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Ano 12 • Nº 12 • Dezembro • 2014

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Além da boa gestão pedagógica, a competência de uma escola é aferida por uma credencial de peso:

trata-se do capital intelectual adquirido pelo corpo docente, a viga mestra da inteligência organizacional.

O que isso significa? Que as estratégias didáticas utilizadas e o traquejo nas disciplinas acadêmicas têm

relevância inconteste. Mas não só. É preciso dar relevo ao universo simbólico que informa os próprios

professores. Basta conferir o quanto seus saberes científicos, filosóficos, estéticos e técnicos impactam

o conteúdo programático quando o contextualizam. Ou, dito de outra forma, movem montanhas quando

conferem substância às disciplinas ensinadas. Assim, o que distingue professores proficientes de

professores carentes de riqueza intelectual? O acervo que acumulam ao longo da carreira, a capacidade

de atualizar-se incessantemente e, sobretudo, a faculdade ímpar de transmitir o que sabem de forma

acessível.

Como bem nos ensina a Profa. Elvira Souza Lima, cuja formação multidisciplinar constitui um

exemplo vivo, a escola é uma invenção da civilização, e as vivências que propicia são componentes

essenciais para o desenvolvimento do cérebro das crianças e dos adolescentes. Sua entrevista nos

esclarece que não há na genética humana uma área designada para a leitura e a escrita. Por serem

funções simbólicas, o ler e o escrever exigem adaptações do cérebro. Do mesmo modo, a imaginação

opera como mola propulsora do conhecimento humano. Tanto é que os eixos da escolarização são a

formação e o compartilhamento de memórias. Daí a importância estratégica da escola e o papel central

reservado ao preparo científico e cultural dos professores. O que será que o professor ensina se não

elementos de seu patrimônio intelectual? E, quanto mais elaborada for a “memória” dele, mais densas

serão as possibilidades de aprendizagem dos alunos e mais largos serão seus horizontes. É esse caminho

que a Móbile trilha com dedicada obstinação.

Na presente edição da Revista da Móbile, textos produzidos por alunos ilustram o trabalho artesanal

da arte de escrever. E, nesta linha, vale a pena ler a reflexão de Maria de Remédios Ferreira Cardoso,

diretora da Educação Infantil – “A importância da consciência fonológica na Educação Infantil” –, que

pontua o quanto esse nível de consciência é vital para a aquisição da leitura e da escrita. Chama igualmente

a atenção o relato “Descrição: a recriação por meio de palavras”, de Luciana Tomiatto e professoras do

4º ano do Ensino Fundamental I, que mostra a lógica que articula a descrição em textos narrativos.

Nessa linha, embora em um registro mais amplo, inscreve-se a instrutiva e bela resenha escrita

por Wilton Ormundo, vice-diretor pedagógico e professor de Estudos Literários do Ensino Médio. Ela

versa sobre a peça de teatro Folias Galileu e demonstra com precisa lucidez o alcance e a pertinência

da formação cultural. A ida ao teatro deixa de ser mero deleite ou fútil entretenimento e se converte em

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oportunidade de reflexão crítica – “infeliz a terra que precisa de heróis...”. Mais ainda, revela o quanto a

agenda cultural dos alunos permite articular as várias disciplinas que compõem a grade curricular.

Merece também menção o trabalho meticuloso – fruto do planejamento e da supervisão de Cleuza

Villas Boas Bourgogne, Diretora do Ensino Fundamental – desenvolvido na VI Semana Literária e cujo

tema central foi o Modernismo. Os textos apresentados são dos alunos que cursam desde o Infantil 5 até

o 3º ano do Ensino Médio. Ao folhear o material, evidenciam-se experimentações felizes que mergulham

na gramática do movimento e lhe desvendam motivações e características. Aleluia para a criteriosa

construção de linguagem!

Mais adiante, temos vários textos premiados no Concurso Literário, cujo frescor, delicadeza e

espontaneidade conferem um charme todo especial à carpintaria da arte de escrever. Destaques para a

prosa de Monique Murer, do 6º ano do Ensino Fundamental, e de Désirée Brissac Pereira, do 9º ano, assim

como para a poesia de César Zarzur, do 1º ano do Ensino Médio.

O projeto de Iniciação Científica do Colégio Móbile também merece uma visita, graças à variedade

de seus temas e às instigantes videoaulas que se encontram disponíveis no site da escola.

Dois projetos de pesquisa, aliás, se destacam. O primeiro, singelo e engenhoso no uso de recursos

tecnológicos, visa trabalhar fontes históricas e foi animado pela coordenadora educacional Ana Lúcia

Ribeiro de Almeida, além das professoras do 3º ano do Ensino Fundamental. Trata-se da pesquisa sobre

a história da Móbile (“Construindo o presente e revisitando o passado”). Outro primoroso projeto aborda

o impacto das drogas psicotrópicas sobre o sistema nervoso e, naturalmente, sobre o comportamento

humano. Trata-se da pesquisa que envolve os alunos do 2º ano do Ensino Médio (“Percepção alterada”),

iniciativa da professora de Biologia Tatiana Nahas. Esse projeto une, de forma metódica, o ensino da

fisiologia, a aplicação e o treino em variados procedimentos de pesquisa, bem como permite refletir

sobre os riscos pessoais e as implicações sociais do consumo de drogas. Dá-nos uma lição prática

de como desenvolver habilidades essenciais para os alunos. Habilidades referentes à construção do

conhecimento científico e às suas virtudes na apreensão de fenômenos que afligem parte significativa

da população. O desdobramento natural dessa empreitada é o posicionamento crítico diante do mundo.

Proveitosa leitura.

Nessa esteira em que reponta a delicada questão da autonomia intelectual, cabe sublinhar o

artigo de Glorinha Martini e de Wilton Ormundo, respectivamente diretora pedagógica e vice-diretor

pedagógico do Ensino Médio. Constitui verdadeira exposição de motivos que elucida a introdução das

disciplinas eletivas no currículo do Ensino Médio (“Sobre o peso da escolha”). Encontramos aqui não só

uma descrição dos conteúdos, mas uma preciosa fundamentação que pode ser resumida num subtítulo:

“escolho, logo me responsabilizo”. Essa iniciativa inova em sua busca de articular a formação básica

com competências específicas que guardam direta relação com as afinidades enunciadas pelos próprios

alunos. Eis um modo singular de superar aquilo que não se sabe e que muito se gostaria de ver ensinado

de forma sistemática.

Outra indicação recai sobre a valiosa reflexão que se ancora no campo da psicologia e que foi

levada a efeito por Tatiana Almendra, vice-diretora do Ensino Fundamental I, Maria de Remédios F.

Cardoso, diretora da Educação Infantil, e Wanessa Kelly e Silva Salvatore, coordenadora do 1º ano do

Ensino Fundamental. O artigo tem por título “Princípios para uma proposta de Educação Moral”. Nele, as

educadoras descrevem os passos para a formação de sujeitos detentores de consciência moral, patamar

inaugural para o “sentimento de pertença” e, sobretudo, para o exercício da cidadania. Afinal, como

deixar de investir na dimensão ética das novas gerações?

Mais um texto desafiador é o de Walter Spinelli, coordenador de Matemática do Ensino Médio

(“Estudar Matemática é perda de tempo: quem acredita nisso?”). Além de ressaltar as múltiplas e

variadas aplicações da matéria a situações de nosso cotidiano (a Matemática que “serve para alguma

coisa”), pontua utilidades derivadas, tais como a de nos municiar contra os engodos de vendedores

mal-intencionados e a de nos alertar contra as falácias das publicidades enganosas. Mais importante,

todavia, é a desmistificação que faz do “deus matemático”, esse fantasma que afugenta tantos alunos.

Spinelli mostra com absoluta propriedade como a disciplina transcende as miúdas serventias e contribui

decisivamente para desenvolver a capacidade de abstrair e conceber, faculdades determinantes para a

competente apreensão da realidade. Brilhante provocação intelectual que poderia ser generalizada para

as demais ciências.

Esta última edição da Revista da Móbile é mais um retrato do esforço redobrado de um grupo de

educadores cuja seriedade intelectual se traduz em jovens preparados para enfrentar os desafios do

estudo universitário e instrumentados para se tornarem agentes socialmente responsáveis.

Boa leitura!

MARIA HELENA BRESSER

Diretora Geral

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Projeto gráfico e editoraçãoFernando Alexandrinowww.letlive.com.br

FotografiasArquivo Móbile

Fotolitos e impressãoGráfica Editora Aquarela

REVISTA DA MÓBILE

EditorWilton de Souza Ormundo

TextosCleuza Vilas Boas BourgogneWilton de Souza Ormundo

RevisãoDébora ShinoharaRicardo Paulo Novais

MÓBILE

Direção GeralMaria Helena Bresser

Direção

Educação InfantilMaria de Remédios F. Cardoso

Ensino FundamentalCleuza Vilas Boas Bourgogne

Ensino Médio (Educacional)Blaidi Sant'Anna

Ensino Médio (Pedagógica)Glorinha Martini

ColaboradoresEDUCADORESAdriana GalvãoAlexandre FioriAline StroehAna Carolina C. D’AgostiniAndréa AssumpçãoAndréia Siqueira de FariaAndreza Martins de SouzaAntonio de Freitas da CorteCarla Pinto Retamales MazaroCaroline Fernandes de O. SantosClarissa MarianoCláudia Colla de AmorimCleuza Vilas Boas BourgogneDaniela Jaime LevinoDaniela RosaDanilo VasquesDébora ZardiEliana Mesquiatti TayanoFelipe CorazzaFernando SabaFlávia DuranIone CapucciJuliana CamachiJuliana Yokoo GarciaJúlio César RibeiroKelly Cristina Oliveira de AraújoKurtLarissa Rodrigues Dias PereiraLeonardo CosentinoLilian Henne ÉboliLuca CaltranLuciana Tomiatto de OliveiraLuiz Antonio FarinaMárcia RuizMaria de Remédios F. CardosoMichele CostaMônica Alves de Góes da SilvaMonika KuszkasPatrícia BacchiPaula Tonglet VasconcelosPriscilla RibeiroRafael BarufaldiRoberta Hellena B. De VitaRoberto CandeloriRogério GusmãoRodrigo MendesTatiana AlmendraTatiana NahasTeresa ChavesThaís Casagranda NevesValéria de Melo PereiraVivian Mantovani

ALUNOSAna Cecília SavagetAnna Catarina RomanAndré SalemAndréa LaseviciusArthur RipperBianca CarvalhalBruna Di BisciglieCardoso Franco AvancineCarolina KaracristoChristopher KapázClara AvanciniClara EmílioClara CappattoClara MunhózFernanda AlvesFernanda NemrFernanda Pestana HaddadGuilherme RainerIsabella ScuottoJulia AbibeJulia YenJoão AssadJúlia ScheinJúlia TakeutiJuliana De Rosa PeanoLuisa B. MontesMarcos ZlotnikMariana GrandeMariana Ros StefaniMarina BorgesMário TurollaOlivia LabanRenato Candido SevilhanoRicardo Marian AndradeTamara KlinkTeresa Caruso

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Marieta Severo

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Numa noite não chuvosa de outubro, 360 alunos e professores da Móbile adentraram uma sala de teatro para assistir à peça Incêndios, uma tragédia contemporânea com fortes elementos clássicos ligados a, principalmente, Édipo e Medeia. Protagonizando o espetáculo dirigido por Aderbal Freire Filho, uma das maiores artistas brasileiras, Marieta Severo. Nesta entrevista, a atriz carioca fala sobre sua atuação em Roda viva, um dos marcos do teatro de combate contra a ditatura militar imposta a partir de 1964, sobre seu exílio e, sobretudo, sobre seu papel como artista.

Revista da Móbile – Como é que você

caracterizaria a Marieta Severo estudante? Você

já pensava em ser atriz?

Marieta Severo – Eu era uma mistura de

menina rebelde com menina ótima aluna. Como

era muito boa aluna, os professores do Colégio

Bennett, no Rio de Janeiro, suportavam um pouco

a minha rebeldia. Não pensava em ser atriz, mas,

certamente, meu colégio teve grande influência

sobre minha posterior escolha. Na escola, havia

um auditório muito bom (melhor do que muito

teatro do Rio), onde se faziam várias atividades

artísticas. Eu dançava balé e queria ser bailarina

ou professora primária. O primeiro contato que

tive com alguma coisa próxima do teatro foram

os esquetes que fazíamos sobre temas históricos.

O Bennett propiciava isso. Eu sempre tive uma

paixão enorme por crianças e por contar histórias

a elas, e o colégio permitia que eu fizesse isso.

Contava histórias para os meus colegas e, quando

faltava alguma professora, eles me chamavam

para contar histórias para as crianças.

Revista da Móbile – Você não era nada tímida,

então?

Marieta Severo – Não era, não. Eu era meio

líder de turma, era metidinha à beça!

Revista da Móbile – Segundo o educador

francês Jean-Marie Goulemot, o que orienta

nossas posições ideológicas são as leituras que

fazemos ao longo da vida e que compõem nossa

“biblioteca cultural”. Que leituras, em sentido

amplo, guiaram – e formaram – você?

Marieta Severo – Para começar, em minha

infância, teatro infantil não existia. Eu comecei a

ver teatro lá pelos 14, 15 anos. Em meu aniversário

de 15 anos, ganhei de presente a ida ao teatro

Copacabana. Eu não tive acesso ao que minhas

filhas tiveram. Houve uma presença maciça do

teatro infantil na vida delas. Isso eu não tive.

Revista da Móbile – Você leu muito Monteiro

Lobato?

Marieta Severo – Muito. A minha primeira

paixão por leitura foi Monteiro Lobato. Não havia,

também, muita literatura infantil naquela época.

Aliás, fico admirada de como esse gênero se

desenvolveu da minha época para a das minhas

filhas e, mais ainda, daquela para a dos meus

netos. Há uma quantidade imensa de excelentes

livros hoje. Mais tarde, li a “Biblioteca das moças”

[coleção de mais de uma centena de romances

estrangeiros, publicada pela Companhia Editora

Nacional entre 1920 e 1960, dirigida a jovens

mulheres], e a “Menina e moça” [coleção inspirada

na Bibliothèque de Suzette, publicada na França

entre 1919 e 1965 e preocupada em prescrever um

bom comportamento moral e formação literária

para mocinhas].

Revista da Móbile – E Machado de Assis?

Marieta Severo – Machado entra em minha

formação quando eu já era adolescente. Lembro-

me de quando eu, com 15 anos, fui para o Instituto

de Educação, na Tijuca, depois de permanecer

mais de uma década no Bennett, onde entrei

aos três e saí aos quinze! No Instituto, senti-me

só, muito porque nenhum de meus amigos havia

ido para lá. Embora houvesse me decepcionado

um pouco com o novo curso e a nova escola,

descobri nesse lugar uma biblioteca maravilhosa.

Foi quando comecei a ler Machado de Assis, José

de Alencar e toda a clássica literatura brasileira.

Matava aula para ficar na biblioteca.

Revista da Móbile – E hoje você lê muito

textos dramáticos? Na Móbile, os alunos leem,

dependendo do ano, Édipo Rei, de Sófocles,

os autos de Gil Vicente e até já arriscamos a

leitura coletiva de Vestido de noiva, de Nelson

Rodrigues, mas é difícil fazer os estudantes lerem

teatro, dada a estrutura específica desse gênero

literário.

Marieta Severo – Eu leio bastante, gosto disso

e acho que é necessário que haja treino para a

leitura do texto dramático. É fundamental que

um ator saiba ler uma peça. Concordo que seja

difícil para um leitor comum fazer isso, mas um

ator precisa dessa prática e, aos poucos, aprende

a “completar” o texto teatral. Um ator tem que

ler muita peça; aliás, um ator precisa ler tudo,

especialmente teatro.

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Não pensava em ser atriz, mas, certamente, meu colégio teve grande influência sobre minha posterior escolha.

Revista da Móbile – Você participou da

encenação da primeira montagem de Roda

viva, de Chico Buarque, peça dirigida por José

Celso Martinez Corrêa que compõe um painel

de espetáculos de combate contra a ditadura de

1964. Você tinha consciência do papel político de

sua atuação nesse contexto?

Marieta Severo – Não. Eu tinha apenas vinte

anos quando participei de Roda viva. Engraçado...

as circunstâncias vão atribuindo valores e

fornecendo novas leituras para os fatos. Em

Roda viva, é claro, há um desabafo feito pelo

Chico Buarque, o autor, sobre um mundo – que

estava apenas começando – que tritura o ídolo

e o consome. A peça não tinha qualquer intenção

explícita política, engajada. Aos poucos, ela foi

adquirindo um tom político pelo contexto. Ela

precisou ser mais do que era.

Revista da Móbile – Você não se percebia como

uma figura que tivesse uma intenção política

contra um sistema que se mostraria avassalador

ao longo da década de 1960?

Marieta Severo – Eu não me percebia, não,

eu não era. Eu era uma atriz, uma jovem atriz

querendo trabalhar muito. Em princípio, eu não

queria fazer Roda viva. Eu fiz porque o Zé Celso

insistiu muito, eu não queria integrar o elenco

porque era namorada de Chico Buarque à época.

Ele me convenceu de que minha figura era

extremamente necessária para que se pudesse

falar desse ídolo, dessa cultura da celebridade.

Ainda bem que insistiu, porque gostei de fazer

Roda vida. Não posso negar que, naquela época,

a efervescência política chegava a todo mundo,

eu participava de todas as reuniões dos artistas

e estudantes, entendia as manifestações de rua,

realizadas a partir de 1964. Entre 1964 e 1968,

quando o regime militar se radicalizou, eu era

muito jovem; não era engajada, mas tinha a minha

sensibilidade política. Em minha casa se falava

muito de política. Meu pai havia sido um líder

estudantil, depois virou advogado e, mais tarde,

desembargador. Participei de algumas passeatas,

mas não tive um engajamento maior do que esse.

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Revista da Móbile – O que permanece daquela

moça que buscava um teatro de ruptura, como o

que propunha Roda viva, na Marieta de 67 anos?

De que forma você dialoga com os inventivos anos

1960, em que você tinha vinte e poucos anos e

muita disposição para o combate?

Marieta Severo – O que permanece é um

alinhamento meu, interno, com trabalhos e

espetáculos que tenham um valor artístico, um

valor de conteúdo, um valor teatral importante.

Sempre procurei escolher meus trabalhos

pautando-me em valores que são importantes

para mim. Sempre tive necessidade de estar

em cena para dizer alguma coisa que julgasse

importante. Esse desejo estava naquela jovem

que foi fazer Roda viva e nessa mulher que fala

com você agora.

Revista da Móbile – Parte da imprensa fala de

sua mudança para Roma, no contexto da ditadura

militar, como uma espécie de “autoexílio”, ainda

que imposto.

Marieta Severo – Foram quase dois anos de

exílio e não foi uma opção. Chico e eu fomos viajar

para o Festival de Montreux. Eu estava com uma

barriga de sete meses, grávida de minha primeira

filha. Era para ficarmos fora apenas vinte dias,

autorizados pelo meu ginecologista, mas, por

telefone, ficamos sabendo da prisão de Caetano

Veloso e de Gilberto Gil. Estou falando de janeiro

de 1969. O Ato Institucional número 5 [o mais

restritivo deles] data de dezembro de 1968. Tudo

começou a ferver no Brasil: censura, repressão,

violência. Então, começamos a receber recado:

“Se o Chico voltar, ele vai ser preso também.”

Então, não foi um autoexílio. Não tínhamos a

opção de voltar, embora eu quisesse. Havia o

enxoval, o quartinho de Sílvia [Buarque]... eu

não conhecia nada, mal falava italiano, que fui

aprender, na marra, para poder me comunicar com

o ginecologista de lá.

Revista da Móbile – Você é muito conhecida

por suas atuações na televisão, veículo que tem

uma popularidade gigantesca. Você é contratada

da TV Globo?

Marieta Severo – Durante toda a minha vida, tive

contratos fechados para realizar as telenovelas

das quais participei na Globo, mas foi somente a

partir do programa A grande família que passei a

ter um contrato maior.

Revista da Móbile – O público que assistiu à

série A grande família vem ver Incêndios?

Marieta Severo – O público da TV é enorme e

variado. Grande parte dos espectadores que veem

aqui assistir a Incêndios assistiu à série A grande

família e me procura para lamentar que ela tenha

chegado ao fim.

Revista da Móbile – Há uma crença por parte da

classe teatral de que um público médio de TV não

compreenderia um espetáculo mais elaborado do

ponto de vista estético e filosófico, como é o caso

de Incêndios. Você acredita nisso?

Marieta Severo – A TV precisa se comunicar

com milhões de pessoas porque é um veículo de

massa. Gosto de pensar que quando escolho uma

peça para realizar, pautando-me na qualidade

artística que tem, ela conseguirá se comunicar

com a plateia que vem me ver em sua diversidade.

Mas considero interessante que existam

espetáculos de alta pesquisa, mais herméticos,

mais difíceis de serem decifráveis e que alcancem

um público menor, que não gosta da televisão. Eu

não escolho um texto porque seja mais fácil, mais

compreensível. Penso que ele precisa estabelecer

uma comunicação direta com gente, como é

o caso de Incêndios, uma peça que emociona,

envolve as pessoas e que é construída a partir de

conteúdos humanos fortes.

Revista da Móbile – A Móbile acredita que

é possível levar seus estudantes para assistir

a peças de diferentes linguagens e propostas

estéticas, mais ou menos herméticas. Neste ano,

por exemplo, o Ensino Médio assistiu a uma

releitura contemporânea de Vestido de noiva,

feita pelo Grupo XIX de Teatro, e a O grande circo

místico, numa montagem carioca.

Marieta Severo – Posso dizer uma coisa,

completando o que disse e já dando razão a você.

Eu montei uma peça do [Fernando] Arrabal [escritor,

dramaturgo e cineasta espanhol], um tipo de teatro

hermético e louco, e realizamos uma temporada

popular no teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro.

Tínhamos fila que dava volta no quarteirão para

ver o Arrabal. Foi, sem dúvida, nossa melhor

plateia. As pessoas assistiam na ponta da cadeira

e adoravam, e é uma peça difícil de ser decifrada,

não há uma narrativa, é bastante simbólica.

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Revista da Móbile – Você tem dois teatros,

o Poeira e o Poeirinha. De que maneira esses

espaços estabelecem um diálogo com o entorno,

com a população, com a classe teatral?

Marieta Severo – No Poeira, temos, minha

comadre e sócia [a atriz] Andréa Beltrão e eu, além

das peças teatrais em cartaz, três programações:

o “Artista residente”, o “Artista visitante” e o

“Puente”, oferecidos gratuitamente e patrocinados

pela BR Petrobras. São programas que atendem a

todo tipo de aluno e oferecem cursos experimentais,

workshops, laboratórios. A programação é muito

boa e não se paga nada por ela.

Revista da Móbile – Você atuou em espetáculos

como Quem tem medo de Virginia Woolf (2000),

de Edward Albee, e Os solitários (2002), de

Nicky Silver, que podem ser considerados opções

artísticas difíceis, pois são textos que contam com

personagens desenquadradas, desequilibradas,

no limite. É no teatro que você se arrisca?

Marieta Severo – Completamente. Eu não quero

parar para pensar se aquela senhorinha que me

assiste na novela e no seriado vai gostar. Faz parte

você não agradar a todo mundo. Gosto de pensar

que aquilo que estou fazendo é muito importante

para mim naquele momento. Gosto de acreditar

que estou falando a coisa mais importante do

mundo em cena, no momento em que me ponho

a falar. Preciso, pelo menos, ter a ilusão de que

o que falo está sendo útil para as pessoas que

me ouvem.

Revista da Móbile – E como mãe, e agora avó,

de que maneira você orientou as escolhas de seus

filhos?

Marieta Severo – Na minha geração, tudo

era experimental. Essa foi a palavra de minha

geração. Nem sabíamos o que exatamente

estávamos experimentando, mas tínhamos o

compromisso com o romper fronteiras, o quebrar

limites, o romper dogmas, romper, romper... Então,

é claro que minhas filhas foram estudar em uma

escola dita experimental. Mas penso que o mais

importante com os filhos, com as crianças seja

o que você faz, e não o que você diz. O mais

importante é o seu comportamento. A criança

fotografa você o tempo todo, não adianta ter um

discurso e ter uma atitude contraditória. Essa é a

maior certeza que tenho.

Revista da Móbile – E o que suas filhas

quiseram fazer profissionalmente você concordou

com essas escolhas?

Marieta Severo – Completamente. Há uma atriz,

uma pedagoga e uma filósofa. Jamais impus nada

a elas nesse sentido.

Nononononononnonno

Sempre tive necessidadede estar em cena para dizer alguma coisa que julgasse importante. Esse desejo estava naquela jovem que foi fazer “Roda viva” e nessa mulherque fala com você agora.

18 19

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e x p r e s s õ e s & i m p r e s s õ e s

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Moscou, 22 de junho de 1897. Essa data marca

profundamente a história do teatro no mundo. Nesse

dia, Constantin Stanislavski e Nemirovitch-Dantchenko

sentaram-se por dezoito horas ininterruptas e criaram o

conhecido Método Stanislavski ou Método da Verdade,

como muitos o chamam. Esse conjunto de procedimentos

convidava o ator a buscar a “perfeição” de um personagem,

fugindo a qualquer estereótipo, ou seja, ele obrigava o artista

a interpretar o papel de um personagem exatamente como

ele seria (se fosse real). E como isso se dava na prática?

No teatro, antes da era Stanislavski, se um personagem

fosse fazer uma declaração de amor a outro, o ator se

ajoelhava no chão, abria os braços e gritava loucamente,

e de maneira exagerada: “EU TE AMO!!!!” (com todas

essas exclamações). Entretanto, na vida real, se estamos

apaixonados, é mais frequente que olhemos nos olhos de

quem amamos para dizer, geralmente em voz baixa, de forma

sincera, um simples “eu te amo”. É essa simples verdade que

o ator, utilizando o Método Stanislavski, passou a buscar.

No Ensino Médio da Móbile, optamos por trabalhar

com a concepção de ator-criador. Foi assim que, em 2013,

cada um dos alunos matriculados nas eletivas de Teatro I

(1º ano) e Teatro II (2º ano) recebeu seu papel, apropriou-se

dele e criou gestos próprios para seus personagens. Jogos lúdicos, exercícios teatrais e de improviso e

leitura dramática foram propostos antes dos ensaios dos espetáculos montados ao final do curso. Como

sempre, o processo se revelou mais importante do que as peças apresentadas no auditório. Ao longo do ano,

testemunhei corpos e faces mais expressivas, além de figuras, aparentemente tímidas, se comunicando sem

a menor dificuldade com quem quer que fosse.

O ator-criador{Alunos de 1º e 2º ano do Ensino Médio apresentam montagensteatrais como finalização do curso eletivo de Teatro.

2322

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Um convite aos atemporais sonhos dos jovens

Chico recortado

Quem não se lembra desses versos de “Flor da idade”, canção de Chico Buarque composta

originalmente para o musical Gota d’água? Quem não se recorda de um amor adolescente não

correspondido? Quem não viveu (ou vive) a experiência do amor/amar verbo intransitivo? Há séculos que

a literatura se ocupa de expressar os encontros e desencontros motivados pelo sentimento mais cantado

pelos poetas, romancistas, contistas e dramaturgos.

Sem medo de um derramado (e bem-humorado) lirismo, os jovens atores do 2º ano do Ensino Médio,

matriculados na pioneira disciplina eletiva Teatro II, se aventuraram na singela montagem de Sonho de

uma noite de verão, de William Shakespeare.

Foi, provavelmente, no século XVI, que o público (inglês) deliciou-se pela primeira vez com uma

montagem de Sonho de uma noite de verão. De lá para cá, o mundo mudou, o teatro mudou, o espectador

mudou; todavia, o interesse de nossos alunos pelo tema da peça de Shakespeare só confirma uma coisa:

Píramo e Tisbe ou Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta ou Dante e Beatriz ou Diadorim e Riobaldo ou

Bentinho e Capitu ou Hérmia e Lisandro, Demétrio e Hérmia, Helena e Demétrio... não importa o nome

que o amor tenha, ele continua a nos inquietar e a nos mover!

O projeto de Artes Cênicas do 1º ano de 2013 do Colégio

Móbile teve como proposta a criação coletiva de duas peças

teatrais que tiveram por base canções do autor e compositor

carioca Chico Buarque.

Ao longo do processo, a preocupação central foi o

desenvolvimento de um texto que tivesse a mão de cada

um dos alunos, e o principal desafio foi a transposição dos

sentimentos que eram passados por uma linguagem musical

para outra linguagem, a teatral. Para atingir esse objetivo,

foi importante que, por meio de improvisações e reflexões,

os alunos trouxessem para o palco amores, angústias,

aflições e alegrias vividas para que, assim, se apropriassem

das canções e, mais do que isso, criassem seu próprio

jeito de entendê-las e expressá-las. Durante os trabalhos,

descobriu-se, ainda, de que forma recursos como o sonoro, o

cenográfico e o de iluminação, tão caros ao teatro, poderiam

contribuir para a concretização da proposta.

Uma das turmas escolheu a canção “João e Maria” como

fonte de inspiração para a criação de sua peça (homônima),

que resultou em uma história de amor jovem e de crítica aos

preconceitos sociais entre diferentes grupos.

Já a segunda turma, por meio do espetáculo A viva dor,

optou por fazer uma crítica à sociedade e à sua capacidade de

se acomodar às situações cotidianas, mencionando, ainda, o

tema da ditadura militar brasileira, presente na emblemática

canção “Roda viva”.

“Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo / Que amava Juca que amava Dora que amava / Carlos que amava Dora / Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava / Carlos que amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava / a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha”{ }

Fernando Saba é professor

de Teatro do Ensino Médio.

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Estudar, estudar e estudar um

tanto mais... seria óbvio apostar

que nenhum adolescente

escolheria esse “tanto mais” para

inserir em sua rotina semanal.

Mas não é isso que acontece no

Ensino Médio da Móbile. É claro

que os jovens daqui gostam de

sair, encontrar os amigos, viajar,

ouvir música, mas, além de tudo

isso, ainda se interessam por

conhecer. Pensando nisso, desde

2008, desenvolveu-se no Ensino

Médio um projeto de Iniciação

Científica. Todos os anos, 18

alunos do 2º ano, interessados

em pesquisar um tema próprio,

são selecionados por um grupo

de professores. Essa pesquisa

tem duração de um ano e é

finalizada com a produção de

uma vídeoaula.

