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Ano XXVII • Nº 253 • Dezembro 2017 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br facebook.com/revista.eco21 ECO 21 José Monserrat Filho • Alfredo Sirkis • Janete Capiberibe • Sarney Filho Tiago Eloy Zaidan • Leonardo Boff • Vandana Shiva • Laurence Tubiana ISSN 0104-0030

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Diretora Lúcia Chayb

Editor

René Capriles

Redação Regina Bezerra, Rudá Capriles

Colaboradores

André Trigueiro, José Mon serrat Filho Leonardo Boff, Samyra Crespo

Evaristo Eduardo de Mi randa Sergio Trindade

Fotografia Ana Huara

Correspondentes no Brasil

São Paulo: Lea Chaib Belém: Edson Gillet Brasil

Correspondentes no Exterior

Bolívia: Carlos Capriles Farfán México: Carlos Véjar Pérez-Rubio

Itália: Mario Salomone e Bianca La Placa França: Aurore Capriles

Representante Comercial em Brasília

Minas de Ideias

Serviços Infor mativos Argentina: Ecosistema

Brasil: Envolverde, ADITAL, EcoAgência, EcoTerra, O ECO, Ambiente Brasil

França: Valeurs Vertes, La Recherche Itália: ECO (Educazione Sostenibile)

México: Archipiélago

Direção de Arte ARTE ECO 21

CTP e impressão Gráfica Cruzado

Jornalista Responsável

Lúcia Chayb - Mtb: 15342/69/108

Assinaturas Anual: R$ 130,00

[email protected]

Uma publicação mensal de Tricontinental Editora

Av. N. Sra. Copacabana 2 - Gr. 301 22010-122 - Rio de Janeiro

Tel.: (21)2275-1490 [email protected]

www.eco21.com.br

Facebook www.facebook.com/revista.eco21

A no 27 • Dezembro 2017 • N º 253

ECO•21

Capa: Cara de Vime. Obra de alunos do 8º grau do Harold Hillier Gardens, Hampshire, Reino Unido Foto: Rob Young

Gaia viverá! Lúcia Chayb e René Capriles

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Presente de Natal: O Instituto Global do MP para o Meio Ambiente Para todos os que defendem a preservação de um planeta mais verde, o anúncio da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, de que o Ministério Público Federal concentrará esforços no sentido de criar o Instituto Global do Ministério Público para o Meio Ambiente, foi um verdadeiro presente de Natal. A proposta de Raquel Dodge é a de reunir Procuradores do MP de diversos países para realizar uma troca de experiências e trabalhar na capacitação conjunta em torno de ações em defesa do meio ambiente em geral com ênfase na questão da água. Esta iniciativa é mais do que oportuna num momento que as mudanças climáticas alteraram o ciclo hídrico mundial. No Brasil tem um particular interesse visto que nas últimas décadas a economia nacional ficou concentrada no agronegócio, o maior usuário da água. A tarefa do novo Instituto será árdua. Os graves problemas gerados pelo desmatamento, tanto da Amazônia quanto do Cerrado, são de difícil e cara solução. A ideia da transposição das águas de alguns rios é uma solução equivocada segundo inúmeros cientistas e especialistas na matéria. O uso da água pelo garimpo ilegal e a mineração geralmente destroem as nascentes. Os milhares de incêndios que destroem as florestas para benefício do agronegócio são fatos criminosos que devem ser combatidos. O Congresso Nacional, quando aprovou o novo Código Florestal autorizou a ocupação irracional das matas ciliares. Nessa linha, a afirmação de Raquel Dodge de que “a proteção da Floresta Amazônica e de todos os biomas está diretamente relacionada à proteção da água”, é um indicativo de que o MP está trabalhando na punição dos desmatadores. “Significa, também, dar um salto para o futuro: proteger efetivamente a Floresta”, disse ela. Dentro do campo do agronegócio, é necessário implementar uma ação tipo “Lava-Jato” para os agrotóxicos. É bom lembrar que no seu discurso de posse, em Setembro último, a Procuradora-Geral destacou a importância da preservação ambiental e a defesa dos diretos humanos e das minorias. Ela disse: “Nosso país continua marcado por grande desigualdade social; a violência urbana e rural atingiu níveis inaceitáveis e os jovens são os mais atingidos; a liberdade de expressão tem sido marcada pelo assassinato de muitos jornalistas; os serviços públicos são precários, sobretudo nas escolas e hospitais públicos; a devastação das florestas e desastres dolorosos como os de Mariana são sinais evidentes de que o meio ambiente precisa de proteção concreta”. A proposta de Dodge de um Instituto Global envolve o conhecimento de casos de sucesso realizados pelos procuradores em outros países. No campo jurídico, a nova instituição pode ajudar os poderes executivo e legislativo na implementação dos Protocolos e Convenções da ONU. Casos exitosos são: o Protocolo de Montreal sobre a Camada de Ozônio, a Convenção de Minamata sobre o Mercúrio, a Convenção de Luta contra a Desertificação, a Convenção contra a Corrupção, a Convenção sobre Biodiversidade com suas Metas de Aichi, a Convenção sobre o Direito do Mar, hoje em destaque pela luta contra poluição das águas oceânicas pelos plásticos, e, claro a Convenção sobre as Mudanças Climáticas, que gerou o Acordo de Paris para manter a temperatura global em menos de 2°C até 2050, entre outros. Num momento em que países como os EUA regrediram na questão ambiental, como por exemplo, a proteção do Ártico (Trump autorizou a exploração de petróleo nessa região); a ação do MP brasileiro se torna indispensável para a preservação da vida. Não foi à toa que Raquel Dodge, no seu discurso inaugural, lembrou a poetisa Cora Coralina, pedindo que haja “mais esperança nos nossos passos do que tristeza em nossos ombros”. Obrigado por tão importante presente de Natal, Sra. Procuradora-Geral Raquel Dodge. A ECO 21 agradece aos seus leitores, colaboradores a anunciantes a sua indispensável amizade sustentável. Para todos: Feliz Natal e um ano 2018 muito com verde!

4 Alfredo Sirkis - No planeta Macron 6 José Sarney Filho - O Acordo de Paris abre uma nova agenda ambiental 7 Laurence Tubiana - A luta contra as mudanças climáticas volta a Paris 8 Erik Von Farfan - Conclusões econômicas do One Planet Summit10 Guy Edwards - Política pode sabotar proposta brasileira de sediar a COP-2512 Elisa Oswaldo-Cruz - De olho no futuro do Planeta14 Elton Alisson - Ação pelo clima depende de políticas publicas e ciência18 Tara Ayuk - Raquel Dodge quer Instituto do MP para o Meio Ambiente20 Adriana Gregolin - A sustentabilidade dos solos é essencial para a vida22 Jacques Leslie - O poder do solo para resgatar o verde do planeta24 Carlos Dias - O papel global do solo será debatido no Brasil em 201825 Nadir Rodrigues - Criado centro de pesquisa em mudanças climáticas28 Orlando Milesi - Energias limpas diminuem a conta da luz no Chile30 Selma Bellini - Brasil já tem mais de 500 parques eólicos32 José Monserrat Filho - Um direito só para Marte?36 Vilma Homero - Micro-organismos: pequenos influenciadores do clima37 Danielle Kiffer - Árvores amazônicas são fortes emissoras de metano38 Cristina Amorim - Manejo sustentável é o único caminho para o Cerrado40 Leonardo Boff - Cuidado da água no contexto da globalização43 Maura Campanili - Reflorestamento é lucrativo com espécies nativas44 Vandana Shiva - Satyagraha pela resistência contra a Monsanto46 Tiago Eloy Zaidan - Ecologistas invisíveis49 René Capriles - Imagens, Micróbios e Espelhos50 Janete Capiberibe - A esperança floresce com a memória de Chico Mendes

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Para quem está acostumado às Conferências da ONU sobre o Clima, as COP, o One Planet Summit de Emmanuel Macron foi essencialmente plim-plim: um ambiente tipo Projac, com uma câmera de grua buscando sofregamente o melhor ângulo do seu perfil gaulês.

Todo o fundo do palco era constituído por um imenso telão de altíssima definição e as bancadas dos Chefes de Estado dispostas como num estúdio de TV. Decididamente Emmanuel Macron queria comunicar e a sua mensagem era de urgência: “estamos perdendo a corrida para as mudanças climáticas! Esse é o desafio de nossa geração: ganhar a batalha contra o tempo!”.

O afã de ocupar o espaço vazio de Barack Obama, acin-tosamente abandonado por Donald Trump, se evidenciou pelo papel oferecido aos personagens insurgentes do que chamo de U(d)SA: United (decarbonizing) States of Ame-rica: o Governador e o ex-Governador da Califórnia, Jerry Brown e Arnold Schwarzenneger, o ex-Secretário de Estado John Kerry, o financista e ex-Prefeito de Nova York Michael Bloomberg, o fundador da Microsoft Bill Gates, o Gover-nador do Colorado John Hickenlooper, o ator Sean Penn e outros. No mesmo dia em que Trump perdeu a eleição para o Senado no ultra conservador Alabama, viu também os U(d)SA pontificando em Paris.

Alfredo Sirkis | Jornalista, Ambientalista e Secretário Executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas

No planeta MacronO One Planet f icou algo

aquém da pretensão anunciada de uma “Cúpula de Chefes de Estado”: a China trouxe o vice-Primeiro Ministro, Liu Yandong – para além do seu indefectível “Mr. Clima”, Xie Zhenhua – a Índia, Brasil, Canadá e Alemanha se fizeram representar por Minis-tros. A ausência mais notada foi a da Chanceler Angela Merkel, a grande parceira política de Macron na Europa, às voltas com

uma difícil negociação para formar maioria parlamentar e de governo mas que, segundo as más línguas, não quis botar essa azeitona na empada do borbulhante Macron. Mandou a Ministra do Meio Ambiente, Barbara Hendricks. Macron fez questão de dividir a Presidência com o Secretário-Geral da ONU, Antônio Guterres e o Presidente do Banco Mun-dial Jim Yong Kim, sóbrios e circunspectos. Os Chefes de Estado mais em voga, para além de os dos países nórdicos e africanos, foram o Presidente Peña Nieto, do México – o grande papagaio-de-pirata do evento– e o Rei do Marrocos, Mohammed VI.

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Presidente Emmanuel Macron discursando no One Planet Summit, em Paris

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One Planet esteve mais para um grande talk show climático do que uma Cimeira de Chefes de Estado, mas funcionou e pode ter consagrado um formato, onde governantes, iniciativa privada e personalidades midiáticas se juntam e misturam. Algo evidentemente complementar ao processo de negociação climática da UNFCCC, mas que procura avançar naquele tema fundamental no qual esta empaca: a finança da descar-bonização. Como juntar os 3.5 a 5 trilhões/ano de dólares de investimentos necessários para descarbonizar as economias e atingir o net zero, na segunda parte do século, eludindo as consequências mais catastróficas?

Não se pode dizer que o One Planet tenha aportado as grandes respostas a essa pergunta, mas acrescentou alguns elementos interessantes. O Banco Mundial anunciou que iria precificar o carbono a 40 dólares em suas operações a tonelada. Foi anunciada –sem nenhum detalhe— uma articulação entre bancos de desenvolvimento e outra entre fundos soberanos para financiar a descarbonização, segundo, tudo indica, garantias para a atração de grandes investimentos do setor financeiro internacional propiciando juros baixos. Foram reforçadas certas articulações e compromissos já em curso como o compromisso de abandono do carvão e a aliança solar. Oito estados norte-americanos firmaram uma aliança pela eletrificação automotiva. A China e o México anunciaram – algo requentadamente – seus mercados nacionais de carbono com articulação subnacional/internacional. A adaptação, frequentemente deixada para um segundo plano, mereceu um destaque interessante, no One Planet, com dois painéis dedicados a ela e anúncios de financiamento com cifras explícitas para países da África e do Caribe.

Noutros tópicos, houve um recuo de última hora, como na articulação para uma espécie de fundo garantidor público internacional para viabilizar financiamento para programas e projetos ao juro mais baixo disponível. O recuo temporário se deveu a necessidade de “combinar com os alemães” e a dúvidas sobre como isso poderia ser estruturado “sem criar uma nova burocracia”. Isso também prejudicou os avanços pretendidos em relação à precificação positiva: mecanismos de premiação da descarbonização. Esses temas deverão ser retomados em breve.

Em quase todas as intervenções que trataram da questão do financiamento prevaleceu o raciocínio de que a forma de atrair os trilhões necessários se dará através de uma articu-lação de garantias públicas com recursos provenientes do setor financeiro global, onde está a maior reserva de dinheiro do mundo. O consenso esboçado envolve a necessidade de oferecer garantias dos governos, fundos soberanos e bancos de desenvolvimento e de se ampliar muito a capacidade de elaboração de bons projetos, hoje muito deficiente. Mas essas foram conversas mais de bastidores que não couberam no formato televisivo do evento.

Não sabemos ainda qual foi “efeito público interno” do One Planet, certamente uma preocupação central de Macron que luta para subir nas pesquisas de avaliação que andaram se deteriorando recentemente. Seu efeito político global, no entanto, parece positivo por ter trazido para um protagonismo conjunto, governos nacionais, subnacionais, iniciativa privada, personalidades midiáticas; por ter afirmado o tema adapta-ção e por ter ingressado – embora sem grandes avanços – no tema da mobilização dos trilhões. Como diriam os italianos (cujo Primeiro Ministro Paolo Gentiloni, aliás, também não compareceu): La nave vá.

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Saúdo o Presidente Emanuel Macron pela liderança e iniciativa em realizar esta reunião histórica. Em nome do Presidente Michel Temer, tenho a satisfação de anunciar avanços importantes que estamos promovendo nas políticas ambientais brasileiras:

Durante a COP-23, publi-camos o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa – PLANAVEG, cuja meta é recuperar 12 milhões de hecta-res de vegetação nativa até 2030. Ainda durante a Conferência de Bonn, foi apresentado à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que estabelece uma nova política nacional de biocombustíveis, RenovaBio, visando aumentar a eficiência da produção de biocombustíveis e, ao mesmo tempo, reduzir emissões. Esse projeto está tramitando em regime de urgência.

Numa iniciativa regional do Fundo Global para o Meio Ambiente - GEF, aprovamos o Programa de Paisagens Sus-tentáveis da Amazônia, do qual fazem parte também Peru e Colômbia. O Programa vai direcionar 120 milhões de dólares para ações de conservação da biodiversidade, uso sustentável dos recursos naturais e mitigação da mudança do clima na Amazônia. Trata-se do maior projeto GEF já assinado, e um decisivo passo para a conectividade e coordenação regional, por meio da gestão integrada de paisagens.

Permitam-me também mencionar que, neste último ano, reduzimos em 16% o desmatamento da Amazônia e promo-vemos a criação e ampliação de Unidades de Conservação. Na Alemanha, oferecemos o Brasil para receber a COP-25, que deverá ser sediada na região da América Latina ou do Caribe. Caso nosso oferecimento seja aceito, receberemos essa grande Conferência em 2019.

Estamos convencidos de que o Acordo de Paris abre uma nova agenda de oportunidades para apoiar a retomada do desenvolvimento econômico de forma competitiva e sus-tentável. Precisamos encarar o desafio climático como uma oportunidade para reorientarmos o projeto de desenvolvimento nacional, rumo à criação de uma economia de baixo carbono no longo prazo.

Anima-nos o fato de que o Acordo de Paris trouxe uma grande inovação sobre financiamento: fixou entre seus obje-tivos mais gerais o de “tornar os fluxos financeiros globais consistentes com uma trajetória de baixas emissões e de desenvolvimento resiliente à mudança do clima”.

O Acordo de Paris abre uma nova agenda ambiental

José Sarney Filho | Ministro do Meio Ambiente

Como fazer isso? Essa é a pergunta que precisamos responder, com criatividade e inovação, para promover nossas ações nacionais.

Além disso, em Paris, pela primeira vez uma Conferência de Clima fez um reconheci-mento político do “valor social, econômico e ambiental das ações voluntárias de mitigação, assim como seus co-benefícios para a adaptação, a saúde e o desenvolvi-mento sustentável”. A partir dessa diretriz política, de iniciativa do Brasil e reconhecida na COP-21,

está aberto o caminho para pensarmos as ferramentas finan-ceiras adequadas que possam premiar quem se esforça para implementar o Acordo de Paris e, assim, atrair cada vez mais agentes econômicos para atividades de baixas emissões.

Do ponto de vista político, já emitimos a sinalização neces-sária sobre o caminho que queremos e devemos trilhar. Com nossa rápida ratificação do Acordo de Paris e a sua entrada em vigor em menos de um ano, evidencia-se nosso compromisso com o enfrentamento da mudança do clima.

Somos o único grande país em desenvolvimento com metas absolutas de redução de emissões para o conjunto da economia. Queremos atingir e, se possível, superar essas metas, sem abrir mão da geração de empregos, do aumento da produtividade e da retomada do crescimento econômico.

Quero enfatizar que o enfrentamento à questão climática não se resume à redução de emissões. Temos uma pauta igualmente importante na área de adaptação. Adaptar-se aos impactos da mudança do clima é uma necessidade de todos e guarda uma relação direta com o desenvolvimento.

O Acordo de Paris aproxima essas agendas com a agenda também indispensável do financiamento e da mobilização de recursos. Hoje, temos um volume imenso de capitais à procura de um porto seguro para investimentos. Nosso maior desafio é mobilizar recursos e direcionar investimentos para criar o modelo de desenvolvimento que queremos e que precisamos nas próximas décadas.

Senhor Presidente Macron, conte com o Brasil para apoiar a construção de um mundo mais sustentável, com a natureza conservada, uma matriz energética limpa, uma economia de baixas emissões, gerando empregos e promovendo o desen-volvimento.

Pronunciamento do Ministro Sarney Filho no encontro One Planet Summit, Paris, 12/12/2017

Emmanuel Macron e Sarney Filho

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Passaram dois anos desde que o então Ministro das Relações Exteriores da França, Laurent Fabius, bateu o martelo e declarou: “O Acordo de Paris para o clima foi aprovado”. Agora, o Presidente Emmanuel Macron e o Governo francês estão acolhendo líderes e atores não estatais para o One Planet Summit. O objetivo deste encontro é celebrar as melhorias climáticas conseguidas desde 2015 e fortalecer o apoio político e económico, para se atingir os objetivos e metas do Acordo de Paris.

O Acordo climático de Paris, um feito histórico da diplo-macia que inaugurou uma nova era de colaboração interna-cional para assuntos relacionados com o clima, foi facilitado por um número de forças políticas e sociais. Uma das forças mais influentes foi um grupo de mais de 100 países, conhecido como a “coligação com um elevado nível de ambição”, que ajudou a finalizar o Acordo nos últimos dias da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças climáticas, em 2015, a COP-21. Esta diversa coligação de líderes – desde os países mais ricos até aos estados insulares do Pacífico mais vulne-ráveis – quebrou o impasse político que impediu o progresso climático durante anos ou até mesmo décadas.

