.

— Quantos? — indagou, com um sorriso. Ele deu de ombros.

— Não sei dizer. Alguns ouviram, outros, não. O principal, no entanto, é que Bill, Jeff e Steve se iniciaram na ceifa.

— Eu sei! — Ela bateu palmas e começou a dançar. — Quase não pude acreditar quando me disseram para onde iam.

Eles foram bem-sucedidos?

— Cada um deles levou pelo menos duas pessoas a Cristo. Foi incrível! Eles estavam praticamente pulando de um lado para o outro. Você devia tê-los visto. Depois dei carona ao Bill e, no caminho, ele ficou pensando nas pessoas com quem pretende falar amanhã. Acho que foi contaminado. Agora não há retorno. Kate emitiu um gritinho e abraçou-o.

— Sabe, nunca senti tanto orgulho de você como nestas duas últimas semanas.

— Pois eu também estou orgulhoso de você.

— Ora, por quê? Nem cheguei perto do que você já fez.

— Bem, como você disse no outro dia, eu tenho uma vantagem.

Ela sentou, e Sam contou-lhe sobre as pessoas que conhecera, suas necessidades, a forma como lhes respondeu. Eles riram, choraram e oraram juntos.

Mais tarde, depois que Kate foi se deitar, Sam continuou em pé. Estava muito cheio de energia para dormir e queria passar algum tempo com o Senhor. Ajoelhou-se, humildemente, e agradeceu a Deus a bênção dos ouvidos para ouvir, as necessidades que era capaz de atender, o coração de carne que havia substituído seu coração de pedra. E depois agradeceu a Deus os ganhadores de almas que ele estava levantando entre os seus amigos e irmãos em Cristo, e entre os bebês em Cristo que tinham novas histórias para contar e outros amigos que precisavam ouvir.

Então Sam se acomodou na poltrona reclinável, abriu a Bíblia e passou a estudar as Escrituras. Havia tanto a aprender, pensou. Sua alma absorvia tudo o que lia,digerindo palavra por palavra.

Horas depois, ele caiu no sono com a Bíblia no colo.

E começou, de novo, a sonhar...

13

Sam sonhou com a moeda perdida, mas, desta vez, era ele quem a procurava pela casa, olhando debaixo dos móveis e em cima das coisas. E então ouviu aquela voz poderosa, divina, que havia escutado duas semanas atrás. As palavras, porém, eram diferentes.

"E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século."

Ele acordou sobressaltado e percebeu que havia dormido com a Bíblia no colo. Sentiu-se tocado por Deus, como se sentira na noite em que acordara banhado de suor, com as mãos trêmulas e o coração disparado. Sem fôlego, levantou e foi para o quarto. Kate ainda dormia. Não queria acordá-la, pois não sabia o que dizer.

Foi tomar um banho de chuveiro e deixou a água escorrer pelo corpo para refrescá-lo e acalmá-lo. Quando saiu do banheiro, Kate espreguiçou-se e olhou para o relógio. Eram cinco horas da manhã.

— Você veio para a cama a noite passada? — perguntou, sonolenta.

— Não, dormi na poltrona — Sam replicou, tranqüilo. Vestiu o roupão e sentou na beira da cama. — Kate, tive outro sonho. Ouvi Deus falando comigo, de novo.

Ela sentou na cama, piscando.

— O que Ele disse?

— E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.

— É uma bonita expressão da Bíblia. Jesus disse estas palavras depois de enunciar a Grande Comissão.

— Mas por que eu sonhei com isto?

— Talvez para lembrá-lo da grande comissão que Ele lhe deu.

Sam refletiu sobre aquilo ao se vestir e se dirigiu ao restaurante para tomar o café da manhã. Como era sábado, Kate voltou a dormir.

Sam estacionou na frente do restaurante e entrou. Observou os clientes ao se encaminhar para o balcão. Havia conversado com muitos deles nas duas últimas semanas. Alguns haviam orado com ele. Alguns tinham ido à igreja e participado da festa de júbilo na noite anterior. Eles o viram e sorriram. Sam acenou e foi para o banco de costume, no balcão.

Sentou-se e olhou para o lado, sorriu e cumprimentou com a cabeça a senhora idosa que estava perto dele. Janie se aproximou.