Não são poucas as escolas

brasileiras que submetem

seus alunos a uma avalanche

de avaliações, exigindo deles a

mera reprodução de conteúdos,

selecionados unicamente a partir

daquilo que é exigido pelos

grandes concursos vestibulares e

pelo Enem. Pensamos diferente.

Um projeto que envolva pesquisa

no Ensino Médio permite que

se aprenda a planejar e, ao

mesmo tempo, a criar. Aprender

a pesquisar significa saber como

planejar etapas, construir linhas

de raciocínio e argumentar de

forma autônoma. A criação de

uma vídeoaula permite uma

maior expressão desse jovem,

empenhado em conhecer e em

transmitir seu saber.

Temos percebido, com alegria,

que ano a ano a tarefa de

selecionar os alunos vem se

tornando cada vez mais árdua; os

muitos vídeos postados em nosso

canal oficial (www.youtube.com/

user/mobileiniciacao) servem de

motivação para os candidatos,

que só fazem se multiplicar. Esse

trabalho de pesquisa ocorre

em paralelo ao estudo regular

e está totalmente desvinculado

de avaliações ou notas. O aluno

se propõe a estudar e recebe a

orientação personalizada de um

professor que tem formação na

área da pesquisa proposta. Nesse

projeto, o aluno, literalmente,

arruma “mais coisa pra fazer”!

O trabalho de pesquisa seduz os

adolescentes, pois se apresenta

como um espaço de criatividade

e conhecimento. É possível ser

autor do tema estudado, autor

da própria pesquisa, assim

como expressar criativamente

saberes acadêmicos por meio

da rica linguagem audiovisual.

É interessante acompanhar

estudantes que, em tempos de

tanta informação, de concursos

e de velocidade, estão dispostos

a conhecer e a aprender cada vez

mais. As leituras a que os alunos

têm acesso são mais complexas,

o trabalho acadêmico, intenso e,

ao mesmo tempo, lúdico.

Dois eixos permeiam a Iniciação

Científica. O eixo temático

específico de cada trabalho

e o audiovisual. Os alunos da

Iniciação Científica acabam

por formar um coletivo, já que

discutem e aprendem juntos

como se comunicar por meio

dos vídeos. São oferecidas

aos orientandos oficinas de

edição e aulas sobre lingua-

gem audiovisual para que

eles aprendam a desenvolver,

também, a forma, e não apenas

o conteúdo acadêmico.

As vídeoaulas podem abordar

os mais diferentes temas. Elas

tratam de buracos negros, de

mitologia, de música, de aurora

boreal, de epilepsia, poesia e

barcos, de física ou biologia.

A diversidade de assuntos

estudados enriquece mais

esse espaço de criatividade na

escola.

26

Planejamentoe Criatividade

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Conheça os trabalhos desenvolvidos pelos alunos entre 2013 e 2014.

EpilepsiaAutora: Júlia Schein

Orientadora: Tatiana Nahas

A epilepsia já foi vista de diversas formas ao longo

da história. De doença demoníaca a terremotos

cerebrais, muitos foram os estereótipos associados

a essa enfermidade que atormenta seus portadores.

Casos ilustres, como o de Machado de Assis,

Dostoiévski e Van Gogh, são abordados ao longo

do vídeo com o objetivo de desmistificar e melhor

caracterizar essa patologia. Além de apresentar o

que a ciência já conseguiu reunir de informações

a respeito das alterações elétricas que ocorrem no

cérebro do epiléptico, a vídeoaula mostra quais são

as perspectivas atuais e futuras de desenvolvimento

de tratamentos para a enfermidade.

As doenças mentaise o cinemaAutora: Fernanda Nemr

Orientadora: Tatiana Nahas

O que é uma doença mental? Que comportamentos

caracterizam um “louco”? As respostas a essas

perguntas sempre vêm carregadas de muitos

estereótipos e preconceitos. Sendo o cinema uma das

mais difundidas formas de expressão na atualidade,

tais estereótipos costumam ser transpostos para

as representações das doenças mentais nessa

arte. Essa vídeoaula procura mapear quais são os

estereótipos associados às doenças mentais e como

se dá sua representação em produtos audiovisuais.

Por meio do contraste entre essas representações e

a caracterização das doenças mentais em manuais

psiquiátricos, o vídeo procura desmistificar essas

enfermidades e seus portadores.

NeuroengenhariaAutora: Bruna Di Bisciglie

Orientadora: Tatiana Nahas

A neuroengenharia é hoje o principal desdobramento

tecnológico da neurociência e tem se concentrado,

principalmente, no desenvolvimento de interfaces

cérebro-máquina que propiciem melhores condições

de vida a pacientes paraplégicos. Um exemplo disso

é o exoesqueleto cujo protótipo foi apresentado na

abertura da Copa do Mundo de 2014. As pesquisas

científicas que levaram ao desenvolvimento dessa

e de outras soluções tecnológicas para a paraplegia

são explicadas nessa vídeoaula por meio da

caracterização do mecanismo de neuroplasticidade,

que permite que o comando cerebral se estenda

também para membros robóticos.

Assimetria entrematéria e antimatériaAutora: Andréa Lasevicius

Orientador: Hugo Carneiro Reis

O vídeo explica a disparidade que possibilitou

a formação do universo como o conhecemos. É

oferecido um panorama desde o Big Bang até as

recentes pesquisas feitas no LHC (Large Hadron

Collider).

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A música e o cérebroAutora: Clara Avancini

Orientador: Marcos Engelstein

A música está presente no nosso dia a dia, mas

nem sempre entendemos o porquê das emoções

que ela causa. O que acontece no sistema nervoso

enquanto alguém está ouvindo uma canção? Ou

o que está acontecendo quando, além de ouvir,

tocamos um instrumento? Esse vídeo busca mostrar

alguns dos efeitos da música no cérebro, explicar o

prazer proporcionado pela música e mostrar como

os músicos desenvolvem a habilidade musical.

Aurora borealAutora: Isabella Scuotto

Orientador: Décio Vanzella

Pouco conhecida no Brasil por sua rara ocorrência

no hemisfério Sul, a aurora boreal é um encantador

fenômeno luminoso. Nesse vídeo, explica-se desde

a origem desse espetáculo no Sol até seu contato

com a Terra.

O cone de luzAutora: Clara Cappatto

Orientador: Hugo Carneiro Reis

A luz e suas propriedades guardam um dos maiores

mistérios do mundo. Nada nunca conseguirá alcançar

sua velocidade, mas sempre podemos sonhar com o

impossível. E se pudéssemos realmente viajar à

velocidade da luz? Como veríamos nosso mundo?

O vídeo pretende contribuir com essas discussões.

Os heróise suas históriasAutora: Mariana Ros Stefani

Orientador: Felipe Corazza

Quando pensamos em filmes e livros que fizeram

sucesso nos últimos anos, é inevitável que

percebamos as diversas semelhanças existentes

entre eles. E mais: quando comparamos essas

histórias, e seus respectivos heróis, com as histórias

e os heróis das histórias dos antigos mitos, também

percebemos muitas semelhanças. O que há de tão

importante nas histórias dos heróis que seja capaz

de encantar tantas pessoas? Qual é a importância

do herói? O vídeo discute essa e outras questões.

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Fela KutiAutor: João Assad

Orientador: Felipe Corazza

Para compreender quem foi Fela Kuti, é necessário

primeiro enaltecê-lo para depois desmistificá-lo.

O essencial, no entanto, na caracterização de

uma personalidade tão revolucionária em vários

aspectos, é reconhecê-la como um conjunto de

fatores que a moldaram. O sujeito deste trabalho

não se diferencia, nesse aspecto, de grandes

influências políticas amplamente aclamadas pela

própria história e pela sociedade ocidental, como

Martin Luther King e Mahatma Gandhi. O vídeo

defende a necessidade de reconhecimento de Fela

pela cultura ocidental.

O adeus dos barcosdo BrasilAutora: Tamara Klink

Orientador: Felipe Corazza

Infinitos são os tipos de barcos tradicionais já

produzidos no litoral do Brasil. Muitas vezes

analfabetos, os mestres navais produzem seus

barcos, passando suas técnicas oralmente de

geração a geração. O vídeo mostra que, atualmente,

uma série de fatores torna cada vez mais rara a

produção naval tradicional.

Permanência do mitoAutor: André Salem

Orientador: Felipe Corazza

O vídeo parte do pressuposto de que a vida em

qualquer época, inclusive contemporânea, é rodeada

de elementos mitológicos. Nós não contamos

sempre as mesmas histórias, mas há uma essência

comum entre narrativas de qualquer tempo que

prova que a mitologia ainda existe hoje, e sempre

existirá, mesmo que sua maquiagem mude.

A história da infânciaAutora: Júlia Takeuti

Orientadora: Denise Mendes

A infância é a fase da vida da qual boa parte

das pessoas deseja se lembrar. O vídeo discute

questões como: a infância, considerada hoje

essencial, sempre existiu? Como será que ela se

desenvolveu até chegar a adquirir a simbologia que

tem na contemporaneidade?

Felipe Corazza é professor

de Filosofia no Ensino Médio

e coordenador da Iniciação

Científica.

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O mundo é feito de átomos,de formas, de cores, de artee, principalmente, de histórias. São elas que permitem transformar o passadoem presente, o impossívelem visível, o distante em próximo.

(Fragmento do texto de apresentação da Mostra, escrito pela professora de Português do Ensino Fundamental II Valéria de Melo Pereira.)

XI Mostra de Artes da MóbileAmérica do Sul Tal e Qual, Outro Tal

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Mais do que expor obras dos alunos, imaginadas e concretizadas em pincéis, cores, construções

tridimensionais, a XI Mostra de Artes mergulhou os visitantes nas reflexões acerca de quem somos –

nós, habitantes da América do Sul – e de como a arte pode nos fazer olhar para o que merece ser visto

ao longo da “construção da identidade cultural” de um continente.

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Depois de finalizada a concepção do que seria a Mostra, os professores da Móbile trataram

de sensibilizar os alunos para o tema geral e para a compreensão do elo entre o trabalho

específico de cada grupo e a ideia que permeava cada módulo do projeto final. Uma

vez contextualizado o artista que seria utilizado como referência, bem como o papel que

ele representava na busca da arte própria do continente sul-americano, o fazer artístico

foi envolvente e intenso! Manipulando pedras e galhos, decorando rodas laminadas,

compondo esculturas, abusando da dança do pincel sobre telas e papéis, brincando com

luzes e sombras, produzindo relevos, tecendo arames... nossos artistas expressaram ideias

representando nossa América do Sal... do Sol... do Sul!

Traços, curvas e cores marcaram de modo significativo, nos alunos, aquilo que

pretendíamos que conhecessem – a construção da identidade cultural e da arte na América

do Sul. No visitante, o propósito foi satisfeito: fazê-lo sentir a síntese do que somos e

refletir sobre o que nos universaliza e nos diferencia.

Uma visita virtual à Mostra América do Sul Tal e

Qual, Outro Tal pode ser feita no site da Escola

Móbile (http://www.escolamobile.com.br/

arquivos/2013/fundamental/mostra-de-artes/)

Eliana Mesquiatti Tayano foi vice-diretora do Ensino Fundamental

até junho de 2014 e colaborou com a construção do projeto

pedagógico da Móbile por mais de trinta anos.

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Viver, sonhar, representar“Eu via — que a gente era outros — cada um de nós, transformado” (...) “Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver?”

(Guimarães Rosa, “Pirlimpsiquice”).

Teatro e sonho caminham lado a lado. A fantasia

é a mola propulsora de ambos. São espaços de

criação e de autoconhecimento. No teatro e no

sonho, o corriqueiro da linguagem se reveste de

variados sentidos.

Na dramaturgia dos sonhos, fundem-se e

confundem-se espaços, tempos, personagens e

situações, dando origem a narrativas que dialogam

com nosso inconsciente.

No sonho da dramaturgia de Invencionática,

espetáculo apresentado pelos alunos do 9º ano

de 2013, fundiram-se e confundiram-se os 131

alunos que, ao longo de dois meses de ensaio e

5 apresentações, deram vida a textos de poetas,

cronistas, filósofos e compositores.

O frio na barriga. O brilho nos olhos. O gesto

preciso. A voz verdadeira dos meninos e meninas

que falaram sobre os sonhos que temos, os sonhos

que abandonamos sem sonhar, os sonhos que

ainda sequer conhecemos...

A experiência criadora certamente foi e será

marcante na vida dos pequenos atores, que

se permitiram libertar-se das amarras de uma

realidade acinzentada e colorir com traços

vigorosos a folha branca e limpa da vida.

Rogério Gusmão é professor de Português do 9º ano

do Ensino Fundamental.

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54 59

42 43

A dimensão moral e a convivênciana WebVocê tem algum perfil em alguma rede social?

Você já enfrentou algum conflito nas redes sociais?Sim

6º ano6º ano

8º ano

7º ano

9º ano

8º ano

7º ano

9º ano

Não

118

133

124

121

17 11

15

59

76 82

53

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Não é raro nos encantarmos pelas transformações que as TICS (Tecnologia da Informação e da

Comunicação) provocam em nossos comportamentos cotidianos. Somos, ininterruptamente, surpreendidos

por novos cenários de conforto que as facilidades do mundo contemporâneo nos proporcionam, sem nos

darmos conta de que a dimensão veloz do tempo também inibe nossa disponibilidade para reflexões

mais amplas e duradouras sobre os dilemas decorrentes das novas formas de produção de saberes e

de relacionamento entre as pessoas. Numa época de avanços rápidos, nosso cotidiano é remodelado

continuamente e nossas relações sociais são impactadas nos mais diversos cenários: familiar, escolar e

profissional.

No âmbito escolar, em que nós, educadores, nos comprometemos a conjugar o acervo técnico, científico

e cultural conquistado pela humanidade com o que está por vir (sempre numa perspectiva de potencializar

as capacidades do sujeito para superar desafios futuros, que são e serão muitos), em tempos em que as

relações humanas têm se mostrado mais vulneráveis diante das múltiplas formas de comunicação digital, a

função da escola tem sido imprescindível para o desenvolvimento de crianças e jovens capazes de conduzir

suas escolhas pautadas em princípios que considerem tanto o próprio bem-estar quanto o da coletividade.

Distante da intenção de abrir um debate ingênuo sobre os avanços tecnológicos, que são

reconhecidamente muitos e valiosos para a qualidade da vida atual, o percurso aqui proposto será o da

reflexão sobre qual pode ser (ou é) a fronteira entre os recursos que a tecnologia da comunicação oferece

e a influência deles na qualidade das relações interpessoais. Sem dúvida, o movimento contínuo do ser

humano para avançar e superar os próprios limites tem proporcionado à humanidade benefícios materiais

e a melhoria das condições de vida daqueles que têm acesso a eles. Com as conquistas das ciências, as

informações circulam mais e as pessoas têm conseguido, inclusive, driblar limites físicos considerados

intransponíveis no passado. O que queremos dizer é que as conquistas da tecnologia não estão em pauta

neste artigo. O foco se centra em reflexões sobre os comportamentos que crianças, adolescentes e adultos

têm mostrado nas mídias digitais.

A internet, por meio de sites, blogs, redes sociais e de inúmeros aplicativos isentos ou não de qualquer

compromisso com o bem-estar do outro, tem possibilitado o acesso irrestrito a informações e espaços,

como também o contato contínuo com profissionais, amigos, familiares e desconhecidos, reestruturando as

fronteiras entre as pessoas e eliminando o tempo necessário para que entrem em contato com aflições e

angústias, naturais da vida. O ambiente virtual, pautado pela velocidade, pelo anonimato e, também, pela

desmedida, tem imprimido novas marcas às experiências de coexistir. Independentemente da qualidade da

informação, o que prevalece é a premissa segundo a qual a comunicação é imprescindível para o mundo

girar, para a vida acontecer.

Não é de hoje que os setores da tecnologia investigam novos mecanismos de entretenimento e se

especializam em estratégias para criar, nos usuários, lugares simbólicos que pretendem neutralizar os

sofrimentos envolvidos no ato de coexistir. E mesmo sabendo que isso não é possível, poucos ou raros

indivíduos permanecem impermeáveis aos encantos da tecnologia. Mesmo que a facilidade de estar

conectado ininterruptamente a milhares de pessoas não seja garantia de ser admirado e valorizado, até

porque essa meta não se torna real nem com os esforços dos aplicativos que se especializam em plantar a

perspectiva de “celebridade” nas pessoas, a cada segundo, multidões tornam-se obcecadas por conseguir

ínfimos segundos de existência na vida de outras pessoas, mesmo que seja postando uma self solitária

ao acordar.

Cultura do efêmero. Não tem sido ínfimos, portanto, os efeitos da navegação virtual nas

relações interpessoais: a falsa sensação de pertencimento, a potencialização da covardia e de seu oposto,

a perversidade, a ausência de privacidade (e a própria revisão desse conceito), a exposição excessiva a

conteúdos de qualidade duvidosa, a pouca resistência à frustração, a exacerbação dos conflitos, a redução

da capacidade de empatia e, por conseguinte, das experiências essenciais que humanizam as pessoas.

Em um ambiente cuja premissa é a efemeridade, não é de se estranhar que reações súbitas e egoístas

não sejam motivo de vergonha para seus autores. Com regularidade, postam-se imagens, comentários,

desabafos e boatos que visam ao desrespeito de outrem, ou por quem não se tem grande simpatia ou com

quem se estabeleceu uma relação conflituosa.

Diante de todo esse panorama, se faz necessária a premência de se estender o debate da formação

moral para todos os ambientes de coexistência, incluindo o universo digital que, em sua sedutora agilidade,

parece não dar tempo para a emoção ser filtrada pelo intelecto. Com frequência, quando algo não sai como

o planejado no universo da conectividade e a frustração se instaura, razão e emoção desconectam-se.

Sabendo que os conflitos fazem parte de qualquer relação humana, em qualquer idade e espaço,

e que há diferentes maneiras de se lidar com esses conflitos, na Móbile, desde a Educação Infantil,

sempre assumimos o compromisso com o desenvolvimento da dimensão moral do sujeito. Justamente por

reconhecermos, no contexto escolar, o ambiente propício para se promover a experimentação de inúmeras

possibilidades de convívio entre crianças e adolescentes, sempre investimos em um projeto pedagógico

pautado em reflexões sobre a qualidade da convivência no cotidiano escolar.

Ancorados no princípio de equidade, respeito à igualdade de direito de cada um, os alunos participam,

todo início de ano, de reuniões em que se propõem a responder à pergunta “Como queremos conviver

no recreio, na sala de aula, na quadra, na cantina...?” Nesse percurso investigativo que realizam para

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chegarem a um consenso do que traz felicidade e bem-estar a todos, eles revisitam situações, hipotetizam

conflitos, indagam-se sobre justiça, respeito mútuo, dignidade. Só então, por meio da premissa simples

“Não faço aos outros o que não quero que façam comigo.”, estabelecem o que é esperado e o que não

é esperado para todos que compartilham o mesmo espaço de convivência. Constatamos que reflexões e

acordos como esses sempre se apresentam mais efetivos para a vinculação dos alunos aos combinados.

Com regularidade, instaura-se, em cada um, o que chamamos de “sabedoria individual”, ou seja, um

movimento interno de responsabilidade e compromisso com os princípios que foram acordados pelos pares.

Quando o grupo reconhece o valor do respeito a um sujeito, a fim de preservar a liberdade e a dignidade

de todos, instaura-se, então, o que podemos chamar de uma “sabedoria coletiva”, que orienta como lidar

com as diferenças e os conflitos.

Assim, uma lista interminável de “leis” não se faz necessária para regular todo e qualquer

comportamento, basta o acordo de princípios que baliza a decisão do sujeito sobre como agir em cada

situação. E é, nesse ponto, que adentramos a formação ética de nossos alunos, porque ela tem a ver com

a cultura que valorizamos e preconizamos para regular a vida que desejamos ter. São por meio dessas

práticas constantes de reflexão mediadas, em que se valoriza o pensar sobre os princípios que preservam

a qualidade das relações sociais, que se desenvolve a tão almejada autonomia moral.

E as crianças e os jovens são capazesde transferir espontaneamente

para o ambiente virtual as aprendizagenssociais que ocorrem

dentro dos muros da Móbile?

A resposta é não.

Enquanto na Móbile construiu-se a cultura de resolução de conflitos calcada no princípio de respeito à

liberdade e dignidade do outro, em grande parte dos ambientes virtuais que se propõem a conectar pessoas

infelizmente não há essa mesma preocupação. Inúmeros aplicativos estão pautados na premissa de que se

pode publicar mensagens anonimamente, criar campanhas com o simples objetivo de constranger alguém,

deletar instantaneamente pessoas com quem não se concorda, sem se importar com o sofrimento alheio.

São mecanismos que, deliberadamente, transformam o sujeito em alguém incapaz de coexistir com as

diferenças e a diversidade. Enquanto na escola há um esforço para a inclusão, para a alteridade; nas redes

virtuais, ao contrário, excluir ou denegrir o outro é preceituário, e, lamentavelmente, não produz mal-estar

em quem provoca a dor alheia, tampouco em quem compactua.

Outra faceta do contexto virtual é o discurso da competição implacável, fomentado o tempo todo: para

se obter reconhecimento, não basta ser alguém que atingiu um determinado objetivo, mas sim a pessoa

que atingiu o objetivo antes dos outros; não importa se o comportamento colaborou para uma convivência

justa e digna para todos, a meta é sair ileso. A cilada de alguém ficar demasiadamente embevecido pelo

perfil idealizado que criou sobre si só reduz, portanto, sua capacidade crítica de pensar sobre o sentido de

tudo o que faz e para que faz.

Retomando, portanto, a ideia de que a moral não se desenvolve espontaneamente e que diferentes

organismos da sociedade estão inevitavelmente imbricados nesse processo complexo, podemos afirmar,

sem temer parecer antiquado, que muitos ambientes virtuais nos prestam um desserviço, pois

definitivamente atrapalham nosso engajamento para uma existência mais harmoniosa.

Numa época de avanços rápidos, a ação de refletir precisa estar a serviço de avaliar a qualidade de

tudo o que se apresenta a nós e a nossos alunos. Trata-se de uma atitude preventiva que visa à constante

e necessária análise crítica do que a humanidade cria e divulga. E é numa relação ambígua com as mídias

digitais que se pauta a segurança de nossas crianças e adolescentes, pois as tecnologias de comunicação

encerram em si, concomitantemente, o avanço e o risco.

Enquanto a massa aplaude as inovações porque elas são representações de avanço e sinal de

contemporaneidade, o compromisso de nós, pais e educadores, é analisar as variáveis que se colocam

em um ambiente que, muitas vezes, está carente de princípios, como respeito, um imperativo para a

convivência em grupo.

Cleuza Vilas Boas Bourgogne é diretora pedagógica do Ensino Fundamental.

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48 49

O que a Móbile tem feito?

A convivência das crianças no espaço escolar é um grande tema de trabalho, de reflexão e de exercício

social. Essencialmente diferente da esfera da família, a coletividade escolar antecede a vida das crianças

e dos jovens no espaço público, na sociedade. Assim, o convívio não só estimula um crescimento pessoal,

nem sempre imune a uma dose de sofrimento e frustrações, mas também confere às crianças noções

importantes acerca da realidade e dos limites intrínsecos a ela. Se esse intercâmbio entre os aspectos

individuais e sociais é inerente à vida escolar, transformá-lo em objeto de conhecimento e, portanto, tratá-lo

como conteúdo a ser desenvolvido no cotidiano escolar é uma tarefa fundamental.

Desde 2010, as crianças participam de pesquisas e organizam campanhas internas com a finalidade de

informar e sensibilizar a comunidade para os problemas enfrentados nas redes sociais.

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50 51

Dentre os debates que têm por objetivo provocar reflexões sobre os comportamentos de risco nas

mídias sociais, estão os encontros proporcionados aos pais. Em 2014, foram realizadas duas palestras com

o Prof. Dr. Cristiano Nabuco de Abreu (mestre em Psicologia pela PUC, doutor em Psicologia Clínica pela

Universidade do Minho/Portugal, pós-doutor pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas

da Faculdade de Medicina da USP). Nabuco é coordenador do Programa de Dependência de Internet do

Ambulatório dos Transtornos do Impulso (AMITI) e do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da

USP.

Conhecendo os riscos e sabendo como se proteger

Com o intuito de tornar mais ágil o acesso de pais a informações que favorecem uma coexistência mais

harmoniosa e segura de crianças e adolescentes nos contextos digitais, disponibilizamos aos pais o espaço

intitulado Conviver na web, em nosso site www.escolamobile.com.br

Dicas fornecidas pela organização Childhood Brasil

http://www.childhood.org.br/

Dicas fornecidas pelo portal EducaRede

http://www.educarede.org.br/

Cartilhas e Vídeos produzidos pela SaferNet Brasil

http://www.safernet.org.br/site/

Para estimular as reflexões propostas nas aulas de Orientação Educacional, partimos de pesquisas com

os alunos. Os resultados de 2014 com alunos do Ensino Fundamental II podem ser acessados em nosso site

www.escolamobile.com.br / Conviver na Web

http://www.escolamobile.com.br/convivernaweb/?m=201404

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r e f l e x õ e s

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5554

Vamos fazer uma pausa para um debate?

debatesubstantivo masculino (s. XV)

1 p.us. luta em defesa de uma causa;

contenda, justa, peleja

2 p.ana. discussão acirrada;

altercação

‹ foi tudo resolvido sem d. ›

3 p.ext. exposição de razões em

defesa de uma opinião ou contra um

argumento, ordem, decisão etc. (freq.

us. no pl.)

‹ d. políticos ›

3.1 jur. discussão ou argumentação

entre defesa e acusação, diante

de uma assembleia, antes

do julgamento

4 p.ext. exame conjunto de um

assunto, questão ou problema

HOUAISSGrande dicionário da língua portuguesa

Professor de Ética e Cidadania inaugura projeto em que lugar central é a defesade um pontode vista.

Em busca do sonho grego.

De alguma maneira, todas as acepções

elencadas sobre o verbete “debate”

estão contempladas no projeto Pausa pro

debate criado em 2014, dirigido ao Ensino

Médio da Móbile. A discussão na qual

se alegam razões ‘pró’ ou ‘contra’ uma

posição assumida; a disputa entre duas ou

mais pessoas que confrontam ideias em

contenda; a discordância, o desejo de que

prevaleça uma determinada opinião

e a aceitação das opiniões opostas... tudo

está no Pausa pro debate.

Há, no entanto, outro aspecto que amplia os

limites da definição dada pelo dicionário e

melhor expressa a intenção educativa

de formação de nossos estudantes:

o debate, esse enfrentamento de ideias,

ocorre no “espaço público”; o espaço

da ágora, da praça pública, como nos

ensinaram os gregos.

A ágora como espaço de decisão.

Na Grécia Antiga, a pólis, entendida como

comunidade organizada, era formada pelos

cidadãos, os politikos, aqueles que,

nascidos no solo da cidade com direito

de participação, podiam fazer parte

da ekklesia. Eram cidadãos atenienses

os filhos de pais atenienses no gozo pleno

de sua liberdade, que incluía o direito

de participar e de opinar nos assuntos

relativos à administração da cidade.

A ekklesia era uma assembleia na qual

quinhentos membros, escolhidos por sorteio

entre os atenienses e com mandato

de um ano, decidiam sobre a organização

do comércio, a carga de impostos,

os assuntos relativos à guerra e à paz.

Reunidos em praça pública, os cidadãos

debatiam e decidiam democraticamente

(não tão democraticamente, é verdade,

pois estavam excluídos da experiência

das discussões da ágora as mulheres, os

metecos – estrangeiros residentes na pólis –

e os escravos) sobre o destino da cidade.

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Como homens livres e iguais, os cidadãos

de Atenas eram detentores de dois direitos

inalienáveis, a isonomia e a isegoria.

O primeiro assegurava que todos são

iguais perante a lei e o segundo, que

todo ateniense tinha o direito, se assim o

desejasse, de expor e discutir em público as

ações que a pólis deveria ou não realizar.

Trazido para o nosso tempo, o evento seria

o exercício da liberdade de expressão, algo

semelhante ao direito de opinar livremente e

de se posicionar diante de qualquer assunto.

Na Grécia, no entanto, era preciso pedir a

palavra no espaço público e defender aos

olhos dos demais suas ideias e concepções.

Grande invenção grega, a experiência do

debate na praça pública para decidir os

rumos da vida em sociedade foi fonte de

inspiração para convidar o jovem de hoje a

ocupar o espaço da ágora.

O sentido do espírito democrático pressupõe

o direito de ter e manifestar opiniões, mas

fundamentalmente o de ter a coragem

de defendê-las no espaço público. Eis a

experiência que buscamos trazer para o

nosso Pausa pro debate.

A Internet e o debate no espaço público.

Em tempos de direitos plenos e

democráticos, nos quais a tecnologia

na área da informação nos incita a tornar

nossas opiniões visíveis a um público mais

amplo, surpreende a dificuldade de se

conviver com essa liberdade de expressão.

A Internet e suas redes sociais, que

poderiam ser instrumento a serviço do

aprimoramento das visões e do despertar

para novas interpretações dos fatos e

do mundo, se converteram, em muitos

momentos, em território de ofensas,

mero espaço de desabafo, depositário de

sentimentos rudes que atentam contra o

esforço civilizacional que herdamos dos

gregos.

Em lugar de debate público no qual, por

meio da confrontação de ideias, é possível

divergir sem deslizar para o campo pessoal,

o que se vê na rede é ofensa e destempero

que negam a diferença. Há também os que

buscam o consenso e o pensamento fácil da

conformidade. Isso nos remete ao instigante

ensinamento do velho dramaturgo Nelson

Rodrigues: “toda unanimidade é burra.

Quem pensa com a unanimidade não precisa

pensar”.

Ao contrário daqueles que procuram semear

discórdia ou a (falsa) harmonia do consenso,

o grande desafio do Pausa pro debate

é educar e preparar nossos jovens para

conviver com a diversidade.

Nos encontros mensais promovidos pelo

projeto, são pautadas questões polêmicas

e delicadas do nosso tempo sem a pretensão

de alcançar o consenso ou de chegar a uma

verdade aceita por todos.

Trata-se de uma experiência de

problematização e argumentação que amplia

a perspectiva que se tem sobre um tema

ou questão; de um convite a desfazer-se,

temporariamente, de alguns pontos de vista

e de abandonar algumas convicções.

Escolhido o tema, há um período de

preparação para o enfrentamento público

no qual se aprimoram os argumentos com

a leitura de textos e vídeos indicados

pelo professor. A divulgação e o convite

para o evento procuram sempre instigar

a curiosidade e o desejo de participar

e são feitos com cartazes expostos nos

corredores da escola, que trazem perguntas

provocativas.