Enquanto refletimos sobre esse sucesso, há algo que é indiscutível: voltou a necessidade de haver coligações ambi-ciosas. Uma forte liderança global para as mudanças climá-ticas marcou uma vitória diplomática, há dois anos, e hoje, novas alianças económicas e políticas são necessárias para se transformar estes compromissos em ações.

O sucesso diplomático do Acordo de Paris é digno de louvor por direito próprio; foi um incrível passo à frente na luta contra as mudanças climáticas. Mas não devemos dormir à sombra dos louros conseguidos. Com os EUA, o maior emissor histórico de GEE, a rejeitar o Acordo, a comunidade mundial restante tem de reafirmar o seu compromisso em reduzir as emissões de dióxido de carbono. Devem ser tomadas medidas drásticas, significativas e imediatas.

Os melhores dados científicos disponíveis estimam que o mundo tenha apenas três anos para iniciar uma redução permanente das emissões de Gases de Efeito Estufa, se quiser ter alguma esperança em alcançar o objetivo do Acordo de Paris de manter o aquecimento “bem abaixo dos 2°C” em relação aos níveis pré-industriais. E qualquer urgência que não possa ser transmitida pela ciência, está a ser comunicada pelo próprio Planeta – através de uma manifestação feroz de furacões, inundações, incêndios e secas mortais.

Laurence Tubiana | Ex-Embaixadora Especial da França na COP-21, CEO da European Climate Foundation

A luta contra as mudanças climáticas volta a Paris

Dado o imediatismo do desafio, o que é que pode e deve ser feito para se evitar a crise?

As soluções começam com dinheiro e um objetivo principal da Cúpula One Planet é mobilizar financiamentos públicos e privados para financiar projetos que possam reduzir a atual poluição relativa às alterações climáticas. Durante o “Dia do Financiamento Climático” da cúpula, empresas, bancos, investidores e países anunciaram novas iniciativas no sentido de ajudar a financiar a transição onerosa para um futuro sem carbono.

As promessas ocas não tem lugar neste encontro; apenas discutir compromissos verdadeiros com dinheiro real para projetos tangíveis. Como resultado, esperamos ver centenas de milhões de dólares, comprometidos pelos governos, para financiarem soluções em todas as frentes de batalha na luta contra as mudanças climáticas.

Muitos desses milhões de dólares também irão para pro-jetos de energias renováveis, mas o dinheiro também estará comprometido com projetos de transportes limpos, agricultura, infraestrutura e sistemas urbanos. O financiamento também estará destinado a empreendimentos que ajudem a proteger as comunidades que são mais vulneráveis aos impactos do aquecimento global.

A Cúpula One Planet é uma ocasião para os países, empre-sas e instituições privadas tecerem estratégias concretas para o afastamento dos combustíveis fósseis. Nas negociações da Organização das Nações Unidas sobre o clima em Bonn, na Alemanha, no mês passado, 20 países, liderados pelo Canadá e pelo Reino Unido, anunciaram planos para se eliminar aos poucos o carvão da produção de eletricidade.

O encontro em Paris oferece uma oportunidade para outros países se juntarem à aliança internacional Powering Past Coal Alliance, que visa formalizar uma transição con-creta do carvão e ajudar as empresas a alcançar as emissões líquidas zero.

Em última análise, a cúpula de agora é um lugar onde governos, empresas, investidores e outras partes interessadas importantes possam colaborar e partilhar ideias, apresentar projetos vencedores e coordenar metas. Este evento não deve ser um acontecimento isolado, mas sim servir como ponto de partida para reuniões internacionais que terão lugar durante os próximos anos. Afinal de contas, é durante este curto prazo que o destino das metas estipuladas para a temperatura global no Acordo de Paris será determinado.

Dois anos após a aprovação de um Acordo climático inovador, líderes globais estão a postos para se reunirem na Cidade da Luz. Ao chegar, a sua ambição coletiva mais uma vez será necessária. Desta vez, no entanto, o objetivo tem que ser garantir que os acordos anteriores se traduzam em mais do que simples palavras escritas numa página.

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Acelerar. Esse foi o lema do One Planet Summit, realizado em Paris no dia 12 de Dezembro de 2017. Um encontro político cujo objetivo foi mobilizar novos fundos públicos e privados para que projetos climáticos eficazes saiam das gavetas.

Por ocasião da Cúpula, o Banco Mundial divulgou que já não financiará petróleo e gás após 2019. Um anúncio saudado por um aplauso estrondoso. No entanto, dá a oportunidade de financiar gás nos países mais pobres se o projeto estiver dentro dos compromissos do Acordo de Paris. Em 2016, o financiamento do Banco Mundial para o setor de petróleo e gás foi de aproximadamente US$ 1,6 bilhão, menos de 5% de todo o financiamento no mesmo ano.

Seguindo o Acordo de Paris, o grupo se comprometeu a alocar 28% dos seus empréstimos à ação climática até 2020. O Banco afirmou que está “no caminho certo” para alcançá-los e planeja estabelecer novos objetivos para além deste prazo na COP-24 da Convenção sobre Mudanças Climáticas a ser realizada na Polônia.

A transparência também é um dos seus objetivos, uma vez que, a partir do próximo ano, o Banco Mundial infor-mará as emissões de Gases de Efeito Estufa dos projetos que financia. Os resultados serão publicados no final de 2018 e depois anualmente. Além disso, o Banco Mundial aplicará um preço nocional de carbono na análise econômica de todos os projetos tenham começado em Julho de 2017.

Conclusões econômicas do One Planet Summit

Comissão Europeia quer setor financeiro para o clima

No One Planet Summit a Comissão Europeia anunciou uma série de iniciativas para uma economia moderna e limpa. O setor financeiro é direcionado diretamente: “É hora de desencadear uma mudança de comportamento entre os jogadores na cadeia de valor do setor financeiro”, informou num comunicado.

Em Janeiro de 2018, o Grupo de Alto Nível sobre Finanças Sustentáveis da Comissão Europeia apresentará recomendações para uma reforma do quadro financeiro da União Europeia, para reorientar investimentos para tecnologias e negócios mais sustentáveis. A Comissão Europeia também pretende apresentar um plano de ação abrangente em Março de 2018.

Este plano estimulará o mercado de produtos financeiros sustentáveis:

Integrando considerações de sustentabilidade nas obriga-ções dos gestores de ativos e dos investidores institucionais aos proprietários dos fundos que administram.

Exploração de como incluir um “fator ambiental” nas regras prudenciais, para estimular o investimento. A integração dos critérios ESG (ambiente, social e de governança) no mandato dos supervisores, para que possam monitorar a forma como as instituições financeiras detectam, relatam e abordam os riscos ambientais, sociais e de governança.

Erik Von Farfan | JornalistaIs

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As seguradoras alertam ou até se desengatam

Como principais atores do sistema financeiro, através do conhecimento dos riscos e da sua gestão, as seguradoras alertam novamente sobre as consequências das mudanças climáticas. Trinta e cinco federações europeias e internacionais de seguradoras e resseguradoras reiteram que agora integram os critérios ESG nas suas estratégias de investimento de longo prazo. Esses critérios pressionam algumas seguradoras a se desvincular das atividades de emissão de carbono.

Após uma primeira redução de seus investimentos em carvão em 2015, Thomas Buberl, CEO da Axa anunciou n One Planet Summit que alienaria mais 2,4 bilhões de euros de ativos no carvão e 700 milhões de euros de seus ativos de areias betuminosas. Sob sua nova política, a seguradora não só abandonará as empresas que obtêm 30% de suas receitas de eletricidade ou carvão. Também alienará grandes produtores de carvão (mais de 20 milhões de toneladas por ano) e todas as empresas planejam construir mais de 3.000 MW de nova capacidade de carvão. Uma decisão saudada por ONGs. A seguradora baseou-se na “Global Coal Exit List” desenvolvida pela ONG alemã Urgewald.

237 empresas prometem transparência

237 empresas com uma capitalização de mercado com-binada de mais de US$ 6,3 trilhões se comprometeram publicamente em apoiar a Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD). A Task Force, liderada por Michael R. Bloomberg e criada pelo Conselho de Estabilidade Financeira (FSB), elaborou recomendações voluntárias sobre informações climáticas que as empresas devem divulgar para ajudar os investidores, credores e outras partes interessadas em tomar boas decisões financeiras. “No final do ano próximo e a tempo para a Cúpula do G20 na Argentina, o grupo de trabalho informará sobre as imple-mentações iniciais, incluindo exemplos de boas práticas para apoiar e promover uma adoção mais ampla”, acrescentou Mark Carney, Presidente do FSB.

Lançamento da coalizão “Climate Action 100+”

225 grandes investidores institucionais que representam mais de US$ 26,3 trilhões em ativos sob gestão também exercerão pressão sobre as 100 principais empresas listadas que emitem a maioria dos GEE. Este esforço coletivo encorajará essas empresas a implementar as recomendações do TCFD e a apresentar uma estratégia para reduzir suas emissões de acordo com os objetivos estabelecidos pelo Acordo de Paris. As empresas francesas visadas são Total, Engie e EDF.

Bancos de desenvolvimento se mobilizam

Um acordo é assinado entre 23 bancos nacionais e regio-nais de desenvolvimento, da rede IDFC (China, Alemanha, Brasil, Suécia, Canadá, França, etc.) e os bancos multilaterais de desenvolvimento para aumentar o financiamento dedicado à implementação de o Acordo de Paris. Esses montantes ascenderão a mais de US $ 200 bilhões em empréstimos para países emergentes e em desenvolvimento. Os Fundos Sovereign Wealth possuem ativos que podem atingir mais de US$ 15 trilhões até 2020.

Por iniciativa do Presidente da França, a Noruega, os Emi-rados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Nova Zelândia lançaram uma coalizão sem precedentes de grandes fundos de riqueza soberana para canalizar o financiamento para a ação climática. Este grupo será acompanhado por outros fundos soberanos nas próximas semanas. A iniciativa será liderada pela França e pela Noruega.

França, Canadá e outros parceiros anunciaram a oferta de 300 milhões de euros para o Fundo de Neutralidade de degradação do solo para combater a degradação da terra.

Um acordo também foi assinado entre o PNUMA, o BNPP, o ICRAF e o ADM Capital, bem como outros atores, para angariar fundos privados para financiar projetos com impacto ambiental e social significativo nos países mais vul-neráveis. O objetivo é mobilizar, até 2025, US$ 10 bilhões. A Fundação Gates, a Comissão Europeia e países como a França estão lançando um programa de financiamento de US$ 650 milhões para acelerar a transferência da inovação agronômica para o campo. A França participa na implementação da fase piloto por 5 milhões de euros.

100 projetos para África

Dois bancos de desenvolvimento, 5 alianças que repre-sentam mais de 450 signatários de 94 países e 47 empresas estão empenhadas em criar uma plataforma de incubação de projetos, com o objetivo de gerar e financiar 100 projetos em África nos próximos 5 anos, nas áreas de água e mudanças climáticas. O principal objetivo desta plataforma é efetiva-mente vincular os doadores e os atores no campo, com um montante inicial de 20 milhões de euros para investir ao longo do período. A incubadora apoiará projetos em diferentes esca-las para pequenos projetos locais. A mobilização continuará no âmbito do Fórum Mundial da Água (Brasília, Março de 2018) e a reunião sobre o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável - Água (New York, Julho 2018).

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A reticente política regional da América Latina e as aflições domésticas do Brasil se infiltraram nas recentes negociações da ONU sobre mudanças climáticas em Bonn, na Alema-nha. Durante a Conferência, o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, anunciou o interesse do Brasil em sediar a 25ª Conferência das Partes (COP-25) em 2019. O Brasil é o único país a declarar seu interesse ao Secretário Executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) para sediar as negociações, que deverão ocorrer num país da América Latina e do Caribe.

Na sequência do protocolo diplomático, os aspirantes a presidentes da COP enviam cartas à UNFCCC e depois ao grupo regional das Nações Unidas, neste caso, o grupo forte de 33 países para a América Latina e o Caribe (GRULAC), discute a questão antes de chegar a uma decisão por consenso. Embora o GRULAC tenha reuniões regulares durante a COP, as discussões sobre as futuras presidências da COP podem ser demoradas. Ambas as reuniões informais e formais ocorrem entre os representantes do GRULAC em Nova York, entre diplomatas na COP e através dos canais diplomáticos indi-viduais dos países.

Apesar do fracasso do GRULAC em chegar a uma decisão entre seus membros em Bonn, no último dia das negociações, um projeto de decisão sobre “Datas e locais de sessões futuras” chamou o Brasil como o anfitrião da COP-25 em 2019. Mas, mais tarde, naquele dia, a versão adotada antes da decisão não mencionou o Brasil e solicitou que o clima da ONU discuta o próximo mês de Abril.

Um funcionário da UNFCCC disse que receberam uma comunicação do presidente rotativo mensal do GRULAC - Paraguai - confirmando a candidatura brasileira da COP-25. Eles receberam uma comunicação separada do Paraguai afirmando que a questão ainda não estava resolvida.

Política pode sabotar proposta brasileira de sediar a COP-25

Guy Edwards | Pesquisador e codiretor do Laboratório de Clima e Desenvolvimento da Brown University

Duas fontes anônimas disseram que o Paraguai informou a UNFCCC que o GRULAC endossou aparentemente a COP-25 do Brasil, que forneceu a luz verde para incluí-la na decisão da Conferência. Mas isso não significava que o GRULAC tivesse chegado a uma decisão. Ao considerar o projeto de decisão da Conferência, a Venezuela e o Brasil levantaram a preocupação de que o grupo não estivesse preparado e que outras discussões ocorressem entre os representantes do GRULAC em Nova York.

Na defesa do GRULAC, durante as duas semanas de negociações rápidas e agitadas, podem ocorrer erros. Os delegados sobrecarregados acusados de negociar por seus países, também devem aconselhar ministros ou presidentes e participar de reuniões bilaterais. Na COP, as reuniões do GRULAC também ocorrem na hora do almoço, garantindo que os delegados possam ser pegos nas negociações ou coordenados em grupos menores simultaneamente. Neste ambiente, os fios podem se cruzar e mensagens importantes podem ser enviadas muito tarde, muito cedo ou simplesmente mal interpretadas.

Numa questão dessa magnitude é possível que o incidente possa ter sido mais que um simples erro. Talvez o Paraguai tenha enviado a carta à UNFCCC com a confirmação do apoio do GRULAC à oferta do Brasil, uma vez que desejava estar bem com seu poderoso vizinho para evitar uma discussão longa e potencialmente inconclusiva dentro do GRULAC.

As políticas regionais da América Latina e do Caribe são as mais frustrantes que já ocorreram por algum tempo devido à crise na Venezuela. Em Agosto, Ministros das Relações Exteriores de vários países, incluindo Paraguai, México, Brasil, Peru e Argentina, assinaram a Declaração de Lima, que criticou fortemente o regime de Maduro e a ruptura da ordem democrática na Venezuela.

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Acrescenta ao estado de coisas tenso é o fato de que sete países latino-americanos vão eleger novos presidentes no próximo ano, o que poderia estar criando uma aba entre os ministérios enquanto eles tentam concluir suas agendas, dada a revisão habitual dos ministros e funcionários públicos.

Antecipando que a Venezuela talvez não queira apoiar a proposta da COP no Brasil, o Paraguai poderia ter agido para tentar confirmar rapidamente e assim evitar confrontos no GRULAC. A Venezuela pode ter estado particularmente disposta a aceitar a oferta do Brasil devido ao seu próprio inte-resse em hospedar a Conferência depois da fracassada oferta em 2014 para sediar COP-20, que perdeu para o Peru.

No caso em que o GRULAC não possa chegar a um con-senso sobre um anfitrião da COP, a UNFCCC ignoraria o ano anfitrião da região e organizaria a Conferência em outra região. Este pior cenário seria a segunda vez que a crise venezuelana enfraqueceu um evento regional. Em resposta, o Grupo de Lima, em Agosto, pediu o adiamento da cúpula entre Europa e a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe. Com discussões prolongadas e prováveis entre os representantes do GRU-LAC, a candidatura do Brasil não está de forma alguma na pauta. A política doméstica brasileira tam-bém pode ser um problema.

As organizações ambientais brasileiras lideraram o esforço para sediar COP-25. Em uma vitória significativa, o Ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, que é visto como um campeão do clima e aliado desses grupos, aceitou sua pro-posta. Esses grupos argumentam que, durante uma época de vários contratempos para a agenda climática e ambiental do Brasil, hospedar uma COP poderia ser uma maneira de fechar a atenção sobre essas questões, especialmente no con-texto das eleições presidenciais de 2018. Por exemplo, no ano passado, a estimativa de emissão de Gases de Efeito Estufa do Brasil é de ter aumentado 8,9%, o nível mais alto desde 2008, devido principalmente a um aumento na agricultura e desmatamento ilegal.

Há esperança de que, com uma maior exposição inter-nacional, a administração do Presidente Michel Temer e os candidatos presidenciais atinjam mais atenção às políticas ambientais e climáticas. Com base na sociedade civil bem organizada e tecnicamente bem-sucedida do Brasil e na imprensa envolvida, a COP poderia ser usada para dissuadir novos recuos e obter maior apoio da comunidade internacional para pressionar os líderes brasileiros a empurrar as mudanças climáticas e as questões ambientais na agenda. O próximo presidente do Brasil, que assumirá o cargo em Janeiro de 2019, realizará um grande evento internacional, proporcionando a esses grupos e políticos preocupados com o meio ambiente a oportunidade de avançar metas ambientais e ambientais mais ambiciosas no primeiro ano do governo no escritório.

Organizar uma COP também oferece uma oportunidade para o Brasil restabelecer sua presença no cenário internacio-nal após um período de introspecção e uma política externa discreta. Historicamente, o avanço da governança global em mudanças climáticas tem sido um dos principais pontos fortes da política externa do Brasil.

Mas com as crises em curso no Brasil, isso pode ser uma estratégia arriscada. Os observadores foram imediatamente lembrados de que a Administração Temer não demonstrou um forte compromisso em enfrentar as mudanças climáticas. No mesmo dia em que o Brasil fez sua oferta da COP-25, ganhou o Prêmio Fóssil do Dia da Climate Action Network, um prêmio dado aos retardatários ambientais, por um Pro-jeto de Lei enviado ao Congresso pelo Presidente Temer que subsidiaria o novo desenvolvimento do petróleo em cerca de US$ 300 bilhões.