— Oi, Sam. O de sempre?

— Obrigado, Janie.

Ao deixá-lo, apressada, para buscar seu café, ele se deu conta de que não havia ainda escutado nenhuma voz. Empertigou-se no banco e se virou, mirando um a um os rostos das pessoas que se encontravam mais próximas. Normalmente, àquela altura.já teria escutado duas ou três vozes. No entanto, até a senhora ao seu lado permanecia em silêncio. Inclinou-se para perto dela e tentou ouvir. Nada. Ela comia o bacon, mordiscando uma torrada, e nem uma palavra saía de seu coração ou de seus lábios.

Janie retornou e colocou o prato sobre o balcão, bem na frente dele. Ele fitou-a nos olhos, esforçando-se para ouvir.

— O que houve, Sam? — a garçonete indagou. Ele sacudiu a cabeça.

— Alguma coisa está diferente.

— O quê?

— Não sei. — Sam se colocou em pé e começou a se afastar. — Olhe, não dá para comer agora — jogou uma nota de cinco dólares sobre o balcão — , talvez eu volte daqui a pouco.

Janie assentiu, confusa. Ele saiu às pressas e plantou-se na calçada. Um grupo de escoteiros ia passando com caixas de doces. Ali fora, quando as pessoas passavam por ele, costumava ouvir almas pranteando suas necessidades mais profundas. Naquele momento, não ouvia nada, exceto o ruído dos motores dos veículos que trafegavam, uma buzina ocasional, vozes das pessoas que conversavam. Mas não suas necessidades. Não aquelas necessidades profundas que tocavam seu coração.

Quase frenético, temendo que o dom o tivesse abandonado, Sam foi para o carro e se dirigiu à estação rodoviária. Ali seria capaz de afirmar se havia mesmo perdido o dom, ponderou. Ali, onde as necessidades corriam desenfreadas e as pessoas se locomoviam num turbilhão, no meio daquela multidão ele seria capaz de descobrir.

Ao chegar, um ônibus havia acabado de encostar e os passageiros começavam a desembarcar. Ele supôs que a viagem tivesse durado a noite inteira e as pessoas estivessem cansadas. Pareciam amarrotadas e enrugadas. Ele atravessou o terminal e foi direto ao ônibus. Os passageiros foram descendo, e ele tentou escutar.

Não ouviu nada. O dom havia desaparecido.

Lágrimas brotaram em seus olhos e, de súbito, Sam se sentiu frágil, insignificante. Inútil.

Correu de volta para o carro. Não sabia para onde ir, mas precisava fazer alguma coisa. John, o pastor, surgiu-lhe na mente, como no primeiro dia. Se havia alguém capaz de ajudá-lo, era John. Ele rumou para a casa do pastor.

14

John encontrava-se à escrivaninha, no escritório, curvado sobre a Bíblia, quando sua esposa abriu a porta para Sam, que parecia tão abalado como na manhã do primeiro dia. Ele estava molhado de suor, respirando com força, passando as mãos trêmulas pelos cabelos.

— John, você precisa me ajudar.

O pastor exibiu uma expressão alarmada.

— Sam, você está bem?

— Foi-se! Acabou-se tudo! — ele gritou.

— O quê?

— O dom.

John se pôs em pé, lentamente.

— Como você sabe?

— Tive outro sonho a noite passada — Sam replicou, em tom dramático — e, quando acordei, senti uma coisa diferente. No restaurante, não consegui ouvir as vozes. Não consigo ouvi-las em lugar nenhum, nem na estação rodoviária.

A expressão de John se acalmou, e Sam se deu conta de como ele havia colocado suas esperanças em seu dom.

— Talvez seja passageiro. Talvez ele volte.

— Não. — Sam sentou e sacudiu a cabeça. — Eu sei que se foi. Creio que, de alguma forma, eu soube, quando acordei esta manhã. Depois daquele sonho...

John sentou-se perto dele e inclinou-se para a frente, os cotovelos nos joelhos.

— Conte-me o sonho. Sam, o que aconteceu neste sonho?

— Foi, de novo, sobre a moeda perdida. Desta vez, foi a minha moeda, e eu estava procurando por ela em vez de observar outra pessoa a procurá-la. E, então, Deus falou comigo.