O Pausa pro debate é um projeto que

oferece aos estudantes a oportunidade de

exercitar com seus pares a complexa arte

da divergência e experimentar a ousadia

de defender ideias em público. Como os

gregos, no espaço da antiga ágora, ou

como os modernos, na praça, ou ainda no

auditório do ambiente escolar, o que vale,

de fato, é desfrutar da liberdade de ouvir

a própria expressão e ver contestadas

nossas mais profundas convicções. Assim,

descobrimos que não é o consenso que nos

faz iguais, mas a diversidade que nos faz

mais humanos.

5756

“... os gregos inventaram a pólis, a comunidade cidadãem cujo espaço artificial, antropocêntrico, não governaa necessidade da natureza nem a vontade enigmática dos deuses, mas a liberdade dos homens, isto é, sua capacidade de raciocinar, de discutir, de escolher e de destituir dirigentes, de criar problemas e propor soluções.”(Fernando Savater em Política para meu filho, Martins Fontes, 1996. p. 77.)

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5958

Uma visitamuito especial...

Essas e diversas outras

questões atuais intrigam os

físicos de todo o mundo, e

talvez algumas respostas

para elas possam ser

respondidas no CERN...

O CERN (Organização

Europeia para a Pesquisa

Nuclear) é um centro de

pesquisas de física de

partículas inaugurado em

1954 em Genebra, Suíça,

com o intuito de fomentar

a ciência básica na

Europa. O laboratório de

colaboração internacional,

que completa seus 60 anos

em 2014, sempre contou

com pesquisadores e

equipamentos de ponta,

responsáveis por diversas

descobertas essenciais

para a física de partículas

(sete de seus físicos já

receberam um prêmio Nobel

por experiências realizadas

no CERN!) e também pela

transferência de tecnologia

aplicada para a sociedade.

(O nascimento da world

wide web (– o famoso

www –), por exemplo, se

deu dentro do CERN e trouxe

significativas mudanças

para nosso cotidiano.)

Atualmente, o experimento

mais conhecido do CERN é o

LHC (Large Hadron Collider),

um imenso acelerador de

partículas de 27 km de

extensão por meio do qual

se descobriu o Bóson de

Higgs, partícula que seria

a responsável por prover

massa a todas as outras que

compõem o Universo. Por

esse feito, os professores

Peter Higgs e François

Englert foram contemplados

com o Prêmio Nobel de

Física em 2013.

Além da pesquisa de ponta,

o CERN se preocupa com a

divulgação da Física básica

para alunos e professores

do Ensino Médio. Entre

seus diversos programas de

divulgação, a Organização

mantém um de educação,

destinado a professores

de diversos países, que

programa visitas às

instalações e laboratórios

do CERN, além de cursos

sobre tópicos de Física,

ministrados no idioma dos

participantes. A presença

de educadores brasileiros

na “Escola de Física do

CERN” é possível graças

aos esforços do Laboratório

de Instrumentação e

Física Experimental

de Partículas (LIP), de

Portugal, da Sociedade

Brasileira de Física (SBF)

e da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior (CAPES).

Neste ano, tive a felicidade

de ser escolhido juntamente

com outros vinte e nove

professores brasileiros

para participar da Escola

de Física e passar três dias

em Lisboa para visitar o

LIP e uma semana dentro

do CERN tendo a rara

oportunidade de assistir

a aulas ministradas por

Professor de Física da Móbile é selecionado para participar de projeto educacional no CERN, em Genebra.

Quais as menores estruturas que compõemo nosso Universo?

Quais eram as condições existentesnos instantes iniciais da formação do Universo?

O que é matéria escura?

Placa em homenagem à criação do protocolo WEB em um dos corredores do CERN.

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6160

pesquisadores de diversas

áreas, além de visitar os

principais experimentos

desse enorme laboratório.

A sensação de visitar os

detectores de partículas do

LHC instalados a 100 m de

profundidade é indescritível.

(Em 2010, a professora de

Física e diretora do Ensino

Médio da Móbile, Glorinha

Martini, também teve o

mesmo privilégio que eu,

participando da Escola de

Física no CERN.)

Assim que retornei ao

colégio, compartilhei a

experiência vivida no CERN

com os alunos por meio de

uma palestra, organizada

com o objetivo de transmitir

tudo o que foi vivenciado e

de discutir com os alunos

questões importantes

(e atuais) sobre a física

de partículas, como a

discussão sobre o “modelo

padrão”, como funciona um

acelerador de partículas,

como operam os detectores

de partículas do LHC, entre

outras. Os slides utilizados

na palestra podem ser

acessados em http://goo.gl/

brv6L3

O objetivo do CERN de

divulgar o conhecimento

científico e de difundir a

Física contemporânea no

Ensino Médio está muito

alinhado com o ensino de

Física realizado na Móbile,

ou seja, um aprendizado

contextualizado dessa

ciência, atual e que

aproxima o conteúdo

apresentado em sala de aula

do cotidiano dos alunos.

Júlio César Ribeiro

é professor de Física

do Ensino Médio.

Os objetivos gerais que orientam o

ensino de Matemática na Móbile podem

ser detalhados a partir de competências e

habilidades que acreditamos necessárias para

a formação de determinadas estruturas de

pensamento. As escolhas de temas/conteúdos

que trabalhamos baseiam-se, portanto, no

desenvolvimento dessas estruturas de

pensamento que fazem parte do planejamento

da área de Matemática por serem, justamente,

consideradas fundamentais. São elas:

pensamento numérico, algébrico, proporcional,

combinatório, estatístico/probabilístico e

geométrico, além da competência métrica.

Desenvolvidas desde a Educação Infantil

até o Ensino Fundamental, essas estruturas

não têm uma hierarquização, mas assumem

um lugar de grande importância nas

escolhas feitas pelo professor. Não sendo

possível contemplar, neste artigo, todas

elas, abordaremos, a seguir, o pensamento

geométrico.

Vivido, percebido, concebido. O termo “geometria”

deriva do grego geometrein, que significa,

originariamente, medição de terras

(geo = terra, metrein = medir), e sugere

que se trata de uma ciência empírica

voltada para a resolução de problemas

práticos do homem. Uma das justificativas

A importância do pensamento geométriconas séries iniciais

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para o significado da palavra é que os

conhecimentos geométricos surgiram

elaborados a partir das necessidades

humanas de compreender o espaço que

se habitava. No antigo Egito, por exemplo,

as constantes inundações do vale do rio

Nilo fizeram com que se buscassem formas

de medir as terras inundadas para avaliar

perdas nas plantações. Com os gregos, a

geometria adquiriu caráter de ciência do

espaço. Esse povo teve a preocupação

de buscar definições claras e demonstrar

teoremas, dando a esse saber um caráter

mais formal.

Os estudos iniciais sobre geometria

abordam situações relacionadas à forma, à

dimensão e à direção. O objetivo de ensinar

esse ramo da Matemática está ligado ao

sentido de localização, reconhecimento de

figuras planas e não planas, o estabelecimento

de relações entre figuras espaciais e suas

planificações e a manipulação de formas

geométricas utilizando procedimentos de

composição e decomposição, transformação,

ampliação e redução.

Esses estudos podem ser iniciados a

partir da exploração dos espaços em que

os alunos vivem e da observação de objetos

construídos pelo homem ou de elementos

que existem na natureza, favorecendo o

desenvolvimento da percepção espacial da

criança de modo a auxiliá-la a adquirir as

competências e habilidades essenciais para

que estabeleça a relação do sujeito com

o espaço no qual está inserido. Segundo

Lamonato (2007), “é a partir dos conteúdos

geométricos que desenvolvemos um tipo

especial de pensamento capaz de possibilitar

ao indivíduo a capacidade de descrever,

compreender e representar organizadamente

o mundo em que vivemos”.

Enquanto se movimenta pelo espaço

e o explora, a criança adquire noções

intuitivas essenciais para a construção de

sua competência espacial. Nessa fase, ela

explora o mundo à sua volta e busca formas de

representá-lo a partir de imagens e da própria

linguagem. Esses registros são fundamentais

para que o professor possa compreender o

percurso da criança ao explorar o espaço,

assim como o modo como expressa suas

ideias. Nessa construção, a criança passa

por três etapas: a percepção de si mesma (a

fase do vivido), a percepção do espaço à sua

volta (a fase do percebido) e, por fim, a sua

representação (a fase do concebido).

Na primeira etapa, a criança constrói as

noções espaciais pelos sentidos (visão, tato,

audição etc.) e por meio de seus próprios

deslocamentos (andar, pular, rolar, rastejar,

engatinhar...), ou seja, por meio da ação.

Na segunda etapa, a criança já é capaz de

pensar sobre determinados objetos, mesmo

que eles estejam ausentes. Já na terceira

etapa, ela é capaz de estabelecer relações

espaciais entre os objetos por meio de sua

representação. A ação da criança é o ponto

inicial para a construção da noção de espaço,

e a ação mental é o ápice dessa construção.

Isso se dá a partir das relações que ela

começa a estabelecer.

É necessário, portanto, que desde cedo

se trabalhem com o aluno a organização do

esquema corporal (lateralidade, coordenação

viso-motora) e a orientação e percepção

espacial (orientar-se e mover-se), de modo

que ele tenha maior domínio de sua ação no

ambiente, assim como maior qualidade nas

relações que estabelece.

Considerando que nossa visão do mundo

físico é essencialmente tridimensional, torna-

se primordial a necessidade de estudar a

ocupação, a localização e o deslocamento

de objetos no espaço, assim como as

características e propriedades das formas

geométricas presentes nele. As habilidades

que desenvolvem a percepção espacial, na

visão de Lorenzato (2006), são:

a) Discriminação visual: perceber as

semelhanças e/ou diferenças entre os

objetos.

b) Memória visual: lembrar-se de um

determinado objeto que não está mais

no seu campo visual, descrevendo suas

características.

c) Coordenação viso-motora: coordenar a

visão com o movimento do próprio corpo.

d) Percepção de figuras planas: focalizar

uma parte (ou uma figura específica) no

todo, assim como compor o todo a partir

de suas partes.

e) Constância perceptiva: reconhecer

que a forma e o tamanho de objetos não

se modificam, apesar de suas posições

parecerem modificadas.

f) Percepção das relações espaciais:

orientar-se no espaço por meio das

características de distância e tamanho

(próximo, distante, maior, menor,

acima, abaixo) entre os objetos que se

encontram nesse espaço.

6362

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g) Equivalência por movimento:

identificar que duas figuras são

equivalentes, desde que uma delas seja

movimentada em sentido de translação,

de rotação ou de reflexão, ou seja,

visualizar que duas figuras são iguais,

apesar de ocuparem posições diferentes.

Observar e explorar. Além

da percepção, é necessário também o

desenvolvimento de habilidades relacionadas

à representação. Nessa etapa, a exploração

de objetos presentes no entorno é essencial,

pois favorece, por parte do educando,

a observação, análise e descoberta de

propriedades e características das formas

geométricas. As escolhas didáticas,

nesse momento do desenvolvimento do

pensamento geométrico, devem valorizar

experiências com construções de figuras

tridimensionais e suas planificações, assim

como a identificação das formas planas que

aparecem nessas representações. Dessa

forma, a observação de embalagens e

utensílios, por exemplo, possibilita identificar

algumas características e propriedades das

figuras planas (bidimensionais) e não planas

(tridimensionais), identificando relações entre

elas, estabelecendo critérios de classificação

e utilizando a linguagem convencional para

nomeá-las. Essas análises propiciam que

noções de direção e sentido, de ângulo, de

paralelismo e de perpendicularismo sejam

desenvolvidas. Além disso, a exploração de

figuras espaciais e suas representações

planas, utilizando procedimentos de

composição e decomposição, transformação,

ampliação e redução, favorecem a identifica-

ção de elementos variantes e invariantes.

Essas ideias são estruturantes para a

compreensão, por exemplo, de conceitos de

perímetro, área e volume.

A Móbile, ao optar por esta linha

metodológica no ensino da Geometria, prioriza

a identificação de componentes essenciais

para a construção de conceitos, sempre

associando os termos às características e

propriedades das figuras geométricas. Um

exemplo claro dessa proposta de trabalho

pode ser observado na seguinte situação:

Ao observar as figuras representadas,

é comum identificar-se a primeira como um

quadrado e a segunda como um losango,

embora ambas sejam quadrados. Sabemos

que todo paralelogramo que tem lados

congruentes (equilátero) é um losango e

todo paralelogramo que tem ângulos retos

é um retângulo. Podemos concluir que o

quadrado, sendo equilátero e equiângulo, é

simultaneamente um losango e um retângulo.

Nesse caso, a confusão ocorre porque se

observa a posição da segunda figura para

identificá-la como losango, quando a posição

não é condição para defini-la, e sim as

propriedades descritas acima.

Nessa proposta de trabalho, diferente

das concepções mais tradicionais, que

muitas vezes relegam o ensino da Geometria

a segundo plano, é fundamental, desde as

séries iniciais, desenvolver o pensamento

geométrico na mesma ordem de importância

das demais estruturas de pensamento,

de modo a ampliar formas de raciocínio e

processos como intuição, dedução, indução,

analogia e estimativa.

65

Antonio de Freitas da Corte é vice-diretor

pedagógico do Ensino Fundamental 2.

Maria de Remédios F. Cardoso é diretora

pedagógica da Educação Infantil.

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Novas narrativas: sobre reflexos e a ampliação dos possíveis

Tendo como base um exame atento da produção contemporânea, entre as muitas

funções atribuídas à arte, duas podem ser destacadas por constituírem-se como tendências:

espelhar os sujeitos de sua época, por um lado, e reinventá-los, por outro. Assim, em diversas

obras, observa-se uma forte tentativa de refletir a experiência do sujeito contemporâneo,

principalmente com relação à multiplicidade e à velocidade de suas vidas globalizadas.

Junto a isso, encontra-se um conjunto de artistas que, diante das condições atuais, luta para

expandir o “campo dos possíveis” desses sujeitos, com o objetivo de lhes mostrar que é, sim,

possível habitar o mundo de maneiras muito diversas e, até, aparentemente inimagináveis.

Na literatura, ainda que com diferenças fundamentais, ambas as tendências indicam

uma forte recusa às narrativas tradicionais, em uma operação propositiva que explicita a

necessidade de criação de novas formas de manifestação artística.

Em um breve panorama estrutural, pode-se dizer que as narrativas, em seus modelos

mais tradicionais, apresentam algumas características básicas. Espera-se delas uma história,

com desenvolvimento linear, progressivo e conduzido por personagens que, graças a suas

escolhas e ações, movem a fábula para frente. Diante dessa tradição, surgem, também, duas

grandes questões que despontam no cenário contemporâneo. A primeira, e mais aparente,

está no fato de que, hoje, é fácil constatar que a vida opera em um regime muito mais caótico

do que décadas ou séculos atrás, com idas, vindas e alterações de sentido que ocorrem a

todo tempo. Passado, presente e futuro mostram-se muitas vezes como camadas justapostas.

É comum identificar situações em que pessoas estão, simultaneamente, visitando lembranças,

planejando os acontecimentos seguintes e esforçando-se para realizar determinada atividade

ou trabalho. Seus pensamentos, dessa forma, além de perder-se no tempo, sobrepõem, em

seus devaneios, diferentes espaços.

É justamente a esse caos que a primeira tendência busca responder – e, muitas vezes,

pela tentativa de retratá-lo de modo a torná-lo sensível, concreto. Novas narrativas, nesse

caso, correspondem a narrativas fragmentadas, desconexas, simultâneas e justapostas.

Pedaços incompletos de histórias que só adquirem sentido quando confrontados com outros

pedaços, em uma espécie de mosaico da vida, em que cada peça corresponde a uma pessoa,

a uma voz, a uma situação, a um recorte de trajetória.

Fáceis de identificar no cinema – em filmes como Babel, Crash, Amores brutos

e 21 gramas –, exemplos podem ser encontrados também na literatura, entre outros autores,

em textos de Sérgio Sant’Anna, Mario Bellatin e, principalmente, Luiz Ruffato. Seu premiado

romance Eles eram muitos cavalos, lançado em 2001 pela Cia. das Letras e cujo mote é um dia

na cidade de São Paulo, é, provavelmente, um dos principais representantes dessa tendência

no Brasil.

A segunda grande questão, relacionada às formas tradicionais, diz respeito à

consciência de que não é mais possível acreditar no domínio completo de um indivíduo sobre

suas escolhas e ações. O advento da psicanálise, com a descoberta das forças inconscientes

que regem o sujeito, e as grandes guerras, ditaduras e revoluções do século XX constituíram

ataques clássicos à chamada “liberdade de escolha”. Ao ser movido, em grande parte, por

impulsos primitivos e em certa medida incontroláveis, em um mundo de conflitos de amplitude

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muito maior do que a sua própria, o homem vê-se forçado a reconfigurar seu próprio modo de

estar nesse mundo. E a sua trajetória é, agora, tecida pela complexa fricção entre todas as

forças que nele operam, obrigando-o a um constante, e incessante, reinventar-se.

Conhecedores dessa condição, determinados escritores buscam apresentar aos

leitores figuras com modos de vida muito distintos dos “habituais”. Assim, esforçam-se para

criar modelos de subjetividade condizentes com a instabilidade interna de uma individualidade

que é, a todo momento, posta à prova pelo mundo. É o caso de autores como Samuel Beckett,

Hilda Hilst e, mais recentemente, Veronica Stigger. Em seus trabalhos, despontam seres com

contornos pouco definidos, assolados por lembranças, projeções e fluxos de consciência.

Seus universos, muitas vezes apresentados em primeira pessoa, mostram alto grau de

simbiose entre realidade e ficção e vias inesperadas de satisfação dos desejos. Desse modo,

busca-se mostrar a amplitude das possibilidades de satisfação.

São obras que causam alto grau de estranhamento em seus leitores e, por vezes,

é importante ressaltar, são marcadas por certa aridez decorrente de um tratamento muito

radical da linguagem. Situações absurdas, digressões e suspensões temporais propõem

diálogos e reflexões sobre a realidade em que a artificialidade é quase levada a seu limite:

para proteger-se da chuva, um homem deita-se de bruços no asfalto, na esperança infantil

de manter-se parcialmente seco; em uma praia semideserta, um velho, cuja memória parece

ser pura invenção, estabelece um diálogo pouco usual com a figura de Deus, como se

testemunhasse a criação do Universo; uma mulher comum abandona seus membros pela

cidade, em um percurso de redescoberta da consciência do corpo.

Assim, de forma diversa à da primeira tendência, que busca uma analogia sensível

com o cotidiano, essa segunda experiência literária estética propõe, como contraponto,

o contato com experiências intensas de alteridade. Entretanto, seja pela semelhança,

seja pela diferença, ambas constituem propostas de manifestação artística que têm como

objetivo reconhecer os elementos presentes na vida contemporânea. Com isso, visam

a uma modificação no posicionamento dos sujeitos, em busca de mais consciência e,

consequentemente, de possibilidades de mudança. Pois, se há algo que as une, é a percepção

das novas configurações da tensão estabelecida entre os indivíduos e o mundo e o impulso

de transformação.

Como, um dia, afirmou o filósofo francês Gilles Deleuze, em uma palestra para jovens

artistas: “não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que não existe”.

Os textos literários que os alunos do professor

Luiz Farina escrevem a partir de suas

experiências com as novas formas de narrar

podem ser lidos na seção Produções em Foco.

Luiz Farina é professor do Ensino Médio da disciplina eletiva Criação Literária.

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Syd Field. A emoção da cena e das perso-

nagens deve ser transmitida visualmente, ou

seja, é preciso VER as cenas. Aprenderam

que um filme é uma experiência que acon-

tece no tempo presente, ao contrário da pin-

tura e da literatura. Por isso, todos os verbos

do roteiro devem estar nesse tempo verbal.

Por fim, aprenderam a utilizar as rubricas que

orientam as filmagens e os atores e também

a fazer o cabeçalho e a

descrição das cenas.

A palestra pro-

ferida por André foi fun-

damental para que os

alunos compreendessem

melhor a estrutura nar-

rativa de um filme, pro-

posta em um roteiro. Por

exemplo, um bom roteiro

deve manter a TENSÃO

do texto e, se possível,

um MISTÉRIO até o des-

fecho, de modo a capturar

a atenção do espectador.

Isso deve ocorrer inde-

pendentemente do fato de

o gênero ser de ação, humor, romance ou

terror. Para ilustrar isso, o roteirista desafiou

os alunos: “se vocês descobrirem a que filme

corresponde o roteiro que mostrarei agora,

contarei um segredo sobre a professora

Valéria”. Depois de certo alvoroço, o roteiris-

ta explicou aos alunos a importância das

REFERÊNCIAS que, no caso do filme Hugo,

são fundamentais para compor a história.

Um roteirista que adapta um livro

precisa reinventá-lo, mas preocupando-se

em manter o espírito e a tensão da história

original. (E ele só dispõe, em geral, de duas

horas para isso!) Certamente, algumas modi-

ficações são necessárias! Por exemplo, no

caso do livro A invenção

de Hugo Cabret, o desa-

parecimento da person-

agem Etienne é justifi-

cado porque suas car-

acterísticas são muito

parecidas com as do Sr.

Tabard. É necessário,

pois, conhecer muito

bem todas as refer-

ências presentes na

obra literária. O diretor

Martin Scorsese quis

explorar o universo do

cinema e também hom-

enagear essa forma de

arte. Pensando nisso, as

referências do texto-fonte, o livro, tais como

os irmãos Lumière, Harold Lloyd, os filmes

Metrópolis, Janela indiscreta, Os incom-

preendidos e, evidentemente, os produzidos

por Georges Méliès foram mantidas.

Por que conhecer os segredos de um roteirista?

No segundo semestre deste ano,

os alunos do 6º ano receberam o roteirista

André Sirangelo para uma palestra sobre

roteiro de cinema. O encontro constituiu uma

das etapas do projeto sobre esse gênero,

desenvolvido ao longo de 2014.

Tudo começou com o lançamento,

em 2011, do filme Hugo, de Martin Scorsese,

cujo roteiro foi brilhantemente adaptado de

A invenção de Hugo Cabret, obra adotada

há algum tempo no 6º ano que proporciona

ótima leitura, além da ampliação do universo

cultural dos alunos.

No livro, Brian Selznick, escritor

norte-americano apaixonado por cinema,

narra a história do corajoso Hugo Cabret,

órfão abandonado em uma estação de trem

da Paris dos anos de 1930 que conhece o

cineasta Georges Méliès.

E agora? Como convencer os alunos

a ler o livro? Como competir com um filme tão

incrível, dirigido por um diretor tão genial?

(Além do fato de o filme ser... em 3D!)

A pista surgiu de uma pergunta feita

por uma aluna: “por que os cineastas mudam

tanto as histórias dos livros?”. Isso é um

mistério quase insondável para nós especta-

dores. Quantas vezes não saímos do cinema

indignados com a adaptação feita daquele

livro que tanto amamos? O projeto nasceu

para responder a essa questão.

Num primeiro momento, os alunos

leram o livro e assistiram ao filme. Em segui-

da, depois de um estudo comparativo entre

essas obras, nós nos voltamos ao estudo

do gênero. Os alunos aprenderam que “um

roteiro é uma história contada por imagens,

diálogos e descrição”, segundo o teórico

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emoções, imaginar o cenário, as paisagens

etc. Ao adaptar um livro para o cinema, é

necessário reinventar a história, mas manter

seu espírito e as características básicas das

personagens.

Esse projeto proporcionou aos alunos

muitos conhecimentos novos sobre os gêne-

ros literários e cinematográficos, sobre como

produzir uma cena e desenvolver uma per-

sonagem. Mas, principalmente, trouxe para

eles um maior espírito crítico em relação ao

cinema e ao trabalho dos roteiristas.

Um fato marcou especialmente o

encerramento da palestra e provocou as

mais diversas e engraçadas reações nos

alunos: a revelação do “mistério” que o

palestrante anunciara no início do encontro.

André é roteirista, formado em Jornalismo,

ex-aluno da Móbile e meu filho!

Depois foi a vez de André explicar

sobre a importância do PROTAGONISTA.

É ele quem mais se transforma ao longo

da história. Valorizá-lo é função do roteiris-

ta. “O protagonista precisa criar empatia

com o espectador. Também precisa estar o

tempo inteiro ativo para, assim, conduzir a

própria história.” Já o ANTAGONISTA pode

ser o mundo, a natureza ou uma pessoa.

Tudo acontece para complicar a vida do pro-

tagonista, ou seja, para manter a TENSÃO da

história. É também muito importante povoar

o mundo do protagonista. Por exemplo: o

roteirista do filme Hugo criou ou desenvolveu

várias personagens que não estavam no livro

para enriquecer a vida na estação de trem

onde Hugo morava.

Ao ler um livro, temos a imaginação a

nosso favor. É possível conviver mais tempo

com as personagens, imaginar suas ações e

Valéria de Melo Pereira é professora de Língua Portuguesa

do 6º ano do Ensino Fundamental

72 73

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“BRANCA: Há um mínimode dignidade que o homemnão pode negociar, nem mesmoem troca da liberdade. Nem mesmoem troca da vida.” (O Santo Inquérito, 1966)

7574

Em uma sociedade, a liberdade de expressão está a serviço da necessidade

da maioria? De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil,

promulgada em 1988, todo cidadão brasileiro ou estrangeiro residente no país

tem o direito à “livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de

comunicação, independentemente de censura ou licença” (Art. 5º, inc. IX).

A liberdade de expressão é a base para garantir diferentes direitos, como o de

cada indivíduo expressar e externar suas emoções, seus pensamentos, suas

ideias e opiniões sobre os mais variados temas, de convicções filosóficas a

políticas e religiosas, entre outros. Ela permite ao ser humano se comunicar e

ser um agente ativo e transformador da realidade, e não apenas espectador

passivo da vida em sociedade. O homem livre se sente respeitado e, dessa

forma, mantém sua dignidade, pois não necessita violar seus valores para se

adaptar à sociedade. A dignidade não tem preço, ela não pode ser trocada

por qualquer negociação, ela se funda na ética que qualifica o pensamento e a

conduta humana, acima de qualquer interesse, poder ou lei determinada.

Alguns questionamentos acerca da liberdade, da moral e da ética foram alvo

dos estudos e das discussões realizados pelos alunos do 8º ano nas aulas de História

e de Língua Portuguesa, no segundo bimestre, a partir

da leitura da obra O Santo Inquérito, escrita por Dias

Gomes.

Segundo o crítico Anatol Rosenfeld, ao

considerar a representação teatral um ato social,

Dias Gomes mostra a preocupação “de oferecer

uma imagem crítica da realidade brasileira,

naquilo que é caracteristicamente brasileiro e

naquilo que é tipicamente humano” (1982). Branca,

a protagonista de O Santo Inquérito, foi baseada

em uma lendária paraibana que existiu e foi vítima da

inquisição lusa no Brasil em meados do século XVIII. Desde

a escolha da personagem ao desenvolvimento do próprio enredo apresentado na peça,

o dramaturgo está engajado em incitar o leitor, levando-o a uma reflexão e eventual

reação. Como a literatura trata de valores universais, o acontecimento histórico que

embasa o enredo é imensamente ampliado, assumindo uma perspectiva atemporal

e extraespacial, o que revela o potencial transformador da ficção, ou seja, sua

capacidade de mudar os indivíduos.

Na obra, Dias Gomes retoma a motivação histórica da inquisição para iluminar

outro tempo vivido por ele, o da ditadura militar no Brasil, de modo que o espectador

possa interagir com o espetáculo, refletindo sobre a própria realidade para poder

transformá-la. Por isso, diante de um texto tão provocador, que trata da liberdade

e do seu cerceamento por diferentes instituições que buscam impor um

controle social (censura), os alunos, plateia de leitores, mobilizaram-se para

argumentar, defendendo ou acusando as personagens, a partir da seleção de

acontecimentos históricos e de fatos do livro que os ajudassem a justificar

seus pontos de vista para o grupo, valorizando, assim, o debate de ideias.

Em cena: o santoofício e o texto dramático

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A tragédia da incomunicabilidade humana, tema recorrente no teatro

moderno, encontra na obra de Dias Gomes seu lado mais cruel, pois, de forma

paradoxal, a linguagem, em lugar de servir à boa comunicação, transforma-se

em um veículo de mal-entendidos e de destruição. Embora tenha escrito a peça em

1966, em meio a um regime ditatorial, Gomes não teve o cuidado de vigiar as suas

palavras para evitar a censura. De forma indireta, o artista critica a dominação exercida

pelo poder militar, valendo-se da posição religiosa e política assumida pela Igreja

Católica, em 1750, para expor os problemas morais enfrentados pelos brasileiros nas

décadas de 1960 e 1970. Branca poderia tanto ter vivido na época da Contrarreforma

e sofrer as torturas da inquisição por conta de suas convicções, como poderia ser

uma jovem estudante de jeans e camiseta, vivendo em pleno século XX, opondo-se à

ditadura militar e sofrendo as duras consequências de seus atos.

Na obra, avô, pai e filha, as três gerações, representam uma família de

origem judaica. Eles são obrigados a se tornarem

cristãos, submetendo-se à Igreja, em um contexto

de perseguição, determinado pelo Tribunal do

Santo Ofício. Por um lado, Simão, pai de Branca,

considera mais importante sobreviver a qualquer

preço, mesmo que isso signifique abrir mão de

crenças e de valores individuais. Por outro lado,

Augusto, o estudioso noivo da jovem, cumpre

o papel de esclarecer a protagonista ingênua a

respeito das sutilezas do discurso religioso e da

necessidade da defesa de princípios como algo que se

deve manter acima do que é imposto pelas instituições. Ele

acredita que o homem é livre em seus pensamentos e deve fazer suas escolhas de

modo a garantir sua dignidade.

No século XXI, o avanço da liberdade individual parece ter colaborado

para a constituição de jovens preocupados apenas com seus próprios interesses e

direitos. Considerando isso, discutir os valores expressos nas decisões tomadas pelas

personagens de O Santo Inquérito e comparar os fatos do passado com a

realidade presente foram procedimentos que levaram os estudantes a uma

importante reflexão sobre como o jovem vive atualmente em sociedade.

O que baliza a conduta decorre da ação humana de valorar, isto é, emitir juízo

de valor a respeito de um objeto, uma situação ou um fato, avaliando-o em

relação à qualidade ou ao prejuízo que agrega às necessidades humanas.

Entender o contexto histórico e o jogo de ideias construído nas falas das

personagens da obra de Dias Gomes não foi um desafio menor para os estudantes

do que reconhecer as características peculiares da estrutura do texto dramático.