O gabinete do Brasil está sujeito a uma grande agitação nas próximas semanas, o que também pode interferir com a oferta da COP. O Ministro Sarney Filho, provavelmente permanecerá instalado até Março ou Abril próximo antes

de se demitir para concorrer ao Senado. Espera-se que, enquanto ele permaneça no cargo, ele pode usar sua posição para encorajar os colegas do gabinete a lutar para garantir a nomeação. Não está confirmado se o Ministro das Rela-ções Exteriores do Brasil, Aloysio Nunes, permanecerá ou sairá do Ministério. Embora o seu sucessor provavelmente continue a apoiar a oferta da COP-25, a agitação política de uma reorganização do gabinete suscita preocupações de que a Administração Temer talvez

não esteja apta a trabalhar para garantir a nomeação, especial-mente se outros países não forem de grande apoio.

O Itamaraty está preocupado com a oferta. O Brasil está programado para sediar a 11ª Cúpula BRICS em 2019, que pode ser vista como mais importante do que a COP para projetar as metas e credenciais da política externa do Brasil.

O custo também é uma preocupação. A hospedagem de uma COP com 20.000 participantes e a capital diplomática necessária para retirá-la vem com um preço elevado.

O acolhimento de uma COP bem-sucedida também exige facilitar o processo, fortalecer a confiança entre os países, demonstrar uma forte ação climática doméstica, planejamento e organização maciças. Como a COP-25 está prevista para ser um dos eventos mais importantes desde o Acordo de Paris de 2015, o Brasil enfrentaria uma tarefa enorme.

A COP-25 é especialmente importante porque, em 2020, os países devem enviar planos revisados de mudanças climá-ticas nacionais. O relatório 2017 das lacunas de emissão das Nações Unidas mostra que os objetivos atuais dos países para reduzir as emissões levariam a um aumento de temperatura de cerca de 3 graus Celsius em 2100. Para atingir o objetivo de temperatura de Paris de limitar o aquecimento a 1,5 graus, as emissões devem atingir o pico em 2020 e depois cair de forma constante. O Brasil é um dos países cuja promessa é atualmente incompatível com o objetivo de Paris. A pressão está aumentando em todos os países (especialmente os futu-ros presidentes da COP) para aumentar as ambições de seus objetivos antes de 2020.

Com altos níveis de volatilidade política interna e política regional em uma conjuntura decididamente difícil, as chances são poucas de que a oferta da COP-25 no Brasil se destaque. O Brasil, no entanto, parece muito interessado em aproveitar essa oportunidade.

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Braço da Rede Global de Academias de Ciências (IAP – The InterAcademy Partnership), o IAP-Science, lançou na terça-feira, 12/12, durante o One Planet Summit a “Declaração sobre Mudanças Climáticas e Educação”. O documento reforça o apoio ao One Planet Summit, evento que marca o segundo aniversário do Acordo de Paris e que foi realizado na capital francesa, com o apoio do Presidente Emmanuel Macron.

O evento visa buscar formas de viabilizar o financiamento adequado para a concretização de objetivos do Acordo de Paris, como redução das emissões de gases causadores do Efeito Estufa e proteção das populações vulneráveis às con-sequências das mudanças climáticas. Em 2015, as nações do mundo concordaram em manter o aumento da temperatura média global em bem menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais. No entanto, a recente reunião da COP-23, rea-lizada em Novembro deste ano na Alemanha, revelou que já estamos em direção a um aumento de 3°C.

“Ao divulgar a declaração durante o One Planet Summit junto ao Presidente Macron, esperamos que ela atinja os olhos e os ouvidos dos governos e decisores em todo o mundo e convença-os de que eles precisam tomar ações individuais e coletivas sobre essa questão existencial”, afirma o co-presidente do IAP-Science (Alemanha), Volker ter Meulen.

De olho no futuro do PlanetaElisa Oswaldo-Cruz | Editora de Notícias da ABC (Academia Brasileira de Ciências) com informações do IAP

“Esta declaração a respeito da Educação e as Alterações Climáticas baseia-se no histórico da IAP na promoção da educação científica”, acrescenta ele. A elaboração do documento foi liderada por uma das academias do IAP, a Académie des Sciences, da França, e contou com o trabalho de um grupo de especialistas nomeado pelas academias membros do IAP. Do Brasil, o membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Paulo Artaxo participou da elaboração do texto.

O IAP e suas academias membros têm um longo histórico na defesa da melhoria da educação científica em muitos países, por meio da promoção da educação científica baseada em cri-térios, por meio dos quais as crianças aprendem o trabalho em equipe e o pensamento racional através do processo científico de desenvolvimento de hipóteses, realização de experimentos e avaliação de seus resultados.

A Declaração do IAP sobre Mudanças Climáticas e Edu-cação reconhece, no entanto, que a educação sobre mudanças climáticas requer uma abordagem mais interdisciplinar do que aquela usada na educação científica comum. Logo, para iniciar o processo de revitalização da educação, a Declaração do IAP estabelece uma série de recomendações sobre a forma como a educação efetiva em mudança climática pode ser promovida em escolas de todo o mundo.

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Entre as recomendações específicas estão uma maior aceitação do questionário base de educação científica (IBSE - Inquiry-Based Science Education) em escolas de todo o mundo e a necessidade de proporcionar aos professores a formação e os recursos ade-quados para tal fim.

Além disso, o documento dos cientistas recomenda que os professores tenham acesso e utilizem como ferramenta educativa os relatórios de avaliação periódicos do Pai-nel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e as “Sínteses para Formadores de Políticas”.

Presidente do grupo de trabalho que produziu a Declara-ção da Rede Global de Academias de Ciências, o pesquisador Pierre Léna, da Académie des Sciences, avalia a mudança climática como uma ameaça real para a humanidade, mas que também pode ser uma oportunidade formidável para que todos modifiquem o modo de vida insustentável atual, conforme apontaram, recentemente, 15 mil cientistas no “chamado à humanidade”.

“A educação tem desempenhado um papel importante para preparar a juventude e transmitir as novas ideias. Nosso objetivo na divulgação desta Declaração é contribuir para esse processo”, diz Pierre Léna.

“Nós ouvimos em todos os lugares declarações pessimistas sobre o futuro do nosso Planeta”, disse Marie-Lise Chanin, da Académie des Sciences, que co-presidiu a redação da Declaração com Pierre Léna. “Envolver a nova geração nesta questão e capacitar os alunos como ‘agentes de mudança’, que podem trazer esperança e otimismo”, acrescenta Marie-Lise.

Para Krishan Lal, co-presidente do IAP-Science, as deci-sões sobre como lidar com os efeitos das mudanças climáticas devem ser baseadas em ciência sólida e julgamento racional. Segundo ele, essas decisões devem ser feitas nos próximos anos. “É a geração mais jovem, atualmente nas escolas e que está aprendendo sobre ciência, que precisará tomar essas decisões”, afirma.

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O Brasil enfrenta hoje os desafios de aumentar sua produção agrícola e, ao mesmo tempo, preservar sua biodiversidade e diminuir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) tanto no setor agropecuário quanto no industrial e no de transportes, a fim de diminuir os impactos das mudanças climáticas globais. Para tanto, será preciso investir em medidas de adaptação, mitigação e inovação, além de políticas públicas adequadas. A avaliação foi feita por pesquisadores participantes de evento sobre os impactos das mudanças climáticas globais realizado pela FAPESP e o Instituto do Legislativo Paulista (ILP) na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), o terceiro do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação.

“A FAPESP investe bastante em pesquisa e inovação nessas áreas (agrícola, biodiversidade e mudanças climáticas), mas sem políticas públicas em escalas federal, estadual e municipal, não será possível ao Brasil fazer grandes avanços no enfrentamento das mudanças climáticas globais”, disse Gilberto Câmara Neto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG).

O pesquisador ressaltou que o Brasil é reconhecido hoje como uma das lideranças científicas mundiais em áreas como agricultura tropical, monitoramento ambiental e bioenergia. A capacidade científica e tecnológica do país na área de bio-energia, contudo, tem sido subutilizada para que o setor de transporte, por exemplo, possa diminuir suas emissões de dióxido de carbono (CO2), avaliou.

Elton Alisson | Jornalista da Agência FAPESP

Ação pelo clima depende de políticas públicas e ciência

Os estímulos à produção de etanol, que em 2009 chegou a representar 18% da energia renovável produzida no país, vêm caindo nos últimos anos em razão da aposta do Brasil na exploração do petróleo da camada do pré-sal. Com a aposta no pré-sal, os estímulos à produção de combustíveis renováveis no Brasil – que são essencialmente ligados aos biocombustíveis e, mais especificamente, ao etanol da cana-de-açúcar – foram abandonados. A consequência disso foi que os biocombustíveis brasileiros estão, cada vez mais, deixando de ser vistos, em nível mundial, como alternativas para redução de emissões de Gases de Efeito Estufa pelo setor de transporte e países como a China, por exemplo, tem decidido optar pelo carro elétrico, avaliou o pesquisador. “A política brasileira de aban-donar os biocombustíveis em favor do pré-sal tem um imenso potencial negativo não só para o Estado de São Paulo, que investiu na produção de etanol, mas também para o país em longo prazo”, disse Câmara.

“No Acordo de Paris, o Brasil não prometeu que irá usar sua única vantagem competitiva no setor energético por conta da miragem do pré-sal. Isso compromete o investimento do país em energia e pode fazer com que se chegue ao pior dos mundos, que é ver seu investimento em bioenergia tornar-se irrelevante no mundo do carro elétrico”, afirmou. As metas de redução das emissões de Gases de Efeito Estufa apresentadas pelo Brasil para o Acordo climático de Paris, firmado em Dezembro de 2015, por exemplo, foram bastante conservadoras em relação ao aumento da participação dos biocombustíveis na matriz energética brasileira, apontou Câmara.Lú

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A fim de reduzir em 37% suas emissões até 2025, tendo como ponto de partida as emissões em 2005, o País se com-prometeu, entre outras ações, a aumentar a participação dos biocombustíveis para 18% em sua matriz energética e para 45% a das energias renováveis – números que o país já havia atingido no passado. O Brasil estabeleceu metas bem definidas para reduzir as emissões do setor agropecuário por meio, por exemplo, do combate ao desmatamento ilegal na Amazônia e da restauração de 12 milhões de hectares de florestas. Mas, para o setor de transporte, as metas são bastante vagas, como a de “promover medidas de eficiência e melhoria de infraestrutura no transporte público e áreas urbanas”, apontou Câmara.

“O Brasil quis fazer mais do mesmo no Acordo do Paris: combater o desmatamento e estimular o aumento da produti-vidade na agricultura. Mas naquilo que realmente ‘pega’ para a grande maioria dos brasileiros, que são as áreas urbanas, não prometeu nada”, avaliou o pesquisador. De acordo com Câmara, em 2030 aproximadamente 80% das emissões de GEE no Brasil terão origem nos setores de energia, indústria e resíduos, e as emissões pelo desmatamento da Amazônia e pelo setor agropecuário – que eram os grandes vilões nos anos 2000 – passarão a ser marginais.

Aumento da produtividade

Um dos fatores que têm contribuído para o setor agrope-cuário deixar de ser o vilão das emissões brasileiras de GEE foi o aumento da produtividade por meio da intensificação da produção, o que possibilitou reduzir o desmatamento, salientou Eduardo Assad, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Na agricultura, o país produz hoje em um hectare de soja a mesma quantidade que produzia há alguns anos em uma área 10 vezes maior. Já na pecuária, a ocupação de bois por hectare saltou de 0,4 animal para mais de um nos últimos anos, exemplificou. “Isso representa um avanço extraordinário em um país que tem 170 milhões de hectares de pasto e é o que chamamos de ‘poupa terra’, ou seja, um investimento em aumento da produtividade que evita o desmatamento”, disse Assad.

As emissões de metano pela fermentação entérica de bois – que representa a principal fonte de emissão do setor agropecuário – também têm diminuído com a recuperação de pastos degradados, apontou o pesquisador. Em um pasto degradado – que representa 40 milhões do total de 170 milhões de hectares de pastos no Brasil – o boi emite 32 quilos de CO2 por quilo de peso ganho. Em pastos recuperados essa emissão cai para 3,2 quilos de CO2 por quilo obtido, com-parou Assad.

Num mercado que exige rastreabilidade, um boi criado em pasto degradado, que emite 32 quilos de CO2 emitido para cada quilo de peso ganho e ainda demora cinco anos para ser abatido, não é vendido em nenhum lugar do mundo. Já o boi, com 3,2 quilos de CO2 por quilo obtido, abatido com 20 meses, desperta interesse de qualquer comprador, afirmou. “Isso já é uma realidade no Brasil hoje. A gente consegue reduzir as emissões por meio da diminuição do tempo do abate e melhoria do pasto”, disse.

Ao mesmo tempo em que tenta cumprir uma agenda sustentável, o setor agrícola brasileiro já tem sentido o impacto das mudanças climáticas e pode ser ainda mais afetado no futuro, ponderou o pesquisador. O aumento na frequência de dias com temperatura maior do que 34°C no Brasil, observado nos últimos anos, tem afetado culturas como a de café, laranja e feijão no Estado de São Paulo.

Desde 1990, quando começou a ser observado um aumento das ondas de calor em São Paulo, foram perdidos no Estado 250 mil hectares destinados à produção de café. “O café tem subido o morro e buscado áreas mais frias”, disse. As ondas de calor também tem causado a morte de frangos, o abortamento de porcas e a redução da produção de leite e ameaçado cultu-ras, como a soja e o milho produzido depois da safra da soja. “Se continuar como está ocorrendo hoje, com temperaturas elevadas e aumento da evapotranspiração das plantas, não teremos mais dupla safra no Brasil”, avaliou.

Já nas regiões urbanas do país, o aumento da frequência de tempestades tem causado enchentes em estados como Minas Gerais e Bahia e o aumento do número de mortes, disse José Marengo, coordenador-geral do departamento de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Segundo ele, a maior concentração de desastres naturais no Brasil está justamente em áreas com densidade populacional maior, como as regiões Sudeste e Nordeste. “Os desastres naturais que têm acontecido nessas regiões são consequência tanto do aumento da frequência de chuvas intensas, que tem sido observado nas últimas décadas, como também do aumento da exposição e da vulnerabilidade da população”, avaliou.

Ante o aumento da frequência desses eventos climáticos extremos é preciso implementar medidas de adaptação, apontou o pesquisador. “A ciência pode ajudar com o estudo de medidas de adaptação. Mas são os governos que têm que defini-las e implementá-las”, apontou.

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A Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, anunciou, no dia 12 deste mês (Dezembro), a criação do Insti-tuto Global do Ministério Público para o Meio Ambiente.

A iniciativa, que deverá ser estruturada até o fim do primeiro semestre de 2018, tem o objetivo de congregar membros dos Ministérios Públicos do Brasil e do mundo em torno de temas ligados à proteção dos recursos naturais, sobretudo, a água.

O lançamento ocorreu durante o IV Seminário Inter-nacional Água, Vida e Direitos Humanos, realizado em Brasília pelo CNMP, em parceria com a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) e com o Ministério Público Federal (MPF).

Na ocasião, Dodge destacou a importância de se reco-nhecer a água como um bem essencial à vida, que deve ser valorizado em todos os países.

“O acesso à água é fonte de dignidade humana. E nessa perspectiva é muito importante que membros do Ministério Público sejam especializados neste assunto, para defendê-lo adequadamente”, afirmou. A Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público propôs ainda a instalação de um debate permanente na agenda política internacional para que a água se torne um bem acessível.

Tara Ayuk | Jornalista (com informações do Conselho Nacional do Ministério Público)

Raquel Dodge quer Instituto do MP para o Meio Ambiente

Conforme explicou a Procuradora-Geral, o modelo do Instituto a ser criado terá como inspiração o Instituto Judicial Global do Ambiente, criado por juízes brasileiros para atuar como fórum mundial sobre o assunto. Ela defendeu que os juízes em todo o mundo devem ser provocados para decidir questões relativas ao meio ambiente e à água e, por isso, é neces-sário que membros do MP façam os devidos questionamentos para que temas importantes sejam decididos em juízo.

Para o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Herman Benjamin, que também participou do seminário, a iniciativa é um marco, pois demonstra maturidade e capaci-dade de articulação do MP brasileiro. “A Procuradora-Geral da República, como é próprio de uma especialista em Direitos Humanos, põe a água no contexto dos direitos fundamentais. Não imagino uma jurista e uma especialista em melhores condições de liderar esse processo”, elogiou.

A procuradora-geral da República e presidente do CNMP, Raquel Dodge, presidiu a mesa do primeiro painel, ao lado do presidente executivo da Associação Internacional para Direito da Água (Aida/Itália), Stefano Burchi; do diretor executivo do Grupo Palestino de Hidrologia da Palestina, Ayman Rabi; do procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Mato Grosso Luiz Alberto Esteves Scaloppe; e do ministro do STJ Herman Benjamin.

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À água como Direito Humano

Dodge defendeu que as leis devem estabelecer a água como Direito Humano. “O Direito regulamenta muitos aspectos da relação entre a pessoa humana e a água, pois garante o curso natural, protege-a da poluição, regula o preço da água, disciplina condições de consumo e de portabilidade, mas ainda não afirma a água como direito humano, embora sem ela não haja vida. Sabemos que a água é um bem essencial à vida, mas o direito ainda não a trata como tal”, resumiu.

Ainda no discurso de abertura do evento, Dodge destacou que o tema vem se tornando mais urgente, pois a água doce se torna cada vez mais escassa, inacessível, cara e controlada. “Em quase todos os lugares, o controle de acesso à água potável define todas as relações de poder e de dominação de um dado território. Em outros, a dificuldade de acesso à água potável é a grande responsável por ondas migratórias. Esses fatores expõem a vida humana a risco. Por isso, precisamos refletir que as Leis estabeleçam o Direito Humano à água”.

Dodge complementou que o debate à água é prioritário e que, nesse sentido, eventos como o seminário, que reúniu especialistas e estudiosos da área, são muito importantes para que haja a preparação dos membros do Ministério Público com vistas ao 8º Fórum Mundial da Água. Esse Fórum será realizado em Março de 2018, em Brasília, e reunirá cerca de 20 mil pessoas.

A Procuradora-Geral salientou que o tema da água deve ser tratado por todo o MP brasileiro. Nessa linha, chamou a atenção para o projeto “Amazônia Protege”, desenvolvido pela 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), que trata do meio ambiente. Esse projeto visa a ajuizar cerca de 1.200 ações civis públicas para punir quem desmata áreas superiores a 60 hectares da Floresta Amazônica.

Na primeira semana desse projeto, foram ajuizadas 757 ações. “Isso significa proteção concreta para a Floresta e punição dos desmatadores. Significa, também, dar um salto para o futuro: proteger efetivamente a Floresta. A proteção da Floresta Amazônica e de todos os biomas está diretamente relacionada à proteção da água”, disse Dodge.

Seminário Internacional Água, Vida e Direitos Humanos

A Presidente da rede “Women for Water Partnership”, Mariet Verhoef-Cohen, da Holanda, participou do painel “Água, meio rural e populações tradicionais: grandes empreen-dimentos e violações de direitos humanos”. O caso “Mariana” foi tratado em painel com membros do MP e de representante do Movimento dos Atingidos por Barragens.