— O que Ele disse desta vez?

Sam não havia pensado sobre o assunto desde que, pela manhã, contara o sonho a Kate. Fechou os olhos e tentou lembrar.

— Ele disse: "E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século."

John aprumou-se na poltrona.

— É o último versículo do Evangelho de Mateus. As últimas palavras que Mateus registrou antes de Jesus subir aos céus.

— E por que Ele as repetiu para mim? O que significam?

— Creio que o significado é literal. — John encarou o amigo por um longo momento. — Sam, tem certeza de que perdeu o dom?

— Perdi. Já tentei. Não consigo ouvir coisa alguma, só vozes normais, como você ouve.

Ele notou que o pastor estava se esforçando para ocultar o desapontamento.

— Eu contava que ele fosse permanecer. Isto é, não sei bem o que eu andei pensando. Acho que, de alguma forma, eu estava explorando você — John replicou.

— Esta é boa! Depois de sentir o gosto da coisa, eu queria ser explorado. Deus me concedeu o dom por algum motivo.

John voltou pesadamente para a escrivaninha e deixou-se cair na cadeira.

— Realmente não sei o que pensar, Sam. Às vezes, quando estou meio perdido, a melhor coisa a fazer é orar. Vamos orar.

Sam, agradecido, curvou a cabeça. Quando começaram a orar, sentiu uma grande tristeza se abater sobre ele. Soube, com toda a certeza, que o dom não voltaria. O Senhor o havia concedido e ele mesmo o havia tomado. Ao terminarem a oração com um "amém",

John fitou-o com os olhos sombrios que espelhavam seus próprios pensamentos.

— Talvez o dom tenha sido concedido apenas por algum tempo. Não vamos encarar sua perda como algo a ser lamentado. Vamos lembrar da alegria durante o período que você o possuiu.Talvez fosse apenas para lhe dar um vislumbre da urgência da ceifa.

— Pode ser. Mas isto não torna as coisas mais fáceis. — Sam retorceu os lábios para não chorar e cobriu o rosto com as mãos. — Eu estava me acostumando a ganhar pessoas para Cristo. Eu me sentia confiante ao me aproximar de alguém ao conhecer antecipadamente suas necessidades, ouvindo o que se passava dentro da pessoa, como o Senhor ouve. O que vou fazer agora?

— Você não precisa desistir. Você ainda pode falar de Jesus às pessoas, como eu faço, e como todos que você ensinou fazem.

— Não, sem o dom eu não consigo.

John se aproximou dele e colocou a mão em seu ombro.

— Vá para casa e ore mais a respeito deste assunto. Peça ao Senhor que lhe mostre o que deve fazer. Ele vai mostrar. As palavras dele se referiam a isto. Ele não o abandonou. Ele vai

permanecer ao seu lado.

Ao voltar para o carro, porém, Sam sentia-se muito só.

15

Sam foi direto para casa. Guardou o carro na garagem e fechou a porta depressa, como se para impedi-lo de encontrar alguém cujas necessidades não poderia ouvir. Entrou em casa e deu com Kate, já vestida. Ela sorriu-lhe, esperançosa.

— Por onde andou?

— Fui tomar o café da manhã no restaurante. A esposa sorriu.

— Quantos?

Lágrimas brotaram nos olhos dele, e Sam balançou a cabeça, dirigindo-se à sala de estar e deixando-se cair na poltrona reclinável. Kate seguiu-o, seu sorriso desvanecendo.

— Qual é o problema, Sam?

— Acabou-se. Não posso fazer mais nada.

— Fazer o quê?

— Não posso mais ouvir. O dom se foi. Fui a todos os lugares. Fui ao restaurante, para a rua, fui à estação rodoviária. Não consigo mais ouvir!

Kate ficou ali parada por alguns instantes, atônita. Depois, franzindo a testa, perguntou: — Você não me contou que teve um sonho a noite passada?

— Contei. Deve ter sido a forma de Deus me dizer que estava acabado.

— Puxa! — Ela afundou no sofá. — Então... o que você vai fazer?

— Nada. O que posso fazer? Sou um inútil.

Kate refletiu durante alguns minutos e ficou em pé.