Muito acostumados aos vários gêneros narrativos, os alunos do 8º ano depararam-se,

na leitura, com um texto formado basicamente por falas e rubricas, sem os longos

trechos encaminhados pelo narrador. Sendo O Santo Inquérito um texto cujo objetivo

é ser encenado em um palco, diálogos, monólogos e apartes eram identificados

durante as aulas para que a relação entre as personagens

(e delas com a plateia) fosse compreendida. Além

disso, a história, iniciada em um tribunal, citava

posteriormente os fatos antecedentes que

provocaram o julgamento, ou seja, a sequência

cronológica dos acontecimentos não é

linear, o que exige um leitor mais atento

que diferencie os vários quadros e cenas

da peça. Por último, para conhecer e julgar as

personagens, é necessário verificar tanto as ações

que praticam quanto os sentimentos expostos pela

entonação das falas, pela disposição das personagens

no palco, pela iluminação e pela sonoridade escolhidas para cada

cena, o que ressalta a importância de interpretar, além das falas, as rubricas que

orientam os atores e o diretor.

Ação a partir da ação dramática. Para encerrar o projeto, um texto dramático

foi produzido em dupla pelos alunos. Em relação ao conteúdo, a proposta da

redação foi vinculada ao conceito de dilema moral, retirado das análises feitas

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com a leitura de O Santo Inquérito. A partir de duas situações fictícias, os alunos refletiram

sobre a questão: é preferível tomar uma decisão que me beneficie, ainda que isso possa

prejudicar a vida de outra pessoa, ou é preferível assumir um prejuízo individual para que o

outro não seja afetado? De acordo com os casos criados, as personagens encontravam-se

diante de conjunturas difíceis, sem saídas convenientes, o que reforçava a necessidade de,

ao tomarem uma decisão a respeito do que elas fariam, os alunos evidenciarem no texto os

argumentos que a justificassem.

Em primeiro lugar, eles foram expostos a duas histórias que apresentavam esse

dilema. Em seguida, a partir da discussão, argumentaram, defendendo seu ponto de vista

sobre a decisão a ser tomada, considerando os impasses vividos pelas personagens.

Debater ideias sempre é uma atividade muito envolvente, pois os estudantes se empenham

em formular argumentos que consolidem suas opiniões, o que torna a aula muito acalorada.

Por fim, escreveram o texto dramático, transformando suas opiniões em falas e rubricas.

Em conclusão, que relação haveria entre a literatura e a história? A ciência humana

que estuda o homem, sua ação inserida em um tempo e localizada em um espaço, além dos

eventos e processos decorridos dela, encontra seu refúgio no universalismo literário, que

surpreende e arrebata o leitor da realidade, por mais dura que ela seja. Ademais, como um

espelho, a literatura reflete quem é o homem como sujeito e como cidadão. O homem é um

ser social que deve gozar de direitos sociais, civis e políticos, estabelecidos a priori por um

Estado livre.

Márcia Ruiz é professora de Língua Portuguesa e Monika Kuszkas, de História,

ambas do 8º ano do Ensino Fundamental.78 79

Atenção: para compreender essa função cognitiva

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Atenção é uma função cognitiva

essencial para que a aprendizagem ocorra.

Se um aluno parar por um minuto e observar

os estímulos que o rodeiam em sala de aula,

perceberá que são muitos: dos estímulos

sonoros, podemos citar os sons de pássaros,

as vozes de pessoas que passam no corredor,

o ruído de alunos que brincam no recreio ou

o do estojo que cai, o som da voz de um

colega que faz uma pergunta ao professor,

ou daquele que sussurra algo para um amigo;

dos estímulos visuais, há os cartazes que

sinalizam informações, as anotações da

lousa, os próprios colegas e tudo aquilo que

se apresenta sobre a mesa do estudante;

ainda há o cheiro da comida do refeitório que

anuncia a proximidade da hora do almoço,

entre muitos outros estímulos.

Graças à função atencional, somos

capazes de selecionar os estímulos que são

relevantes para o momento, desprezando

todos os outros presentes no ambiente. Em

outras palavras, é como se a atenção fosse

uma lupa que aumentasse o foco em um

conteúdo, deixando todo o restante bem

pequenino a ponto de ser desprezado. Trata-

se de uma função seletiva das informações

tanto internas (pensamento, emoção) quanto

externas (estímulos presentes no ambiente).

Além dessa função seletiva, a atenção

também é responsável por manter o foco.

Referimo-nos à capacidade do cérebro de

sustentar a atenção em um estímulo por um

período.

A forte relação entre atenção e

aprendizagem vem sendo sinalizada por

pesquisadores – quanto mais atento o cérebro

fica a um estímulo, mais elaborado será o

modo como a informação será codificada

e armazenada. Estudos apontam relações

entre o nível da atenção e a retenção do

conteúdo da leitura, o êxito nas resoluções

matemáticas e a precisão e a clareza da

escrita. Porém, há outro dado de pesquisa

que se apresenta como um desafio para o

professor: antes que os primeiros quinze

minutos de uma apresentação cheguem ao

fim, geralmente as pessoas já estão voltadas

para outro foco (2012, Medina).

Embora essa informação seja

desmotivadora para um professor, há alguns

recursos que podem ser utilizados contra

esse tempo restrito da função atencional:

as informações que ampliam o nosso

conhecimento sobre a atenção, permitindo

que ajamos para potencializá-la. Então...

atenção aos próximos parágrafos que

compõem este texto!

Atenção. O cérebro “escaneia” sem

parar o horizonte sensorial, avaliando os

acontecimentos para detectar o seu potencial

de relevância. Quanto maior a relevância do

estímulo, maior será a atenção recebida.

Resta-nos descobrir o que é relevante para

o cérebro...

Os estímulos que costumam prender

a nossa atenção estão sob forte influência

da memória, pois usamos experiências

anteriores para saber o que devemos ou

não perceber. Ativar a memória dos alunos

sobre determinado tema implica colocar o

conteúdo sob a “lupa” da atenção.

Estímulos incomuns, novos,

discrepantes e imprevisíveis representam

uma forma poderosa de usar a atenção para

despertar o interesse do cérebro. Um dia,

enquanto os alunos se acomodavam na volta

do recreio, uma professora colocou som

de pássaro tocando na sala. Dramatizando,

ela olhava para o horizonte, procurando-o.

Quando “o achou”, dirigiu-se a ele,

“pegou-o” com toda a delicadeza e, com o

mesmo gesto, “passou” o pássaro para um

aluno. Ela comentou que se tratava de uma

espécie rara da Amazônia. Partindo desse

jogo dramático, iniciou a discussão sobre

os animais em extinção. Certamente, mesmo

com a agitação comum de um pós-recreio,

a sala rapidamente se organizou e voltou-

se para a professora, afinal algo incomum

ocorria.

Outro elemento relevante para a

atenção são os estímulos de competência

emocional. Acontecimentos carregados de

emoção costumam ser lembrados com mais

exatidão, pois são os estímulos mais bem

processados. Quando o cérebro detecta um

acontecimento de grande carga emocional,

a amígdala cerebral (uma região que fica na

parte inferior do cérebro) é ativada e libera

dopamina, que colabora muito para a memória

e para o processamento de informações.

É como se a amígdala alertasse: “lembre-se

disso!”. Para um professor nem sempre é fácil

acessar o que seria um estímulo emocional

para cada aluno, pois pode ser bastante

pessoal. No entanto, há alguns estímulos de

competência emocional que são universais,

carregados pela herança filogenética, como,

por exemplo, os estímulos ameaçadores.

Reparem como a nossa atenção é facilmente

resgatada no momento em que o personagem

principal de uma história encontra-se em

perigo.

Além de considerarmos esses

estímulos como potenciais para favorecer a

atenção, contamos com a possibilidade do

cérebro de desenvolver o que os cientistas

chamam de atenção voluntária – função

cognitiva responsável por selecionar

intencionalmente um estímulo para focar.

Quando pequenos, os alunos

apresentam a atenção reflexa, ou seja,

a atenção é regulada de acordo com os

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estímulos novos, discrepantes e inesperados

que surgem no meio. A capacidade de

manter a atenção em um estímulo é bastante

incipiente. A qualidade do ambiente no qual

os alunos estão inseridos é determinante

para modificar essa condição. Proporcionar

situações que exijam foco e ensinar o

estudante a autorregular a própria conduta

atencional favorecem o desenvolvimento

dessa atenção voluntária, crucial para a

aprendizagem.

Multitarefas? Quando se trata

da qualidade da atenção, ainda é preciso

abordar dois pontos. O primeiro deles: o

cérebro é ou não capaz de executar várias

coisas ao mesmo tempo? Hoje em dia,

as pessoas consideram-se multitarefas.

É comum presenciarmos um jovem com a

lição de casa ao lado do computador. Em tese,

ao mesmo tempo que estuda, ele administra

as mensagens dos colegas em um chat, os

downloads e os e-mails. Ainda, portando um

fone de ouvido, o circuito auditivo capta as

músicas que foram recentemente baixadas

no smartphone. Se conversarmos com esse

jovem, provavelmente ele nos dirá que não

tem prejuízo em qualquer uma das tarefas.

No entanto, se dialogarmos com o cérebro,

obteremos como resposta: “quando se trata

de prestar atenção, a possibilidade de fazer

várias coisas ao mesmo tempo é um mito”

(2012, Medina). Neurologicamente, somos

incapazes de processar informações que

exigem atenção simultânea. Para esse

estudante iniciar a lição de casa, o córtex

pré-frontal anterior alerta o cérebro de que irá

mudar o foco de atenção. Em alguns décimos

de segundo, duas mensagens no cérebro são

disparadas – uma é a solicitação para que

se encontrem os neurônios responsáveis

pela leitura e a outra se refere à ativação

desses neurônios. Enquanto o estudante lê

o texto, o sistema sensorial capta o aviso

da chegada de uma mensagem no chat.

Novamente, o córtex pré-frontal encaminha

outra mensagem de alerta anunciando

mais uma mudança no foco de atenção.

Agora, o cérebro sai em busca dos circuitos

responsáveis pela escrita. Todos esses

passos ocorrem sequencialmente toda vez

que o estudante passa de uma atividade para

outra. E é possível que, ao retornar à leitura,

ele se questione: “Onde foi mesmo que eu

parei?”

Estudos mostram que tarefas

realizadas com interrupções demoram 50%

mais tempo para serem concluídas. O aumento

do tempo não é a única consequência de

realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo:

as tarefas também tendem a apresentar

50% mais de erros. O leitor pode questionar:

eu dirijo e ouço música. Se questionarmos

quais músicas ele ouviu, possivelmente não

se recordará de muitas delas. Ou ainda,

se mergulhado no canto de uma melodia,

certamente esse motorista levará mais

frações de segundo para frear diante de uma

situação de emergência. O mesmo vale para

dirigir e falar ao celular.

Essa constatação de que nosso

cérebro não é multitarefa nos leva a refletir

sobre as condições que os pais devem

proporcionar aos filhos na rotina das lições

de casa e nas escolhas que adolescentes

precisam fazer para se responsabilizarem pela

qualidade de sua aprendizagem. Abandonar

a mesa da cozinha, da sala ou o tapete e

optar por uma escrivaninha é o primeiro

passo. Considerar o que deve ser desligado

– televisão, som, celular e computador – é a

próxima decisão a ser tomada.

O outro ponto que interfere na

qualidade da atenção é a necessidade de

repouso do cérebro. Não nos referimos nesse

momento a uma noite bem dormida, mas à

quantidade de informação que é despejada

sem dar ao receptor tempo suficiente para

“digerir” a mensagem. Para a aprendizagem,

a receita sempre indica doses homeopáticas.

Após focar em uma informação, o cérebro se

beneficia do repouso para consolidação. Se,

ao contrário disso, o cérebro for convocado

para captar ainda mais informações,

certamente a condição atencional e a

capacidade de compreender e consolidar

essas informações estarão prejudicadas.

Cabe, ainda, uma reflexão para aqueles

estudantes que insistem em estudar na

véspera da prova. O ideal é diluir o estudo.

Por fim, ainda vale destacar ao

leitor mais duas variáveis intervenientes no

sistema atencional: o sono e a ansiedade.

O primeiro circuito neuronal que regula a

atenção se dedica à regulação da vigília, que

é responsável por rastrear permanentemente

um estímulo relevante. Esse sistema de

vigília fica prejudicado quando o organismo

encontra-se sonolento ou sob um estado de

muita ansiedade. Por isso, “fica a dica”: um

corpo descansado e equilibrado é condição

importante para a qualidade da atenção.

Compreender o funcionamento

da atenção colaborará não apenas para

as escolhas didáticas e metodológicas do

professor, mas também para dos pais e dos

estudantes ao planejarem-se para as suas

atividades.

Para saber mais:

COSENzA, R.; GUERRA, L. Neurociência e Educação

– como o cérebro aprende. Artmed, 2011.

MEDINA, J. Aumente o poder do seu cérebro -

12 regras para uma vida saudável, ativa e produtiva.

Sextante, 2012.

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Jovens engajados

Os projetos de Ação Comunitária realizados no Ensino Médio da Móbile têm o propósito de

desenvolver o senso de responsabilidade social em nossos alunos e de favorecer a possibilidade

de melhorias sociais por meio de ações educacionais. O contato com realidades adversas é uma

das maneiras pelas quais podemos levar os alunos a uma tomada de consciência de seu papel de

agente transformador na sociedade em que estão inseridos. A participação nas ações é aberta a

todos os alunos do Ensino Médio. Conheça a seguir alguns dos projetos que realizamos.

Projeto “Educando pela Arte” – GemaO Gema – Grupo de Esperança de Menos Abandono (Núcleo Socioeducativo Vila Riso) é

uma instituição responsável por 50 crianças que estudam em escolas públicas, em período

complementar às atividades escolares. A instituição oferece reforço escolar, atividades de

leitura, esportes, aulas de Informática, alimentação, atendimento médico e programas culturais.

Nesse local, os alunos do Ensino Médio são responsáveis por criar atividades educativas e

artísticas (plásticas, musicais ou teatrais), com fins de entretenimento.

As visitas à instituição ocorrem sempre às sextas-feiras em grupos de até sete alunos.

Projeto “Inglês no Gotas” – Gotas de Flor com AmorDesde o ano 2000, a Móbile tem parceria com a instituição Gotas de Flor com Amor, realizando

o projeto “Sou Digital”. Em 2013, resolvemos ampliar essa parceria a partir da criação do “Inglês

no Gotas”, por meio do qual alunos do Ensino Médio, monitorados pela Coordenação Educacional,

ensinam Inglês a crianças e jovens dessa instituição.

A demanda partiu dos adolescentes do Gotas de Flor com Amor, pois, ao reconhecerem a

importância do aprendizado desse idioma estrangeiro para o ingresso no mercado de trabalho,

solicitaram à coordenação da ONG que tivessem aulas para, assim, aumentarem suas chances.

Ao final de 2013, os alunos voluntários relataram que foi notável o aprendizado dos beneficiados,

evidenciado também pelo aumento de empregabilidade dos atendidos pela instituição.

As visitas à instituição ocorrem sempre às sextas-feiras em grupos de até quatro alunos. 8786

Alunos do Ensino Médio participam de projetos de Ação Comunitária.

“As crianças do Gema estãosempre com uma energia muito boa. Tenho a impressão de que aprendomais com elas do que o contrário.” Mariana Ros, aluna do 3º anodo Ensino Médio.

“Dar aulas de Inglês para adolescentes foi uma experiência única. Ver o entusiasmo das pessoas a cada aulaé especial e motivante. Foi, com certeza, um momento marcante na minha vida.” Julia Abibe, aluna do 2º anodo Ensino Médio.

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GRAACCColaborando com a ideia de humanização hospitalar, a Móbile faz parceria com o GRAACC

– Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer – a fim de desenvolver um trabalho

com jogos, brincadeiras, música e leitura para crianças e jovens submetidos à quimioterapia no

hospital.

Os alunos monitores participam de um processo de capacitação que inclui palestra e visita

monitorada à instituição. Durante o ano, o trabalho dos jovens é acompanhado e supervisionado

pela coordenação da quimioterapia e os alunos são acompanhados por um professor ou

coordenador da escola.

EJA – Educação de Jovens e AdultosÉ um curso que promove a retomada da escolarização de nossos funcionários e também de

pessoas da comunidade.

As aulas ocorrem de segunda a sexta-feira, das 18h15 às 20h00 e, ao final do curso, o aluno

está preparado para prestar exame de equivalência do Ensino Fundamental, oferecido pelas

escolas estaduais credenciadas.

Contamos com a participação de alunos voluntários que atuam como monitores nas disciplinas

oferecidas pelo EJA: Português, Matemática, Informática e Geografia. O curso é gratuito.

EJA – Curso de Informática para Adultos Oferecidas para funcionários e pessoas da comunidade que já tenham concluído o Ensino

Fundamental, as aulas ocorrem todas as segundas e quartas-feiras e têm como objetivo

aproximar os alunos de ferramentas tecnológicas fundamentais para a comunicação nos dias de

hoje. Contamos com a participação de alunos voluntários que atuam como monitores.

EJA – Curso de Inglês para Adultos O curso é oferecido para os funcionários e pessoas da comunidade que tenham concluído

seus estudos no Ensino Fundamental. As aulas ocorrem todas as quartas-feiras e têm como

objetivo aproximar os alunos de uma língua estrangeira fundamental para a comunicação nos

dias de hoje.

As aulas são ministradas por alunos do Ensino Médio em parceria com uma professora

voluntária.

Agenda CulturalA Agenda Cultural foi uma iniciativa dos alunos participantes da Ação Comunitária, que se

organizam periodicamente para propor eventos culturais destinados a todos os beneficiados

pelos projetos da escola.

Neste projeto, os alunos da Móbile realizaram duas palestras para o EJA. Para o Gema, foram

feitas uma campanha de arrecadação de brinquedos, uma apresentação de peças de teatro

produzidas pelos alunos na disciplina eletiva Teatro I e II e uma gincana esportiva.

8988

“O melhor de ir ao GRAAC é ver que os pacientes de lá, apesar de estarem em uma situação mais difícil que a minha, conseguem ficar felizes com as brincadeiras e esquecer momentaneamente seus problemas.” Ana Cecília Savaget, aluna do 2º anodo Ensino Médio.

“A melhor parte do EJA é perceber que, às vezes, o que para você é uma obrigação, como ir à escola, é, na verdade, uma grande sorte. E, mais do que isso, é incrível perceber que um pequeno sacrifício que você faz do seu tempo faz tanta diferença na vida de alguém.” Fernanda Nemr, aluna do 3º ano do Ensino Médio.

“Dar aulas de Inglês no Curso para Adultos é muito gratificante. Vejo queos alunos têm muita determinaçãoe vontade de aprender. É um momento bastante divertido na minha semana.” Guilherme Rainer, aluno do 2º anodo Ensino Médio.

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Uma breveexperiência antárticaProfessora de Biologia do Ensino Médio relata sua experiência rumo à Antártica em companhia de sua orientanda.

2014. O ano letivo

começou com a mais

grata das surpresas: nossa

aluna do Ensino Médio

Tamara Klink estava entre

os quatro vencedores do

concurso cultural promovido

pela Marinha brasileira,

e o prêmio seria uma

inesquecível jornada rumo

à Antártica para ambas –

aluna e orientadora!

Começamos a

empreitada com o

Treinamento Pré-Antártico

(TPA) na Marambaia-RJ,

onde há um centro de

avaliação da Marinha. O

local, muito bonito, abriga

uma das últimas reservas de

Mata Atlântica do Sudeste

brasileiro, além de restingas

e manguezais. Esse centro

é como se fosse uma

minicidade: tem uma escola

municipalizada, igreja, casas

ocupadas pelos militares

durante o tempo em que

estão servindo e um hotel

de trânsito para os oficiais.

Foi nesse hotel, adaptado a

partir de uma antiga senzala

e cujas paredes restauradas

exibem a estrutura original

com óleo de baleia, que

ficamos hospedadas. Ao

lado, há um espaço de

convivência, onde tivemos

a oportunidade de nos

confraternizar com os

oficiais, no primeiro dia,

num longo e interessante

bate-papo noturno recheado

de histórias de quem já

passou de verão a verão no

continente gelado.

Durante o TPA,

aprendemos sobre

vestimentas especiais,

noções de segurança e

deslocamento, prática

em embarcações miúdas,

natação utilitária e uso do

macacão flutuante. Além

da preparação física para a

incursão à Antártica, houve

aulas teóricas

sobre a regulamentação

internacional, a participação

do Brasil no continente e

cuidados médicos. Também

conhecemos um pouco da

infraestrutura da Marinha

associada à Antártica:

o Programa Antártico

Brasileiro (Proantar), os

Módulos Emergenciais

que substituem a estação

de pesquisa destruída

no incêndio de 2012, a

Estação de Apoio Antártico

(Esantar) e os voos de apoio

realizados pela Força Aérea

Brasileira (FAB).

O Tratado Antártico e a participação do Brasil no continente gelado

Nas aulas teóricas,

aprendemos que o Tratado

Antártico foi assinado

por 12 países em 1959 após

alguns deles terem

requerido para si parte do

território do continente. Ao

entrar em vigor em 1961,

o tratado garantiu que a

Antártica seria um local

para pesquisas científicas.

90 91

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9392

Em janeiro de 1975, o

Brasil aderiu ao Tratado

Antártico e passou a seguir

as normas legais que devem

ser respeitadas pelos países

que atuam no continente:

não pode haver atividade

militar, a exploração

econômica de recursos

naturais está suspensa até

2048, não se pode deixar lixo

algum na região e técnicos

de um ou mais países podem

inspecionar o que acontece

nas demais estações

para garantir a proteção

ambiental do continente

(e foi o que ocorreu, por

exemplo, quando a estação

brasileira sofreu um

incêndio em 2012).

O regime jurídico

se estende a outros países

e admite que eles se tornem

partes consultivas, desde

que realizem atividades de

pesquisas substanciais e

contínuas – daí uma das

preocupações do Brasil

em seguir marcando sua

presença no continente

mesmo após o incêndio

e antes da instalação da

estação provisória.

Atualmente, o Tratado

Antártico conta com 29

membros consultivos e

mais 20 não consultivos. Em

setembro de 1983, o Brasil

foi admitido com direito a

voto após ter iniciado, um

ano antes, sua atuação

efetiva no continente gelado

a partir da criação do

Proantar. Em 1986, com a

operação Antártica IV,

o Brasil passou a se

manter 365 dias por ano na

Antártica, coisa que poucos

países fazem. Para isso,

a Marinha recebe apoio

da FAB para transporte de

equipamentos, mantimentos

e pessoal.

Dos dez voos anuais

que a FAB realiza para lá,

três deles ocorrem durante

o inverno. Os militares

contaram para nós muitas

histórias sobre a precisão

desses deslocamentos,

como o fato de a FAB ser

a única força aérea que

pousa regularmente durante

o inverno (os demais países

o fazem somente em caso

de emergência) ou de que,

no caso de lançamento de

carga a partir do avião, até

ovos chegam intactos para

aqueles que estão cuidando

da estação de pesquisa. Nós

participamos do último voo

de verão, o sétimo voo, da

operação XXXII do Proantar.

Depois disso, estavam

programados apenas mais

três voos de inverno para

lançamento de carga.

Mas a logística é ainda

mais ampla, subjugada à

Comissão Interministerial

para os Recursos do Mar.

Além do apoio da FAB, há

duas estações de apoio,

chamadas Esantar, uma

no Rio de Janeiro-RJ e

outra em Rio Grande-RS. A

Esantar-Rio de Janeiro é o

local de saída dos navios

e voos. Tem a função

de logística da parte de

abastecimento da estação,

dos navios e dos voos de

apoio, ou seja, planeja,

coordena e executa a

movimentação de cargas.

A Esantar-Rio Grande cuida

da parte de vestimentas e

equipamentos.

Superlativa Antártica

Antes mesmo de deixar

o centro de treinamento

da Marinha, já éramos um

grupo unido e festivo, o que

realmente tornou a viagem

ainda mais especial! No fim

de semana que antecedeu

o sétimo voo da Operação

Proantar XXXII, conhecemos

três meios navais distintos –

uma fragata, um submarino

e um navio-aeródromo

– e visitamos alguns dos

maravilhosos pontos do Rio

de Janeiro. Entre uma etapa

e outra da viagem, ficamos

hospedadas no Centro de

Educação Física Almirante

Alberto Nunes na Avenida

Brasil (RJ). No alojamento

da unidade, conhecemos

alguns atletas olímpicos que

ali vivem e treinam.

Nesse entreato

antes de colocar os pés

no continente gelado,

fizemos nossa lição de

casa e revisamos algumas

informações aprendidas

no treinamento e também

lidas no “Manual do

participante de Operações

Antárticas” que recebemos.

O continente antártico

tem, aproximadamente,

14 milhões de quilômetros

Na página anterior, grupo completo junto ao Hércules e à equipe da FAB na saída do Rio de Janeiro rumo a Pelotas.Tamara Klink e a Profª Tatiana Nahas estão mais ao centro, entre os oficiais.)

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quadrados quase totalmente

recobertos de gelo. É

rodeado pelo oceano

Austral, formado pelo

encontro dos oceanos

Atlântico, Pacífico e Índico,

e representa cerca de 10%

de todos os oceanos.

O mais frio dos

continentes interfere no

clima de diversas regiões

do globo – “é a fábrica de

frentes frias”, como resumiu

o Comandante Brandão em

sua palestra no TPA. Além

disso, é ali que está o maior

manto de gelo do mundo,

correspondendo a cerca

de 90% da água doce do

planeta. O continente gelado

abriga ainda o arquivo da

história climática do planeta,

que pode ser estudada

a partir da coleta de

amostras de gelo com gases

aprisionados. Além das

circulações atmosféricas,

a Antártica controla as

circulações oceânicas, de

forma que os fenômenos

de ressurgência que são

observados, por exemplo,

em Cabo Frio-RJ, decorrem

de correntes marítimas frias

advindas da Antártica. É

ainda o continente mais alto

de todos, com uma média de

2300 m.

No período Cretáceo,

a Antártica era coberta

por florestas densas,

inclusive com plantas

tropicais, bem diferente

do ambiente terrestre de

hoje, restrito a musgos

e líquens. Isso porque a

Antártica era ligada ao

que hoje conhecemos

por África e América, de

um lado, e, por outro, ao

que hoje conhecemos por

Austrália. Estamos falando

de mais de 150 milhões de

anos atrás! Pouco depois,

há cerca de 94 milhões de

anos, a Antártica já havia

se separado da África e

da América, mas ainda

estava parcialmente ligada

à Austrália. Somente (!) há

14 milhões de anos é que

essa parte da Terra chegou

à configuração que vemos

hoje.

Apesar da proteção

internacional, que impede

a exploração direta dos

recursos do continente,

este tem sofrido agressões

ambientais nas últimas

décadas. Como se trata de

região com ecossistemas

particularmente frágeis,

observa-se muita

susceptibilidade à

destruição da camada de

ozônio e ao aquecimento

global. A presença de

176 tipos de minerais, de

grandes lençóis de gás

natural (e, provavelmente,

de petróleo) e de água

acirra os interesses

econômicos na região.

Devido ao Tratado Antártico,

até 2048 esses recursos não

podem ser explorados, mas

o que ocorrerá após

essa data? Haverá uma

renovação desse Tratado,

garantindo que a Antártica

seja um continente para a

ciência e para a paz?

Essas questões

econômicas se juntam a

outras de forma a justificar

o esforço brasileiro em

se manter no continente

gelado. Por exemplo, há

interesses políticos, como o

fato de o Estreito de Drake

propiciar uma passagem

entre os oceanos Atlântico

e Pacífico, configurando

uma rota alternativa de

comunicação com o

Oriente, além do Canal

do Panamá. Há também

interesses militares, como

o desenvolvimento da

capacidade de realizar

apoio logístico a grandes

distâncias e de realizar

operações em áreas

inóspitas. Enfim, tudo

associado ao continente

gelado é grandioso.

E, então, rumo à Antártica por fim!

Em 26 de março,

seguimos nas asas de

Hércules rumo à Esantar-Rio

Grande (RS), onde pegamos

as roupas e equipamentos

para encarar o frio antártico.

Após o pernoite na cidade

gaúcha, seguimos para

Punta Arenas, no Chile, onde

dormimos o mais ansioso

dos sonos, esperando pelo

grande dia! No dia 28,

chegamos à Antártica com

um raro belo tempo,

mas o Hércules

arremeteu por problemas

técnicos. No dia seguinte

cedo, nos confrontamos

com as más condições

climáticas e não pudemos ir

para lá logo

pela manhã. A ansiedade só

aumentava...

9594

Na página seguinte, módulos de pesquisa próximos à praia.

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Assim que finalmente

desembarcamos na ilha

Rei George, nosso grupo

foi dividido pela primeira

vez: os alunos seguiram

em helicóptero para a base

brasileira, onde puderam

permanecer por apenas 15

minutos, e os professores

seguiram, em um trator de

neve, para a base chilena

Frei (e menos de duas

horas depois já estávamos

embarcando de volta no

Hércules...).

O plano original era

pousarmos na base Frei e

então seguirmos de navio

para a base brasileira, na

qual passaríamos dois dias.

O objetivo era conhecer a

base brasileira, acompanhar

um pouco das pesquisas

em curso e também passar

algum tempo na Antártica,

fazer algumas das trilhas,

conhecer os laboratórios

nos navios. Ao chegarmos

em Punta Arenas no dia

27, já sabíamos que esse

plano teria de ser alterado:

o inverno chegou um pouco

mais cedo à Antártica neste

ano e parte do mar já

estava começando

a congelar, então os navios

precisariam voltar mais

cedo, trazendo de volta ao

Brasil os pesquisadores

que estavam na estação

e seu material de coleta.

Assim, passaríamos

apenas uma noite na base

brasileira, levados por

um dos navios a partir da

base chilena. Porém, como

não conseguimos pousar

na Antártica no primeiro

dia em que tentamos,

os navios iniciaram seu

retorno, pois não poderiam

arriscar esperar uma

segunda tentativa de pouso.

Quando fomos, enfim, bem-

-sucedidos, não pudemos

ficar em solo antártico por

mais de duas horas, pois

esse é o tempo máximo para

segurança do Hércules.

Essa experiência

nos mostrou na prática o

quão complexas são as

operações do Proantar e

deixou claro aquilo que

navegadores e voadores

experientes em Antártica

sabem bem: na Antártica,

quem manda é o tempo,

quem manda é a Antártica.

As tecnologias todas que

desenvolvemos nos ajudam

muito a estarmos por lá,

mas não se sobrepõem

àquilo que é determinado

pela natureza. Esse

equilíbrio entre desafio e

respeito, entre resiliência e

ambição, torna ainda mais

interessante e desejosa a

ida ao continente gelado!