O italiano Stefano Burchi, Presidente Executivo da Asso-ciação Internacional de Direito da Águas (AIDA) participou do painel “Água no diálogo entre Direito e Ciência: Mudanças Climáticas, Biodiversidade e proteção dos vulneráveis”. De 1983 a 2008, Burchi atuou no Serviço de Direito ao Desen-volvimento da FAO), exercendo cargos de especialista jurídico e consultor jurídico interno em leis nacionais e internacionais de água para países da Ásia, África e América Latina.

Outro destaque foi a participação do palestino Ayman Rabi. Ele é Diretor Executivo do Grupo Palestino de Hidrologia e conselheiro mundial da International Union for the Conser-vation of Nature (IUCN) e autor de mais de 30 publicações na área, além de membro do Conselho Consultivo do Fórum Internacional Rosenberg sobre Política da Água e representante nacional da Palestina na Associação Internacional de Ciências Hidrológicas (IAHS).

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Procuradora Geral da República, Raquel Dodge

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O solo é fundamental para o desenvolvimento sustentável. Sua saúde e equilíbrio são vitais para garantir as condições pro-dutivas adequadas dos diversos sistemas agrícolas e florestais. Com o objetivo de sensibilizar as pessoas sobre a importância dos solos para as nossas vidas, a Assembleia Geral da ONU, em 2013, designou o dia 5 de Dezembro de cada ano o Dia Mundial do Solo.

No âmbito do “Projeto Regional Mais Algodão”, imple-mentado pela FAO, o Brasil, representado pela Agência Bra-sileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE), e os governos de 7 países da América Latina e do Caribe parceiros, estamos executando uma série de ações em campo, entre elas, a conservação do solo, com um olhar para a sustentabilidade, que pode gerar mudanças profundas e permanentes nos sistemas produtivos. Os parceiros nesta iniciativa de Cooperação Sul-Sul Trilateral são Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Haiti, Paraguai e Peru.

A sustentabilidade dos solos é essencial para a vida

Adriana Gregolin | Coordenadora Regional do Projeto Mais Algodão - Cooperação Internacional Brasil-FAO

A cultura do algodão em quase todo o mundo costuma necessitar de solos de média a alta fertilidade; tem uma alta resistência a solos pobres e que enfrentam períodos de seca. É uma das culturas agrícolas com grande demanda de insumos químicos, concentrando cerca de 24 por cento do mercado mundial de pesticidas.

Por esta razão, é de extrema importância adotar práticas para a mitigação de danos e a recuperação da capacidade efetiva dos solos e, assim, reverter a atual degradação e contribuir para o desenvolvimento da agricultura com baixo impacto ambiental, social e econômico.

Uma boa gestão dos solos gera resultados positivos na renda dos pequenos, médios e grandes produtores, o que se reflete na redução de custos e /ou no aumento da produtivi-dade das culturas.

Com a participação de especialistas de vários países, foram acordadas cinco áreas de ação no âmbito do “Projeto Mais Algodão”, no que diz respeito aos solos: sistemas integrados de produção de algodão; gestão integrada de pragas e doenças (MIPE); sementes e variedades de qualidade, adaptadas à realidade do País; máquinas e equipamentos adequados para agricultura familiar; e gestão sustentável e responsável dos solos e da água como principal recurso da atividade agrícola.

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A capacitação é um componente-chave para os países parceiros. É realizada durante dias de campo, workshops, cursos, pilotos em parcelas de demonstração e validação de sementes e boas práticas de gestão, e já beneficiou mais de mil pessoas no Paraguai e no Peru com o apoio deste Pro-jeto. O objetivo é divulgar boas práticas tecnológicas no uso dos solos, especialmente para o cultivo de algodão, culturas associadas e de rotação.

Agricultores familiares e técnicos de instituições nacionais ampliam seus conhecimentos em preparação e fertilização do solo, plantio mecanizado, manejo integrado de pragas e pesticidas, e controle do cresci-mento das plantas, além de um melhor gerenciamento de custos da propriedade.

Nas parcelas de demonstração implementadas no Paraguai, Peru, Colômbia e Bolívia foram criados espaços para a formação de conhe-cimento técnico e de gestão para a mitigação de riscos, sem deixar de abordar a perspectiva de gênero e as mudanças climáticas, entre outros aspectos que afetam de maneira particular a cada país. Essas atividades são voltadas para diferentes públicos como pesquisadores, técnicos de extensão, agricultores e estudantes de escolas técnicas agrícolas.

As atividades de campo nestes países contam com o apoio técnico das instituições brasileiras cooperantes: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural da Paraíba (Emater-PB). Os seus esforços somam-se aos das instituições nacionais públicas e privadas dos países parceiros na busca de soluções para o setor algodoeiro.

Os resultados das últimas safras agrícolas no Paraguai indicam um aumento de 50% na produtividade do algodão plantado nas parcelas de demonstração, em comparação com a média nacional. No Peru, foram alcançados entre 80% e 200%, como resultado da aplicação de boas práticas e inovações promovidas pelas instituições parceiras desta Cooperação Internacional.

Práticas inadequadas como excessos no uso de agroquímicos ou uma agricultura intensiva, podem afetar as propriedades do solo, gerando um aumento na compactação e erosão; bem

como perda de solo e microrganis-mos benéficos, material orgânico e capacidade de retenção de água ou de alterações nos níveis naturais de fertilidade e de pH.

Estes e outros distúrbios geram condições desfavoráveis para o bom crescimento e o desenvolvi-mento das culturas, o que acaba enfraquecendo as famílias de agricultores ao colocar em risco sua capacidade produtiva e sua segurança alimentar.

O desafio é conseguir uma agricultura mais produtiva e menos

intensiva em impactos físicos, químicos e biológicos para o solo. Portanto, a conservação adequada do solo contribui para o sustento das culturas, fornecendo a matriz básica para o acesso à água, o oxigênio e os nutrientes necessários para o seu crescimento. O algodão sustentável é uma cultura que gera uma renda importante para as famílias de agricultores e pode ser um grande aliado na luta contra a desertificação e a degradação da terra, contribuindo para conter a perda de biodiversidade dos solos, no âmbito da Agenda de 2030 de Desenvolvimento Sustentável.

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O poder do solo para resgatar o verde do planeta

Jacques Leslie | Escritor de opinião colaborador de Los Angeles Times

A última grande esperança de evitar mudanças climáticas catastróficas pode encontrar-se em uma substância tão comum que normalmente ignoramos ou caminhamos por toda parte: o solo sob nossos pés.

A Terra possui cinco grandes reservatórios de carbono. Desses reservatórios, o da atmosfera já está sobrecarregado; os oceanos estão se tornando ácidos à medida que ficam saturados; as florestas estão diminuindo e as reservas sub-terrâneas de combustível fóssil estão sendo esvaziadas. Isso faz do solo o repositório mais provável para quantidades imensas de carbono.

Agora os cientistas estão documentando como o sequestro de carbono no solo pode produzir um dividendo múltiplo: reduz a mudança climática extraindo carbono da atmosfera, restaura a saúde do solo degradado e aumenta os rendimen-tos agrícolas. Muitos cientistas e agricultores acreditam que a emergente compreensão do papel do solo na estabilidade climática e a produtividade agrícola induzem a uma mudança de paradigma na agricultura, desencadeando o abandono de práticas convencionais de capina e arado, remoção de resíduos de culturas, monocultivos, pastagem excessiva e uso genera-lizado de fertilizantes químicos e pesticidas. Mesmo o gado, geralmente considerado culpado da mudança climática, porque produz pelo menos 25 galões de metano por dia, está sendo estudado como uma parte potencial da solução da mudança climática devido ao seu papel na fertilização natural do solo e ciclagem de nutrientes.

A crise das alterações climáticas está num nível tão avançado que, mesmo reduzindo drasticamente as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), não impedirá um futuro convulsivo por si só – a quantidade de GEE que está na atmosfera agora já garante problemas extremos. A saída mais plausível é combinar cortes de emissões com tecnologias de “emissão negativa” ou “retirada”, que puxam os GEE para fora da atmosfera e para os outros reservatórios. A maioria dessas tecnologias propostas são formas de geoengenharia, apostas duvidosas de manipulações climáticas luxuosas com alta probabilidade de consequências desastrosas não intencionais.

Por outro lado, o sequestro de carbono no solo e na vege-tação é uma maneira eficaz de retirar carbono da atmosfera que, de certa forma, é o oposto da geoengenharia. Em vez de superar a natureza, ele a reforça, promovendo a propagação da vida vegetal para retornar o carbono ao solo onde estava em primeiro lugar – até que as práticas agrícolas destrutivas levaram a sua liberação para a atmosfera, como dióxido de carbono. Esse processo começou com o advento da agricul-tura há cerca de 10 mil anos e se acelerou ao longo do último século, já que a agricultura industrial e a pecuária cresceram rapidamente.

Entre os defensores da chamada agricultura regenerativa, o cientista e ativista do clima James Hansen, autor principal de um artigo publicado em Julho, pede a adoção de “etapas para melhorar a fertilidade do solo e aumentar o seu conteúdo de carbono” para evitar os impactos do “clima deletério”.

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Rattan Lal, Diretor do Carbon Management and Seques-tration Center em Ohio, estima que o solo tem potencial para sequestrar carbono a uma taxa entre 0,9 e 2,6 gigatoneladas (Gt) por ano. Essa é uma pequena parte das 10 Gt por ano de emissões de carbono atuais, mas ainda é significativo; mas, alguns cientistas acreditam que a estimativa é baixa. “Colocar o carbono no solo não é só mitigar as mudanças climáticas, é também melhorar a saúde, produtividade, segurança alimentar, segurança nutricional, qualidade da água, qualidade do ar, tudo”, disse Lal. “É uma opção vencer-vencer-vencer”.

As técnicas que os agricultores regenerativos usam variam com o solo, o clima e os cultivos. Eles começam pelo enten-dimento de que um solo saudável é composto por mais de um bilhão de microrganismos por colher de chá e o compor-tamento desses organismos facilita a vida vegetal resistente. Para fertilizar seus campos, os agricultores regenerativos usam adubos ricos em nutrientes, evitando tanto quanto possível fertilizantes químicos e pesticidas, que podem matar enor-mes quantidades de matéria orgânica e reduzir a resiliência das plantas. Eles não gostam de arar o solo, já que o arado aumenta as emissões de carbono para a atmosfera. Alguns agricultores combinam o gado, as culturas de cobertura e as colheitas em linha de forma sequencial no mesmo campo, ou cultivam plantas perenes, arbustos e até árvores, junto com culturas em linha. Deixar o solo exposto durante as entresafras é tabu, uma vez que o solo estéril facilmente sofre com erosão, esgotando mais carbono do solo.

Até o advento dos sintéticos no final de 1800, o fertili-zante consistia principalmente em estrume ou compostagem rica em carbono. Mas os fertilizantes sintéticos não contêm carbono e, à medida que seu uso se espalhou junto com as práticas de lavoura para incorporá-los, o teor de carbono no solo diminuiu. O processo se acelerou após a Segunda Guerra Mundial, quando as fábricas de munições dos EUA baseadas em nitrogênio foram convertidas em fábricas de fertilizantes nitrogenados. A maioria das faculdades agrícolas ainda ensina a fertilidade principalmente como um exercício na aplicação de fertilizantes químicos inorgânicos, ao mesmo tempo em que negligencia o papel biológico do solo (e seu conteúdo de carbono). Apesar da conexão do solo com as mudanças climá-ticas, o sequestro de carbono no solo nunca foi mencionado no Protocolo de Kyoto de 1997, que estabeleceu alvos globais de redução de emissões de GEE para as nações do mundo.

A Califórnia iniciou uma iniciativa em 2015 para incor-porar a saúde do solo nas operações das fazendas do Estado. Alguns dos estudos pioneiros que mostram os benefícios da agricultura regenerativa foram realizados no Marin Carbon Project, em um autoproclamado rancho de cultivo de carbono nos confins pastorais do Condado de Marin, 30 milhas ao Noroeste de São Francisco. Um estudo de quatro anos mostrou que uma aplicação única de compostagem causou um aumento na produtividade da planta que continuou desde então e que o teor de carbono do solo cresceu ano após ano, a uma taxa equivalente à remoção da atmosfera de 1,5 toneladas métricas de dióxido de carbono por acre anualmente.

Whendee Silver, ecologista ecossistêmico da Universidade da Califórnia em Berkeley, cientista principal do projeto, calculou que, se 5% das pastagens da Califórnia fossem revestidas com 1 cm de composto, o sequestro resultante de carbono seria o equivalente às emissões anuais de GEE de 9 milhões de carros. O desvio de resíduos verdes dos aterros superlotados também impediu a geração de mais metano.

Alguns cientistas permanecem céticos em relação à agri-cultura regenerativa, argumentando que seu impacto será pequeno ou funcionará apenas com certos solos. Também enfrenta obstáculos significativos, como a escassez de finan-ciamento da pesquisa e os requisitos do seguro de colheitas federais, que frequentemente desqualifica os agricultores que cultivam plantas de cobertura do solo. Mas os receios de que a Administração Trump esmagaria o apoio do Governo até o momento tem se mostrado infundado.

Considere a experiência de Willie Durham, um especialista em saúde do solo no Serviço de Conservação de Recursos Naturais do Departamento de Agricultura Federal em Tem-ple, Texas. O que levou Durham à agricultura regenerativa foi sua descoberta enquanto agrônomo do Estado do Texas da esteira de pesticidas: “As pessoas que eu conheci por um longo tempo me perguntaram: “Se nada foi mudado em nosso sistema agrícola, por que estamos usando duas a três vezes mais fertilizantes para realizar o mesmo?” Chegou a um ponto onde gastamos tanto em insumos que não tivemos nenhum lucro.

Agora, Durham ensina agricultura regenerativa aos agricultores do Texas e Oklahoma. Os agricultores que ele inspira são predominantemente jovens, ainda não habituados à agricultura convencional.

Ele estima que cerca de 10 por cento dos alunos usam a informação e essa porcentagem está aumentando. Numa região onde as chuvas são geralmente preciosas, alguns solos convencionais se tornaram tão secos que absorvem um cen-tímetro e meio de água por hora, disse Durham, enquanto os campos regenerativos podem absorver mais de 21 centí-metros por hora.

Os fazendeiros de Willie Durham estão aprendendo uma lição que ressoa através das interações humanas com o mundo natural: as pessoas colhem mais benefícios da natureza quando desistem de tentar vencê-la e, em vez disso, a vêem claramente, como uma aliada exigente, mas, indispensável. Por causa da conexão do carbono com o clima, fomos condicionados a pensar nele como inimigo, quando de fato é tão vital para a vida como a água. A maneira de corrigir é colocar de volta no solo, aonde é o seu lugar.

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A cidade do Rio de Janeiro vai receber mais de 8 mil profissionais de 130 países, entre os dias 12 e 17 de agosto de 2018, quando acontecerá o XXI Congresso Mundial de Ciência do Solo (21st WCSS), promovido pela International Union of Soil Science e organizado pela Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS), tendo como tema “Ciência do solo: para além da produção de alimentos e de energia”. De acordo com o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Flávio Camargo, presidente do 21WCSS, “o país e o mundo têm uma trajetória consolidada na produção de biomassa, que é a função primordial do solo. Entretanto, se as outras funções do solo não forem debatidas, consideradas e priorizadas, poderemos comprometer a sustentabilidade desta produção e da vida no planeta”.

O evento, que terá como sede o Windsor Convention & Expo Center (Barra da Tijuca no Rio de Janeiro), trará para o Brasil cientistas como o norte-americano Rattan Lal, Presidente da União Internacional de Ciência do Solo, eleito por três anos seguidos (2014,15 e 16) pela Thomson Reuters um dos mais influentes pesquisadores do mundo. Outro nome confirmado é o também norte-americano de origem etíope Gebisa Ejeta, que, no começo de sua carreira, nos anos 80, trabalhando no Sudão, desenvolveu a primeira variedade comercial de sorgo híbrido resistente à seca da África. Seu esforço o levou a receber, em 2009, o World Food Prize. Em 2011 o então Presidente Barack Obama o nomeou como membro do Conselho Internacional de Alimento e Desen-volvimento Agrícola.

O papel global do solo será debatido no Brasil em 2018

Carlos Dias | Jornalista da Embrapa Solos

Também agraciado com o World Food Prize, em 2002, Pedro Sanchez, professor de solos tropicais no Departamento de Ciências do Solo e da Água da Universidade da Flórida (EUA) é um dos maiores nomes em solos tropicais do planeta, e também estará no Rio de Janeiro.

“Nas próximas décadas, a pesquisa em ciência do solo deverá propor práticas agrícolas resilientes que possam acomodar as alterações ambientas e climáticas e a segurança alimentar. O estudo do solo é essencial e estratégico para questões como a qualidade da água, a diminuição da pobreza e a produção de energia renovável”, lembra Camargo, ressaltando a importância do Brasil receber o XXI CMCS, que acontecerá pela primeira vez na América Latina. Por sinal, a candidatura brasileira foi aprovada no XIX Congresso, que aconteceu em Brisbane (Austrália), em 2010.

A Embrapa Solos (Rio de Janeiro-RJ) será uma das co-organizadoras, contribuindo na captação de recursos, na feira de solos, nas excursões técnicas de campo, nas ações de consumo responsável, inventário e neutralização de Gases de Efeito Estufa e reciclagem de resíduos secos e úmidos no evento. “Na feira teremos a exibição de perfis de solos de todas as classes da terra brasileira, contaremos também com uma exposição histórica da Ciência do Solo Brasileira, com destaque para a parceria SBCS-Embrapa, iniciada há mais de 70 anos no Rio de Janeiro. Também faremos o lançamento mundial do Programa Nacional de Solos do Brasil, Pronasolos”, conta o chefe de pesquisa e desenvolvimento do centro de pesquisa carioca, José Carlos Polidoro.

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Para superar os desafios das mudanças climáticas à produção agrícola, a Embrapa e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) acabam de criar o Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada a Mudanças Climáticas (The Genomics for Climate Change Research Center – GCCRC).

O Centro tem como missão desenvolver soluções bio-tecnológicas com o uso de técnicas de genômica, genética e biologia molecular para a adaptação de culturas agrícolas a altas temperaturas e deficiência hídrica. O GCCRC será construído com a expansão da Unidade Mista de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (UMiP GenClima), que conta com atuação de pesquisadores, analistas, professores e técnicos da Embrapa e da Unicamp.