— Espere aí! Eu não sou uma inútil e não fui capaz de ouvir

as necessidades espirituais de ninguém.

— E verdade, mas você tomava conhecimento do que eu ouvia. Formávamos uma equipe — eu lhe fornecia as informações. Mas não posso mais fazer isto.

— Não foi bem assim. Com os primeiros, concordo, mas, depois, tornei-me mais confiante. Você não esteve envolvido em todos os casos. Com alguns deles, eu falei sem a sua ajuda.

— Vamos, no entanto, enfrentar a verdade. Nós dois tínhamos uma falsa sensação de segurança por eu ser capaz de ler seus pensamentos e saber como se sentiam.

O telefone tocou, e Kate fitou-o por um instante, claramente processando suas palavras. Percebia-se que ela estava pronta para protestar, mas acabou atendendo ao telefone.

— Alô! Sim, ele está. Um momento. — Ela estendeu o aparelho a Sam . — È Steve.

— Não quero falar com ele. Estou muito nervoso.

— Ele sabe que você está em casa — Kate disse baixinho.

Suspirando pesadamente, Sam pegou o telefone.

— Alô!

— Sam, é Steve. Escute, Joan e eu fomos ao shopping agora de manhã e encontramos um senhor sozinho, sentado num banco. Eu me enchi de coragem, me aproximei dele e comecei a conversar... você não vai acreditar no que aconteceu!

— O quê?

— Ele aceitou Cristo e vai à igreja domingo de manhã.

Sam fechou os olhos e sorriu, abatido.

— Que bom, Steve. Fantástico!

— Eu estava pensando, caso você não esteja ocupado, em convidá-lo a vir até aqui. Vamos nos demorar por aqui um pouco mais. O shopping está cheio de gente. Pensei que nós...

— Não — Sam atalhou — , não vai dar.

— Oh! — Steve demonstrou surpresa. — Está bem, não faz mal, se você tem outro compromisso... Sam balançou a cabeça.

— Não tenho nenhum compromisso, Steve. Não é isto. É que... — ele olhou para Kate. Os olhos de ambos se encontraram, e Sam percebeu que ela estava esperando para ver o que iria dizer ao amigo. — É que não estou me sentindo muito bem. Parece que estou com um problema no ouvido.

— Não gostei da notícia. Bem, não se preocupe. Vou na minha coragem. Sabe, eu estava contando com uma festa de júbilo todas as sextas-feiras à noite.

Sam franziu a testa. Não conseguiu imaginar aquilo acontecendo, não naquele momento, sem seu dom. As coisas haviam mudado.

— Vou ligar para Bill e Jeff e perguntar se eles querem vir. Eles tiveram uma revelação ontem à noite. Foi como se, de repente, descobrissem um talento desconhecido. Cuide-se, ouviu? Espero que esteja se sentindo melhor amanhã.

Sam desligou o aparelho e mirou-o por alguns instantes.

— Steve convidou-o a ir com ele falar de Jesus às pessoas, e você recusou?

— Kate, não ouviu o que eu disse? Acabou!

A campainha tocou, e ela foi atender. Minutos depois, John apareceu na soleira da porta.

— Ele perdeu o dom — Kate vinha dizendo, e John assentia.

— Eu sei. Ele passou lá em casa hoje cedo e me contou.

Sam começou a massagear as têmporas. O pastor sentou-se defronte dele. — Você não vai acreditar!

— Pois diga — Sam replicou, sem muito entusiasmo. John apoiou os cotovelos nos joelhos.

— Recebi alguns telefonemas dos alunos do curso de evangelismo. A festa de ontem à noite os deixou entusiasmados e estão se sentindo mais confiantes. Querem sair para falar com as pessoas depois da aula, amanhã à tarde. Bill, Steve e Jeff me pediram, ontem à noite, para matriculá-los. Eu só queria lhe contar. Achei que poderia animá-lo, já que foi você quem deu início a tudo isto.

Sam deu de ombros.

— Agradeço muito. Acho que o dom fez muita coisa boa, enquanto durou.

— Mas não lhe fez muito bem, não é? — Kate perguntou.

Irritado, ele olhou para a esposa.

— O que você está querendo dizer?