A base chilena na Antártica

A Presidente Eduardo

Frei Montalva (Frei) é a

maior base chilena na

Antártica. Pousamos lá,

como os aviões da FAB

costumam fazer nos voos

de verão, e circulamos

brevemente no entorno da

estação. Essa base chilena

tem uma característica

peculiar em relação à

brasileira: os militares

que cuidam da estação

servem na base por dois

anos. Dessa forma, ficam

acompanhados de suas

famílias e, associada à

base de pesquisa, há

uma minicidade chamada

Villa Las Estrellas, onde

vivem temporariamente 64

pessoas. É uma minicidade

mesmo, com casas, escola,

correio, hospital e uma

igreja.

Os módulos de pesquisa

(azuis) ficam um pouco

mais próximos à praia, mas

bem perto dos módulos

residenciais (vermelhos).

Os militares que encontrei

por lá, muito simpáticos,

contaram que tivemos

sorte em encontrar a área

coberta de neve, pois nessa

época não é esperada tal

quantidade de neve (no

trecho que caminhei, a

profundidade máxima a que

cheguei foi de neve quase

até a altura do joelho – é

uma experiência e tanto

caminhar assim!), mas havia

nevado por dois dias logo

antes de chegarmos.

Uma pena termos ficado

tão pouco e, principalmente,

não ter tido a chance de

acompanhar parte das

pesquisas científicas

em andamento na base

brasileira!

Visite nosso blog para ver

mais relatos dessa viagem

à Antártica, com fotos e

vídeos:

http://rumoaantartica.

wordpress.com/

Tatiana Nahas

é professora de Biologia

do Ensino Médio.

9796

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9998

Assuntos para Conversar: aprenderé muito prazeroso

O manto da invisibilidade de Harry Potter, um passeio pela Itália, a fórmula da beleza,

versos do rock nacional... Esses temas poderiam facilmente fazer parte de conversas informais

entre adolescentes, mas sua discussão feita por professores em sala de aula poderia parecer,

no mínimo, algo inusitado.

O Assuntos para Conversar, projeto idealizado em 2012 pela Coordenação Educacional

do Ensino Médio da Móbile, tem como ideia central ampliar o repertório científico e cultural

dos estudantes. Isso é feito por meio de palestras ministradas por professores da escola

sobre conteúdos que tangenciam os trabalhados em sala de aula e que normalmente não

encontram espaço para serem debatidos nas disciplinas que compõem o chamado núcleo

comum. Com temas muitas vezes curiosos, as palestras interseccionam interesses pessoais,

acontecimentos atuais, aspectos do universo dos estudantes e conteúdos acadêmicos em um

ambiente arejado e descontraído.

Nas primeiras edições do projeto, os temas tratados eram inspirados em conteúdos

curriculares, surgiam do contexto de sala de aula e eram voltados à expansão dos conceitos

tratados ou à discussão de outras realidades. Atualmente, as falas dos professores podem

estar ligadas ao interesse pessoal deles (como culinária e poesia), ou até a produtos de seus

trabalhos científicos, como dissertações de mestrado e teses de doutorado.

O Assuntos para Conversar é direcionado a alunos de 1º e 2º ano do Ensino Médio que

tenham obtido médias mínimas em todas as disciplinas e, por isso, possam se envolver no

estudo de outros assuntos, além dos estritamente escolares. Embora não haja pré-requisitos

ou continuidade entre os assuntos de cada encontro, o formato confere certa unidade ao

conjunto de apresentações e a cada bimestre inicia-se um novo ciclo. A participação dos

alunos é opcional e as apresentações acontecem fora do horário de aula.

Uma escola reúne uma pluralidade grande de alunos com focos de interesses, habilidades

e graus de autonomia distintos. Faz parte das funções da Coordenação Educacional mapear

e desenvolver projetos que respondam a esses vários interesses de nossos alunos. Antes do

início do projeto, deparávamo-nos com o desafio de fornecer aos alunos com bom desempenho

acadêmico atividades extracurriculares saudáveis e que despertassem seu interesse pelo

conhecimento. Havia também nosso interesse em aproveitar o alto potencial dos professores

da casa que, embora fosse de grande riqueza, era pouco explorado.

Diante dessas diferentes demandas, buscamos, com o Assuntos para Conversar, valorizar

o bom desempenho acadêmico dos alunos, oferecendo a eles mais um espaço de ampliação

cultural e de motivação para a construção de conhecimento. Considerando que inteligência e

afetividade devem andar juntas em uma escola, a possibilidade de debater temas vinculados,

de alguma forma, aos professores e aos alunos torna a experiência de aprendizagem ainda

mais significativa.

Algumas palestras ministradas no projeto

Da palavra à imagem: poesia e fotografia

pelas lentes de Sebastião Salgado

Prof. João Cunha

Astronomia e Matemática: um encontro das

estrelas com o engenho humano

Prof. Fábio Marson

Persépolis 2.0, da Revolução Islâmica à

Primavera Árabe

Profª Márcia Santos

Células-tronco: por qual motivo elas não

salvaram o super-homem?

Prof. Rodrigo Mendes

A fórmula da beleza

Prof. Fábio Marson

Cientista na cozinha

Prof. Rodrigo Liegel

Literatura contemporânea e a sua interface

com outras manifestações artísticas

Prof. Luiz Farina

Os caminhos do conhecimento científico: do

laboratório para a tela da TV

Prof. Rodrigo Mendes

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O que os alunos achamdo Assuntos para Conversar?

“A invisibilidade sempre foi um assunto que intrigou a todos. Sempre tratada como fantasia,

essa propriedade fazia parte somente do mundo mágico, como o de Harry Potter, com sua

capa da invisibilidade. Porém, ela pode estar mais próxima do que imaginamos. Para entender

um pouco mais sobre o assunto, participamos da segunda aula do curso Assuntos para

Conversar, com o professor de Física Hugo Carneiro. No início da aula, Hugo nos mostrou que,

ao colocarmos um tubo de vidro em um béquer com glicerina líquida, ele se torna invisível.

O surpreendente fenômeno é possível graças à equivalência dos índices de refração dos

materiais. A partir da constatação de que meios com índices muitos próximos (se não iguais)

poderiam tornar-se invisíveis, foram levantados questionamentos em relação à ciência de

hoje. O que seria possível que o homem já tivesse desenvolvido a partir dessa compreensão da

invisibilidade? O professor Hugo quebrou nossos estereótipos em relação ao que pensávamos

sobre essa área, mostrando-nos a grande importância dessa vertente da ciência para a

humanidade, bem como sua capacidade de mudar o mundo como o conhecemos.”

Clara Cappatto, Marina Borges e Mariana Stefani

“A fim de ampliar nosso conhecimento sobre o Irã, país persa sempre presente em nossas

aulas de Ética e Cidadania e também no noticiário mundial, tivemos nossa primeira aula do

primeiro módulo do ciclo Assuntos para Conversar. A professora Márcia Santos nos contou

como, por meio de Persépolis, Marjane Satrapi mostrou ao mundo o que realmente ocorreu na

chamada Revolução Islâmica, além de nos apresentar importantes marcos históricos do Irã.

Após essa aula, finalmente pudemos entender não apenas uma parte importante da história

iraniana e sua importância no contexto mundial, mas também o poder de influência exercido

pela literatura.”

Carolina Karacristo, Christopher Kapáz e Mário Turolla

“Tivemos a oportunidade de nos encontrar com o professor João Cunha, de Estudos

Literários, para tentar entender de que forma a vida se alimenta da arte e a arte, da vida. A

partir disso, poderíamos não só ‘nos tornar mais interessantes’, como costumam nos dizer

nossos professores, mas também aprender a entender melhor o mundo em que vivemos

e a reconhecer a beleza não só no Belo, clássico, mas também naquilo que não seria

considerado Belo. Isso foi possível graças à observação da obra do fotógrafo brasileiro

Sebastião Salgado e à comparação dela com outros trabalhos, não só da fotografia, mas de

literatura.”

Fernanda Alves, Fernanda Nemr, Mariana Grande

Adriana Galvão, Leonardo Cosentino e Rodrigo Mendes

são coordenadores do Ensino Médio.

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Criação Literária:a expressão artísticae o desenvolvimentoda sensibilidadeEm seu segundo ano, o curso eletivo de

Criação Literária, ministrado no Ensino Médio

da Móbile, mantém seu objetivo: proporcionar

aos alunos do 2º ano uma experiência de

escrita voltada à expressão artística e ao

desenvolvimento da sensibilidade. Para isso,

as aulas baseiam-se, fundamentalmente, no

estudo de textos, em sua maioria nacionais e

contemporâneos, sob a perspectiva de quem

produz, e não somente de quem interpreta.

Buscamos, assim, entender os princípios

construtivos que regem cada obra e

perceber como cada pequena escolha

estrutural carrega, em si, todo um universo

de significações possíveis. Com esses

princípios claros, em teoria, partimos, então,

para sua aplicação prática, com a realização

de exercícios regulares. Além de permitir

uma ampliação dos recursos estilísticos

dos alunos-autores, esses exercícios

procuram, também, desmistificar o conceito

de inspiração e fazer da escrita algo mais

orgânico e mais consciente, principalmente

em termos formais.

Junto a isso, em nossas discussões acerca

dos diversos temas propostos por cada autor,

nos esforçamos para encontrar questões

que sejam caras à época em que vivemos

e que nos despertem o impulso de escrever.

Daí a ideia de um desenvolvimento da

sensibilidade que ocorre por meio da criação

e em que a escrita se constitui, sempre,

como descoberta. Procuramos lançar um

olhar mais atento às inquietações, desejos

e angústias que vivem dentro de cada um

e, amparados por uma maior consciência

estrutural, encontrar a forma de expressão

mais adequada a cada necessidade.

Os textos aqui apresentados refletem os

diferentes momentos do curso: seu início, com

os estudos sobre poesia; o mergulho sobre

os contos e as narrativas curtas (aqui, vale

destacar a influência exercida pela cidade,

proveniente do Estudo do Meio Móbile na

metrópole – conflitos urbanos e transformada

em potente material artístico, como no texto

“Tua, minha, nossa”); a experimentação das

formas híbridas, muito presentes na literatura

contemporânea.

Luiz Antonio Farina é professor

de Criação Literária.

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O espelho

Era quase meia-noite quando ele encontrou o espelho. Grande e

liso, repousando com uma serenidade pacífica no meio da sala vazia. O que

um lugar como aquele fazia nos corredores desérticos de um hospital, o

rapaz não tinha ideia. Mas talvez não fosse importante, e provavelmente

não era.

Ele parou à porta para observar as paredes brancas, que

mudavam de cor conforme as luzes amarelas, dos carros que passavam,

e rosas e verdes da estrela de neon que piscava na testa do hotel em

frente entravam pela janela aberta e se refletiam na superfície líquida do

espelho antes de emergir na sala.

Um silêncio raro, multicor, preenchia o pequeno aposento, pontuado

pelo som distante do andar dos automóveis lá fora, como se viesse de um

outro mundo. Talvez tenha sido aquele silêncio que o atraiu para dentro

da sala, mas acho que não. Para mim, acho que foi o espelho.

O rapaz se encaminhou para o centro, os passos pesados, de quem

já carregou muita amargura por muito tempo. As luzes formavam duas

sombras dele, uma de cada cor, que acompanhavam seus movimentos

como dois irmãos gêmeos. Ele viu seu reflexo liso, as rugas minúsculas,

delicadas, que se formavam acima de suas sobrancelhas jovens, passarem

de amarelo para rosa para verde até irem gradualmente diminuindo.

Fitou seu próprio rosto mudar suavemente de cor, juntamente

com as paredes da sala vazia, os olhos meio arregalados e os lábios

entreabertos. Conforme tudo se tingia de outra nuance através do espelho,

o rapaz sorvia com os olhos a própria imagem, a mão direita apoiada na

esquerda fresca do reflexo, próximo de si mesmo.

A madrugada caía e o rapaz que mudava de cor unia-se consigo,

fundindo-se com o reflexo líquido como se escorresse por si, pelos cadarços

desamarrados e pelo braço com que tocava o espelho. Quando um novo dia

iniciou-se, era uno, era cor.

Julia Yen cursava o 2º ano do Ensino Médio em 2013

105104

Etéreo

Estirada aos lençóis de seda branca, os cabelos platinados

misturam-se ao tecido que roça o corpo inerte, como se este boiasse em

um emaranhado dos próprios fios brancos. Braços e pernas raquíticos

cobertos pela pele flácida, de misericordiosa nudez, flutuam à deriva no

farfalhar da cortina.

Ela é um papiro milenar, que se desmancha com o simples toque

do vento. Frágil e abandonada como carcaça de cobra ao trocar de pele.

Violada e invadida pelo ar quente que, sem pedir licença, consome-lhe as

entranhas mofadas. E ela, como pastel de vento, incha vazia. A voz do

vento sibila. Ora canta, ora grita, mas, em maioria, sussurra lamúrias.

Barriga ascendente. Barriga que acende, que fervilha de vida e

borbulha de dor, explode em luz iridescente.

Seu grito rouco e flácido transformara-se em choro miúdo,

mas muito estridente. O contorno estourado, os olhos vazados e a face

derretida, transbordando sem direção, deram espaço ao feto provindo

de seu cerne, que, banhado do sangue tinto, descasca-se de seu ventre.

O lençol, agora escarlate, goteja incessantemente no assoalho. Qualquer

sinal dela evaporara no ar, esvaindo-se com o sol.

Marina Borges cursava o 2º ano do Ensino Médio em 2013.

O espelho

Era quase meia-noite quando ele encontrou o espelho. Grande e

liso, repousando com uma serenidade pacífica no meio da sala vazia. O que

um lugar como aquele fazia nos corredores desérticos de um hospital, o

rapaz não tinha ideia. Mas talvez não fosse importante, e provavelmente

não era.

Ele parou à porta para observar as paredes brancas, que

mudavam de cor conforme as luzes amarelas, dos carros que passavam,

e rosas e verdes da estrela de neon que piscava na testa do hotel em

frente entravam pela janela aberta e se refletiam na superfície líquida do

espelho antes de emergir na sala.

Um silêncio raro, multicor, preenchia o pequeno aposento, pontuado

pelo som distante do andar dos automóveis lá fora, como se viesse de um

outro mundo. Talvez tenha sido aquele silêncio que o atraiu para dentro

da sala, mas acho que não. Para mim, acho que foi o espelho.

O rapaz se encaminhou para o centro, os passos pesados, de quem

já carregou muita amargura por muito tempo. As luzes formavam duas

sombras dele, uma de cada cor, que acompanhavam seus movimentos

como dois irmãos gêmeos. Ele viu seu reflexo liso, as rugas minúsculas,

delicadas, que se formavam acima de suas sobrancelhas jovens, passarem

de amarelo para rosa para verde até irem gradualmente diminuindo.

Fitou seu próprio rosto mudar suavemente de cor, juntamente

com as paredes da sala vazia, os olhos meio arregalados e os lábios

entreabertos. Conforme tudo se tingia de outra nuance através do espelho,

o rapaz sorvia com os olhos a própria imagem, a mão direita apoiada na

esquerda fresca do reflexo, próximo de si mesmo.

A madrugada caía e o rapaz que mudava de cor unia-se consigo,

fundindo-se com o reflexo líquido como se escorresse por si, pelos cadarços

desamarrados e pelo braço com que tocava o espelho. Quando um novo dia

iniciou-se, era uno, era cor.

Julia Yen cursava o 2º ano do Ensino Médio em 2013.

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107106

Céu

O brilho ofuscava a visão, e o havia feito por horas. Apenas agora era amenizada a luz. Tudo estava branco azulado, e os dois coexistiam ali, em um cenário que parecia impossível. Era perfeitamente compreensível, no entanto.

Ela existia sem ele, porém sem brilho, sem força, sem imagem, sem sua essência.

Ele se orgulha disso.

Ela corre atrás dele incessantemente com a pouca liberdade que lhe é dada. Ela ser ou não depende da vontade dele, e só dele, de maneira que às vezes se mostra apenas pela metade. Isso é porque ele não se importa com ela o bastante, ou porque se importa demais. Sentimento verde e feio.

Ela também não é qualquer.

Ele sabe disso.

Mil outros como ele a seguem. Tem-se a certeza de que vão atrás dela, pois só aparecem quando ela está por perto. Pobres deles, pensamos. Estão demasiado longe, e em distância inalcançável. Também não sabem, mas a verdade é que se afastam cada vez mais.

Jornada tão inútil quanto a dela. Porém nem ela nem eles desistem.A força é forte.

Ela tenta e um dia consegue. O alcança. Eles se sobrepõem. A luz de ambos morre. Escuridão é o que resta. Juntos, se olham juntos. Ali está plenitude que buscavam. Ele não a deixava alcançá-la pois sabia das trevas que seguiriam.

Se amavam.

Mas ela entende, e voltam a se afastar. Pelos outros, à vida, longe um do outro.

Anna Catarina Roman cursa o 2º ano do Ensino Médio.

“Todo o Tempo do Mundo” (R.R)

o relógio na parede.

|PRESOS DENTRO DELE|

a cada tic.

A degradaçãotac.

da vida de manhã renasce

n de dia definha i

xa noite morre

agarremos a chanceo primeiro sopro da manhã

que em nós amanheceagarrá-lo e guardá-lo

destroçá-lo e absorvê-losenti-lo

segundo a segundomomento a momentoe conquistar assim

lentamenteo fragmento da eternidade

que pode haver em nósimortal

como o Tempo

o Tempo não passanós passamos

o Tempo não acabanós acabamos. O

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109108

Consolo

Da primeira vez que se viu por gente, caída no chão, ralara o joelho em uma brincadeira qualquer. A dor era nova, sentimento inédito, o latejar da ardência e o sangue correndo. Sentiu a água transbordar pelos olhos, sem querer, borrar o seu mundo e escorrer quente pela face. Fez o contorno das bochechas vermelhas e entrou pelas rachaduras do lábio, sentiu o gosto.

Daquele dia em diante, foi condenada. Apaixonou-se pelo gosto das lágrimas em um instante, não a dor, não a adrenalina, mas as lágrimas puramente suas. Era um prazer repugnante que sua inocente culpa não entendia, chupava-as todas como se estivesse seca por dentro.

Guardou como segredo com medo de ser roubada e esturricada da sua própria essência, até se dar conta das noções de certo e errado. Quando, finalmente, percebeu o seu prazer infeliz, já era tarde demais. Tropeçava propositalmente no chão para cair e chorar, fechava a porta em seus dedos, queimava sua mão na panela. O masoquismo não pela dor, mas por sua sede eterna.

O sofrimento, não, o sofrimento odiava, mas o prazer por beber cada gota a fazia esquecer o ritual pelo qual se submetia, a dor inacabável, as cicatrizes incômodas. O sofrimento físico e inocente era, incansavelmente, vital.

No entanto, não continuou suprindo sua necessidade esdrúxula por esses meios rudimentares. Com o passar do tempo, os sentimentos profundos, a dor indireta, o sofrimento psicológico foram abrindo sua sensibilidade e ela provou de um choro mais real e intenso. A diferença era gritante, as correntes explodiam de seus olhos gastos.

O ferimento corriqueiro não se equipara às marcas de um amor perdido, à falta de felicidade, à monotonia depressiva. Mas como provocar sentimentos em si mesmos? Como desejar ser infeliz? Não era capaz de enganar sua própria consciência.

Foi quando conheceu esse menino, tornaram-se amigos. Conversas levam uma à outra até que ela se viu despedaçada com as palavras que ele havia dito, estupidamente ingratas. O choro veio, mas por que veio? Não se importava, era o choro que queria.

Que estúpida, que estúpida. Nos dias em que a razão era pouca, o entendimento vazio, lambia os beiços como da primeira vez, esqueceria, usava-o, esqueceria.

Conversavam diariamente, ele e ela. Ele a magoava tanto, mas ela continuava incessantemente, por quê? “Pela sede, pela sede”, diria ela. Sujeitava-se a seus maldizeres, suas indelicadezas, mas as lágrimas, as lágrimas era o que queria.

Qual o sentido daquilo? O prazer infernal não escondia as cicatrizes. Mas ela queria, ela queria, chorar como só se chorava ela. Finjo estar, finjo perceber, o choro vem, não sinto, não sinto.

Foi quando, quase tão sem querer como quando chorou pela primeira vez, se percebeu amando. E do seu amor, chorou rios, estes mesmos que juntaram mares, onde afogou-se inflada de prazeres.

Juliana De Rosa Peano cursa o 2º ano do Ensino Médio.

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110

Tua, minha, nossa

Cidade: me trazes uma alegria prazenteira; me incita um olhar em

paulatino processo de entendimento. És pura tua paisagem. És excêntrica

tua essência.

Naquela esquina de cores falidas, numa manhã:

Vi pessoas. Vi rotina. Vi cartazes. Vi prédios. Vi concreto.

Vi carros. Vi árvores cinzas.

Ouvi buzinas. Ouvi lamentos. Ouvi reclamações. Ouvi pássaros cantando.

Ouvi telefone tocando. Ouvi conversas.

Mas apenas pude ver: duas pessoas, que naquela esquina, se abraçaram

e se foram com um passo apertado, carregando consigo um fardo

taciturno.

Curioso?

Cidade, conta-me tu, o que passara entre as duas pessoas?

Talvez tenha nesse descompasso banal:

Vastidão

de histórias

findas,

cíclicas

e

nunca tangíveis.

Naquela ciranda de facetas: ora via manifestações de ideias, ora

via sentimentos de pessoas.

Foi por um instante:

Cidade: és minha Sofia.

Fernanda Pestana Haddad cursa o 2º ano do Ensino Médio.

Comose faz

ummuseu?

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Selos, moedas, chaveiros, figurinhas, papeis de carta...

Você tem ou já teve algum tipo de coleção?

Todos que já colecionaram algo sabem do cuidado que um

colecionador tem ao estabelecer critérios para selecionar e organizar

os itens de sua coleção. Nesse sentido, toda coleção pressupõe uma

categorização. O mesmo acontece com as coleções dos museus: ainda

que não esteja evidente para os visitantes, as obras sempre estão

organizadas a partir de categorias (gêneros, períodos históricos, temas,

técnicas, artistas etc.).

Compreender a organização de uma exposição possibilita

ao visitante um olhar mais aprofundado das obras que a compõem, não

só quanto à interpretação de cada um dos trabalhos expostos, como

também quanto às relações que eles estabelecem entre si. Entretanto,

muitos alunos, embora tenham o hábito de visitar museus, desconhecem

esse fato. Pensando nisso, as disciplinas de Artes e Português do 7º ano

do Ensino Fundamental II organizaram um projeto interdisciplinar que tem

como objetivo sensibilizar os alunos para essa questão.

Preparação para o trabalho

Nas aulas de Artes, partindo das coleções pessoais dos

próprios alunos, foram trabalhadas questões como: “o que nos motiva

a colecionar?”; “como guardamos nossa coleção?”; “que cuidados

temos com ela?”. A partir disso, estabeleceu-se, por meio de discussões,

uma relação entre as respostas dos alunos e as coleções dos museus,

ampliando a percepção para a importância da curadoria e do papel do

curador.

A palavra curadoria tem origem na palavra latina curator

(aquele que cuida de outro e de seus bens) e passou a ser utilizada para

designar o encarregado da seleção e organização das obras em um

museu.

Após selecionar o conjunto de obras que será exposto, o

curador pensa em uma organização que dará sentido à exposição, pois

cabe a ele mediar a relação entre o público e as obras.

Durante as aulas preparatórias para a visita à Pinacoteca

do Estado de São Paulo, alguns gêneros de pintura presentes no acervo

desse museu foram retomados: retrato e autorretrato, paisagens e figura

humana. Além disso, foram feitos levantamentos de outras possíveis

categorizações presentes em uma exposição. Por fim, decidiu-se que os

alunos deveriam, em seu trabalho final, utilizar o tema como categorização

para a organização de sua curadoria.

A partir dessa indicação, os alunos discutiram, nas aulas de

Português, o conceito de tema: “o que é um tema?”, “como defini-lo?”.

Nessas discussões, cada estudante pôde compreender que o tema se

baseia em uma ideia geral que pode, mais tarde, apresentar subdivisões.

Assim, antes da saída pedagógica, os alunos receberam as instruções

gerais para o trabalho, bem como conheceram os trios que iriam formar.

Visita à Pinacoteca

A visita ao museu foi

dividida em três etapas, relacionadas

à observação das obras presentes

na Grande Sala, localizada no

2º andar do prédio e que abriga

exemplares representativos do acervo

permanente do museu. Em primeiro

lugar, professores e alunos retomaram

as principais etapas do trabalho e

relembraram os conceitos estudados

ao longo das aulas preparatórias. Em

um segundo momento, foi solicitado

113112

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114

que os alunos observassem

todas as obras que compõem a

sala, buscando analisar possíveis

aproximações temáticas entre elas.

Por fim, os trios foram desafiados

a determinar um tema para seu

trabalho e a selecionar quatro obras

que representassem esse tema,

com o objetivo de organizar uma

“minicuradoria”. Entre essas quatro

obras, deveriam, obrigatoriamente,

ser selecionados um retrato e uma

paisagem. Para registrar essa etapa

do trabalho, além de anotar em seu roteiro de visitação as relações entre

obras e tema, os alunos fotografaram os quadros escolhidos.

Organização do trabalho final

Já de volta à sala de aula, cada trio se uniu para organizar os

dados coletados, selecionar as melhores fotografias e organizar o envio

desse material para os professores.

Nas aulas de Artes, um novo desafio foi lançado: observando

as obras escolhidas e o tema predeterminado, os alunos teriam de criar

uma quinta imagem para compor sua curadoria. Nesse trabalho, foram

utilizados técnicas de desenho e materiais de pintura escolhidos pelo trio:

lápis de cor, aquarela, giz pastel e tinta guache.

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Para finalizar a exposição, nas aulas de Português, os alunos

deram um título ao seu trabalho. Para isso, foram realizadas discussões

acerca da função do título em uma exposição. Ao analisarem criticamente

os títulos de eventos em cartaz em São Paulo naquele momento, os

alunos puderam perceber três aspectos fundamentais para a elaboração

de um bom título: a informatividade (o título precisa ser capaz de informar

ao espectador o tema geral da exposição), o poder de síntese e a

capacidade de despertar interesse no espectador. A partir dessa análise,

cada trio elaborou um título para sua minicuradoria. Finalmente, após o

término de todas as atividades do projeto, uma exposição com todos os

trabalhos foi montada no térreo da escola e recebeu muitos convidados:

pais, funcionários e alunos. Para além de apenas divulgar o trabalho

realizado, a exposição proporcionou aos alunos, os autores, uma visão

mais concreta sobre a importância de cada etapa do projeto, o que os fez

também compreender, na prática, cada uma das etapas que compõem

uma curadoria profissional.119118

Juliana Yokoo Garcia é professora de Português e Patrícia Bacchi, de Artes,

ambas do 7º ano. Luca Caltran (Artes) e Rafael Barufaldi (Português) foram essenciais

para o desenvolvimento do projeto.

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Eu, etiqueta?Vivemos em um mundo em constante

transformação. O acesso rápido à informação,

o avanço das novas tecnologias e o uso cada

vez maior das mídias sociais caracterizam

o cenário da contemporaneidade. Uma das

marcas dessa nossa sociedade é o incentivo

ao consumo. Sem distinção de gênero,

religião ou mesmo de poder aquisitivo,

somos todos estimulados a um consumismo

desenfreado, que encara os bens (duráveis

ou não duráveis) como descartáveis.

Mas existe um público por quem

as propagandas, cada vez mais, têm se

interessado. Facilmente influenciáveis, as

crianças tornaram-se alvo de campanhas

de marketing veiculadas em rádio, televisão,

internet e na mídia impressa.

Atualmente, o público infantil é um dos

grandes focos dos investimentos publicitários.

No ano de 2013, ele representou 23% do

planejamento dos gastos do setor, segundo

dados do Mídia Dados. A publicidade não

se dirige às crianças apenas para vender

produtos infantis; elas são consideradas,

também, quando se pensa na venda destinada

aos adultos.

Partindo desse panorama e com objetivo

de refletir sobre a influência da propaganda

nas escolhas do cidadão, aos alunos do 5º

ano do Ensino Fundamental foi proposta uma

sequência de trabalho cujo eixo temático era

o consumismo.

Dentre as diversas propostas, os

alunos foram convidados a refletir sobre

a importância que os bens materiais têm

no seu cotidiano, o destino dos produtos

descartados e de suas embalagens, a relação

existente entre consumo e meio ambiente e

muitas outras questões.

Um vídeo. Várias discussões. O

disparador para as primeiras discussões foi

o documentário Criança, a alma do negócio,

da Maria Farinha Produções (http://www.

mff.com.br). O vídeo traz questionamentos

e esclarecimentos sobre a influência da

propaganda no universo infantil e sobre

como as agências de publicidade pensam

suas campanhas com foco no estímulo ao

consumismo desse público. De acordo com

John Medina, biólogo de desenvolvimento

molecular e diretor do Brain Center for

Applied Learning Research, na Seattle Pacific

University, os profissionais de marketing já

sabem, há tempos, que não é necessário

que o consumidor tenha um interesse prévio

em determinado produto para que sua

atenção seja atraída à propaganda. Para

esses profissionais, a atenção é capaz de

criar o interesse por algo, e estímulos novos

são uma forma bastante eficiente de usar

essa habilidade cerebral a favor do interesse

e, portanto, do consumo de determinado

produto.

Assistindo ao vídeo, os alunos entraram

em contato com informações alarmantes,

como os dados da Associação Dietética

Norte-americana Borzekowiski Robinson,

que afirmam que bastam apenas 30 segundos

para uma marca influenciar uma criança.

Além disso, puderam analisar uma atividade

em que foram mostrados a crianças de

diferentes idades cartões com fotografias

de animais para que elas os identificassem.

Muitos animais não foram reconhecidos;

porém, quando os cartões continham

logotipos de marcas famosas, todas as

crianças as identificaram imediatamente.

Use, compre, adquira, experimente. Após

o debate sobre o vídeo, o segundo momento

do trabalho foi a leitura e a interpretação

do conto “O estranho procedimento de

Dona Dolores”, escrito por Luis Fernando

Verissimo, que narra a história de uma dona

de casa que, de um dia para o outro, começa

a fazer propagandas de todos os produtos

que utiliza no cotidiano com a família.