“Se há uma área que está se desenvolvendo rapidamente é essa. E é bom que a gente se torne altamente competente nessa área”, afirma o Presidente da FAPESP, José Goldem-berg. “Com a colaboração da FAPESP junto a Embrapa e a Unicamp nós podemos viabilizar esse projeto em termos realísticos”, explica. “Esse centro de engenharia tem a missão não só de fazer pesquisa básica de alta qualidade, mas de entregar tecnologia com potencial de ser transferida para o setor produtivo”, destaca o professor da Unicamp Paulo Arruda, coordenador do GCCRC.

Esta é uma oportunidade única de desenvolver uma plataforma nacional dedicada à busca do conhecimento mais avançado na fronteira da biologia para que se possa atingir o grande esforço que o Brasil precisa fazer cada vez mais de adaptar sua agricultura à realidade da mudança do clima, de acordo com Maurício Lopes, Presidente da Embrapa.

“Para nós da Embrapa é uma satisfação porque este projeto vai focar na busca de ativos de conhecimento. Nós podemos usar toda rede da Embrapa para validar esses protótipos de ativos biotecnológicos que esse centro vai gerar e também buscar apoio e suporte do setor produtivo”, esclareceu o Presidente Lopes.

Este será o maior centro de engenharia que a FAPESP vai ter. O contrato assinado prevê o valor de R$ 102,8 milhões ao longo de dez anos, sendo R$ 25,2 milhões da FAPESP, R$ 32,9 milhões da Embrapa e R$ 44,7 milhões da Unicamp. “Temos grandes expectativas sobre os resultados que este Centro vai trazer para nós”, explicou o Diretor Científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, durante cerimônia de lançamento ocorrida no dia 13 deste mês, em São Paulo.

A visão fundamental é estabelecer um centro de pesquisa de renome internacional e desenvolver meios eficazes de transferência de tecnologia, educação e divulgação de conhe-cimento.

Criado centro de pesquisa em mudanças climáticas

Nadir Rodrigues | Jornalista da Embrapa Informática Agropecuária

A parceria vai contribuir para o desenvolvimento de fer-ramentas e ativos biotecnológicos voltados ao manejo para enfrentamento, tolerância e resistência à seca e ao calor nas principais culturas agrícolas do Brasil.

“Esse é o foco da UMip GenClima, mas, claro, associado ao desenvolvimento dessa plataforma, ao longo de 10 anos, nós também teremos tecnologias acessórias que poderão contribuir para alavancar novas empresas e startups, tanto no ramo biológico, biotecnológico, como também no agrí-cola”, enfatiza Cleber Oliveira Soares, diretor de Inovação da Embrapa.

A iniciativa está baseada no modelo de pesquisa colabo-rativa, com suporte financeiro através do Programa de Centros de Pesquisa de Engenharia (CPE) da FAPESP. Com isso, deve agregar um componente de colaboração em pesquisa com a indústria, focada no uso de tecnologias de ponta para ajudar a Embrapa e parceiros privados a trazerem novos pro-dutos biotecnológicos ao mercado. Ainda deverão ser firmadas parcerias com o setor privado para, principalmente, financiar o pagamento de profissionais especializados.

“A integração de competências e a multidisciplinaridade exigida neste projeto pode contribuir muito e com maior agilidade para o avanço científico da agricultura brasileira. Além disso, os resultados devem produzir grande impacto na pesquisa agropecuária”, afirma Silvia Massruhá, Chefe-Geral da Embrapa Informática Agropecuária. “É uma parceria feliz e exitosa. Esse vai ser o primeiro centro que a FAPESP cria, cujo objetivo será o de gerar soluções biotecnológicas para a agricultura em função dos impactos do aquecimento global”, comemora o pesquisador Eduardo Assad.

A UMiP GenClima está instalada temporariamente em laboratórios da Unicamp, mas o projeto de expansão prevê que, em curto prazo, o GCCRC ocupe um edifício de apro-ximadamente 1.500 m2 do Laboratório de Inovação em Bio-combustíveis localizado no Parque Científico e Tecnológico da Unicamp.

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Uma baixa de 75% nas tarifas da eletricidade, por causa de que foi quadruplicada a capacidade de geração limpa, é um dos legados que deixará ao Chile o Governo de Michelle Bachelet, que finaliza o dia 11 de Março próximo.

Em Dezembro de 2013 a licitação elétrica para famílias, comércios e pequenas empresas foi adjudicada a um preço de 128 dólares o MW/h, valor que caiu para 32,5 dólares na última licitação deste ano. “O que se fez foi uma mudança regulatória importante com 7 leis que se aprovaram em maté-ria de energia as quais que deram um papel maior e ativo ao Estado como planejador. Se geraram então as condições para que houvesse mais concorrência no mercado”, explicou a IPS o Ministro de Energia, Andrés Rebolledo.

Há 4 anos as grandes empresas viam com preocupação o aumento das tarifas elétricas no Chile e várias empresas mineiras indicavam que devido ao alto preço da energia pro-curavam outros horizontes e países. Atualmente, os grandes industriais obtêm preços mais baixos porque renegociam seus contratos com as empresas geradoras.

O novo marco regulatório mudou o contexto e permitiu que entrassem muitos atores, chilenos e estrangeiros, graças a bases de licitação que deram maior espaço às ofertas para gerar eletricidade mediante as chamadas Energias Renováveis Não Convencionais (ERNC), principalmente fotovoltaica e eólica, as mais eficientes no país.

Energias limpas diminuem a conta da luz no Chile

Orlando Milesi | Jornalista da IPS

“Isto aconteceu num momento quando no mundo há uma mudança tecnológica muito importante com relação a estas mesmas tecnologias. “Nós fizemos esta mudança num momento propício aproveitamos a importante diminuição dos custos destas tecnologias, especialmente no caso das energias solar e eólica”, destacou o Ministro.

Na licitação de geração elétrica de 2016 se apresentaram 80 empresas e na seguinte licitação de distribuição se apre-sentaram 15, “num fenômeno muito diferente daquele que marcou o setor energético chileno, que era muito concentrado, com poucos atores”, agregou.

Manuel Baquedano, presidente do Instituto de Ecologia Política, acredita que aconteceu “um ponto de inflexão na matriz energética chilena que mudou para a energia renová-vel”. Esta mudança aconteceu, disse Baquedano, “porque a cidadania não queria mais megaprojetos como o da central hidroelétrica de Hidroaysén, no Sul, e Punta de Choros, no Norte (ambos rejeitados pela população por causas ambien-tais), o que fez com que o crescimento dos oligopólios fosse impossível de continuar”.

“Em nível mundial a competitividade da energia solar e eólica é maior, inclusive, do que as fósseis. Hoje está se pro-duzindo energia solar mais barata que com carvão. Isso fez com que esta nova política de regulamentação tivesse criado um novo cenário”, adicionou.

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Além disso, analisou o especialista na geopolítica da energia, “essa mudança foi aprovada pela comunidade e os ambientalistas não colocaram objeções aos projetos eólicos e solares. O governo desfrutou nestes 4 anos de uma situação bastante livre para desenvolver projetos (dessas energias) mesmo que às vezes alguns tenham objeções do ponto de vista ambiental”.

“Não é um processo que qualquer governo que venha o possa deter. É um processo global no qual Chile já se inseriu e está sendo premiado por essa opção. Já não há possibilidade de retorno às energias fósseis, como está acontecendo nos Estados Unidos, onde há um governo autoritário como o de Donald Trump”, acrescentou. O dirigente ecologista advertiu que “há uma margem de gordura para que as tarifas baixem” e por isso ele propôs “continuar por este caminho de divulgar as ERNC entre os cidadãos”.

O setor da energia foi líder nos investimentos nos últi-mos dois anos no Chile, superando a mineração, a área mais determinante da economia nacional.

“Durante o governo da Presidenta Bachelet foram inves-tidos 17 bilhões de dólares (no setor energia). No Chile hoje existem 250 centrais de geração de energia, a metade construídas durante este governo. E a metade dessa metade são solares”, comentou o Ministro Rebolledo.

Em Maio de 2014, apenas dois meses depois de começar seu segundo mandato, depois de governar o país entre 2006 e 2010, a Presidenta socialista lançou a “Agenda de Energia, um desafio para o país, progresso para todos”.

“Aas projeções informam que de hoje ao 2021 há uma carteira de projetos de 11 bilhões de dólares comprometidos em distintas licitações em matéria de energia, em geração e transmissão elétrica. O interessante é que 80% são projetos de ERNC”, sublinhou. Atualmente há 40 projetos elétricos em construção, quase todos de ERNC.

Outro resultado é que agora o Chile é excedentário em produção de eletricidade e o grande incremento da geração fotovoltaica sinaliza que se multiplicará aproveitando as enormes possibilidades na região Norte de país, o que inclui o Deserto de Atacama, donde o Sol é inclemente.

A matriz elétrica chilena, antes dependente do petróleo, do carvão e de grandes hidroelétricas, mudou radicalmente, o que gerou uma queda de quase 20% nas importações de combustíveis fósseis entre 2016 e 2017. Além do mais, eliminou a dependência do gás argentino, cujo corte radical no forneci-mento, em 2007, mergulhou o país numa crise. “Em Março de 2014, quando começou o Governo Bachelet, a potência de ERNC instalada no Chile, fundamentalmente solar e eólica, era de 5%. Isto mudou de forma importante e em Novembro deste ano já atinge 19%”, informou Rebolledo.

O Ministro indicou que se somar à geração solar e eólica a hidroelétrica de grande escala “percebemos que quase 50% de tudo o que geramos hoje é energia renovável. O resto continua sendo energia térmica, onde se consome gás, diesel e carvão”. Na Agenda de Energia, da mesma forma que na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) assumida no Acordo de Paris, o Chile tinha como meta que, no ano 2025, 20% da energia gerada seria de ERNC, um objetivo que já atingiu em Outubro último. “Nosso objetivo é que no ano 2050, 70% de toda a geração elétrica seja renovável e isto não inclui somente as ERNC mas também a hidrelétrica”, antecipou Rebolledo. Para o Ministro, algo determinante foi que estas metas foram pactuadas por todos os atores do setor.

“Devido a esta mudança tão rápida esse 70% poderia chegar a 90% no ano 2050 e dentro desse 90% provavelmente a energia solar será a mais importante”, prevê. Baquedano, por sua vez, sustenta que agora “vem a segunda etapa, que é democratizar o uso da energia permitindo que a solar e as renováveis cheguem à população e às pequenas e médias indús-trias de forma direta, modificando a sua distribuição”.

“A democratização significa que exigiremos que todo projeto de ERNC tenha estudos de impacto ambiental, não somente declarações de impacto ambiental”, antecipou. “Democratizar significa que toda pessoa que têm recursos ou que possa adquiri-los, se converta num gerador de energia para seu consumo e dos vizinhos. Que entrem novos atores, mas agora são os cidadãos. Esses novos atores são as comunidades indígenas, o setor comunitário e os municípios, que não têm objetivos lucrativos”, concluiu.

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A Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) contabilizou no início de Dezembro a marca de 500 parques eólicos instalados no País. No total, já são 12,64 GW de capacidade instalada, distribuídos em 503 usinas com cerca de 6.500 aerogeradores instalados no Brasil.

“Até 2020, o Brasil terá pelo menos 17 GW instalados, considerando apenas os contratos que já foram firmados em leilões já realizados e também no mercado livre. Na próxima semana, teremos dois leilões, um A-4 e um A-6, e esperamos aumentar mais este valor projetado, já que as eólicas têm se mostrado a fonte mais competitiva em leilões recentes. O ano de 2016 foi muito difícil para a fonte eólica porque não houve leilão e nenhuma nova contratação. Precisamos reverter a situação agora nos dois leilões de dezembro, que serão fundamentais para o futuro da fonte no Brasil e ainda no leilão A-4 também há previsto para realização em abril de 2018“, explica Elbia Gannoum, Presidente Executiva da ABEEólica.

Em Setembro, a fonte eólica atingiu a marca de 12 GW e os números ano a ano estão mostrando um setor que cresce vigorosamente com base, principalmente, nos leilões reali-zados no passado. No mês passado, por exemplo, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE divulgou dados consolidados do seu boletim InfoMercado mensal que mostram que a produção de energia eólica em operação comercial no Sistema Interligado Nacional – SIN, entre Janeiro e Setembro de 2018 foi 28% superior à geração no mesmo período do ano passado. Outro dado da CCEE que chama atenção é o atendimento da carga nacional. No mês de Setembro, a geração de energia eólica foi responsável por 11% de energia da matriz elétrica brasileira, com 7,02 GWmédios. Este valor configurou um novo recorde de representatividade. Em Agosto, as eólicas haviam atingido pela primeira vez os dois dígitos de representação na matriz, com 10%.

Brasil já tem mais de 500 parques eólicos

Selma Bellini | Jornalista da ABEEólica

Outro dado relevante é que o Brasil subiu mais uma posição e assumiu o sétimo lugar entre os países com maior geração de energia eólica no mundo, ultrapassando o Canadá, que caiu para a oitava posição. Os dados são do “Boletim de Energia Eólica Brasil e Mundo – Base 2016” produzido pelo Ministério e Minas e Energia (MME) e divulgados no final de Outubro.

“A marca de 500 parques, o crescimento da geração, mais uma subida de posição no ranking e os 12 GW merecem ser comemorados e são uma prova de um setor que vem mostrando sua maturidade. As eólicas estão, por exemplo, salvando o Nordeste do racionamento em tempos de reservatórios abaixo do nível e com bandeira vermelha. Os dados de recordes de geração do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) são a prova disso. No dia 14/9, por exemplo, as eólicas abasteceram 64% da demanda média do Nordeste. Além disso, as eólicas têm outros benefícios, que podemos resumir da seguinte forma: é renovável; não polui; possui baixíssimo impacto ambiental; contribui para que o Brasil cumpra o Acordo de Paris sobre o clima; não emite CO2 em sua operação; tem um dos melhores custos benefícios na tarifa de energia; permite que os proprietários de terras onde estão os aerogeradores tenham outras atividades na mesma terra; gera renda por meio do pagamento de arrendamentos; promove a fixação do homem no campo com desenvolvimento sustentável; gera empregos que vão desde a fábrica até as regiões mais remotas onde estão os parques e incentivam o turismo ao promover desenvolvimento regional”, finaliza Elbia.

Sobre a ABEEólica

A ABEEólica congrega mais de 100 empresas do setor eólico e tem como principal objetivo trabalhar pelo crescimento, consolidação e sustentabilidade dessa indústria no Brasil.

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“Se não falarmos em nome da Terra, quem o fará?” Carl Sagan em “Cosmos”

“Os humanos parecem estar na rota inevitável para colonizar Marte”, escreve Gbenga Odun-tan, professor e pesquisador da Escola de Direito da Universi-dade de Kent. Vale perguntar – acrescenta ele – “que leis gover-narão os humanos em Marte?”1 Ou seja, como será colonizado, ou melhor, povoado o Planeta Vermelho? Boa pergunta.

Estão de olho em Marte: EUA, China, Emirados Árabes Unidos, Europa e pelo menos uma grande empresa privada de atuação global. A NASA planeja chegar lá até a década de 2030. O milionário e engenheiro norte-americano Elon Musk, inventor do Space X, poderoso foguete reutilizável, e a empresa aeroespacial Lockheed Martin, com sede nos EUA, anunciaram viagens e estações separadas a Marte, entre 2022 e 2028. A China deseja estar lá em 2020 e para isso desenvolveu um lançador extremamente poderoso. O novo foguete desafia a física e permitiria a humanos pousar em Marte, não em anos, nem em meses, mas em semanas. A Europa lançou a primeira missão a Marte – a nave Mars Express e a sonda Beogle-2, em Junho de 2003, pelo foguete russo Soyuz-Fregat, a partir da base de Baikonur, no Caza-quistão. A Agência Espacial Europeia segue interessada em Marte, embora hoje dê prioridade ao projeto Moon Village, para criar um primeiro núcleo humano permanente na Lua. A Lua – tudo indica – será um excelente trampolim para Marte. Essa é a ideia.

Pesquisas científicas sobre o “Eldorado marciano” fazem dele – como já foi dito – “um sonho viável a uma velocidade deslumbrante”. Há sonhos, sim, mas, sobretudo, há em jogo avassaladores interesses econômicos, políticos e estratégicos. Nos anos 60, houve uma corrida à Lua. Agora, há uma cor-rida a Marte. Chegando à Lua, em Julho de 1969, antes da ex-URSS, os EUA se disseram vencedores, alegando terem superado a liderança soviética, estabelecida com o lançamento do Sputnik-1, em outubro de 1957, com a façanha de Iuri Gagarin, primeiro humano a orbitar a Terra, além de outras operações espaciais pioneiras.

Um Direito só para Marte?Mas em 1972, o então Presidente Nixon acabou com o

Projeto Apolo, que promovia a corrida lunar. Os EUA gasta-vam, então, milhões de dólares entre essa corrida e a guerra no Vietnam, onde os americanos foram derrotados, em 1974. A corrida a Marte será diferente, espera-se. Mas ainda falta saber como ela será financiada e a que leis obedecerá.

O Planeta Terra já tem um Direito Espacial Internacional, criado nos anos 60 e 70. Seus princípios estão consagrados no Tratado do Espaço2 de 1967, que está comemorando os 50 anos de sua vigência, com 105 ratificações e 25 assinaturas – números altamente expressivos na história do Direito Inter-nacional. Mas o Direito Espacial, como qualquer outro ramo do Direito, não é apenas uma questão formal. O principal é saber que interesses prioritários ele defende.

O Tratado do Espaço – base do Direito Espacial de hoje – já no Preâmbulo, reconhece “o interesse que apresenta para toda a humanidade o programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”. E seu Artigo I (§ 1º) estabelece a “cláusula do bem comum”, nos seguintes termos: “A explo-ração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, devem ter em mira o bem e o interesse de todos os países, seja qual for o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a huma-nidade.” O texto em inglês parece ainda mais claro e define as atividades espaciais como “province of all mankind”, que significa “lugar de toda a humanidade”3. Assim, o Direito Espacial de hoje está comprometido, acima de tudo, com os interesses prioritários da humanidade.

Ao falar na “Lua e demais corpos celestes”, o Tratado, obviamente, inclui Marte e os outros planetas do Sistema Solar, para não ir mais longe. Logo, Marte, assim como a Lua, também é “lugar de toda a humanidade”. A menos que Assembleia-Geral das Nações Unidas conclua, por maioria de votos, que o Tratado do Espaço de 1967 deva ser revisado ou substituído por novo Tratado, criando para Marte outro regime jurídico. Nele, a humanidade certamente perderia o peso que tem hoje. E talvez fosse até mesmo ignorada. Afinal, ela é sempre citada quando se deseja atender aos interesses de todos os povos e países, que não têm mais a importância que já tiveram. Em sua maioria, eles deixaram de ser sujeitos e atores da globalização – hoje comandada por um grupo de poderosas instituições financeiras e empresas de alta tecnologia.