— Você vai desistir, como se não pudesse mencionar o nome de Jesus sem um dom sobrenatural. Só que nenhum de nós tem um dom especial, e somos capazes de falar dele. Ainda é tempo de ceifa, Sam.

— Ora, você só se dispôs a falar depois que eu a ensinei como fazer, depois que passei a lhe contar o que as pessoas pensavam.

— Pois eu falei sem conhecer-lhes os pensamentos — ela retrucou. — E sou capaz de falar de novo. Eu tenho coragem. Você tem?

John parecia ter sido apanhado no meio de uma briga de família. Derrotado, Sam recostou-se na poltrona.

— O que quer de mim, John?

— Eu gostaria de saber se você vai ao curso amanhã. Se pretende sair conosco, se quer ajudá-los a começar.

— Por que eu?

— Porque Deus o tocou, Sam. Ele teve um motivo. Ele o abençoou com revelações que nenhum de nós teve. Você sabe das coisas. E as pessoas o respeitam porque foi bem-sucedido.

— Então, por que estou me sentindo um fracassado?

— Porque você não está olhando para a situação com os olhos de Deus.

Sam ficou em casa na manhã seguinte, e Kate foi para a igreja sozinha. Ele não se sentiu com energia nem com vontade de ir. Quando ela voltou contando que 36 pessoas haviam confessado Cristo naquele dia, sentiu-se culpado por sua atitude.

— Vou ao curso hoje à tarde. Gostaria que fosse comigo — Kate convidou.

Sam não havia gostado de passar a manhã de domingo

numa sala de estar às escuras enquanto a esposa ia à igreja sem ele. Sabia que estava sendo egoísta. Seu mau humor fazia-o sentir-se pior e o afastava daqueles que amava.

— Está bem, vou com você. Mas só para mostrar-lhe que isto não vai dar certo.

— Vai, sim. O dom o ensinou a se importar com as pessoas e não creio que sua compaixão vai desaparecer só porque seu radar não está mais captando os pensamentos delas. — A expressão dela se abrandou ao tocar-lhe os ombros e fitá-lo nos olhos. — Diga que sua compaixão não acabou, Sam. Eu gostaria de estar casada com alguém que se importa.

Sam gostaria de dizer-lhe que ainda era esta pessoa, mas não tinha muita certeza. Será que seu fervor iria esfriar até o nível da água morna, como sempre fora? Será que seu coração iria endurecer-se de novo?

Ele se afastou e ouviu-a emitir um fundo suspiro.

— Você é quem sabe, Sam. Você teve um curso de impacto de duas semanas sobre como ser semelhante a Jesus. Vai jogá-lo de volta no rosto de Deus?

Um milhão de respostas fervilharam na mente de Sam, mas ele não tinha certeza de nada. Virou-se e fitou-a, desamparado.

— Eu entendo como você deve estar arrasado — a esposa continuou, com brandura. — Eu também estou arrasada, mas Deus tem suas razões, Sam. Você tem de confiar nele.

— John quer que eu continue sendo uma espécie de líder... para ensinar os outros como ganhar almas... como se eu soubesse algo que eles não sabem. Mas eu não sei. Não sei mais.

Os olhos de Kate se encheram de lágrimas.

— Sam, você não se importa mais com a moeda perdida? Ela não lhe interessa mais?

Ele não conseguiu suportar a ferroada de suas palavras. Foi até a cozinha e pegou a chave do carro.

— Preciso pensar. Preciso ficar sozinho. Vou encontrá-la no curso.

— Vai mesmo? — Kate perguntou, como se não tivesse muita esperança de que ele iria. — Promete?

Sam hesitou por um longo instante, buscando no rosto dela as respostas que não conseguia encontrar dentro de si.

— Prometo.

Depois, antes que ela tivesse tempo de sondar mais profundamente, ele correu para o carro.

Sam dirigiu pela cidade durante muitas horas, refletindo e orando sobre as coisas que lhe haviam acontecido. Não conseguia, de forma alguma, entender por que Deus estava lhe pregando uma peça tão cruel. Por que confiar-lhe um dom indesejado, ensinar-lhe a cultivá-lo, só para tomá-lo dele depois? Não fazia sentido.