A etapa seguinte do trabalho foi composta

pela leitura e análise de diversos textos

pertencentes ao gênero textual anúncio

publicitário. Os alunos leram diversos

anúncios e puderam discutir quais são as

características dessa modalidade de texto e

de que forma ela influencia os consumidores

a escolher diferentes produtos. A análise dos

anúncios possibilitou estabelecer relações

entre imagem e texto verbal, justificar a

publicação em determinado veículo de

comunicação, identificar o público-alvo de

uma campanha e fazer inferências sobre

mensagens subliminares, que podem ser

compreendidas como a apresentação

ao consumidor de um produto ou serviço

de maneira tão leve ou breve que não é

conscientemente percebida, levando-o a

consumi-lo ou usá-lo sem saber as reais

razões pelas quais fez suas escolhas.

Vinculando a sequência de atividades

a outro objetivo do trabalho do curso de

Português do 5º ano – os modos verbais

– os alunos puderam analisar o uso dos

verbos no imperativo na produção de um

anúncio publicitário. O modo imperativo é

aquele em que o enunciador expressa uma

atitude de ordem, conselho, pedido sobre os

fatos do enunciado. É comum, nos anúncios,

encontrarmos verbos como “use”, “compre”,

“adquira”, “experimente”.

A reportagem “Como mudar hábitos de

consumo para produzir menos lixo”, publicada

no site da revista Nova Escola em maio de 2010

120 121

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(http://revistaescola.abril.com.br/ciencias/

pratica-pedagogica/habitos-consumo-lixo-

produzido-reciclagem-tecnologia-586717.

shtml), também foi utilizada para discussão

em sala de aula. A partir da leitura, os

alunos tiveram oportunidade de refletir sobre

seus hábitos, aprender qual o destino das

embalagens geradas a partir do excesso de

consumo do homem moderno e conhecer

algumas cidades brasileiras que, por se

preocuparem com a grande quantidade de

lixo gerada pela população, realizam coletas

seletivas muito eficazes.

Para finalizar o trabalho, o conhecido

poema “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond

de Andrade, entrou em cena.

A partir da leitura crítica e da discussão

do tema abordado pelo poeta mineiro em

seus versos, surgiu o produto final de toda

essa trajetória. Os “bonecos-anúncio” e as

frases críticas que os compõem, criados pelos

alunos, são o resultado das possibilidades de

composição de seus pensamentos sobre o

que foi abordado a respeito do consumismo

no decorrer do segundo trimestre.

“(...)

Minhas meias falam de produtos

Que nunca experimentei

Mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

De alguma coisa não provada

Por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

Minha gravata e cinto e escova e pente,

Meu copo, minha xícara,

Minha toalha de banho e sabonete,

Meu isso, meu aquilo.

Desde a cabeça ao bico dos sapatos,

São mensagens,

Letras falantes,

Gritos visuais,

Ordens de uso, abuso, reincidências.

(...)”

ANDRADE, Carlos Drummond. “Eu, etiqueta”. In: Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro, 16 jan. 1982, Caderno B.

122

Está usandouniforme?

Você precisa mesmo de tudo que compra?

O que você é?O que vocêquer ser?

Pode não parecer, mas este é você.

Quem sou eu?

Luciana Tomiatto de Oliveira é coordenadora de área de Português do 4º e 5º anos

do Ensino Fundamental I e desenvolveu o trabalho em parceria com as professoras

Clarissa Mariano e Juliana Camachi.

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Intervenção urbanae a construção do olhar sobre o espaço

Ao caminhar pela

Avenida Paulista, de

repente nos deparamos

com uma vaca customizada.

Descendo um pouco pela

Rua Augusta, encontramos

uma árvore revestida de

crochê colorido. Do outro

lado da cidade, em meio ao

trânsito da Marginal Tietê,

avistamos gigantescas

garrafas PET. E por aí vai.

Quando menos esperamos,

intervenções estão

presentes em caminhos

do cotidiano de nossa

metrópole. Essas criações

artísticas, efêmeras

ou duradouras, são as

intervenções urbanas.

Ressignificando olhares

e utilizando diversos

equipamentos da cidade,

como telefones públicos,

postes, calçadas, muros,

construções, objetos

inusitados, não é de hoje

que a arte vem ocupando

locais públicos e ganhando

certa notoriedade entre

pessoas que transitam em

diferentes espaços urbanos.

É justamente o argumento

de ressignificar que legitima

o ato de intervir.

Na tentativa de

sensibilizar diferentes

sentidos do observador, a

intervenção urbana tem

ocupado espaços e objetos

que são comuns a todos

os transeuntes, a fim de

suscitar novas reflexões

sobre o ambiente social no

qual estão inseridos. Tanto

a percepção, por parte do

artista, de poder transmitir

uma mensagem utilizando

a cidade como suporte

quanto o olhar atento que

capta essa mensagem, por

meio do observador, são

pontos fundamentais para a

intervenção. O observador

não é mero espectador,

e sim parte da produção

artística. Ele é um dos

elementos fundamentais

dessa troca. A tríade

artista, espaço público e

observador é de extrema

importância para que a

intervenção aconteça.

Nesse sentido, trazer

essa concepção de arte

para dentro da escola é

ressignificar o olhar dos

alunos para um espaço que

eles utilizam diariamente

e com o qual estão

familiarizados. Ao observar

o espaço e planejar como

intervir nele, os alunos

comunicam questões

e pensamentos de seu

universo e estabelecem uma

identidade com o próprio

espaço. Somado a isso,

os observadores dessas

intervenções no ambiente

escolar também são

pessoas que, muitas vezes,

compartilham dos mesmos

pensamentos, o que

potencializa as reflexões

propostas.

124 125

Intervenção na escola. As novas

percepções sobre o espaço

comum e o uso que se faz

dele o disparador para o

trabalho desenvolvido com

alunos de 8º ano do Ensino

Fundamental II. Na etapa

inicial, propõe-se ao aluno

um desenho de memória

de determinados espaços

da escola. Nesse momento,

ele se dá conta de que o

uso diário de determinados

locais o faz esquecer-se

de detalhes que estão

presentes nesses espaços.

Numa segunda etapa,

é proposto um desenho

de observação do lugar,

garantindo que detalhes

esquecidos da arquitetura

sejam observados e,

posteriormente, usados

como suporte para a

intervenção. Proporção e

cálculo são importantes

nesse processo. É nessa

etapa que os alunos têm a

noção de que existe uma

relação estreita entre

o que se quer comunicar

e o espaço explorado.

A viabilidade da ideia

passa, inevitavelmente,

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126

pelas etapas iniciais e pelo

planejamento do que se

quer realizar.

O trabalho de

intervenção possui,

portanto, uma ordem de

atividades que orienta

o olhar a buscar novas

leituras para um espaço

já conhecido, permitindo

também que as experiências

artísticas vivenciadas pelos

alunos do 8º ano dentro

da sala de Artes sejam

compartilhadas com os

demais colegas.

Entre as etapas, são

apresentadas intervenções

já existentes na cidade de

São Paulo. Por meio delas,

os alunos tornam-se mais

sensíveis a perceber como

há múltiplas possibilidades

de interpretação para

os diferentes locais que

frequentam e participam

de discussões acerca dos

diferentes temas de reflexão

que as intervenções

suscitam sobre o uso dos

espaços coletivos.

A efemeridade é outro ponto

a se considerar, já que

muitas das intervenções

sofrem com a ação do

tempo ou de outros usuários

do local.

Com as intervenções

finalizadas e a observação

das mais diversas reações

de alunos e funcionários,

os alunos vivenciam

efetivamente novos laços e

relações com os espaços

da escola, tendo, sobretudo,

a sensação maior de

pertencimento aos locais

frequentados.

Luca Caltran é professor

de Artes do Ensino

Fundamental II.

Um dos pilares do curso de Português da Móbile é o trabalho com os gêneros textuais.

Segundo o pensador russo Mikhail Bakhtin, os gêneros textuais definem-se, principalmente,

por desempenhar uma função social. Nesse sentido, cada gênero de texto apresenta um

objetivo, um contexto de produção e uma interação específica. Em outras palavras, ao produzir

um texto, é necessário selecionar o gênero que melhor representa questões como: “o que

desejo comunicar?”, “como e onde essa comunicação será veiculada?” e “qual é o público

que desejo atingir?”. As escolhas lexicais, o tipo de linguagem utilizada e a organização das

informações no texto são determinados a partir das respostas a essas questões.

Em um contexto escolar, muitos são os momentos em que a função da produção de texto

está limitada à sala de aula: o aluno produz com o objetivo de apresentar suas habilidades

linguísticas em determinada atividade que terá como interlocutor principal o professor.

Nesse tipo de situação escolar, o texto perde sua função social, uma vez que funciona,

essencialmente, como uma avaliação. É evidente que o trabalho constante com a produção

de texto em contexto escolar é de suma importância para o desenvolvimento das habilidades

textuais dos alunos. Entretanto, esse trabalho deve ocorrer sempre em conjunto com

projetos que abordem, efetivamente, a função social de um texto. No 7º ano, um dos projetos

que atendem a essa demanda é o trabalho com o gênero relato de viagem, desenvolvido

juntamente com o Estudo do Meio.

Com o objetivo de realizar pesquisas de campo nas áreas de Ciências, História e

Geografia, os alunos visitam as cidades de Iguape, Cananéia e Ilha do Cardoso, localizadas

ao sul do estado de São Paulo, em uma região conhecida como Lagamar. O projeto prevê que,

ao final da viagem, os estudantes apresentem um trabalho no qual devem comunicar suas

aprendizagens e suas experiências.

Cadernos de viagem: o texto para além dos muros da escola

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O trabalho com o gênero relato de viagem inicia-se muito antes da viagem. Nas aulas de

Língua Portuguesa, os alunos são convidados a conhecer relatos de outros autores viajantes:

de textos de Amyr Klink aos blogs de viagem, vários são os exemplares lidos e discutidos.

Em um segundo momento, os textos são analisados em uma perspectiva comparativa,

incentivando os alunos a encontrar as características comuns que fazem com que os textos,

ainda que diferentes, sejam considerados representativos do mesmo gênero textual.

Nessa comparação, os alunos notam que o relato de viagem pressupõe um narrador em

primeira pessoa e integra três aspectos essenciais: os dados técnicos, as informações sobre

o local visitado e o relato das experiências pessoais.

Para colocar em prática os conhecimentos adquiridos por meio das leituras e discussões

feitas em sala, os alunos realizam atividades de produção de texto, como a elaboração de

parágrafos descritivos e um relato de viagem completo, baseado em suas experiências

pessoais. Nesse momento, é possível detectar a compreensão dos alunos em relação às

características próprias do gênero, do tipo de narrador mais adequado até seleção de fotos e

produção de legendas. Diante dos resultados apresentados em sua primeira produção, cada

estudante tem a oportunidade de entrar em contato com seus equívocos, o que possibilita que

eles sejam evitados em seu trabalho final.

Para aprofundar os conhecimentos sobre o relato de viagem e, principalmente, como forma

de conhecer estratégias de registro nos diários de campo, os 7º anos recebem, no auditório

da Móbile, os Muller, uma família viajante que, para além de realizar viagens incríveis focadas

no ecoturismo, relata suas experiências em livros e em seu blog. Ao entrar em contato com

pessoas que, de fato, utilizam o relato de viagem como uma forma de comunicação social, os

alunos percebem que produzir textos está para além da avaliação ou do exercício acadêmico.

Durante a apresentação, os palestrantes fornecem informações sobre como organizar um

diário de campo, como e o que deve ser fotografado, qual é o tipo de informação que deve ser

registrado, entre outras estratégias que ajudam o aluno a otimizar o tempo em uma pesquisa

de campo ao mesmo tempo que registra as informações relevantes. Por fim, a família mostra

de que maneira os registros feitos em campo são transformados em um relato de viagem.

A hora da práticaApós essa longa preparação e munidos de seu diário de campo, os alunos partem para a

viagem de Estudo do Meio e colocam em prática, durante quatro dias, todas as habilidades

desenvolvidas nas aulas. Ao longo da viagem, os alunos são incentivados a coletar dados

de diferentes maneiras: fotografias, desenhos de observação, anotações, para que tenham,

durante a elaboração do produto final, acesso à maior quantidade de dados possível.

Finalmente, ao retornar, cada aluno produz seu caderno de viagem, em que deve comunicar

não apenas suas experiências pessoais, mas também os conhecimentos adquiridos. Para

nortear a produção final dos alunos, cada professor, dentro das especificidades de sua

disciplina, fornece parâmetros a serem seguidos, permitindo, mesmo assim, que haja uma

composição pessoal de cada um dos estudantes.

Diante dos resultados dessa produção, do envolvimento dos alunos na execução do

projeto à qualidade textual e visual apresentada, é possível perceber a eficácia de um trabalho

que, de fato, considera a função social do texto. Contar uma experiência vivida, apresentar

dados coletados e abordar conceitos aprendidos são experiências que mostram aos alunos

que a produção de texto é, sem dúvida, um meio de comunicação efetivo que se expande para

além dos muros da escola.

O resultado finalApós um longo trabalho de organização e seleção dos dados coletados, cada aluno

recebe um caderno em branco, no qual, seguindo os parâmetros fornecidos pelos professores

envolvidos no projeto, desenvolvem textos que não apenas relatam as experiências vividas,

mas que também apresentam conceitos apreendidos ao longo da viagem.

Além de entrar em contato com as questões textuais e conceituais, os alunos são

colocados diante de uma situação em que habilidades de organização, apresentação e

criatividade são de suma importância para um bom desenvolvimento do trabalho. Seguindo as

orientações fornecidas previamente, cada estudante pode explorar a ordem das informações

apresentadas ou mesmo o material utilizado para compor esteticamente o caderno.

Alguns exemplos dessa diversidade e dos tópicos exigidos na proposta podem ser

conferidos a seguir:

128

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A capa apresenta imagens pertinentes ao tema, o título do trabalho e o nome do autor.

As informações técnicas, elemento característico do gênero relato de viagem, foram

apresentadas no início do caderno.

Os relatos de experiência pessoais e os textos expositivos sobre os conteúdos trabalhados

preencheram as páginas do caderno.

Juliana Yokoo é coordenadora e professora de Português do Ensino Fundamental II.

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Ao ler um texto do pedagogo espanhol Jorge Larrosa Bondía, “Notas sobre a experiência

e o saber de experiência”, comecei a refletir sobre uma situação de experiência que poderia

propor aos meus alunos de 6º ano no curso de História. Se precisasse resumir a proposta

do curso em poucas linhas, diria que os alunos dessa série têm de concluir o seu percurso

compreendendo que o tempo da história dos homens é longo, que se mede em milhões de

anos, e que o estudo da História se dedica a analisar a cultura produzida por esses homens

ao longo de todo esse tempo.

No entanto, mais de 90% da história humana se passou sem que houvesse

conhecimento da escrita, o que nos obriga a investigar esse passado por meio da observação,

análise e interpretação dos artefatos produzidos por diferentes grupos, em diferentes lugares,

e que resistiram à passagem do tempo.

A ideia da passagem do tempo é muito abstrata, e seria mais fácil apreendê-la

num projeto que lhe desse concretude. Partindo desse objetivo de aprendizado, propus-

me o desafio de pensar uma atividade que colocaria meus alunos diante da observação

do homem como produtor de cultura ao longo do tempo. Mas não queria que eles fossem

apenas observadores, captadores de informação e processadores de opinião; queria que, ao

contrário, fizéssemos algo que lhes tocasse, marcasse.

Propus a eles, então, que cada sala montasse um sítio arqueológico.

Mas como fazer isso?

1. O trabalho teve início após nossos estudos sobre as conquistas de cada etapa evolutiva

humana em termos de produção de cultura e, por isso, os grupos foram divididos segundo

algumas etapas da evolução humana: australopitecos, Homo habilis, Homo erectus, Homo

sapiens neandertalensis, Homo sapiens sapiens.

2. Partimos para a escolha dos

materiais – argila, papel, madeira

e pedra – e, posteriormente, para

a confecção dos artefatos que

comporiam as diversas camadas do

nosso “sítio”. Cada grupo pensou

sobre as características da etapa

evolutiva humana que ficou a seu

cargo e criou e fez os artefatos que

lhe eram correspondentes. Em

seguida, preencheram um documento

para classificar cada material que

seria enterrado. A etapa seguinte foi

a de enterramento.

Uma experiência sobre a produção de cultura ao longo do tempo:a montagem de um sítio arqueológico

132 133“Tudo o que faz impossível a experiência faz impossível a existência.” Jorge Larrosa Bondía

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3. Os membros dos grupos prepararam a terra que comporia a sua camada estratigráfica

– cada uma delas representava a passagem do tempo –, distribuíram os artefatos na sua

extensão e registraram a camada em fotografia; o grupo seguinte fazia o mesmo.

4. Uma vez concluída essa etapa,

deixamos o tempo agir sobre o nosso “sítio

arqueológico”. Percebemos, então, o

quanto um experimento é diferente de uma

experiência. O experimento é previsível e

a experiência tem sempre uma dimensão

de incerteza, deixa uma abertura para

o desconhecido – algumas de nossas

camadas estratigráficas se misturaram

e os feijões que foram colocados para

representar os Homo sapiens sapiens

agricultores floresceram.

Não estávamos esperando que isso fosse acontecer, mas soubemos resolver a questão,

como relatado a seguir.

5. Na última etapa do trabalho, uma sala desenterrou o “sítio arqueológico” montado

pela outra. Ao escavarem determinada camada estratigráfica, correspondente a uma etapa

evolutiva humana, encontravam artefatos que identificavam como sendo pertencentes a

outra etapa e chamavam os especialistas naquela fase da evolução para analisar e catalogar

o artefato que havia migrado de camada. O feijão? Simplesmente o arrancamos e os alunos

concluíram que os homens que ocuparam aquele território já conheciam a agricultura, uma

vez que foi possível identificar o conhecimento sobre as sementes e o plantio.

6. A formalização do trabalho se deu pelo preenchimento de um documento similar ao

que têm os arqueólogos para registrar as descobertas. Numa folha, catalogaram as peças,

descrevendo sua morfologia, e depois utilizaram essas informações para produzir um

relatório sobre os achados que compunham as camadas estratigráficas, que, por sua vez,

representavam as conquistas culturais dos homens num determinado tempo.

Após 3 semanas, colocamos as carteiras da sala – que antes estavam todas dispostas

em círculos – novamente em fileiras e nos voltamos para o estudo sobre as organizações

sociais mais complexas da Antiguidade. Para todos nós, alunos, professora e assistente, o

aprendizado se deu por meio da mediação da experiência; e, mais do que adquirir um saber,

nós nos transformamos por meio de uma conexão significativa com os acontecimentos.

Kelly Cristina Oliveira de Araújo é professora de História do Ensino Fundamental II.

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A importânciado brincar parao desenvolvimento infantil

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“Quando olho uma criança, elame inspira dois sentimentos, ternura pelo que é e respeito pelo que posso ser.” Jean Piaget

Associar criança e brincadeira é algo natural, mas será mesmo que toda criança

nasce sabendo brincar?

O filósofo francês Gilles Brougère defende que, ao contrário do senso comum, a

brincadeira não é inata. Brincar é algo que se aprende desde muito cedo e se desenvolve

como resultado de uma construção social entre a criança e a mãe, que, geralmente, é o adulto

mais próximo dela na fase inicial da vida.

A partir do entendimento de que a criança aprende a brincar, os responsáveis por ela

(pai, mãe, avós, babás, educadores etc.) devem aproveitar todos os momentos para realizar

brincadeiras. Aquele tradicional sopro na barriga do bebê fazendo ruídos com a boca é um

bom exemplo disso. Cantarolar canções, esconder o rosto atrás de um pano, entre outras

manifestações, iniciam um processo de interação e aprendizagem da brincadeira que se

modifica de acordo com as etapas de desenvolvimento e interesse da criança.

Quem não se lembra de pegar algo por dezenas de vezes do chão, entregá-lo à criança

e ela imediatamente atirar o objeto para ser apanhado pelo adulto? A cada movimento, a

criança sorri; a cada arremesso, uma diversão. Nessa fase, a criança exercita o brincar pelo

prazer funcional de repetir a atividade e o adulto é o ser mediador e incentivador desse ato

lúdico. Trata-se do jogo do exercício.

Ver, tocar, ouvir, sentir, degustar são as primeiras motivações lúdicas da criança. Por

meio das brincadeiras sensoriais, ela aguça os seus sentidos e sua percepção e adquire

conceitos que mais tarde serão essenciais para a aprendizagem formal. O biólogo suíço Jean

Piaget distinguiu, além dessa, outras duas grandes categorias do brincar: o simbólico e a

regra.

O jogo simbólico normalmente coincide com a entrada da criança na escola, com o

aparecimento da linguagem e, especialmente, com o surgimento da noção de “eu”. É a fase

do “faz de conta”, em que a criança aprende a representar o mundo e a recriar as coisas ao

seu modo. O espaço que a circunda se torna um mundo mágico e repleto de possibilidades.

A brincadeira simbólica não tem regras fixas, pois elas mudam de acordo com o contexto

imaginativo e com os objetos com os quais a criança brinca. Quanto mais aflorada a

capacidade de imaginação, mais possibilidades são dadas a um objeto. Um simples galho de

árvore, por exemplo, pode se transformar em um foguete, em um cavalo ou em um carro.

No Infantil 2, recebemos muitas crianças que tiveram pouco contato com outras e que,

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em relação ao desenvolvimento infantil, são ainda bastante egocêntricas. É muito difícil para

elas emprestar brinquedos, dividir o espaço e brincar junto. As crianças brincam voltadas

para si mesmas, e perceber o outro como diferente ainda é difícil. Logo que chegam à escola,

primeiramente exploram o ambiente e brincam sozinhas, sendo necessário, a todo momento,

o nosso convite para brincar. Normalmente, chamamos a atenção das crianças de forma a ser

“modelo” para o brincar. Cantamos, reforçamos gestos e até corremos de um ser imaginário

e assustador, enfatizando as expressões com caras e bocas de espanto que se tornam muito

convidativas.

Em princípio, todos nos observam atentos para, posteriormente, repetir tanto as

canções quanto os gestos mostrados como modelo. Estamos, assim, ensinando a brincar. A

partir do momento em que a criança se apropria das brincadeiras, ela passa a reproduzi-las

espontaneamente.

Com o passar do tempo, dá-se uma nova fase do desenvolvimento social, e a criança

passa a brincar perto de outras, porém ainda sozinha. O que a faz estar perto é o tipo da

brincadeira. Em um simples pega-pega, por exemplo, a criança ainda não compreende a regra

do jogo; porém, quando vê um grupo de colegas correndo atrás da professora, ela se interessa

e percebe o quanto pode ser divertido correr junto com outras crianças. A professora, aos

poucos, aproxima uma criança da outra, propondo: “Vamos pegar este amigo? Dá a mão para

ele para vocês correrem juntos!”.

Com maior domínio da linguagem, a fantasia e o “faz de conta” se tornam atividades

primordiais na vida das crianças. (A riqueza vocabular se aproxima da realidade externa.)

A professora passa, então, a intermediar as brincadeiras, dando a cada criança a

possibilidade de brincar ao lado de outra, fornecendo a cada uma delas um papel fundamental

no processo – como o de “mamãe”, “papai”, “filhinho”, “lobo” etc.

É papel do adulto organizar o tempo e o ambiente em que a brincadeira vai acontecer,

proporcionando materiais que convidem as crianças a brincar. Pensar sobre a disposição dos

brinquedos na sala, o número de crianças adequado a cada jogo e os objetos apropriados à

faixa etária a serem oferecidos contribui para a aprendizagem do brincar.

Quando a criança já é capaz de brincar ao lado de outra, com pouca ou nenhuma

intervenção do adulto, a última categoria da brincadeira é conquistada – o jogo de regra. Como

o próprio nome induz, o jogo de regra envolve objetivos definidos e supõe relações sociais.

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As crianças aprendem a lidar com perdas e ganhos, a tomar decisões, a compartilhar, a

planejar e a coordenar pontos de vista, requisitos essenciais para o desenvolvimento cognitivo

e social.

Além disso, nas brincadeiras, as crianças podem desenvolver algumas capacidades

importantes, como a atenção e a memória, além das outras já citadas anteriormente. Para

que isso ocorra, é imprescindível que haja riqueza e diversidade nas experiências que são

oferecidas aos alunos. O espaço do brincar é um direito da criança, e, ao garantir isso,

asseguramos a ela o seu desenvolvimento. Trata-se de uma ação responsável, uma ação de

autodescoberta, e todos os momentos devem ser vistos como possibilidades.

Nós, professoras do Infantil 2, temos o privilégio de estimular essa potente forma de

interação, que nada mais é do que a reprodução do cotidiano e da cultura na qual estamos

inseridos. Brincar possibilita à criança construir sua identidade.

Andréia Siqueira de Faria, Carla Pinto Retamales Mazaro, Larissa Rodrigues Dias Pereira

e Mônica Alves de Góes da Silva são professoras do Infantil 2.

Ione Capucci é orientadora educacional do Infantil 2.

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Essa passagem foi

retirada de Obax, obra

escrita e ilustrada por André

Neves (editora Brinque

Book) e adotada para as

turmas do 2º ano do Ensino

Fundamental I. Ela ilustra

um dos pressupostos do

curso de literatura da

Móbile: despertar o prazer

pela leitura e instigar

nossos alunos a vivenciar

mundos imaginários como

possibilidade de ampliação

de seu universo cultural.

Calcados, também,

na concepção de que a

imaginação é crucial para

a formação de acervos

de memória, nada mais

favorável do que aproximar

nossos alunos das histórias

de uma menina africana

e de sua imaginação. Por

meio da fantasia poética,

os leitores puderam

acompanhar a personagem

principal, Obax, em suas

aventuras pela savana

e vivenciar situações

inusitadas, como “Um

elefante como amigo?”;

“Uma chuva de flores?

Quem acreditaria?”..., mas

nenhum obstáculo impediu

Obax (e seus leitores) de

continuar vivendo suas

aventuras...

Em um primeiro

momento, nossos

alunos leram o livro

individualmente.

Depois fizeram a leitura

compartilhada, discutindo

o enredo e relacionando

o texto verbal às imagens

(paisagens, cores, costumes

de uma cultura diferente da

deles).

As cores e grafismos

presentes nas ilustrações

chamaram a atenção dos

alunos para os traços

marcantes da cultura

africana e, nessa etapa,

propusemos uma oficina.

Com argila, as crianças

moldaram o grande amigo

de Obax, o elefante Nafisa,

e prepararam uma grande

festa africana.

Adriana Felicíssimo,

coordenadora de projetos

da biblioteca da Móbile,

preparou o espaço para

homenagear Obax. Todos

nós, professores e alunos,

fomos recebidos com

músicas africanas e com

paisagens da savana.

Juntos, celebramos o final

da leitura do livro. Logo,

começamos a nos pintar,

retomando a importância

e o significado que a

representação por meio de

traços e combinações de

cores tem para algumas

tribos africanas, de acordo

com a ocasião: luta,

casamento e até mesmo a

morte de alguém.

Obax, uma meninacom nome de flor

142 143

“Quando o sol acorda no céu das savanas, uma luz fina se espalha sobre a vegetação escura e rasteira. O dia aquece, enquanto os homens lavram a terra e as mulheres cuidam dos afazeres domésticos e das crianças. Ao anoitecer, tudo volta a se encher de vazio, e o silêncio negro se transforma num ótimo companheiro para compartilhar boas histórias.”

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Em pouco tempo,

todos estávamos prontos,

sentados em volta de um

grande tapete que seria

decorado pela turma. Ao

final, os alunos dançaram

em volta do trabalho e até

entoaram um coro criado

por eles: “BAOBÁ! BAOBÁ,

BAOBÁ!” Nesse momento,

sentimos o coletivo da tribo

e a imaginação tomar conta

de cada um.

Débora Zardi e Priscilla

Ribeiro são professoras

do 2º ano do Ensino

Fundamental I.

Foi dessa perspectiva exterior que

conheci o projeto Móbile na Metrópole.

Perspectiva duplamente estrangeira – de

alguém que estava, em 2013, fora do Brasil

e que, portanto, desconhecia a organização

do projeto. Acompanhei tudo de longe, pelas

redes sociais: fotos e hashtags no Instagram,

comentários pelo Facebook, uma ou outra

pergunta feita aos professores envolvidos

via Whatsapp. Foi o suficiente para atiçar

minha curiosidade e entusiasmo. Por três

dias, acompanhei o olhar deslumbrado de

alunos com a própria cidade; essa São Paulo

que chamam de “feia” e “cinza” em alguns

momentos me pareceu tão inegavelmente

linda como Barcelona, meu local de

residência à época.

Quando retornei ao Brasil, e à

Móbile, em 2014, um de meus entusiasmos

estava ligado à participação (o mais

ativamente possível) no Móbile na Metrópole,

projeto do Estudo do Meio do 2º ano do Ensino

Médio. Não fazia ideia da quantidade de

trabalho envolvida no projeto, de professores

e alunos. Coordenadas por Felipe Corazza,

professor de Filosofia e coordenador

educacional, as áreas de Ética e Cidadania,

Filosofia, Geografia e História se esforçavam

por encontrar nos conteúdos programáticos

uma linguagem comum, bases conceituais

sólidas que pudessem ser trabalhadas por

todos ao longo de três bimestres.

Mais uma vez a Móbile na metrópole Um olhar estrangeiro é sempre algo único: um olhar deslocado,algo desconfortável, fora dos eixos e códigos que lhe são familiares. Talvez por isso esse olhar de fora revele o despercebido, o que háde novo e inusitado em paisagens já viciadas.

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Janeiro. Muitos textos, muitas reuniões.

Inúmeros e-mails trocados, diversas boas

ideias... para decidirmos partir de um eixo:

o da experiência. Sair do conceitual, do

teórico e abrir-se para abraçar o momento

de experimentar, viver, tocar. Decidimos

um tema: conflitos urbanos. Conflitos que

ultrapassassem a acepção inicial de “embate

físico” para pensar em tudo o que pudesse

ser conflituoso: a moradia, a preservação

do patrimônio, os estrangeiros e o que mais

a criatividade sugerisse. Em História, isso

significou uma aliança com a memória.

Fevereiro. Confrontei os alunos – e

fui confrontada por eles – com a busca

pela relação entre memória, história e

experiência. “O que cada um desses

substantivos significa?”; “O que nossa

memória nos apresenta é, de fato, o que

experimentamos?”; “Como selecionamos

as experiências que fazem parte de nossa

memória?”; “O que entra para a história

– pessoal e coletiva?”; “A memória altera

a percepção da experiência?”; “É possível

fazer registros de tudo isso?”. Os alunos

produziram imagens que representassem o

significado de memória e experiência para

cada um; depois, a partir da leitura de um

conto de ficção escrito pelo alemão W. G.