Poderosas empresas, com sede nos EUA, Luxemburgo e Emirados Árabes Unidos, ambicionam explorar, extrair e comercializar recursos naturais de asteroides e outros corpos celestes, em especial minerais valiosos, como platina, níquel, ferro, cobalto, muito procurados nos mercados da Terra. Isso, sem falar em riquezas como água, nitrogênio, hidrogênio e amônia.

José Monserrat Filho | Jornalista e Mestre em Direito Internacional*

* José Monserrat Filho também é Vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007/11) e da Agência Espacial Brasileira (2011/15), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e ex-editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de “Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?”.

1) Oduntan, Gbenga, O que as missões simuladas da NASA nos falam sobre a necessidade de uma Lei marciana, The Conversation UK, Kent UK (SPX), 12/10/2017. Gbenga Oduntan é autor de Soberania e Jurisdição no Espaço Aéreo e no Espaço Exterior: Critérios Legais para Delimitação Espacial, Routledge Research, 2011.

2) Nome completo: Tratado sobre os Princípios Que Regulam as Atividades dos Estados na Exploração e Utilização do Espaço Exterior, Incluindo a Lua e Demais Corpos Celestes.3) Ver <http://www.unoosa.org/pdf/gares/ARES_21_2222E.pdf> O Tratado do Espaço em português está em<www.sbda.org.br>

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A platina é um dos minerais mais cobiçados pelas empresas donas dos recursos financeiros e tecnológicos para minerar o espaço, em busca de um ganho descomunal. Usada na produção de joias e de dispositivos eletrônicos ou médicos, a platina é raríssima na Terra: um único quilo custa cerca de US$ 30 mil. Estima-se que um asteroide de 500 metros rico em platina possa conter uma quantidade tão grande dela que chegue a superar o conjunto de toda a platina já extraída na história da humanidade.

EUA e Luxemburgo já sancionaram Leis autorizando suas empresas a se tornarem donas das riquezas que extraírem dos corpos celestes. Duas empresas dos EUA, Deep Space Indus-tries, na Califórnia, e Planetary Resources, em Washington, já trabalham ativamente com tal objetivo.

Os Emirados Árabes Unidos correm no mesmo sentido: preparam, em especial, o lançamento de uma sonda não tripulada a Marte. Sua Agência Espacial, criada em 2014, chama a missão de “Al Amal”, que significa “esperança”. O projeto tem sido amplamente divulgado. A sonda poderá entrar em órbita de Marte em 2021.

A equipe dos Emirados trabalha junto com cientistas da Universidade do Colorado, Estados Unidos, e tem acordo com o Centro Nacional de Estudos Espaciais (CNES), a agência francesa. O plano é manter a sonda em órbita de Marte durante dois anos, recolhendo dados sobre todos os aspectos da atmosfera do planeta: a dinâmica diária e anual do clima, as diferentes camadas, os elementos constituintes e os níveis de oxigênio e hidrogênio no espaço. Os cientistas creem que a temperatura de Marte tem aumentado em demasia, causando a evaporação da água e a saída de moléculas através da atmosfera até ao espaço.

Entender o que ocorreu em Marte ajuda a entender o que ocorre na Terra. A equipe dos Emirados tem hoje 75 membros, mas esse número em breve pode subir para 150. Segundo dados oficiais, já foram investidos mais de cinco bilhões de euros no projeto. Diretores do programa espacial dos Emirados estão seguros de que a primeira missão a Marte vai inspirar milhões de jovens da região. A execução de todo o programa dos Emirados, no entanto, não exige que se revise ou mude o Tratado do Espaço de 1967, a começar por sua indefectível “cláusula do bem comum”, que considera as atividades espaciais como “province of mankind”.

Importante é também o princípio de não apropriação dos corpos celestes, lavrado no Artigo II do Tratado do Espaço. Ele reza: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Esse princípio não deixa brechas para eventuais contestações. O Artigo III, por sua vez, adota o princípio de que as atividades espaciais devem fortalecer a paz, a segurança, a cooperação e a compreensão internacionais. Diz o Artigo III: “As atividades dos Estados (...) de exploração e uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, devem efetuar-se em conformidade com o Direito Internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais”.

Pelo Artigo IV, os corpos celestes serão usados exclusiva-mente para fins pacíficos. Para tanto, “estarão proibidos nos corpos celestes o estabelecimento de bases, instalações ou fortificações militares, os ensaios de armas de qualquer tipo e a execução de manobras militares.”

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Mas “não se proíbe a utilização de pessoal militar para fins de pesquisas científicas ou para qualquer outro fim pacífico”. Também não se proíbe “o uso de qualquer equi-pamento ou instalação necessária à exploração pacífica da Lua e demais corpos celestes”. É a desmilitarização total dos corpos celestes.

E pelo Artigo VI, os Estados arcam com a responsabi-lidade internacional por suas atividades espaciais nacionais, realizadas no espaço e nos corpos celestes tanto por órgãos do Governo, como por entidades não governamentais. Para isso, eles devem velar para que suas atividades nacionais cumpram as normas do Tratado do Espaço. As atividades das entidades não governamentais no espaço, na Lua e nos corpos celestes “devem ser objeto de autorização e vigilância contínua” pelo respectivo Estado. Cabe, pois, ao Estado controlar o que o interesse privado faz no espaço e nos corpos celestes.

Para o Direito Espacial de hoje, objetos e estações instalados em corpos celestes devem permanecer sob propriedade nacional, jurisdição e controle do respectivo Estado. É o que reza, em suma, o Artigo VIII do Tratado do Espaço: O Estado, em cujo registro figure o objeto lançado ao espaço, conservará sob sua jurisdição e controle o dito objeto e todo o pessoal do mesmo objeto, enquanto se encontrarem no espaço ou em um corpo celeste. Os direitos de propriedade sobre os objetos lançados no espaço, inclusive os objetos levados a ou construídos em um corpo celeste, bem como seus elementos constitutivos, permanecerão inalteráveis enquanto estes objetos e/ou seus elementos se encontrarem no espaço ou em um corpo celeste e durante o retorno à Terra.

Assim, as empresas privadas não têm base legal para minerar asteroides e outros corpos celestes. As leis em vigor dizem que o estabelecimento de uma estação espacial e da área requerida para seu funcionamento deve ser notificado ao Secretário-Geral das Nações Unidas. A estação e a área estarão sob a jurisdição exclusiva do Estado onde a nave foi registrada ou do Estado que trouxe componentes para a estação.

Seja como for, é difícil imaginar uma estação permanente em Marte sem alguma forma de posse do solo, ainda que provisória. O mesmo ocorre com a instalação destinada a sua manutenção, como a produção de combustível a par-tir de recursos locais. De fato, as analogias práticas mais próximas a uma futura estação de Marte, em termos legais de hoje, seriam as estações na Antártica mantidas por seus respectivos Estados.

Há, porém, muitas Leis a elaborar. Com o crescente interesse em múltiplas estações permanentes em Marte e numerosos objetos em sua órbita, o surgimento de detritos (lixo) poderá afetar seus novos habitantes e danificar insta-lações. O bom senso recomenda que a complexa questão do lixo seja regulada em Marte antes que detritos danifiquem estações e outras construções, provocando conflitos legais e até políticos.

Claro que serão necessárias leis específicas para ordenar a vida cotidiana própria de Marte, abrangendo os direitos civil, administrativo, penal e outros. Mas antes haverá que reconhecer o Direito Espacial de hoje como alicerce jurídico para definir Marte e sua posição geral nas atividades espaciais realizadas a partir da Terra, a nossa casa comum. Nossa história, nosso trabalho, nossos avanços e nossas riquezas é que possibilitam a chegada dos humanos a Marte. Esse desembarque histórico só terá sentido se tiver como meta principal beneficiar toda a humanidade.

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Eles são microscópicos, mas é deles que muito depende a sanidade de rios e oceanos. Estamos falando de vírus e das bactérias que lhes servem como hospedeiros. São eles que metabolizam o carbono presente nas águas, concorrendo para manter um delicado equilíbrio. Mas se, como resultado da atividade humana e de outros fatores, houver carbono demais, esses micro-organismos não dão conta de metabolizá-lo e as águas se acidificam, contribuindo para o aquecimento global. Os estudos estão apenas começando, mas pesquisas realizadas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) já observaram alguns dados cruciais para entender como tudo isso funciona, e, o mais importante, como pode influenciar no clima.

“É o primeiro estudo abrangente sobre vírus no contínuo amazônico rio-plu-ma-oceano. Pode servir como base para tecermos novas hipóteses sobre o papel dos micro-organismos na cicla-gem de carbono e no clima”, avalia Fabiano Thompson, Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, professor da UFRJ e coordenador do projeto, que conta com o doutorando Bruno Sérgio Silva como o autor principal de artigo publicado em 4 de outubro na revista American Society of Microbiology. “Percebemos que os vírus mais importantes no rio e no oceano são diferen-tes: no primeiro caso, mais associados a animais e plantas no rio; já a pluma conta com mais vírus de micro-organismos, especialmente os fotossintetizantes”, comenta Silva.

Poucos sabem, mas “pluma” é a camada de água doce do rio na superfície do oceano. Contém dez vezes mais nutrientes que o entorno e vai se renovando à medida que as águas do rio vão encontrando o mar. Como explica Thompson, “a cada ano, cerca de 28 teragramas – ou seja, cada teragrama equivale a um trilhão de gramas – de carbono são fixados por produtores primários na pluma do rio Amazonas. Esses valores têm influência no conteúdo de carbono na atmosfera e na água e, portanto, podem interferir no clima”.

Para pesquisar como isso acontece, duas expedições simul-tâneas – uma no rio e outra no mar – buscaram estabelecer um panorama sobre a diversidade taxonômica (que, na biologia, nomeia e agrupa todos os organismos, para uma ordenação sistemática e hierarquizada dos grupos animais e vegetais) e funcional dos vírus na água.

Micro-organismos: pequenos influenciadores do clima

Vilma Homero | Jornalista, editora do Boletim FAPERJ

Como os pesquisadores observaram, na pluma, predo-minam vírus líticos, aqueles que acabam por matar seu hos-pedeiro, enquanto no rio, predominam os vírus lisogênicos, que ao infectar o hospedeiro, vão usá-lo para se reproduzir e se perpetuar no ambiente.

“Esse padrão tem implicações para a ciclagem de matéria e energia no contínuo rio-pluma-oceano. Se no rio, os vírus lisogênicos incorporam seu material genético ao genoma do hospedeiro ou otimizam o metabolismo do hospedeiro como estratégias de proliferação, na pluma/oceano, vírus líticos eliminam o hospedeiro, liberando material intracelular e nutrientes na água. Isso, em maior ou menor grau, pode influen-

ciar a quantidade de dióxido de carbono assimilada por micro-organismos durante a fotossíntese. Em outras palavras, se esses micro-organismos morrerem ou não derem conta de metabolizar todo esse carbono, a água do oceano vai se tornando pro-gressivamente ácida, elevando o aquecimento global.

Embora ainda se trate de estudos iniciais, Thompson ressalta que a análise que os pesquisadores brasileiros vêm fazendo é da maior importância. “Mesmo em países desenvolvidos, como Canadá, Estados Unidos,

Japão e França, os estudos focados no entendimento do papel dos vírus nos oceanos são bastante restritos. Isso nos torna protagonistas importantes nesse campo, embora ainda nos falte investimentos em novas tecnologias, como submarinos, robôs e sequenciadores de DNA, assim como embarcações para expedições e recursos financeiros e humanos. O investimento em ciências do mar no Brasil sempre foi muito pequeno”, critica o pesquisador.

O projeto continua, com a previsão de novas expedições àquela região amazônica. “Com este trabalho, conseguimos traçar o perfil das comunidades virais do contínuo do rio Amazonas. Para o doutorando Silva, as implicações ecológicas deste estudo deverão ser aprofundadas em pesquisas futuras. “Espero que, daqui para a frente, quando nos referirmos à diversidade biológica e à exuberância e riqueza da Amazônia, também levemos em consideração vírus e bactérias”, comenta Bruno Sérgio Silva. E, Fabiano Thompson, por sua vez, finaliza: “Precisamos aprofundar nossos estudos; estamos apenas começando.”

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As árvores das florestas alagadas em torno do rio Amazonas emitem tanto metano (CH4) para a atmosfera quanto todos os oceanos do mundo juntos. Foi o que constatou a pesquisa conduzida pelos professores Alex Enrich-Prast, do Departa-mento de Botânica do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Humberto Marotta, do Instituto de Geografia da Universidade Federal Fluminense; e Olaf Malm, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ. Alex Enrich-Prast, Olaf Malm e Humberto Marotta são Cientistas do Nosso Estado e Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), respectivamente.

O estudo, que rendeu um artigo publicado na revista Nature, foi desenvolvido em conjunto com pesquisadores da Open University, no Reino Unido, e da Universidade de Linköping, na Suécia.

Segundo Alex Enrich-Prast, durante a pesquisa, foram realizadas duas expedições à Amazônia, uma em 2013 e a outra em 2014. Na última, cerca de 20 pesquisadores percor-reram de barco mais de mil quilômetros no trajeto que seguiu por Manaus e atravessou os rios Negro, Solimões e Tapajós durante 60 dias. Os pesquisadores analisaram as emissões de gás metano de 2.300 árvores.

Árvores amazônicas são fortes emissoras de metano

Danielle Kiffer | Jornalista Núcleo de Difusão Científica e Tecnológica da Faperj

“Foi surpreendente encontrar uma fonte natural de emis-são de CH4 tão relevante do ponto de vista global e que era totalmente desconhecida e desconsiderada. E ainda descobrir que os gases são eliminados pelos caules”, diz Enrich-Prast.

Embora os gases emitidos pelas árvores realmente contri-buam para o aquecimento global, de acordo com o pesquisador, a floresta nunca deve ser considerada um perigo para o meio ambiente por esse fator. “São fontes naturais, que certamente emitem metano há milhões de anos. Devemos nos preocupar com as fontes artificiais de emissão desse gás, provenientes, principalmente, da indústria de laticínios e carne, da queima de combustíveis fósseis e dos aterros sanitários. O que devemos questionar é como a intervenção humana vem alterando de forma significativa a natureza, e o quanto essas mudanças cli-máticas vêm afetando o comportamento das árvores, inclusive na quantidade de metano emitida por elas”, diz.

Para Marotta, esse trabalho mostra a importância de se pesquisar áreas tropicais. “Essa descoberta sinaliza o início de muitas pesquisas que ainda realizaremos. Estão planejadas novas expedições à Amazônia para começarmos a desvendar os processos que regulam as emissões de CH4, se elas variam ao longo do ano, se existem famílias e gêneros de plantas que tenham maiores taxas de emissão, por exemplo”, finaliza.

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Para debater como conciliar a produção agropecuária com a conservação da sociobiodiversidade, representantes do governo, da sociedade civil, universidades e setor privado se reuniram em Brasília para o Seminário Nacional do Cerrado no dia 5 deste mês, organizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e World Wide Fund for Nature (WWF-Brasil). Bioma que tem passado por uma transformação no uso do solo, expansão da agricultura e avanço do desmatamento na última década, preservar o Cerrado não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência, concordaram os participantes.

Para André Guimarães, Diretor-Executivo do IPAM, não é preciso escolher entre preservar ou produzir. “A dicotomia se ou se conserva ou se produz é uma dicotomia burra, não existe divergência entre produzir e conservar no Cerrado”, afirmou. Os debates do Seminário giraram em torno de justamente desmitificar isso, equilibrando o desenvolvimento econômico, a conservação ambiental e o respeito às comunidades tradi-cionais e povos que vivem no Cerrado.

Com o objetivo de aumentar a transparência e reforçar os mecanismos de comando e controle, o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, prometeu que os dados de desma-tamento no Cerrado serão divulgados anualmente, como são os da Amazônia. “Mais que isso: estou lutando para que o desmatamento tanto na Amazônia quanto do Cerrado seja disponibilizado online em tempo real”, prometeu. O Ministro lembrou que dezenas de milhares de hectares estão subutili-zados em áreas já abertas, que podem e devem ser explorados sem criar novos impactos para o meio ambiente.

Manejo sustentável é o único caminho para a vida no Cerrado

“A sociedade precisa observar o Cerrado como um bem coletivo, importante para o controle de mudanças climáticas e preservação dos nossos recursos hídricos”, reforçou Sarney Filho. A floresta em pé vale mais que a floresta derrubada e é preciso demonstrar isso na prática.

Entre as medidas, o Ministro defendeu a criação de uma Moratória da Soja no Cerrado e um Termo de Ajustamento de Conduta para a carne, como já existe na Amazônia. De fato, o mercado internacional tem deixado muito claro que haverá cada vez menos espaço para a pecuária sem base sustentável. “Essa é a única forma razoável de conduzir o desenvolvimento do país”, finalizou.

Maurício Voivodic, Diretor-Executivo do WWF Brasil, lembrou o quanto o Cerrado tem entrado na agenda de debate internacional. Esse momento é importante para se evitar o que aconteceu com a Mata Atlântica em décadas passadas, quando foi quase completamente destruída, já que hoje temos ferramentas muito mais precisas sobre como acontece esse processo de desmatamento.

“Hoje sabemos onde estamos desmatando, os atores, vetores e para quais cadeias produtivas. A informação está tão disponível que assistimos a conversão do Cerrado sabendo exatamente quais são as causas. E isso faz toda a diferença”, lembrou Voivodic.

As soluções precisam ser abrangentes e passam necessaria-mente pelo cumprimento do Código Florestal e a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), na visão de Fábio Trigueirinho, Presidente-Executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). “É preciso botar o CAR para funcionar porque a informação só passa a ser útil se a base de dados está correta”, cobrou.

Nenhuma ação pode ser feita, no entanto, sem considerar as comunidades tradicionais que vivem no Cerrado, pontuou Donald Sawyer, assessor sênior do Instituto Sociedade, Popu-lação e Natureza (ISPN). “Para essas comunidades, o Cerrado é uma alternativa de vida decente, de não ter que migrar para as cidades onde não há emprego e renda suficiente. Como diz a campanha da Comissão Pastoral da Terra (CPT): sem Cerrado, sem água, sem vida”.

O Seminário reuniu mais de 100 pessoas na Capital Federal e foi transmitido também para todo o país via o canal oficial do YouTube do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Na pauta, também foram discutidos os principais mecanismos financeiros para promover o Desmatamento Zero, a influência da inteligência territorial nos riscos e oportuni-dades, a conservação de áreas por comunidades tradicionais e a infraestrutura pública e privada no Cerrado, entre outros assuntos. O mediador do evento foi o jornalista e editor do site Direto da Ciência, Maurício Tuffani.

Cristina Amorim | Jornalista do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)C

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Nenhuma questão hoje é mais importante do que a da água. Dela depende a sobrevi-vência de toda a cadeia da vida e, consequentemente, de nosso pró-prio futuro. Ela pode ser motivo de guerra como de solidariedade social e cooperação entre os povos. Mais ainda, como que-rem fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e seguramente dever-se-á criar o novo pacto social mundial que crie um consenso mínimo entre os povos e governos em vista de um destino comum, nosso e do sistema-vida.