Ele estacionou próximo a um parque onde crianças brincavam e pôs-se a caminhar por entre as árvores. Encontrou um banco à sombra e sentou-se, observando os corredores que passavam a toda velocidade, os tênis golpeando o concreto. No parquinho, adiante da pista de corrida, crianças riam e gritavam, cachorros latiam.

Havia tanta coisa para ouvir e, ao mesmo tempo, tão pouco. No momento, tudo era superficial. Ele bem que poderia ser surdo.

Sam olhou para o relógio e viu que já era hora de ir para a igreja. Havia prometido a Kate que iria e não gostava de quebrar uma promessa. Pôs-se a imaginar se os membros do curso seriam capazes de enxergar através dele. Poderiam descobrir que algo dentro de si havia sido arrancado? Que ele não possuía mais "discernimento"?

Quero ouvir como tu ouves, Senhor. Quero saber o que tu sabes.

Ao dirigir-se a passos lentos para o carro, Sam teve uma sensação de desamparo e de tristeza — nunca mais iria ouvir desta forma.

16

Sam ficou aturdido ao entrar na sala de aula aquela tarde e ver quantas pessoas tinham vindo para aprender como compartilhar sua fé. Olhou ao redor e avaliou que havia, no mínimo, 100 pessoas presentes. Alguns cristãos recém-convertidos e outros que já eram cristãos havia anos. Bill e Steve traziam cadeiras extras, e Sam pôs-se a ajudá-los. Pelo menos, era capaz de fazer aquilo, pensou.

Quando, por fim, John conseguiu que fizessem silêncio, correu o olhar atento pela sala.

— Sam, poderia vir até aqui, por favor?

Sam lançou-lhe um olhar com a mensagem de que ele estava indo longe demais. Deixou as cadeiras no chão e foi até à frente.

— Sam, todos aqui sabem do seu grande sucesso em falar de Cristo às pessoas. É uma inspiração para todos nós. Você pode ver, pelo tamanho desta classe, o fruto que foi produzido. Quero que fique aqui um instante e diga a estas pessoas qual é o seu segredo.

Atônito, Sam fitou o pastor. Por que John queria humilhá-lo daquele jeito? O que esperava que ele dissesse? Que possuíra um dom sobrenatural para ouvir as almas das pessoas? O pastor aproximou-se e baixou o tom de voz:

— Sam, diga-lhes o que fazer. Diga-lhes como ouvir. Diga-lhes o que ver. Você sabe.

Os olhos dele se encheram de lágrimas, seus lábios tremeram, e ele mudou a posição dos pés. Encontrou o olhar esperançoso de Kate, e ela acenou com a cabeça para que ele respondesse. Sam pigarreou e tentou falar.

— Bem, basicamente, o importante, acho, é...— ele pigarreou mais uma vez - bem... vocês têm apenas de ouvir. Ouçam com atenção quando as pessoas falam. Olhem em seus rostos. Olhem em seus olhos. Toquem nelas. Usem o bom senso.

É, foi exatamente assim que ele fez todas as vezes que foi bem-sucedido, ponderou. Algo dentro dele se agitou, e Sam deu um passo à frente.

— Se vocês pudessem ouvir com os ouvidos de Deus por um dia, uma semana, duas semanas... — ele limpou as lágrimas antes que lhe escorressem pelo rosto — se vocês pudessem ouvir o que Deus ouve, vocês jamais esqueceriam. — Ele se interrompeu, respirou fundo, olhou para Kate e depois para John. — Não existe uma só pessoa lá fora que não tenha necessidades espirituais. Vocês precisam aprender a olhar para elas.

Uma pessoa, no fundo da sala, ergueu a mão, e Sam fez um gesto para que ela falasse.

— Em sua opinião, qual é a necessidade espiritual mais comum das pessoas?

Ele encolheu os ombros e refletiu sobre a pergunta por um longo momento, pesando as diferentes respostas que lhe ocorreram, tentando decidir qual seria a mais comum e a mais importante.

— Bem, elas precisam saber que são amadas, que há esperança, que existe cura, que alguém está no controle, que não são um produto de seu passado, que podem ser perdoadas, que podem ser úteis, que foram criadas à imagem de Deus... — Sam fez uma pausa e pôs o cérebro para funcionar em busca de mais respostas.