Sebald, discutimos a relação entre o registro

de uma memória e a experiência vivida. “Eles

são a mesma coisa?”

Março. Nesse mês, houve os primeiros

contatos oficiais dos estudantes com o

projeto. A apresentação do vídeo, produzido

em 2013 pelos alunos pioneiros do projeto,

despertou mais ansiedade (neles e em

mim!). Cresciam as reflexões nas quatro

áreas, chegava a hora de ver os alunos

trabalharem na construção conceitual de

um problema que lhes interessasse: a tal

da “questão-problema”, cuja “resposta-

hipótese” constituiria o trabalho final do

projeto. Foram semanas de pesquisa, escrita

e reescrita. Frustração e descobertas:

pesquisar não é tão simples quanto parece;

aplicar a pesquisa e conceitos estudados

em sala ao contexto cotidiano, de maneira

consistente, menos ainda. Mas os alunos

surpreenderam. (Não pelos resultados, que

já esperávamos que fossem bons, mas pela

perseverança em atacar o problema de

frente por vários ângulos, várias vertentes.)

Foram resilientes, trocaram de questão,

buscaram outros conceitos, outras fontes.

Aos poucos, tornaram-se donos de seus

conteúdos, autores de suas pesquisas.

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Abril. Momento de discutir em torno de

materiais não acadêmicos: peça de teatro,

documentários sobre temas variados e a

investigação das relações entre aquela

diversidade de metrópole com seus conflitos.

Era hora de encontrar um meio de registro

para o processo vivido até ali e para sua

continuidade. O objetivo era que cada grupo

registrasse cada etapa de seu trabalho: por

meio da escrita, de imagens, do material

que quisessem e achassem pertinente.

O importante era refletir sobre o que estavam

fazendo. Foram criados os blogs. Cada grupo

criou seu espaço virtual, uma plataforma

que permitia o uso de diversos meios de

comunicação integrados e que se tornou o

espaço mais personalizado, mais pessoal,

para o registro da experiência e da reflexão.

Ao contrário do que talvez se possa pensar,

não foi algo tão simples. Nossos adolescentes

não são tão versados em tecnologia quanto

gostaríamos de pensar; apenas dois ou três

já haviam criado blogs, e poucos mais eram

leitores desse gênero textual. Novamente,

abraçaram a proposta e a causa. Para mim,

que estudo academicamente a relação entre

educação e determinadas tecnologias, foi

fascinante acompanhar esses espaços.

Quando se busca criar um aprendiz mais

senhor de seu processo de aprendizagem,

que domine melhor as formas como aprende,

e mais focado no aprender em si (e não

tanto no conteúdo), o desenvolvimento da

habilidade de autorreflexão é fundamental:

pensar sobre cada etapa vivida, discutir

se os métodos utilizados são realmente

os melhores, redefinir objetivos ao longo

do processo de aprendizagem. Não é uma

habilidade simples, mas é fundamental na

tal da “sociedade de informação”. Para isso

serviram esses diários virtuais: ao ter de

escrever sobre as experiências vividas e

sobre cada etapa do projeto, nossos alunos

ganharam confiança, conectaram-se cada

vez mais à proposta. Refletiram sobre erros

e acertos e viram os primeiros tornarem-

se mais importantes do que os segundos.

Mais do que simplesmente realizar cada

etapa, compreenderam-nas. E a cada dúvida,

cansaço ou frustração, sentiram-se livres

para colocar seus questionamentos on-line e

nos muitos debates que permearam as salas

de aula.

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Ansiedade, ansiedade. Maio. Quase

100% de adesão à etapa mais esperada

do projeto: os três dias de descoberta em

São Paulo. (Para mim, recém-chegada à

cidade natal, foi momento de descoberta.)

De descobrir que meu olhar sobre São Paulo

pode ser tão estrangeiro quanto aquele

lançado sobre Barcelona. Mas é outro tipo de

estrangeirismo, aquele que se vê por dentro e

descobre beleza e estranhamento onde antes

não havia. Meu olhar um tanto surpreso foi

espelhado pelos alunos, que viveram em

três dias muitas primeiras vezes: a primeira

vez no transporte público, a abordagem

de um desconhecido na rua, poder comer

uma comida diferente, olhar a cidade de

cima, olhar o subterrâneo, olhar a partir da

bicicleta e pelos olhos do jovem de outra

realidade, olhar o que o preconceito dizia ser

feio e ver o estranho, o colorido, a expressão.

Desenrolou-se o contato com a pichação,

com a periferia, com túmulos de crianças

num cemitério tão longe que nem parecia

São Paulo. Foi momento de vencer medos,

preconceitos. De confiar quando um estranho

diz a você para ir por esta ou por aquela rua,

quando um professor sugere comer isto ou

aquilo, um instrutor diz que você é capaz

de saltar de um muro e rolar no chão. Foi

momento de viver intensamente o que era

proposto – e o registro de tudo, característica

tão forte dessa geração de jovens, foi deixado

de lado em favor da experiência. Foi momento

de superar barreiras virtuais e reais e de

sentir-se acolhido – seja pelos amigos num

sarau lindo, seja pela própria cidade, que

se mostrou menos amedrontadora e mais

convidativa do que se imaginava.

Junho, agosto, setembro. Meses

de finalização de textos, vídeos, blogs.

Conclusões. A constatação mais repetida

talvez tenha sido a da mudança do olhar

para si, para os outros, para a cidade a

que chamamos casa. Mudou? Puxa, mudou

muito! Mas mudar não quer dizer se sentir

confortável. Nossos adolescentes são hoje

mais senhores de si, mais autores, mais

reflexivos. Andam (e às vezes menos) em

simbiose com a São Paulo que retratam

cotidianamente nas redes sociais. Mas

não estão confortáveis com ela. Ela não

lhes pertence, não pertence a ninguém.

São Paulo, estrangeira em si mesma, talvez

nos ensine, sobretudo, a importância de ser

um pouco estrangeiro na própria pele – esse

olhar descobridor, perpetuamente crítico e

encantado, esse olhar desassossegado da

vida dentro da metrópole.

Teresa Chaves é professora de História do

Ensino Médio.

Conheça alguns blogs feitos pelos alunos

mnm.2cg6.wordpress.commnm.2cg7.wordpress.commnm.2dg1.wordpress.com

mnm.2dg7.wordpress.commnm.2dg8.wordpress.commnm.2dg10.wordpress.com

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A arte, de maneira geral, nos auxilia a conhecer o mundo e a nos conectar com ele

de forma mais sensível, reflexiva e poética. Curiosidade, admiração, dúvidas e até mesmo

inquietação são alguns dos sentimentos, em nós despertados, quando nos deparamos com

obras de arte. Quando temos a possibilidade de nos encontrar com o artista que produz

essas obras, então a emoção é triplicada! O Infantil 3 teve em 2013 essa feliz possibilidade!

Por intermédio da mãe de um de nossos alunos, o artista plástico Gustavo Rosa soube de

nosso trabalho em Artes envolvendo sua produção e se interessou em conhecer um pouco

mais da visão das nossas crianças a esse respeito. Nós, curiosos, o recebemos empolgados.

Imagens que retratam a praia e as ações rotineiras desse ambiente, como tomar sol,

jogar bola ou pegar onda, são bastante familiares às crianças de três anos. Por essa razão,

selecionamos algumas telas pintadas por Gustavo Rosa, dentro da série “Os banhistas”,

para integrar a observação de um trabalho artístico à pesquisa, uma vez que nosso objeto de

estudo na área de Conhecimento da Natureza e Sociedade é a praia e o ambiente marinho.

No dia em que esteve conosco, contamos

ao artista como se deu nosso estudo a partir da

observação de suas obras. Relatamos a atividade

que realizamos a partir de uma tela em que Rosa

retrata uma família que passeia na orla de uma

praia: exploramos as movimentações corporais

representadas na tela, criamos um pequeno cenário

e figurinos, também nos caracterizamos como as

personagens, fizemos poses e... click!... nos fotografamos

representando aquela obra. Foi muito divertido explorar com

nosso próprio corpo as posturas e a representação contida

na pintura. Após esse registro fotográfico, a atividade virou

uma grande brincadeira de jogo personificado. Gustavo

Rosa adorou ver nossas fotos!

Tivemos a oportunidade de contar a ele também

sobre como todo esse trabalho fez surgir dúvidas

a respeito de sua obra. As crianças ficaram

bastante intrigadas com o fato de Gustavo Rosa ter

predileção por pintar apenas gordinhos. Sobre isso,

ele respondeu, de maneira bem-humorada e direta:

“Gasta mais tinta e eu cobro mais caro!” Depois, ele

completou falando que achava graça em dar leveza às

coisas que aparentemente não têm.

Outra dúvida nossa foi respondida por ele de uma

Descobrindo a arte, conhecendo o artista

152 153

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forma surpreendente e engraçada; o porquê de ele não pintar tubarão em suas telas de mar.

Gustavo respondeu que não pintava porque tinha medo de o animal comer a sua mão!

Rosa mostrou-se um artista sem melindres. Respondeu a todas as nossas questões de

maneira simpática e despretensiosa, características que também podemos observar em sua

produção. Sentado na sala de Artes Cênicas, em uma cadeira baixinha que o deixou próximo

às crianças, ele bateu um papo gostoso conosco.

Contou que gostava de desenhar desde muito pequeno e que sua mãe o incentivava

bastante a prosseguir pelo caminho das artes. Quando dava início a uma nova obra, para

se inspirar, ia até a praia, sentava com sua cadeira próximo ao mar e, com seu bloco de

desenho no colo, começava a observar o movimento daquele lugar e a rascunhar o que mais

prendia sua atenção. Ao terminar, ele voltava ao ateliê para concretizar a sua produção.

Depois de toda a conversa, fomos presenteados ao ver o artista em seu melhor

momento: desenhando! Gustavo nos deixou uma belíssima e singela ilustração de passarinho

que vimos nascer, bem diante de nossos olhos, de seus traços simples e leves.

Ao longo de sua carreira, Gustavo Rosa recebeu inúmeros prêmios em diversas partes

do mundo. Participou de mostras e exposições em Nova York, Los Angeles, Berlim, Tel Avive,

Hamburgo, Tóquio e Paris. Pintou de tudo um pouco. Embora seus desenhos e sua pintura

não sigam uma escola específica, eles têm uma marca que fixou em seu estilo: o bom

humor! Impossível é se deparar com um de seus quadros e não abrir um sorriso. Gustavo

soube ser engraçado e burlesco. Quem não se encanta com isso? Nós e nossos alunos com

certeza nos encantamos.

Rosa foi um desses artistas despretensiosos que um dia aceitaram mudar sua rotina,

sair do ateliê, nos ouvir e responder a perguntas de crianças de três anos. Ter tido a

oportunidade de conhecê-lo e falar com ele foi um privilégio que, certamente, guardaremos

com carinho em nossas lembranças.

O artista que, infelizmente, faleceu no dia 12 de setembro de 2013 despediu-se com uma

carta, que foi postada em uma rede social por sua equipe de trabalho. Nela, entre outras

coisas, ele comentou:

“Inquieto como sempre fui, resolvi flanar em outras plagas e partono caminho da luz. Lá, vou alçar altos voos que serão tão leves quanto os traços que risco brancas telas, e tão vibrantes quantoas cores que transbordam da minha palheta.”

Daniela Jaime Levino e Daniela Rosa são professoras do Infantil 3

e Aline Stroeh é orientadora educacional, também do Infantil 3.

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A linguageme suas expressões

Poesia / é brincar com palavras / como se brinca /com bola, papagaio, pião. / Só que / bola, papagaio, pião /

de tanto brincar / se gastam.As palavras não: / quanto mais se brinca /

com elas /mais novas ficam.Como a água do rio / que é água sempre nova.

Como cada dia / que é sempre um novo dia.Vamos brincar de poesia? (“Convite”, José Paulo Paes, 1990)

“É igual!”“Combina!”“Rima é assim: ‘gente/escova de dente!’”“Isso rima! Eu ouvi, rimou!”

Um novo dia começa, com novas brincadeiras e muitas possibilidades de diversão e de

aprendizagens! A linguagem permeia todo esse cenário único vivenciado pelas crianças na

Educação Infantil e se apresenta das mais diversas formas. Enriquecendo a imaginação dos

pequenos, muitas histórias são contadas, reinventadas, até mesmo encenadas e fazem parte

da rotina deles, quase que como velhos amigos.

Mas um dia a história ficou diferente...

Naquele dia, não era apenas mais uma história, não era apenas mais um livro... eram

poemas! E, no momento em que as crianças experienciam o novo, elas se encantam, se

motivam, sentem-se envolvidas... e a cada novo verso emergem as suas novas descobertas:

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160 161

Dessa maneira, inicia-se o nosso trabalho com esse gênero literário e nossos pequenos

leitores descobrem, ávidos, um mundo das palavras que escondem mistérios, imaginação,

fantasias e emoção!

Começamos nossa caminhada com trava-línguas, parlendas e também com os livros de

Eva Furnari: Não confunda e Você troca?. O trabalho com poemas propriamente dito teve

início com os versos de Cecília Meireles e Vinicius de Moraes e seus livros, respectivamente,

Ou isto, ou aquilo e A arca de Noé. Aproveitamos para apresentar aos alunos um pouquinho

da história de vida desses renomados poetas brasileiros. Poemas infantis como “Pescaria”,

“Jogo de bola”, “Bolhas”, “A bailarina”, “Rômulo rema”, “A foca”, “A casa”, “O caderno”,

entre tantos outros, invadiram as nossas aulas.

Originária das manifestações populares, a poesia infantil resgata propriedades específicas

dos poemas populares: o apego à sonoridade e ao ritmo, a narratividade simples, a presença

de um mundo mágico, a linguagem repetitiva e o apelo à emoção (SILVA, 2006). Todos esses

elementos estão presentes nos textos que lemos.

A cada dia, as crianças são convidadas a compartilhar conosco um mundo mágico.

Brincando com rimas, elas se divertem, atribuem significado pessoal a cada novo poema

apreciado e, paulatinamente, também começam a atentar à sonoridade das palavras ouvidas,

descobrindo sons semelhantes ao seu nome, ao de seus amigos ou às palavras presentes em

seu contexto.

O trabalho com rimas ultrapassa as barreiras do texto lido ou recitado quando as crianças,

nas aulas de Música, descobrem que canções há muito conhecidas são, na verdade, poemas.

Utilizamos, nessa etapa, os muitos versos de Vinicius que com maestria e genialidade ímpares,

conquista as crianças até hoje.

Os versos novamente rompem as barreiras do texto impresso quando às crianças, em

uma grande roda, são declamados e interpretados poemas. Em nossa biblioteca, as crianças

assistiram ao espetáculo teatral Sonho de menina, da Cia. Sábias Cenas, e dele participaram.

Na peça, duas artistas mostraram que simples versos, na companhia de objetos, e um pouco

de imaginação podem se tornar grandes aliados da aprendizagem. Ao final, elas entregaram

às crianças filipetas contendo estrofes de poemas para que cada uma levasse consigo uma

lembrança desse encontro. Assim, elas encantaram nossos alunos e nos ajudaram a compor

um universo mágico em que as rimas têm lugar de destaque.

Todo esse enredo de brincadeiras e descobertas está repleto de intencionalidade e

tem objetivos didáticos a serem atingidos. Enquanto as crianças estão se divertindo com as

rimas, descobrindo combinações e os “pedacinhos” das palavras, elas estão também tomando

consciência de estruturas da linguagem. Por meio desse trabalho com as rimas, estamos

desenvolvendo a consciência fonológica, pois se trata de “uma competência metalinguística

que possibilita o acesso consciente ao patamar fonológico da fala e a manipulação cognitiva

das representações nesse nível. Portanto, envolve reflexão, análise e manipulação intencional

de unidades que compõem a linguagem (palavras, sílabas, fonemas)” (PESTUN, OMOTE,

BARRETO, MATSUO, 2010).

Essa consciência atua como um elemento facilitador de um processo longo e

complexo: a alfabetização. Dessa forma, desenvolvemos um trabalho intenso e diversificado,

cujo alcance perpassa toda a Educação Infantil, de modo que no futuro as crianças possam

refletir, analisar e manipular também frases e textos durante toda sua vida acadêmica.

Leia mais sobre o assunto em:

PESTUN, Magda Solange Vanzo; OMOTE, Leila Cristina Ferreira; BARRETO, Déborah Cristina

Málaga; MATSUO, Tiemi. Estimulação da consciência fonológica na Educação Infantil:

prevenção de dificuldades na escrita. In: Psicologia escolar e educacional. Campinas, vol.14,

jan./jun. 2010.

SILVA, Maurício. Poesia infantil contemporânea: dimensão linguística e imaginário infantil.

Imaginário, v. 12, n. 13, p. 359-380, 2006.

Andreza Martins de Souza, Caroline Fernandes de O. Santos, Paula Tonglet Vasconcelos,

Roberta Hellena B. De Vita e Thaís Casagranda Neves são professoras do Infantil 4

e Flávia Duran é orientadora pedagógica do Infantil 4.

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A criança na Educação

Infantil se encontra em fase

de conhecimento de seu

próprio corpo e utiliza seus

sentidos para enriquecer

suas experiências. Nesse

momento, as atividades

motoras – global e fina

– propiciam inúmeras

oportunidades para o

desenvolvimento infantil,

uma vez que as crianças

colocam ao seu alcance

os mais diversos tipos

de possibilidade de

movimentação corporal.

É nesse período, ainda,

que a criança exercita e

fortalece dois significativos

grupos musculares:

• os grandes músculos:

capazes de realizar

movimentos envolvendo

braços, pernas, costas e

barriga – são usados para

andar, engatinhar, pular,

correr e subir degraus;

• os pequenos músculos:

capazes de realizar

movimentos envolvendo os

punhos, mãos e dedos – são

usados para beber, comer,

vestir-se, traçar, escrever e

jogar jogos de tabuleiro.

Segundo Le Boulch

(1983), a criança, desde

o seu nascimento e em

particular até a idade de

dois anos, experimenta o

“período do corpo vivido” e

delimita seu “corpo próprio”

em relação ao mundo dos

objetos por meio da ação;

daí a importância de colocá-

la em situações em que a

movimentação de membros

superiores e inferiores seja

relevante à aprendizagem.

Dessa forma, no ambiente

escolar, desenvolvemos

atividades motoras

cuja intencionalidade

é movimentar o corpo

e propomos à criança

situações em que ela

precise utilizar e/ou

desenvolver estratégias de

resolução de problemas

para solucionar questões

motoras, permitindo

assim que, aos poucos,

movimente-se de maneira

harmoniosa e precisa no

espaço que ocupa.

A possibilidade de

exercitar os diferentes

grupos musculares leva a

criança a aperfeiçoar os

movimentos, a orientação

do seu corpo em relação

ao espaço, a orientação do

movimento no tempo (ritmo)

e o equilíbrio. Desse modo,

tem-se uma qualidade

cada vez melhor de

movimentação em razão do

estágio de desenvolvimento

em que ela se encontra.

De 5 a 7 anos, defende

Le Boulch, assistimos,

pouco a pouco, à integração

progressiva de um “corpo

agido” no sentido de uma

tomada de consciência

de seu “corpo próprio”.

É no decorrer desse

período que a criança

começa a reconhecer

suas capacidades motoras

e, assim, refiná-las,

propiciando

a coordenação

harmônica

dos movimentos

– globais e finos –,

o que resulta na sua

capacidade para

desempenhar as atividades

Diferentes sensaçõese materiais aliadosao desenvolvimentoda habilidade motora

162 163

“É de grande importância a educação pelo movimento no processo escolar, uma vez que seu objetivo central é contribuir parao desenvolvimento motor da criança, o qual auxiliará na evoluçãode sua personalidade e no seu sucesso escolar.” Le Boulch (1987)

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diárias com extrema

qualidade. É o que os

estudiosos Wallon e Piaget

consideravam como

“maturação motora”.

Mais desenvolvida

motoramente, a criança

é capaz de controlar

melhor seus movimentos e

passa a desempenhá-los

de modo mais refinado,

principalmente utilizando os

pequenos músculos.

Diante do importante

papel do desenvolvimento

motor, propomos aos

alunos do Infantil 5, ao

longo do ano, a utilização

de diferentes materiais

nas situações de

aprendizagem, de modo a

se desenvolverem, sempre

de maneira lúdica, por

meio da exploração e da

experiência. Utensílios que

aparentemente são simples

e que fazem parte do dia a

dia de muitas residências,

tais como pregadores de

roupas, pegadores de

macarrão, espremedor de

batatas, rolo para esticar

massas, hashis, presilhas,

cápsulas de café, saleiro,

bolinhas de gude, entre

outros, trazem à criança a

possibilidade de refinar a

preensão motora e a fluidez

de movimentos.

Os alunos ainda são

expostos a outras situações

corriqueiras, como servir

água de uma jarra para

um copo ou até mesmo

manusear um funil ou um

conta-gotas. Transportar

todos esses materiais de

um lado a outro, aliando

força e movimento, exige

da criança destreza, tônus

e o desenvolvimento dos

pequenos músculos, mais

especificamente a trípode

“dedo indicador, polegar e

dedo médio”. Além disso,

treina o movimento de

“pinça” realizado pelo

polegar e o dedo indicador,

e que, posteriormente, será

uma habilidade necessária

para a escrita da letra

cursiva.

Nesse estágio em que

se encontram, também

é fundamental que as

sensações estejam

diretamente ligadas à

aprendizagem, tornando-a

ainda mais prazerosa e

significativa. Partindo desse

princípio, os alunos do

Infantil 5 experimentam,

em divertidas propostas de

culinária, a possibilidade

de fazer, por exemplo, seu

próprio espetinho de frutas

e vegetais, trabalhando a

“enfiagem” e saboreando-o

ao final da atividade.

Constroem, ainda, colares

com macarrão e exercitam

a pulsão confeccionando

quadros com cravos-da-

Índia, enquanto apreciam o

aroma dessa especiaria.

As crianças têm, ainda,

a oportunidade de realizar

seu próprio bordado em uma

pequena talagarça: com

lãs coloridas, cada criança

elabora um planejamento

de ação de acordo com

seu padrão de movimento

e cores e tece o material

com muita dedicação.

Olhar atento, movimentos

coordenados de pulso e

dedos e o vaivém da agulha

proporcionam a alegria e

satisfação durante esse

processo e, a cada gesto ou

palavra, é possível perceber

a importância dessa

atividade, tão própria e tão

significativa.

Assim, as crianças

do Infantil 5 brincam,

criam, recriam, jogam,

tecem, colocam, tiram,

apertam, enfiam, levantam,

enfim... vivem e aprendem

intensamente com o

corpo, desenvolvendo a

coordenação motora em

meio às experiências e

ao contato com inúmeras

e diferentes sensações e

materiais.

164 165

Lilian Henne Éboli é professora do Infantil 5,

Andréa Assumpção é orientadora educacional do Infantil 5

e Maria de Remédios F. Cardoso é diretora pedagógica

da Educação Infantil.

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Durante um longo período, a produção literária

latino-americana foi vista como uma criação

constituída fundamentalmente da influência de

cânones da literatura europeia. Em razão de

fatores históricos e culturais, referências de

escritores clássicos de fato estão presentes na

literatura da América Latina e, sem dúvida, a

leitura que autores latino-americanos realizaram

das obras de Dante, Cervantes, Shakespeare e

tantos outros escritores foi fundamental para

a constituição da nossa literatura. No entanto,

tal influência consolidava na América Latina o

realismo tradicional de origem europeia, e, em

geral, a realidade autenticamente americana,

com seus mitos, suas lendas e sua natureza

exuberante, não constituíam o foco de sua poética.

Dessa forma, a literatura latino-americana por

muito tempo se caracterizou como uma produção

periférica em relação ao lugar central que tinha a

literatura europeia.

Nos anos 1960 e 1970, com o fenômeno

conhecido como boom da literatura latino-Pers

pect

ivas

do

real

na

liter

atur

a la

tino-

amer

ican

a167

Julio CortázarGabriel García Márquez

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americana, houve uma mudança de perspectiva

em relação ao modo como o mundo ocidental

compreendia a produção literária desse continente.

O colombiano Gabriel García Márquez, o argentino

Julio Cortázar e o mexicano Carlos Fuentes, por

exemplo, passaram a ser reconhecidos como

autores que souberam abordar questões relativas

à realidade americana, até então alheias à forma

europeia de entender o mundo. Segundo o escritor

cubano Alejo Carpentier, a realidade americana

se caracterizava como um universo de difícil

assimilação para uma mentalidade europeia,

uma vez que oferecia visões inesperadas e

maravilhosas do real. Nesse sentido, de acordo

com Carpentier, o real maravilhoso se converte

em uma forma privilegiada que a literatura

latino-americana do século XX encontrou para

expressar uma identidade própria. E, a partir

desse momento, a visão do mítico e ancestral

americano caracterizará outra forma de mostrar

a realidade, também conhecida como realismo

mágico.

Dada a importância desse fenômeno literário

na América Latina, as equipes de Espanhol e

Português desenvolvem um projeto interdisciplinar

com os alunos do 9º ano no qual é realizada uma

série de leituras sobre o gênero fantástico e o

realismo mágico na literatura hispano-americana.

Diferentes temas são estudados e apresentados

em um ciclo de seminários, tais como a relação

que a cultura latino-americana estabelece com

o estrangeiro (“Un señor muy viejo con unas

alas enormes” e “El ahogado más hermoso del

mundo”, de Gabriel García Márquez), a falta de

consciência do latino-americano com respeito

à sua enraizada ancestralidade (“Chac Mool”,

de Carlos Fuentes), diferentes temporalidades

e espaços (“La noche boca arriba”, de Julio

Cortázar), o isolamento e suas decorrentes formas

de atribuição de sentido (“El balcón”, de Felisberto

Hernández), a linguagem como a criação do real

(“Mi vida con la ola”, de Octavio Paz), o estranho e

a construção da verossimilhança (“El almohadón

de plumas”, de Horacio Quiroga).

Octavio PazCarlos Fuentes

169

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Além dessa aproximação com temas e autores

essenciais ao repertório cultural dos estudantes,

durante a montagem dos seminários os alunos

exercitam um olhar crítico e aprofundado para as

narrativas literárias. Tanto em etapas individuais

quanto em coletivas, debruçam-se sobre os

contos de modo a relacionar forma e conteúdo,

buscando hipóteses interpretativas coerentes e

criativas para elementos diversos do texto, como

a construção de espaços e personagens, o tempo

narrativo e as escolhas lexicais.

Em suma, ampliação de repertório

cultural e desenvolvimento de capacidade

analítica são, indubitavelmente, pilares desse

projeto interdisciplinar entre as áreas de Português

e Espanhol do 9º ano. Não se pode esquecer,

contudo, a própria fruição literária no momento do

“cara a cara” entre aluno e texto. Em um tempo

como o nosso — impregnado do cientificismo,

do racionalismo e da objetividade —, permitir-

se cada gole de estranheza a que o realismo

mágico nos leva representa o resgate de uma

potencialidade humana já bastante desgastada

pela pressa do mundo contemporâneo: a de

maravilhar-se com o desconhecido.

Rogério V. Gusmão é professor de Português

do Ensino Fundamental II, Michele Costa

e Alexandre Fiori são professores de Espanhol

do Ensino Fundamental II e Médio.

Felisberto HernándezHoracio Quiroga

171

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What wouldyou fight for?

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Um meteoro está em rota de colisão com a Terra. Os cientistas já fizeram o cálculo: o ponto de

impacto será o Central Park, em Nova York, Estados Unidos da América. Clark Kent, em uma

cabine telefonica, troca de roupa. A humanidade não tem mais o que temer – o Superman

salvará a todos. (Isso parece um roteiro banal de um blockbuster no qual o super-herói norte-

americano está pronto para salvar toda a humanidade.)

Mas por que o super-herói é norte-americano? E por que a ameaça ao planeta sempre surge

sobre os Estados Unidos, geralmente sobre Nova York, e não sobre qualquer outro ponto deste

imenso planeta? Por que os Estados Unidos da América estão sempre prontos para salvar o

mundo?

Para responder a essas e outras questões, estabeleceu-se uma parceria entre as disciplinas

de História, Inglês e Português, no 9º ano do Ensino Fundamental, em um projeto intitulado

Heróis, Super-heróis e a Sociedade. O trabalho foi dividido em três partes. A fim de entender o

super-heroi dos quadrinhos, inicialmente, os professores de Inglês do Ensino Fundamental II,

Elaine Miguel, Jeane Yamada, Fernanda Rodrigues e Kurt Stuermer, resgataram em sala de

aula o conceito do herói mitológico grego, trabalhado pela professora Valéria Pereira no

6º ano. Saltaram-se quase dois mil anos e os alunos conheceram a colonização norte-

americana, devidamente apresentada pela professora de História, Monika Kuszka. Por fim,

abordou-se a criação dos super-heróis no século XX.

Em um segundo momento, foi ministrada uma palestra, em Inglês, que convidou os alunos a

fazer uma reflexão sobre os heróis reais da nossa história, que lutaram e até mesmo morreram

por seus ideais e tiveram grande relevância para alguns dos movimentos humanitários da

atualidade. Munidos desses conhecimentos, na terceira parte do trabalho, a discussão foi

retomada em sala pelos professores de Inglês e os alunos precisaram responder à seguinte

questão: “What would you fight for?” (Por qual causa você lutaria?). Por fim, transformaram

essa difícil indagação em uma tira de quadrinhos, na qual eles se transformariam em um

super-herói moderno. Para isso, utilizaram os iPads da escola e o aplicativo Comic Book.

1. Universal e local

Entre os conteúdos da disciplina de Português do 6º ano estão a teogonia, a mitologia grega e

a origem dos deuses gregos. Há dois tipos de herói: o universal e o local. O primeiro tem origem

divina (semideus) e o segundo se aproxima da humanidade por ser mortal.

172

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O herói era, na mitologia e no folclore grego, originalmente um semideus. Tinha uma árdua

saga a percorrer que, segundo o especialista em mitos Joseph Campbell, passa pelo chamado

do herói, a partida, a iniciação e, por fim, o retorno.

Já no nosso cotidiano, não é raro encontrar manchetes de jornais que tratam bombeiros,

médicos ou pessoas comuns como heróis, dado que foram responsáveis por atos de bravura

que favoreceram uma comunidade. Eles são chamados de heróis pelo movimento de proteção

ou defesa de um indivíduo ou grupo, ultrapassando os interesses pessoais em nome da

necessidade do próximo e da coletividade. Para a realização do projeto Heróis, Super-heróis

e a Sociedade, foram ressaltadas três características básicas do herói:

1 - Todo herói tem um poder extraordinário que não está necessariamente relacionado à força,

podendo ser a inteligência ou a coragem;

2 - Todo herói luta por uma causa para o bem comum;

3 - Todo herói está disposto a dar a vida pela causa pela qual luta.