Independentemente das discussões que cercam o tema da água, uma afirmação segura e indiscutível podemos fazer: a água é um bem natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum ser vivo, humano ou não humano, pode viver sem a água. Da forma com que tratamos a água dependerá a forma que ganhará a globalização. Daí ser importante discutirmos rapidamente a relação entre globalização e cuidado da água.

E aqui temos que fazer uma opção prévia. Conforme for a decisão, outras serão as consequências. Ou bem abordaremos a relação globalização-água a partir da globalização como ela está se dando hoje, com sua lógica interna, e então teremos uma concepção de água e um cenário de nosso futuro ou bem trataremos a relação a partir da água o que nos levará a desenvolver outra concepção de globalização, com outra lógica, que resultará um outro cenário para o futuro da vida e do ser humano na Terra.

Cuidado da água no contexto da globalização

Leonardo Boff | Teólogo e membro da Comissão da Carta da Terra

Como está a água no mundo Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos

de água na Terra. Se tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e distribuísse-mos equitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade.

97,5% é água salgada e 2,5% é água doce. Mais de 2/3 destas águas doces se encontram nas calotas polares e nas gelerias no cume das montanhas (68,9%) e quase todo o restante (29,9%) são águas subterrâneas. Sobrem 0,9% nos pântanos e 0,3% nos rios e lagos de onde sai a maior parte da água doce para o consumo humano e dos animais, irrigação agrícola e uso industrial.

O acesso à água doce é cada vez mais precário por causa da crescente contaminação dos lagos e rios e mesmo da atmosfera que provoca chuvas ácidas. Esgotos mal tratados, uso de detergentes não biodegradáveis, emprego abusivo de agrotóxicos contaminam os lenços freáticos, efluentes industriais despejados nos cursos d’água, devolvem aos rios envenenamento e morte, comprometendo a frágil e complexa cadeia de reprodução da vida.

Mesmo assim a água há superabundante no Planeta. A renovação das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km cúbicos por ano. Há muita água, mas desigualmente distribuída: 60% se encontram em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças.

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Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água. Não há problema de escassez de água, mas de má gestão para atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.

O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 70% na região amazônica, 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois 46% dela é desperdiçada, o que daria para abas-tecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão cultural.

A água vista a partir da globalização

A globalização é um fenômeno complexo. Pode ser vista

como uma nova fase da humanidade e da Terra como Gaia. Trata-se do fenômeno antropológico-cósmico do retorno dos povos depois da grande dispersão ocorrida há milhões de anos a partir da África. Agora os povos e as culturas se colocam em movimento e se encontram num único lugar, o Planeta Terra. Junto a isso se cria uma nova consciência, planetária, com o sentido de que temos, Terra e Humanidade uma mesma origem e um mesmo destino. Na verdade, somos a própria Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Já nos anos 30, Teilhard de Chardin falava da irrupção da noosfera, como nova etapa ascendente da espécie humana.

A globalização é um fenômeno histórico-social-político: as infovias propiciaram todo tipo de trocas entre os seres humanos, valores, visões de mundo, formas políticas, tradi-ções espirituais e religiosas transitam de um canto a outro. Ela assume também uma dimensão ecológica: os fenômenos naturais afetam a todos os seres humanos. Sentimo-nos todos interdependentes.

A globalização é um fenômeno econômico e financeiro. Representa a expansão sobre todo o planeta do sistema do capital com seu sistema financeiro, seus mercados de moedas e de commodities. Representa a unificação do espaço das trocas e a gestação do sistema-mundo.

Este sentido de globalização é dominante. Ele se rege pela lógica da economia de mercado que é a competição e a vontade de maximalizar os ganhos. Isso se faz mediante grandes conglomerados supra e multinacionais com poder econômico às vezes superior a muitos países.

A tendência é transformar tudo em mercadoria, oportu-nidade de lucro e levar à banca dos negócios. Em razão desta lógica se procura patentear os conhecimentos científicos, bens da natureza, até genes como o que produz o câncer de mama. Tudo é privatizável e feito mercadoria, sem limites.

A água, por sua escassez é vista como recurso hídrico e bem econômico. É mercadoria e fonte de lucro. Há uma corrida mundial para sua privatização. Surgem grandes empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel. Criou-se um mercado que envolve cerca de US$ 100 bilhões. Presentes na comercialização de água mineral, a Nestlé e a Coca-Cola estão comprando fontes em todo mundo.

Os organismos de financiamento como o FMI e o Banco mundial condicionaram a partir do ano de 2000 a 40 países a renegociação da dívida e os novos empréstimos sob a con-dição de privatizarem a água e seus serviços. Assim foi com Moçambique em 1999 para receber 117 milhões de dólares. Em 2000 ocorreu com Cochabamba na Bolívia. A empresa americana Bechtel comprou as águas e elevou os preços a 35%. A reação organizada da população fez com que saíssem do país. Na Índia a água foi privatizada em muitas grandes cidades. A carência de água potável da população é tão grande que os carros-pipas são assaltados. Só conseguem chegar ao destino com proteção policial.

A água está se tornando “fator de instabilidade no Planeta”. Poderão ocorrer guerras para garantir o acesso à água potável. Sua visão mercadológica distorce as relações água-globalização pela competitividade desenfreada entre as grandes empresas que impede acordos e assim prejudicam as populações pela primazia da rentabilidade pelo descaso ao princípio da solidariedade social e da comunidade de interesse e do respeito das bacias hidrográficas que transcendem os limites das nações, pelo desprezo do uso racional e equitativo da água; como ocorre entre a Turquia de um lado e a Síria e o Iraque do outro, ou de Israel, da Jordânia e da Palestina, ou entre os EUA e o México ao redor dos rios Rio Grande e Colorado.

A exacerbação da propriedade privada faz com que se trate a água sem o sentido de partilha e de consideração das demandas dos outros. Face a estes excessos, a ONU nas Conferências de Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998) e Rio de Janeiro (1992), consagrou “o direito de todos a terem acesso à água potável em quantidade suficiente e com qualidade para as necessidades essenciais”.

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A globalização vista a partir da água Bem outra é a perspectiva quando damos centralidade

à água e a partir dela vemos a globalização. Aqui O grande debate hoje se trava nestes termos:

A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como mercadoria?

Ambas as dimensões não se excluem, mas devem ser retamente relacionadas. Fundamentalmente a água é Direito à Vida, como insiste o grande especialista em águas Ricardo Petrella (O Manifesto da Agua, Vozes, Petrópolis 2002). Nesse sentido a água de beber, para uso na alimentação e para higiene pessoal deve ser gratuita (cf. Paulo Affonso Leme Machado, Recursos Hídricos. Direito Brasileiro e Internacional, Malheiros Editores, São Paulo 2002, 14-17). Por isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a lei n.9.433 (8/1/97) sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos: “a água é um bem de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessententação de animais”.

Como porém a água é escassa e demanda uma complexa estrutura de captação, conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao contrário, deve torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a natureza comum, vital e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos econômicos que devem ser cobertos pelo Poder Público.

A água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como vida. E vida não deve ser transformada em mercadoria. A água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais do ser humano que a tornam preciosa e carregada de valores que, em si não têm preço.

Para entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica precisamos romper com a ditadura que o pensar racional-analítico e utilitarista impõe a toda a sociedade. Este vê a água como recurso hídrico. O ser humano tem outros exercícios de sua razão. Há a razão sensível, a razão emocional e a razão espiritual. São razões ligadas ao sentido da vida. Oferecem não as razões de lucrar mas as razões de viver e conferir excelência à vida. A água é vista como vida, com bem comum natural, como fonte e nicho de onde há bilhões de anos surgiu a vida.

Como reação à dominação da globalização da água se busca a republicanização da água. A água é um bem comum público mundial. É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida.

Importa proclamar o reconhecimento formal do direito à água como direito humano universal em todos os organismos do local ao internacional. Cabe ao poder público junto com a sociedade organizada criar um financiamento público para cobrir os custos necessários para garantir o acesso à água potável a todos.

Em função destas exigências se criou o FAMA – o Fórum Mundial Alternativo da Água em Março de 2003 em Florença na Itália. Junto a isso se propõe criar a Autoridade Mundial da Água, uma instância de governo público, cooperativo e solidário da água em nível das grandes bacias hídricas internacionais e de uma distribuição mais equitativa da água segundo as demandas regionais.

Função importante é pressionar os Governos e as empre-sas para que a água não seja levada aos mercados nem seja considerada mercadoria.

Deve-se garantir a todos gratuitamente pelo menos 50 litros de água potável e sã. As tarifas para os serviços devem contemplar os diversos níveis de uso, se doméstico, se industrial, se agrícola, se recreativo. Para os usos industriais da água e na agricultura, evidentemente, água é sujeita a preço.

Incentivar a cooperação público-público para impedir que tantos morram em consequência da falta de água ou em consequência de águas maltratadas. Diariamente morrem 6 mil crianças por sede. Os noticiários nada referem. Mas isso equivale a 10 aviões Boeing que caem ou mergulham nos oceanos com a morte de todos os passageiros. Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir à escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10 km de distância.

Paralelo a isso corre a articulação mundial para um Con-trato Mundial da Água. Seria um contrato social mundial ao redor daquilo que efetivamente nos une que é a vida das pessoas e dos demais seres vivos, indissociáveis da água. Uma fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve incluir a sede zero, pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem a água.

A partir da água outra imagem da globalização surge, humana, solidária, cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida e de reprodução da vida.

Ela é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos da vida eterna.

Nota da RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras): A Universidad Nacional de Rosário – UNR, da Argentina, criou uma cátedra da água, concedendo a honraria Doutor Honoris Causa a Leonardo Boff em 2010. Este documento produzido em 2005, antes do reconhecimento pela ONU da Água como Direito Humano, foi enviado por Leonardo Boff como contribuição para aclarar as ideias, em tempos de retrocessos legislativos, no debate “Geopolítica da Água: Água para a Guerra – Água para a Paz”Referência: BOFF, Leonardo. A questão da água no contexto da globalização. Mercantilização ou Republicanização? Revista ECO•21. Edição 109. Dez. 2005.

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O Brasil se comprometeu a restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares até 2030 como parte de sua meta cli-mática no Acordo de Paris. Isso significa que é preciso dar escala a projetos de reflorestamento de espécies nativas e de sistemas agroflorestais, que precisam ser rentáveis para atrair investimentos.

“Poucos países têm a vocação florestal do Brasil e é possível olhar para este tema na lógica das oportunidades de negócio”, afirma Miguel Calmon, diretor de Florestas do WRI Brasil. O Projeto VERENA (Valorização Econômica do Reflorestamento com Espécies Nativas) (http://wribrasil.org.br/pt/projetoverena) mostra que o reflorestamento com espécies nativas é economicamente competitivo. Uma ferra-menta (http://wribrasil.org.br/pt/publication/ferramenta-investimento-verena) gratuita foi desenvolvida para calcular se um projeto de reflorestamento ou sistema agroflorestal (SAF) é viável, ou seja, se equilibra capital financeiro e natural e oferece oportunidades de negócio e emprego no meio rural. A iniciativa analisou nos dois últimos anos a viabilidade téc-nica e econômica do reflorestamento com espécies nativas, e também os benefícios sociais e ambientais, de 12 estudos de caso em propriedades na Amazônia e Mata Atlântica.

“Para tomar uma decisão, os investidores precisam ter mais informação sobre risco e retorno. As espécies arbóreas nativas brasileiras existem há milhares de anos e já protagonizam experiências comerciais bem-sucedidas, mas não no mercado de capitais. Estudos de caso são importantes para a criação de um histórico de práticas e para diminuir a percepção de risco”, destaca Alan Batista, Analista de Investimentos do WRI Brasil.

Em sua maioria, os casos estudados pelo VERENA necessitam de maior investimento por hectare e tempo para recuperar o retorno do investimento, se comparados ao setor agropecuário e florestas plantadas. No caso do payback, o tempo maior se deve ao maior ciclo de colheita das espécies arbóreas nativas. Se diversificado, é possível mitigar riscos ambientais (estiagens, secas, etc.) e de variação de preços.

A análise conjunta dos 12 estudos de caso mostra que, em média, o retorno dos ativos é maior (16%) para o reflo-restamento com espécies nativas e SAFs do que a média da agricultura e silvicultura com pinus e eucalipto (13%). A análise conjunta também indica que o retorno médio do investimento nos 12 estudos casos do VERENA leva 16 anos frente a 12 anos nos casos estudados da agricultura e silvicultura com espécies exóticas. “Estatisticamente, o retorno médio dos ativos e do investimento são equivalentes nos casos comparados à agricultura e silvicultura. Isso significa que apostar no reflorestamento com nativas e SAFs é um bom negócio”, salienta Alan.

Além da contribuição para o alcance da meta climática, o investimento em restauração e reflorestamento com espécies nativas e sistemas agroflorestais contribui para o cumpri-mento do Código Florestal Brasileiro (CFB). É o caso do uso econômico da Reserva Legal (RL). Grande parte dos ativos estudados pelo VERENA são compatíveis com o manejo sustentável em RL. As análises do projeto indicam outras oportunidades de negócio com sistemas produtivos integrados. É exemplo a integração Lavoura-Pecuária-Floresta (iLPF), que possibilita o plantio de culturas anuais paralelamente ao plantio de espécies nativas.

O Projeto VERENA é liderado pelo WRI Brasil em parceria com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e tem o apoio da Children’s Investment Fund Foundation (CIFF). Mais de 50 parceiros participaram dos primeiros dois anos de trabalho.

Sobre o WRI Brasil

O WRI Brasil é uma organização sem fins lucrativos, focada em pesquisa e aplicação de metodologias, estratégias e ferramentas voltadas às áreas de clima, florestas e cidades. Atua em estreita colaboração com as lideranças locais, para proteger o meio ambiente e criar soluções que contribuam para a prosperidade do Brasil de forma inclusiva e sustentável.

Reflorestamento é lucrativo com espécies nativas

Maura Campanili | Jornalista do Núcleo de Conteúdos Ambientais (NUCA)

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A palavra indiana Satya-graha, que significa resistência passiva ou não violenta, e força da verdade, foi utilizada com grande eficácia por Gandhi durante a colonização britâ-nica. Desde sempre, ela tem a ver com o despertar da nossa consciência.

Na Índia, os movimentos de não colaboração tiveram início quando os ingleses tentaram taxar as terras dos camponeses e as casas das pessoas. Gandhi implementou, pela primeira vez, o Satyagraha na África do Sul em 1906, recusando-se a cooperar com as leis do regime do apartheid, que impunham o registro obrigatório com base na raça.

Henry David Thoreau cunhou o termo “desobediên-cia civil”, explicando sua recusa, como forma de compromisso com a abolição da escravidão, de pagar o poll tax. Leis morais exigem que os cidadãos desobedeçam as Leis que institucionalizam a injustiça e a violência.

Em 1930, quando os ingleses introduziram as Leis sobre o sal, impondo o seu monopólio e tornando ilegal a produção por parte dos indianos, Gandhi organizou a marcha Satyagraha do sal; caminhou até a costa e, em Dandi Beach, declarou: “a natureza nos oferece o sal livre-mente, e nós precisamos dele para a sobrevivência. Continuaremos produzindo sal. Não obedecere-mos as Leis de vocês”.

As liberdades de que gozamos hoje são fruto das lutas dos nossos pais e antepassados, que se recusa-ram a colaborar com Leis injustas – como a escravidão nos EUA, a segregação racial na África do Sul e nos EUA, ou a colonização na Índia. E a resistência passiva, não violenta, satyagraha, é mais importante do que nunca hoje, na era de “pós-verdade”.

Vandana Shiva | Física e ecofeminista indiana

Satyagraha pela resistência contra a Monsanto

Em 1987, quando as multinacionais começavam a falar sobre a apropriação das sementes mediante os direitos de propriedade intelectual, eu assumi o compromisso de salvar as sementes, de mantê-las livres e de não colaborar com as normas que criminalizam a sua conservação e intercâmbio.

O ano de 2017 é o 100º aniversário do Satyagraha Indigo: Gandhi liderou o protesto dos agricultores indianos contra o cultivo forçado do índigo.

A organização que criei há 35 anos e que se chama Navdanya – ou seja, nove sementes, que simbolizam a proteção da biodiversidade, dos pequenos agricultores, da diversidade cultural – quis celebrar esses 100 anos com um Satyagraha das sementes, pelo renascimento das sementes verdadeiras e vitais, pela proteção da biodiversidade na Índia e em todo o mundo, pela possibilidade de que os agricultores continuem conservando as sementes e coevoluindo com inteligência rumo à diversidade, à qualidade e à saúde – alinhados com o nosso

dever mais elevado, o de proteger e cuidar da Terra e do bem-estar dos seus habitantes.

Na Índia, o nosso Satyagraha das sementes foi, acima de tudo, contra a Monsanto e as suas ten-tativas de patentear as sementes e coletar os seus royalties, contra o sistema que permite a comer-cialização do nosso patrimônio cultural e dos recursos naturais da Mãe Terra.

Ocorreram Satyagraha pela água, contra a Coca Cola no Estado indiano de Kerala e a privatização da água em Deli (segunda maior e mais impor-tante cidade da Índia), e contra a aquicultura industrial; na vanguarda, as mulheres que pro-tegeram com sucesso o direito da população à água potável.

O Satyagraha da mostarda se opõe à tentativa de introduzir a mostarda geneticamente modi-ficada na Índia e se concentra no direito a alimentos saudáveis e seguros.

Os Satyagraha dos tribais (em Niyamgiri) e dos camponeses (em Singur e Nandigram) pararam o assalto das terras tentado pela globalização.

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Gandhi pegando grãos de sal na Marcha do Sal

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A história de duas catadoras de resíduos sólidos em João Pessoa descortina o universo de uma categoria de profissio-nais urbanos invisível para muitos, embora fundamental no desenvolvimento da reciclagem e da reutilização no país.

Turistas, pessoas bonitas e bem vestidas, carros de luxo, sol e praia. Em meio a essa balburdia glamorosa, Egrinalda dos Santos Silva, 45 anos, e Maria de Jesus Leite, 45 anos, realizam os seus trabalhos de forma discreta, quase anô-nima. Ziguezagueando pelas ruas dos afamados bairros de Manaíra, Tambaú e Cabo Branco, em João Pessoa (PB), estas duas senhoras encostam de lixeira em lixeira, nas portas das casas e prédios, empreendendo uma caçada arqueológica por resíduos recicláveis em meio a todo tipo de lixo, descartado indistintamente pela maioria dos residentes da abastarda região. As duas trabalham juntas neste ramo a mais de 20 anos. Praticamente não há interação com os moradores. A exceção para às vezes em que algum transeunte, aparentemente incomodado, troca de calçada. Ou ainda, sem disfarçar, tampa o nariz ao passar.