De súbito, ocorreu-lhe uma idéia. Havia apenas uma resposta que englobava todas as necessidades que acabara de mencionar. A resposta lhe fora dada nas duas últimas semanas.

Ele permaneceu calado por alguns instantes enquanto a idéia o envolvia.

— Querem saber de uma coisa? Creio que a resposta para todas as perguntas, a satisfação de todas as necessidades, é Jesus Cristo.

A classe havia ficado presa a cada palavra, e Sam fitou-os enquanto sua declaração penetrava em seus cérebros.

— É verdade. Se vocês se aproximarem de qualquer pessoa e perguntarem qual é sua necessidade mais profunda, se ela for completamente honesta, se tiver alguma informação... a resposta será Jesus Cristo.

Sam olhou para o pastor, embaraçado, e percebeu que John estava sorrindo. Encorajado, continuou:

— Então, o que precisamos fazer é sair a campo cientes de que possuímos conhecimentos que elas não têm. Podemos dizer a elas como preencher suas necessidades, mudar suas vidas. Todas têm a mesma necessidade e esta necessidade é Jesus Cristo.

— E se elas já conhecerem Jesus? — alguém perguntou. — Qual poderia ser esta necessidade?

Sam olhou para a esposa, para os amigos, para as pessoas que havia levado a Cristo. E soube qual era a resposta.

Eu quero um coração quebrantado.

Preciso ser usado.

Desperdicei todos estes anos.

Ele cobriu os lábios com as mãos, as lágrimas recomeçaram a brotar de seus olhos. Por fim, conseguiu falar.

— O mais importante, a necessidade básica do verdadeiro cristão, é produzir frutos como Cristo. Podem estar certos disto. O verdadeiro cristão tem esta necessidade, quer o admitam, quer não. O Espírito Santo que habita neles anseia por isto. E, quanto mais distantes se encontrarem de preencher esta lacuna, mais vazios ficarão. Jesus quer preencher este vazio... por muitos motivos. Um deles é nossa própria felicidade, mas o maior motivo é que... não se trata de nós. Trata-se do progresso do reino de Deus. Nós temos de desenvolver o reino de Deus e, se não agirmos como Cristo, estamos falhando. É como se fôssemos filhos do rei, mas estivéssemos vivendo numa cabana suja, comendo a ração dos porcos.

Sam notou em seus rostos que haviam entendido. Percebeu o brilho de entusiasmo em seus olhos, as lágrimas de decisão e comprometimento.

— Uma vez que vocês começarem a se comportar como Cristo em todas as áreas de suas vidas, será como uma mudança para o castelo. Vocês sabem que não merecem esta alegria, mas ela lhes pertence. Vocês são quem são. Vocês têm poder e a herança e alegria que vêm junto com ele. E, quando vocês sentirem esta alegria... — a voz dele falhou, ele abaixou a cabeça esforçando-se para controlar as emoções — quando vocês sentirem esta alegria, não vão querer viver sem ela.

Depois da aula, John sugeriu que fossem para algum lugar a fim de colocar em prática o que haviam aprendido sobre como compartilhar a fé antes que o fervor deles começasse a desvanecer. Sam sentiu o mesmo temor que sentira no início, no primeiro dia em que se deu conta de que possuía o dom. A medida que as pessoas iam pegando as bolsas e casacos para se dirigirem às vans da igreja, ele percebeu que deveria agir. Não iria se comportar como um covarde. Tinha mais experiência do que os demais. Havia sido instruído e, naquela noite, a verdade fora proferida por sua própria boca. Quanto mais se distanciasse de viver como Cristo, mais infeliz seria. Sabia por experiência própria. Como recuar agora?

John deu-lhe um tapinha nas costas ao saírem da sala.

— Para onde você acha que devemos ir? — perguntou. Sam refletiu por alguns instantes.

— Vamos para a estação rodoviária. Vai chegar um ônibus daqui a dez minutos, e os passageiros precisam do Senhor.

17

Sam precisava ficar sozinho e foi em seu carro, seguindo as vans até a estação rodoviária. Enquanto dirigia, sentiu um pressentimento ruim na boca do estômago. O que os outros diriam quando descobrissem que ele era um fracasso? Iriam desistir? Iriam rir dele?