A jornada de Egrinalda e Maria começa longe da praia. Por volta das 13h30, elas deixam o galpão da Associação de Catadores Catajampa, na comunidade de Mandacaru, no subúrbio da capital paraibana. De lá, elas partem a pé, com um carrinho puxado à mão, em direção aos bairros da orla, onde se concentram os resíduos recicláveis mais valiosos e em maior quantidade. Nessa etapa do processo, o carrinho é o único instrumento de trabalho. As catadoras não se valem de qualquer proteção para manipular o lixo. Nem mesmo luva. Usam apenas uma camiseta simples, de cor verde, a qual as identifica como catadoras vinculadas a uma associação.

Tiago Eloy Zaidan | Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Faculdade Joaquim Nabuco e da Escola Superior de Marketing (Recife-PE)

Ecologistas invisíveis

Depois de percorrerem as ruas de Manaíra, Tambaú e Cabo Branco, as duas fazem todo o caminho de volta. Quando retornam à comunidade de Mandacaru, às 4h da manhã, o sol já está preste a nascer. João Pessoa é a cidade mais oriental das Américas. E, por isso, é onde o sol nasce primeiro no continente.

As catadoras partem, então, para a etapa seguinte do processo: a separação dos resíduos coletados. O caminho de volta ao galpão, feito às escuras, é perigoso. Maria de Jesus já foi abordada por um viciado em drogas, e teve uma arma apontada para o seu rosto. Resíduos orgânicos e recicláveis, que ela havia coletado durante toda a tarde e madrugada, eram os únicos bens de valor que ela trazia consigo.

Egrinalda e Maria são, respectivamente, presidente e vice-presidente da associação Catajampa. Elas precisam conciliar os deveres representativos da associação com a labuta nas ruas. Egrinalda também é representante do Movimento Nacional dos Catadores na Paraíba. Independente dos compromissos, não há como abrir mão do trabalho de catação, pois, sem ele, existe o risco de faltar comida em casa. O absenteísmo causado por uma virose, então, ganha contornos dramáticos. “A gente está com o material defasado porque este mês lá, todo mundo adoeceu. É virose, dengue”, revela Egrinalda.

Egrinalda é natural de João Pessoa. Foi criada num barraco, numa área ocupada, às margens da BR Transamazônica. A lendária rodovia nasce na vizinha cidade de Cabedelo e corta a capital paraibana. O rendimento familiar era parco. A mãe de Egrinalda era lavadeira; o pai, sapateiro. O alcoolismo do pai tornava tudo mais difícil. Além de gastar o dinheiro com bebidas alcoólicas, o chefe da família espancava a esposa.

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Grupo de catadores integrantes da Associação Catajampa

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O pouco que possuíam para se alimentar era oriundo de uma roça mantida no quintal do barraco. Egrinalda começou a trabalhar cedo e exerceu várias profissões. Foi empregada doméstica e pescadora, e chegou a trabalhar em uma pedreira. Quebrava pedras e enchia os caminhões junto com os demais empregados – todos homens.

Maria de Jesus, por sua vez, é natural de Pombal, no sertão da Paraíba. Foi criada sem pai. Sua mãe era cabelei-reira e oferecia os seus serviços porta a porta. Hoje, possui dois filhos, um rapaz de 22 e uma menina de 15. Eram três filhos. Perdeu Joabson, então com um ano e seis meses, em um incidente que se tornou o maior trauma de sua vida. Foi há oito anos. A casa em que morava estava com a eletricidade cortada por falta de pagamento. Então, usavam-se velas. Em certa ocasião, uma vela tombou. A casa foi tomada pelo fogo e a criança morreu asfixiada. Egrinalda tem 3 filhos. Um rapaz de 23 anos, uma menina de 16 e um menino de 8. Nenhuma das duas catadoras contou com a ajuda de companheiros na criação dos rebentos. São mães solteiras. A bem da verdade, uma ajudou a outra.

Há cerca de 20 anos, as duas começaram juntas a trabalhar na catação de resíduos sólidos. Na ocasião, cada uma tinha um filho, e Egrinalda já estava gestante do segundo. As duas se deslocavam, com as duas crianças, de Cabedelo para a comunidade de Mandacaru, em João Pessoa, em uma única bicicleta. Deixavam os filhos na casa da mãe de Egrinalda, e depois seguiam para o lixão, no bairro do Roger. Reco-lhiam não apenas os resíduos sólidos. Disputavam alimentos com os urubus. Aproveitavam, sobretudo, os descartes dos supermercados, que chegavam aos caminhões, com produtos vencidos e estragados. “Era iogurte, era carne de charque, era feijão. O que chegasse a gente estava aproveitando”, lembra Egrinalda.

O período em que trabalharam no lixão, ao lado de outros catadores em situação de extrema vulnerabilidade, transfor-mou as duas amigas. “A partir daí a gente foi perdendo a vergonha”, afirma a presidente da Associação de Catadores Catajampa.

O processo de despojamento se mostraria bastante útil. O lixão de João Pessoa foi desativado; os catadores, desalojados. Muitos deles, como Egrinalda e Maria de Jesus, passaram a fazer a catação nas ruas.

“Esquecemos a vergonha e metemos a cara. Faz uma faixa de dez anos que começamos a catar porta a porta”, calcula Egrinalda. Hoje, as duas são vizinhas e moram próximas ao galpão utilizado pela Catajampa, na comunidade de Manda-caru. Os filhos mais velhos de cada uma, Edgley, 23 anos, e Joel de 22, trabalham como catadores na associação.

A Catajampa existe há cerca de uma década. Mas o processo de qualificação se deu há apenas três meses, graças a uma parceria com a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). A associação conta hoje com o suporte do galpão alugado, de 15 carrinhos para o recolhimento dos resíduos porta a porta, de uma prensa, de uma balança e um de cami-nhão de pequeno porte, cedido pelo programa Pró-Catador, executado pela UEPB.

Apesar dos avanços estruturais, a venda do material cole-tado e devidamente segregado ainda representa o nó górdio do processo. Segundo esclarece a presidente da Catajampa, a indústria só recebe os recicláveis a partir de sete toneladas. Além disso, a indústria exige pontualidade na entrega regular dos resíduos.

Na impossibilidade de reunir mensalmente uma quantidade tão grande de recicláveis, os catadores acabam negociando com atravessadores, os quais pagam um valor bem abaixo do praticado pela indústria. Na tentativa de reverter essa situação, o movimento dos catadores – do qual Egrinalda faz parte – tem tentado articular uma rede de comercialização, com vistas a empoderar a categoria no momento da venda dos resíduos.

Se a transação é problemática, por outro lado, o Decreto Nº 5.940, assinado pelo então Presidente Lula, em 25/9/2006, traz perspectivas positivas as quais devem contribuir com o aumento do volume da coleta. O referido dispositivo “institui a separação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, na fonte geradora”, e prevê “a sua destinação às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis”.

Diante do regramento legal, o campus João Pessoa do Instituto Federal da Paraíba (IFPB) instituiu, em março de 2016, uma comissão com vistas a implementar a coleta seletiva solidária de resíduos sólidos recicláveis dentro do campus. A partir de então, foram tomadas providências como a pesquisa de quantificação e de identificação dos resíduos gerados no campus, capacitação dos funcionários terceirizados encarre-gados da limpeza, sinalização dos tambores de lixo – para a segregação dos resíduos –, e o encetamento de diálogo com cooperativas e associações de catadores. As salas do bloco administrativo passaram a funcionar como laboratórios para a experiência de implantação da coleta seletiva. Os esforços culminaram com o lançamento de um edital de chamada pública, em abril de 2017, com vistas a formalizar uma asso-ciação ou cooperativa como parceiro habilitado a receber os resíduos sólidos coletados na instituição.

No livro “Meio ambiente, poluição e reciclagem”, Eloisa Mano, Élen Pacheco e Cláudia Bonelli, esclarecem que a coleta seletiva “é caracterizada pela separação dos materiais na fonte, pela população, com posterior coleta e envio a usinas de triagem, cooperativas, sucateiros, beneficiadores ou recicladores”.

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Egrinalda dos Santos Silva e Maria de Jesus Leite

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As autoras são conclusivas: “A implementação da coleta seletiva constitui a principal ação para o desenvolvimento da reciclagem e da reutilização”. A questão cultural, no entanto, ainda é um entrave. Laura Reis Andrade, presidente da comissão de supervisão da coleta seletiva solidária dentro do campus João Pessoa do IFPB, explica: “às vezes a pessoa chega ao setor e não se dá o trabalho de observar a sinalização para saber o que ela vai colocar em cada recipiente. O que a gente vê é que as pessoas ainda estão com o hábito de descartar o que consideram lixo em qualquer lugar”.

Dentre os esforços de educação e conscientização em favor da coleta seletiva, a comissão organizou, em parceria com a Coordenação de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação do campus, o II Salão de Sustentabilidade e Meio Ambiente do IFPB, em Março de 2017. O evento teve como tema o reaproveitamento dos resíduos sólidos, e foi voltado para a comunidade acadêmica.

Reconhecimento

A despeito das adversidades, para o professor e coordenador do curso de Gestão Ambiental do IFPB João Pessoa, Arilde Franco Alves, o país tem evoluído no tocante à reciclagem. Muito em função da atuação dos catadores, como Egrinalda e Maria de Jesus. “Houve, de maneira não intencional, mas em decorrência da situação econômica e, sobretudo, da situação social do país, o desenvolvimento de uma verdadeira legião de pessoas informais, envolvidas nessa questão da catação, que envolve a coleta desses materiais”, explica Alves.

O professor enfatiza a importância do trabalho realizado pelos catadores, inclusive, no bojo da discussão socioambiental. “Pode-se dizer que eles são verdadeiros ecologistas, de maneira informal, indireta e até inconsciente. Eles são verdadeiros heróis, embora, às vezes, sejam pouco reconhecidos”, afirma.

A falta de reconhecimento é sentida pelos catadores. Maria de Jesus, por exemplo, diz ter orgulho da profissão e reconhece a importância do trabalho para o meio ambiente. No entanto, admite: espera que a filha de 15 anos, a qual está cursando o ensino médio, siga outro caminho. “Sinceramente, eu não quero isso para os meus filhos”, desabafa.

A ressalva não é por acaso. Que o diga Edgley Silva, o filho mais velho de Egrinalda. Certa vez, o jovem, o qual também é catador, foi abordado por um morador em Manaíra, bairro de classe média de João Pessoa. Edgley estava com a camisa verde, a qual identifica os catadores da associação Catajampa, e chegou a se apresentar. Procurava por recicláveis em meio ao lixo depositado em sacos plásticos na calçada de um prédio. O morador, por seu turno, foi agressivo. Queixou-se que o lixo lhe pertencia e alegou que os catadores teriam “um vício de chegar nos cantos e rasgar os sacos e espalhar o lixo”. Em seguida, teria partido para a agressão, o que não ocorreu graças ao um transeunte, que o conteve.

Infelizmente, o senhor de Manaíra, de tão nervoso que estava, provavelmente não escutou o argumento de Edgley em defesa própria: “Eu faço parte dessa associação aqui. Sou um catador organizado. O meu trabalho não é rasgar e fazer sujeira. O meu trabalho é limpar. Eu tiro a minha sobrevi-vência, e a de minha família, e ajudo o meio ambiente; todo o planeta”. Depois do incidente, o morador contrariado voltou para o conforto de sua residência. Ao jovem, ainda restava uma longa caminhada de volta, a puxar o seu carrinho, até o galpão de triagem em Mandacaru.

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Resíduos sólidos: fonte de renda para os catadores

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René Capriles | Editor da Revista ECO•21

Imagens, Micróbios e EspelhosEm 2007, quando foi lançada ousada iniciativa cientí-

fica conhecida como “Enciclopédia da Vida”, se pretendia documentar ao redor de 1,8 milhão de espécies biológicas da Terra, analisar o impacto das perdas dos hábitats e os efeitos das mudanças climáticas. O livro “Imagens, Micróbios e Espelhos” (Editora Fiocruz, Rio 2017) de autoria do médico e doutor em biologia humana, Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro e do doutor em ciências imunológicas, Yuri Chaves Martins, se apresenta, assim, como uma "Enciclopédia da Vida".

Ao longo do tempo, principalmente no Século 20, a ciência moderna, estreitamente atrelada à tecnologia, adquiriu um extraordinário poder de entender e modificar a natureza e a sociedade. Tal poder acarreta uma gigantesca responsabilidade científica, fato percebido pelos autores, que desenvolvem, ao longo de 340 páginas, uma ciência com consciência, isto é, revelam uma capacidade de percepção e discernimento sobre milhares formas de vida existentes na Terra, acrescentando o novo conhecimento tecnológico e cibernético. Nesse sentido, o livro avança profundamente sobre os graves problemas que apresenta a crise ecológica e manifesta claramente a necessidade de uma reorientação da sociedade voltada para a sustentabilidade.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, autor da apresentação na “orelha” do livro afirma: “Parafraseando Tolstói, neste livro Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro e Yuri Chaves Martins conseguiram ser universais a partir de sua aldeia, a imunologia. Tal universalidade provém da radical interdisciplinaridade da obra, que além dos autores acolhe 13 comentaristas convida-dos, relevantes cientistas das áreas biomédicas com formações que vão da medicina e biologia à filosofia e antropologia. Esse formato dialógico permite abordar um painel amplo de problemas nas fronteiras do conhecimento, desde a impre-visibilidade do desenvolvimento científico até os enigmas da autoimunidade e do compartilhamento antigênico, passando pela unicidade genética que distingue os indivíduos com precisão, pelo problema das representações imunes e neurais como imagens internas, e por uma retrospectiva histórica da imunologia cognitiva. Em conjunto, esses tópicos preenchem lacunas importantes para a formação intelectual do público brasileiro, que padece singularmente de analfabetismo cien-tífico em todas as classes sociais”.

Eduardo Krieger, que foi Presidente da Academia Bra-sileira de Ciências, no seu discurso de posse definiu o papel do cientista, principalmente brasileiro com estas palavras: "A ciência é e sempre foi internacional, mas a responsabilidade de criar uma capacitação cientifica nacional a serviço dos inte-resses maiores da sociedade é responsabilidade dos cientistas de cada país. A afirmativa de que 'a ciência não tem pátria, mas o cientista tem' é aceita universalmente. Oswaldo Cruz, Carlos Chagas pai e filho, Mauricio Rocha e Silva e Joana Dobereiner, para citar apenas alguns dos já falecidos, são exemplos do comprometimento dos cientistas brasileiros com o progresso do país"; hoje acrescentaria Cláudio e Yuri.

O grau de conhecimento ao qual chegou a humanidade tem uma repercussão profunda em todos os níveis da vida. Diariamente surgem novos desafios, como no universo da genômica ou da transgenia, para falar apenas de um campo, demonstrando que não se pode continuar pensando como se pensava até ontem. Mae-Wan Ho, geneticista falecida em 2016, disse que não existe uma única ciência, mas várias, cada uma delas vinculada à cultura de onde surgiu. “A ciência ocidental que atualmente hegemoniza o mundo representa uma visão reducionista da natureza, seus fenômenos e interdependências. Esse esquema foi desmontado teoricamente no início do século passado pela física quântica. O paradigma unidirecional da ciência ocidental não pode conter nem explicar as descobertas relativas à funcionalidade do caos no devir da vida”.

É com base nessas premissas que o leitor deve entender a profícua obra de Daniel-Ribeiro e Chaves Martins. O livro age como se fosse material genético, o qual pode ser transfe-rido de um ser a outro através do ambiente. A cientista Glaci Zancan, ex-Presidente da SBPC disse que “a ciência, acima de tudo, deve oferecer uma cota de felicidade a cada pessoa”. E isso é feito por Cláudio e Yuri com este livro.

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A história da luta dos “Povos da Floresta” e de todos os defen-sores da natureza tem um marco definitivo na sua trajetória, o dia 15 de Dezembro. Nesse dia de 1944, no seio da floresta Ama-zônica, em Xapuri, no Acre, vem ao mundo àquele que iria mudar a concepção do homem conviver com a natureza, Francisco Alves Mendes Filho, que o mundo abraçou como Chico Mendes.

Sua história não é diferente do percurso de tantos homens e mulheres que não se dobra-ram aos ditames dos poderosos, que tem por ofício coibir a liberdade e a justiça social. Desde a mais tenra idade Chico Mendes assimilou as dificuldades dos povos da floresta, a sina de sobreviver sob a opressão dos senhores de baraço e cutelo. Portanto, logo entendeu que só a organização consciente de homens e mulheres trabalhadores seria capaz de libertá-los dos grilhões históricos que os afligem.

Sob o lema “União dos Povos da Floresta”, em defesa da natureza amazônica reuniu indígenas, seringueiros, castanhei-ros, pescadores, quebradeiras de coco babaçu, e populações ribeirinhas, em torno da criação das reservas extrativistas.

Reservas essas que tinham como objetivo preservar as áreas indígenas e a floresta, além de ser um instrumento propulsor da reforma agrária. Por conseguinte, estavam montadas as bases para uma nova concepção de convivência harmônica entre o homem e a natureza, inovação de reper-cussão internacional.

Para Chico Mendes, as reservas extrativistas, sua prin-cipal bandeira política e ecológica, são áreas pertencentes à União de usufruto de todos os trabalhadores organizados em cooperativas e associações.

A esperança floresce com a memória de Chico Mendes

Janete Capiberibe | Deputada Federal do Partido Socialista Brasileiro (AP)

Para ele, funcionava como princípio a certeza de que na Amazônia não é a terra que precisa ser dividida, mas sim é a floresta que não pode ser privatizada.

Associado a isso, sua relutância em denunciar as ações predatórias e violentas dos fazendeiros contra a floresta e os tra-balhadores, as ameaças de morte passaram a ser constantes.

“Cabra marcado para morrer”, a promessa se fez realidade. No dia 22 de Dezembro de 1988, Chico Mendes foi assas-sinado a tiros na porta de sua casa, exatamente uma semana após ter completado 44 anos.

A Lei número 12.892, de 13 de Dezembro de 2013, de nossa autoria, homenageia Chico Mendes declarando-o patrono do Meio Ambiente brasileiro, da mesma forma que emprestar o nome ao Plenário da Comissão da Amazônia traz seus princípios permanentemente à reflexão no parlamento brasileiro.

A luta e a vida de Chico Mendes não foram em vão e muito menos inglórias. Precisamente na atual conjuntura, de visível retrocesso político de um governo ilegítimo e lesa pátria, que golpeia a soberania nacional, mascateia terras com estrangeiros e aliena nossa biodiversidade, o legado de Chico Mendes florescerá como a esperança símbolo de luta do povo brasileiro no resgate da dignidade nacional.

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