As vans estacionaram, e seus amigos da igreja puseram-se a sair no mesmo instante que o ônibus encostou. Sam permaneceu sentado no carro por mais alguns instantes enquanto os passageiros, cansados, desembarcavam. Seus olhos queimavam de medo, o coração disparado. Ao sair do veículo, fez uma oração silenciosa, pedindo coragem, confiança, pedindo que pudesse ouvir como o Espírito Santo ouve.

O grupo se espalhou. Cada um deles se aproximou de uma pessoa e iniciou uma conversa. Sam, as mãos nos bolsos, pôs-se a prestar atenção naqueles que falavam de Cristo da melhor forma possível. Ele notou um senhor idoso ao lado das portas de vidro, olhando para o lado de fora como se estivesse à espera de

alguém para buscá-lo. Mas ninguém apareceu. Sam olhou ao redor, desamparado, imaginando quem deveria abordar, o que diria, se não sabia com certeza quais eram as necessidades das pessoas. Lembrou-se, então, da teoria que havia elaborado na aula um pouco antes... a necessidade básica de toda alma perdida era a mesma.

Resolvido a abordar o senhor idoso segundo sua premissa, foi até a porta.

— Olá, como vai? — indagou, aproximando-se dele. O senhor o cumprimentou com a cabeça e sorriu, desanimado.

— Meu nome é Sam Bennett - apresentou-se, estendendo a mão. — Está esperando alguém?

— Estava — o idoso, meio amarrotado, replicou. — Pensei que minha filha viesse me buscar, mas... — seus olhos se avermelharam de emoção, e ele olhou à distância — não nos damos muito bem e... não sei se ela virá ou não.

O coração de Sam se confrangeu, e ele se deu conta de que estava ouvindo uma necessidade. Olhou na direção que o homem estivera olhando.

— Talvez ela ainda venha. Talvez tenha se atrasado um pouco.

A boca do ancião tremeu, e ele balançou a cabeça.

— Acho que ela não vem. Sabe, há muito tempo que eu não a vejo e, bem... creio que cheguei a um ponto sem retorno.

Sam fitou-o nos olhos e lembrou das coisas perdidas em Lucas 15. A moeda perdida... a ovelha perdida... o filho perdido. A pungência daqueles relatos o impressionou mais uma vez, e ele percebeu que o Espírito Santo fez com que se recordasse daquelas histórias para contá-las àquele homem.

— Jamais se chega a um ponto sem retorno.

O ancião emitiu um suspiro triste, bem lá do fundo da alma.

— Ah! eu cheguei a este ponto há muito tempo. Sam olhou outra vez para a porta, desejando que a filha dele chegasse para mostrar-lhe que existe perdão e uma nova vida. E, mesmo que ela não lhe mostrasse, havia alguém que podia fazê-lo. Havia um pai que mirava o horizonte em busca do filho perdido.

— Posso lhe dar uma carona. Meu carro está aí fora.

— Não está esperando alguém?

— Mais ou menos. Mas ninguém apareceu.

O homem fitou Sam de um jeito diferente, como se fosse capaz de entender como é se sentir rejeitado. — Vamos, posso levá-lo para onde quiser ir.

— Bem, eu agradeço muito, senhor. Não vai avisar seus amigos?

Sam olhou em direção a Kate. Ela o estava observando, sorrindo. Ele piscou e fez um gesto para indicar que ia embora.

— Tudo bem — disse. — Eles dão um jeito de ir para casa.

Ao entrar no carro com o ancião e perguntar para onde ele queria ir, Sam percebeu que as necessidades estavam bem ali na superfície... no rosto do homem... em sua postura... no modo como andava... em suas palavras. E o que ele não era capaz de ouvir, o Espírito Santo ouvia. O Espírito Santo podia fazer o que ele não podia.

Aquele homem precisava de Jesus Cristo.

Era tudo o que ele precisava saber.

Sobre o autor:O autor anônimo desta ficção já teve inúmeras obras listadas na indústria CBA e doou todos osroyalties deste livro a uma organização missionária cristã sem fins lucrativos, a Samaritan'sPurse (Bolsa do Samaritano).