Essas três características são de fundamental importância para entender por que figuras

como Martin Luther King podem ser consideradas heróis.

2. Pais peregrinos

É possível que o modo de pensar do povo norte-americano esteja diretamente ligado ao

caráter da colonização dos Estados Unidos. Os primeiros imigrantes que chegaram na região

de New England em 1607 e 1620 deixaram a Inglaterra fugidos das perseguições religiosas

promovidas pelo Rei James I. Cruzaram o Atlântico em busca de uma terra prometida, onde

poderiam exercer a liberdade religiosa e, ao mesmo tempo, alcançar prosperidade financeira.

Eles foram chamados de pais peregrinos e acreditavam que seu progresso na nova terra os

identificariam como os ‘escolhidos por Deus’, já que seguiam o princípio calvinista segundo o

qual o homem não escolhe, mas é escolhido, e o seu sucesso revela essa ‘predestinação’.

174 175

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Essa crença religiosa nos leva a acreditar que os primeiros povos norteamericanos se

reconheciam como predestinados já que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, alcançaram um

relativo sucesso e um certo acúmulo de riqueza. Essa predestinação teria dado origem ao

pensamento de que a prosperidade e o desenvolvimento alcançados deveriam ser levados

para regiões consideradas por eles menos desenvolvidas. Embora não seja o foco do projeto

discutir as consequências desse complexo processo, principalmente para os povos nativos

dos Estados Unidos, é importante lembrar que os índios norte-americanos foram praticamente

dizimados no século XIX durante o processo de expansão do território norte-americano.

3. Destino manifesto

Destino manifesto é o nome dado ao movimento que aconteceu ao longo do século XIX, sendo

mais marcante entre os anos de 1801 e 1860, que tinha como objetivo a expansão do território

norte-americano, que até então se resumia as treze colonias do leste. A população do país

saltou de 4 milhões, em 1801, para 32 milhões, em 1860. Seguindo o ponto de vista baseado

na crença religiosa de que o povo norte-americano seria predestinado ao sucesso, houve

um movimento de ‘colonização’ dos territórios que não faziam parte do que viria a ser os

EUA. Essa expansão aconteceu de diferentes maneiras: compra de territórios pertencentes à

França (como o estado da Luisiania) e Rússia (estado do Alaska), dizimação dos indíos nativos

(quando os ingleses chegaram, havia mais de 25 milhões de índios e, ao fim das chamadas

“guerras indígenas”, restaram apenas 2 milhões), guerra com o México (a excolônia espanhola

perdeu, além do Texas, o Novo México, a Califórnia, Utah, Nevada e partes do Colorado e do

Arizona). Os norte-americanos, na época justificavam, esse movimento como libertador e

benéfico, já que estavam levando conhecimento e prosperidade para terras ‘virgens’ e pouco

desenvolvidas.

4. Os “predestinados”

Imbuído de um sentimento de superioridade dada por uma suposta predestinação divina,

o povo norte-americano, ainda que de forma estereotipada, entende que cabe a ele levar

o desenvolvimento de uma civilização, cultura e os avanços tecnológicos aos povos

menos desenvolvidos. Seria considerado menos desenvolvida qualquer cultura que não se

aproximasse da norte-americana no que se refere aos padrões políticos, sociais ou religiosos,

ou ainda que ameace os ideais de liberdade promovidos dentro da sociedade estadunidense.

Uma vez que o país foi construído pautado na defesa da liberdade, visto que os imigrantes

fugiram de perseguições em busca da liberdade religiosa, parece que esse é o valor mais

importante para a sociedade norte-americana. A autora do livro O modo americano de

viver, Sheila Schwarzman, faz uma reflexão muito sensata sobre a relação da liberdade e a

formação do carater:

“Com base nesses mesmos princípios — liberdade de crença, liberdade de ação e iniciativa

valorizou-se a pessoa que se faz por si mesma. Isso fortaleceu a crença no individualismo no

plano econômico, valorizando a chamada ‘livre iniciativa’, principio básico do capitalismo, que

também não é exclusivamente americano, mas que os seus pensadores defendem como se

fosse quase sua invenção.

Observamos assim que, apoiados nesses princípios do pensamento ocidental burguês,

as classes políticas norteamericanas, ao longo dos anos, construíram a ideia de que os

Estados Unidos eram o maior (e muitas vezes o único) defensor da liberdade. Apoiados nessa

convicção, puderam estabelecer o seu domínio, primeiramente solidificando a própria nação

norteamericana, formada por imigrantes vindos de inúmeros países de diversas culturas e

crenças religiosas”.

Dessa forma, é provável que o cidadão norte-americano se veja capaz (e por que não dizer

obrigado) de defender o mundo, divulgando sua capacidade de prosperar ainda que em

condições adversas, como ocorreu durante a colonização de seu país. Esse sentimento de

“obrigação” parece ser mais justificável que qualquer tipo de ameaça à liberdade de expressão

religiosa ou política, sendo uma espécie de pretexto utilizado para todas as intervenções ao

redor do mundo que os Estados Unidos têm feito ao longo da história. Esta também parece ser

a base para a criação de todos os super-heróis ao longo do século XX: criar um defensor da

liberdade seguindo os moldes que estruturam o modo de vida norte-americano.

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5. O superamericano

As histórias em quadrinhos norte-americanas surgiram no século XIX como entretenimento e

mecanismo de aumento da venda de jornais e revistas. Há relatos de um super-herói chamado

The gray champion, que teria sido publicado em uma sequencia de dois volumes no New-

England Magazine em 1835. Já em 1912, foi criado o personagem Tarzan. Contudo o super-

herói que mais evidencia o sentimento de defesa da liberdade e da justiça estadunidense foi,

sem dúvida, o Super-homem, criado em 1933 e publicado pela primeira vez em 1938. Há relatos

que defendem que um de seus criadores, Jerry Siegel, teria criado o homem de aço um ano

após seu pai, Mitchell Siegel, ter sido assassinado durante uma tentativa de assalto à sua loja.

Super-homem foi um sucesso de vendas e deu início à chamada Era de ouro dos quadrinhos,

situada entre os anos de 1938 e 1950.

No ano de 1940, com a entrada dos EUA na Segunda

Guerra Mundial, fez-se necessário mobilizar a maior

parte possível da população dos Estados Unidos contra

a ameaça nazista aos ideais de liberdade. Embalado no

sucesso de vendas dos quadrinhos do Super-homem

pela DC Comics, a editora Timely Comics (que viria a

se tornar a Marvel), pediu que Jack Kirby e Joe Simon

criassem um “superamericano” que encarnasse os

ideias do país. Assim nasceu o Capitão América, ou

Steve Rogers – um soldado escolhido para ser cobaia

de um experimento militar, não por sua força física,

mas por se mostrar um homem bom e altruísta. O

Capitão América seria assim o defesor da justiça e da

liberdade, sendo sua única arma um escudo, utilizado

para a defesa e não para o ataque. A primeira edição

do quadrinho mostra o Capitão América invadindo o

quartel general nazista e deferindo um golpe no rosto

de Adolf Hitler. Um sucesso de vendas!

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180 181

O que torna o personagem do Capitão America tão significativo é que talvez ele seja o mais

patriota dos superheróis. Uma vez criado para defender os ideais de liberdade contra o

nazismo, a existência do personagem perderia significado com o fim da Segunda guerra.

Contudo, a Marvel Comics conseguiu e ainda consegue perpetuar a luta do soldado Steve

Rogers ao longo dos anos, sempre promovendo a defesa da liberdade. Na publicação, o

Capitão América já lutou contra os comunistas, nos anos 1960, no Vietnã, nos anos 1960 e

1970, e quase desapareceu quando, em 1972, revelou-se o escandalo de Watergate (em uma

das publicações da época o personagem declara desisitir de seus ideais por não acreditar

nos políticos do seu país). O super-herói foi resgatado nos anos 2000, motivado pelas ameaças

terroristas e pelo ataque às Torres gêmeas.

A criação da Marvel Comics, como é conhecida hoje, só veio incrementar a competição entre

super-heróis. Para a maioria dos super-heróis criado pela DC Comics, há um correlato criado

pela Marvel. Em comum, todos lutam pela justiça e pela defesa da liberdade. Na criação original

do Quarteto fantástico, por exemplo, ao contrário do que é mostrado no filme blockbuster de

Hollywood, em 2005, um grupo de quatro cidadãos norte-americanos está preocupado em

conquistar o espaço antes dos soviéticos, fazendo uma clara referência à corrida espacial,

promovida entre os anos 1960 e 1970. Vale ressaltar que a indústria cinematográfica tem se

mostrado muito eficiente em criar ameaças à liberdade e em mostrar super-heróis defensores

do mundo. Na falta de nazistas ou de comunistas, Hollywood transformou em vilões todos

aqueles que, de algum jeito, se expressam de forma diferente do padrão norteamericano

– cidadãos do Oriente Médio foram transformados em terroristas; sul-americanos, em

traficantes; norte-coreanos, em assassinos.

6. I have a dream!A ideia de heroísmo, ou de “super-heroísmo”, parece bastante distante da realidade e muito

difícil de ser alcançada, já que a força sobrenatural ou os superpoderes existem apenas nos

filmes de ficção. Ao mesmo tempo, é inevitável se revoltar com situações que nos parecem

longe de serem moralmente corretas: preconceito, corrupção, vandalismo, desrespeito ao

próximo, violência no trânsito... Não haveria nada a fazer a não ser esperar por um super-

herói? Como já mencionado, uma das características de um herói é o fato de ele ser dotado

não necessariamente de um superpoder ou superforça, mas de inteligência ou coragem.

Ao longo da história, há inúmeros heróis que agiram de uma forma muito diferente daquela

pregada nos filmes que retratam a luta entre heróis e vilões. Há inúmeros exemplos de pessoas

que mudaram o mundo e lutaram por uma causa sem se envolver em batalhas. De uma forma

impressionante, elas conseguiram mobilizar grandes massas e alcançar seus objetivos de

forma muito eficaz. Entretanto, nem sempre escaparam de um destino trágico, sendo muitas

vezes assassinadas por grupos que se opunham à causa pela qual lutavam. (Um dos nomes a

serem lembrados é o de Martin Luther King, defensor da igualdade dos direitos entre brancos

e negros nos EUA). Aliás, o princípio da luta não-violenta que o líder negroseguia teria sido

inspirado nos ideais de Mahatma Gandhi, considerado o pai da independência da Índia.

Além de Martin Luther King, seguiu também o conceito de satyagraha (forma não violenta

de protesto contra injustiças( o líder sul-africano Nelson Mandela. Responsável pelo fim do

apartheid em seu país, Mandela não só é uma referência de resistência pelos 27 anos em que

esteve preso, mas é também um símbolo da liberdade e igualdade entre brancos e negros.

Na atualidade, um nome a ser lembrado é o de Malala Yousafzai. Em 9 de outubro de 2012,

Malala, aos 15 anos, foi vítima de uma tentativa de assasinado por membros do Taliban, que

atiraram três vezes contra a jovem pelo fato de ela se recusar a não frequentar escolas no

Paquistão. Malala se recuperou em um hospital em Birmingham na Inglaterra e hoje luta pelo

direito à educação e pelos direitos das mulheres.

7. “What would you fight for?”

A reflexão sobre as características dos heróis e super-heróis, na ficção e na

vida real, deixa mais clara a necessidade de uma motivação pessoal para que haja uma luta

que leve a mudanças sociais. Essa necessidade é comum aos heróis mitológicos, aos super-

heróis dos quadrinhos norte-americanos e também àqueles considerados heróis de carne e

osso. Não é esperado de ninguém um comportamento heróico, mas espera-se sim que haja a

consciência da necessidade de mudança frente a desigualdades e injustiças.

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Partindo desse princípio foi lançada mais uma pergunta aos alunos: “What would you fight

for?” (Por qual causa você lutaria?). Os alunos discutiram em grupo e por fim foram convidados

a produzir uma história em quadrinhos em que respondessem a esee questionamento. Os

trabalhos foram expostos no saguão do piso térreo da Móbile e publicados no site da escola.

De diferentes formas, por vezes bem-humoradas, mais ou menos politizadas, os alunos falaram

da saúde pública, de proteção ao meio ambiente, de comportamento escolar, entre outros

assuntos, mostrando-se conscientes e preocupados com a sociedade que vivem.

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p r o f i s s i o n a i s

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de tratamento de emergência! É nesse momento

que você respira aliviado, pois finalmente sabe

como proceder.

2) Enfermaria OU uma caixa de chocolates

Você sabe que pacientes estarão lá, que

doenças eles têm e sabe quais podem complicar.

É tranquilo. Mas, como uma caixa de chocolates,

há sempre aquele com uma bela cobertura e

recheio de anis. Existem pacientes que pioram

de repente, sem motivo algum. Se você não sabe

o que está acontecendo, pelo menos sabe o que

fazer: pegar o telefone e ligar para a UTI.

O problema já não é mais seu.

3) Ambulatório OU botando o papo em dia

Você tem tempo de investigar, liberdade

para prescrever, e não precisa tratar de nenhum

caso grave com risco à vida. O trabalho é mais

satisfatório, pois você conhece cada vez mais

o paciente e percebe o quanto é importante na

vida dele, mesmo que ache que não está fazendo

nada de mais. Trabalhando, na maioria das vezes,

apenas com palavras, você percebe o quanto

isso é necessário para guiar o tratamento, o

quão humano pode ser o trabalho médico e como

ninguém nunca ensinou isso, infelizmente.

4) Remoção OU montanha-russa na cidade

Trabalho em ambulância! Prepare-se para

transportar casos dos mais diversos tipos

em alta velocidade e cruzar a cidade em 10

minutos, enquanto se preocupa em não deixar o

passageiro morrer. É bem legal e bem enjoativo...

Literalmente.

5) Eventos OU a importância de ser médico

Você é responsável por qualquer

intercorrência que aconteça durante o evento,

seja ele um show, uma convenção de mangás ou

uma corrida de cachorros. Geralmente não ocorre

nada, até porque lugar de gente doente é no

hospital, não em um jogo de futebol, e a melhor

parte é poder entrar de graça naquele show que

já está com os ingressos esgotados há meses.

6) Sua casa OU meu médico particular

Agora você é médico. Agora você sabe de

tudo, então prepare-se para ser o alvo de uma

série de perguntas: “mas você não passa mal com

sangue?”, “o que é refluxo?”, “dá uma olhada

nessa mancha, o que você acha?” e, a melhor de

todas, “você pode trocar essa receita para mim?”

(não, não posso, médicos recém-formados não

andam com receituários por aí...). Além, é claro,

dos malditos atestados que todos os seus amigos

vão pedir.

No fim, você acaba percebendo que a

residência pode não ser tão ruim, a Medicina

é tão vasta que você praticamente não tem

como errar, podendo inclusive se especializar

em Acupuntura e ver os pacientes melhorarem

bastante com simples agulhadas.

Bem-vindo a um novo mundo. Saiba que a

vida vai ser exatamente como uma temporada

de Scrubs: clínicos inocentes, cirurgiões

intempestivos e radiologistas teimosos, plantões,

rondas e grandes decisões de vida e morte.

Está tudo lá.

E então você se forma e vai ser médico.

E descobre que a vida não é um episódio de ER,

Grey’s Anatomy ou House. Não tem nada do glamour

ou do heroísmo, mas você já sabia disso, porque no 5º

e no 6º ano passa a conhecer de verdade a tortura do

hospital: os intermináveis plantões no PS de pediatria,

as longas visitas da enfermaria, as broncas e as várias

horas estudando para tentar (sem sucesso) entender

tudo o que está acontecendo – até que você ganha um

CRM e parece que, magicamente, aprende tudo sobre

Medicina que tentaram ensinar nos últimos seis anos.

E agora você vai fazer a residência para se

especializar. Mais uma prova “tipo vestibular”. Mais

três ou quatro ou cinco anos estudando... Precisa? Quer

saber? Você já é médico, já pode trabalhar. Mas onde?

1) Pronto-socorro OU o que está atrás da porta

número dois?

É você contra um mar de gente: metade querendo

atestado para faltar ao trabalho e a outra metade

querendo alguma coisa porque está com diarreia ou

resfriado (e também quer um atestado), só chatice... Até

que chega a velhinha com risco de morte, necessitando

187

O Médico e o Monstro1. Dr. Jekyll

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“Você trabalha com arte? Ai, que delícia!”

Não exatamente. Ser ator já é difícil. Ser

artista, pior ainda.

Cito o icônico conselho da atriz octogenária

Fernanda Montenegro para quem quer ser ator:

“Desista. Não passe perto. Saia disso. (...) Agora,

se morrer porque não está fazendo isso, se

adoecer, se ficar em tal desassossego que não

teve nem como dormir, aí volte, aí venha aqui”.

Foi o que fiz.

Para explicar a diferença: um ator pode

(embora não necessariamente) apenas servir

de “marionete” de um diretor/produtor, ou criar

uma forma confortável para ele que agrade as

pessoas e repeti-la, igualzinha, nos mais diversos

papéis (de Shakespeare a Beckett). Mas existem

atores-artistas; estes preferem criar, buscar, para

cada personagem, uma essência e uma forma,

dando vazão à inquietação que o move. Mais do

que uma escolha, é quase uma imposição, feita

talvez pelo próprio inconsciente, de comunicar

seu caos, dando-lhe forma. Toda vez que, a partir

de agora, eu me referir a ator, estarei falando

desse segundo tipo.

Para ser um grande ator, é necessário realizar

uma tarefa hercúlea: brincar como uma criança.

Quando se consegue, a sensação é tão boa que o

ator passa o resto da sua vida procurando repeti-

la. O conselho de Fernanda se faz necessário,

pois há diversos obstáculos para conseguir ser

assim tão livre.

A primeira dificuldade já começa com o medo

de ser ridículo. Mas para o ator é diferente: não é

ele que está lá no palco, mas, sim, o personagem.

Ao contrário do que dizem por aí, não é só

“fingir”, é brincar de verdade de ser outra coisa –

sem se perder da realidade e mergulhar na ilusão

de que isso tudo é mais do que faz de conta.

Estar por inteiro é, por incrível que pareça, outra

dificuldade. Nunca estamos totalmente dentro de

uma atividade, não como a criança quando brinca.

Mas não é possível ficar só na experiência

de ser o personagem e brincar consigo mesmo.

Existe ainda outra pessoa, o público. Sim,

porque para o teatro são necessárias apenas

duas coisas: o ator e o espectador. Como essa

comunicação ocorre é algo impalpável e tão

complexo que existem diversas teorias de como

fazer isso. Aí vem outro gratificante empecilho.

Não basta achar que se tem talento e contentar-

se com isso, é preciso estudar muito e ler muito

mais. Stanislavski, Meyerhold, Artaud, Brecht,

Grotowski, Mnouchkine, Kantor, Brook...

Isso sem contar as infinitas dificuldades

práticas: juntar um grupo de (bons) atores,

conseguir dinheiro para a produção, achar um

espaço para ensaiar e apresentar(-se), convencer

o ECAD a cobrar menos pelo uso das músicas

e chamar público (pois, além de tudo, cada vez

menos pessoas vão ao teatro, preferindo pagar o

dobro para ver um filme).

Falo do teatro e não do cinema ou da TV, que

são a arte do diretor. Só no teatro é possível ao

ator tomar as rédeas do processo criativo e se

transformar na sua própria obra. Sim, porque o pintor

tem suas tintas, o escultor tem seu mármore, o autor,

suas palavras, mas o ator cria com seu corpo. Sua

obra não ficará eternizada no teto de uma capela; ela

desaparecerá. Tanto trabalho para que, no dia seguinte

à apresentação, não reste mais nada, nem ator, nem

cenário, talvez nem sequer palco, só a percepção

de que se passou alguma coisa observada naqueles

poucos que a viram.

Essa, sim, é a delícia de ser ator. É fazer a arte do

efêmero.

3. Yin e Yang

Por que ser médico e ator? Ora, nada mais lógico.

Não que as duas coisas sejam parecidas, mas são tão

opostas que têm que se complementar.

Em princípio, sim, pela questão financeira, pois,

sendo também médico, não preciso correr atrás de

dinheiro a qualquer custo e, para isso, trabalhar como

ator fazendo propaganda de sabão! Mas também

porque o teatro tem tudo de humano que falta à

Medicina. Enquanto esta fecha a caixinha, o ator vive

fora dela. O médico pensa demais, trabalha com a

mente, diagnosticando e prescrevendo, enquanto, nos

palcos, quem trabalha como guia é o corpo.

Mas, no fim, tudo faz parte de um mesmo processo,

bem conhecido por qualquer prosador: o médico é quem

ouve histórias, o ator é quem conta histórias. É loucura,

mas tem seu método.

2. Mr. Hyde

188

Filipe Robbe é médico e ator. Formou-se em 2007.

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e d u c a d o r e s

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192

Muito maisdo que um hobbyMinha paixão por bichos começou cedo: coelhos, gatos, cachorros, jabutis e até

pintinhos sempre povoaram a minha infância em uma casa em plena cidade de

São Paulo. Gostava de cuidar, de ter a companhia e o amor que, embora muitos

acreditem que não exista, está lá nos bichos.

Fui crescendo com esse contato (do tamanho que a vida urbana permitia), e o

meu encanto pelos animais foi tomando proporções mais “ativas”: virei defensora!

Quando adolescente, me deparava com maus-tratos e abandono, mas podia fazer

muito pouco em relação a isso, já que meus pais não entendiam o que significava

esse tamanho empenho. Adulta, já consigo atuar mais, retirando animais da rua ou

de condições lamentáveis, tratando deles, colocando-os para adoção, colaborando

com ONGs e acompanhando os que conseguem uma nova família.

Ao longo desses anos todos em que realizo esse trabalho, já me deparei com animais

que não conseguiram ser adotados e já cuidei em minha casa de vários deles: Bruce,

Fumaça, Faísca, Tatá, Flocas, Canjica, Nina, Thomas, Dick Vigarista, Tica, Cherry e

tantos outros... Cada um com seu jeito, mas com uma coisa em comum: a capacidade

de me enfeitiçar e de aumentar mais ainda minha paixão por eles.

Com o tempo, cheguei a uma conclusão: não conseguiria mais morar na cidade

e atender a essa minha vontade de ajudar os bichos. Correndo atrás de melhorar

as condições de tratamento dos meus socorridos, me mudei para uma chácara

em uma cidade bem próxima da capital, onde meus atuais sete cachorros e dois

gatos têm bem mais espaço e conforto. Quase enlouqueci o arquiteto que planejou

a minha casa, pois ela teria de atender minimamente às minhas necessidades e,

prioritariamente, às dos meus animais! Surgiram então escadas adaptadas com

inclinação adequada para os cães velhos, proteções espalhadas para os cegos,

camas baixas para os que têm dificuldade de locomoção, canil grande, arejado e

bem próximo à casa (pois uma das minhas exigências é que eles ficassem perto de

mim), espaços para banho e alimentação grandes e adequados, enfim… tudo o que

um arquiteto não se preocuparia em fazer ao receber um projeto de uma casa de uma

jovem professora em um terreno bem grande!

Hoje, gasto uma enorme parte do meu tempo (e de minha renda) no cuidado com

os meus animais e com tantos outros que socorro e que encontram outras famílias.

Além disso, acabo me envolvendo muito, também, em campanhas de adoção e de

posse consciente, tentando minimizar a quantidade de cães e gatos abandonados

ou que sofrem de maus-tratos. Contudo, isso não me incomoda ou gera qualquer

arrependimento. Para mim, ficar perto desses animais e ajudá-los tornou-se mais

que um hobby, é minha terapia ou válvula de escape para a correria do dia a dia.

Eu, definitivamente, recomendo isso a qualquer um.

Professora do Ensino Médio explicacomo começou sua paixão por bichos

193

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?!incursões à música remontavam às gafieiras

de um Rio tão distante, sofreu dois derrames

nos meses seguintes e morreu pouco mais de

dois anos após a entrevista.

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Estar com Jamelão foi uma das muitas

preciosas oportunidades que, como jornalista,

pude usufruir nesta carreira que desenho

desde os princípios da década passada. A

entrevista integrou a edição de um programa

televisivo de jornalismo cultural chamado

Refletor, transmitido via cabo em São Paulo,

no qual por seis anos empreendi as funções

de repórter, produtor e roteirista, entre

outras ações com as quais o cotidiano de

uma pequena redação nos convida a arcar.

Como o texto sempre me furtou a atenção,

republiquei a íntegra da entrevista, em julho

seguinte, na edição 47 da revista Ocas” –

assim mesmo, com aspas apenas à direita.

A matéria valeu uma capa com a chamada

“O carnaval acabou”, outra fala igualmente

assertiva proferida pelo artista, que criticava

o engessamento dos desfiles das escolas de

samba e a visão mercadológica emparelhada

aos carros alegóricos.

À época, em paralelo à televisão, eu escrevia

voluntariamente à revista, cujo mote engloba

um amplo trabalho com pessoas em situação

de rua, as quais envolvem-se em diversas

etapas de sua produção e são responsáveis

pela venda direta da publicação. Foi

defendendo uma pauta para a Ocas” que, em

2006, tive a chance de inquerir novamente o

então ministro da Cultura, Gilberto Gil (já o

havia abordado em uma coletiva três anos

antes para o Refletor), em Ciudad del Este,

no vizinho Paraguai, na ocasião do Festival

Internacional das Três Fronteiras. A matéria

não chegou a se concretizar, mas foi ótimo

reouvi-lo versar sobre a necessidade de

investirmos “clorofila cultural” (metáfora que

lhe pertence) em nossas ações sociais.

Ainda relembrando a revista, trouxe-me

grande satisfação prosear com um de seus

vendedores e vê-lo trabalhar em Paraty,

quando fui à Festa Literária Internacional, em

2006, para ter nem cinco minutos com Ferreira

Gullar. (Entrevistar o poeta aconteceu, de fato,

somente no ano seguinte.)

Aspas de umentrevistador Responsável

pela correção das produçõesde texto dos alunos do Ensino Fundamentale do Médio, Danilo Vasques fala de sua outra experiência profissional,a de jornalista cultural.

“A vida é um fio de linha.” Ouvi essa frase de

José Bispo Clementino dos Santos, um artista

popular que, tocando a vida ou deixando-se

levar por ela, contou-me que entrou no samba

porque o caminho assim se fez. Cantando

desde moço, mal percebeu e já “estava

profissional da coisa”. Seu nome artístico,

Jamelão, ascendeu e ganhou a avenida na

segunda metade do século XX. Presença

respeitável no carnaval nacional, impunha-se

como cantor de forte timbre e esparramava

seu vozeirão em sambas-enredos da Estação

Primeira de Mangueira e em temas que dos

vinis exaltavam a dor de cotovelo, definição

comum que viu em Lupicínio Rodrigues, um

dos seus principais autores.

A conversa com Jamelão ocorreu no hall

do hotel em que ele estava hospedado, na

rua Timbiras, região da antiga Boca do Lixo,

no centro de São Paulo. Com a equipe de

gravação, cheguei ao espaço na manhã da

primeira sexta-feira de fevereiro de 2006, pouco

menos de quarenta horas após testemunhar

o nonagenário músico soltar a voz em um

palco em um bar paulistano, onde o artista

carioca cumpria semanalmente a sua agenda

de shows. Lembro-me com precisão de

apertar suas mãos, que detinham os elásticos

tradicionais que costumava carregar após

décadas, de vê-lo deixar as chaves do quarto

em que se hospedava repousarem pareadas

aos óculos sobre a mesa. A bengala apoiada

em uma cadeira. O cantor, cujas primeiras

194 195

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“ “

Encontramo-nos no Complexo Cultural da

Luz, quando o autor receberia um importante

prêmio nacional por Resmungos, considerado,

na ocasião, o melhor livro de ficção daquele

ano. Na entrevista exclusiva, tive o prazer

de presenciá-lo brevemente dissertar sobre

alguns pontos de sua carreira e, gentilmente,

declamar um trecho do gigantesco “Poema

sujo”, escrito ao longo de cinco meses em seu

exílio portenho.

Entrevistador

Ao rememorar tais vivências, que ilustram

situações ímpares em minhas experiências,

permito-me dizer que a entrevista, esse gênero

tão flexível e instigante, com o qual os alunos

costumam se deparar em sua forma textual

ao longo do Ensino Médio, sempre ocupou

um lugar cativo em minha breve lida. Desse

modo, vários anônimos e renomados valeram-

me o bloquinho e a caneta, além dos mestres

citados.

Naturalmente, esse apego flerta com uma certa

ironia, dessas que a vida nos proporciona, pois

considero-me um tanto tímido e introvertido.

A ironia tem morada no fato de, quase sempre,

o jornalista se expor ao inquirir o outro.

É sabido que um pouco do entrevistador tende

a se revelar a cada pergunta projetada. Que

assim seja, afinal, bem ensinou o carnavalesco:

a vida é um fio de linha.196 197

Danilo Vasques compõe a equipe

de corretores e é jornalista, especialista

em jornalismo cultural.

Bom papo, livros e...comida

A professora de História do Ensino Médio Teresa Chaves conta sua experiência com a gastronomia.

Adoro comer. Adoro falar sobre comida. Adoro ler sobre comida.

Adoro cozinhar.

Minha relação com comida nem sempre foi tão boa. Não cheguei a

ser uma criança enjoada, mas não me aventurava a provar de tudo. Era adepta

do “não comi e não gostei” quando a comida era muito diferente do que havia

no almoço de todo dia, quando tinha cara esquisita ou simplesmente quando eu

queria fazer birra.

“Well,” said Pooh, “what I like best,” and then he had to stop and think. Because although eating honey was a very good thing to do, there was a moment just before you began to eat it which was better than when you were, but he didn’t know what it was called.”A. A. Milne, Winnie-the-Pooh

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A comida de minha casa sempre foi gostosa. Variada, dentro da

tradição mais paulistana à qual pertence minha família: arroz, feijão bem

temperado, uma carne ou peixe e salada. Às vezes, farofa (a minha paixão).

Carne de panela, linguiça, lombo. Ovo. Na minha infância, quase não houve

macarrão, fast-food, pizza. Pouco íamos a restaurantes – não havia muito

dinheiro e eu também não via muita graça nesse programa. Demorei anos para

comer um hambúrguer com batata frita. (Muitos anos mais do que precisei para

gostar de queijo!) Mas sempre tive minhas preferências, que se mantêm até

hoje: leite, manteiga, chocolate, pitanga, jabuticaba, tomate. Cachorro-quente e

mostarda (minhas obsessões).

Independentemente de gostos, a hora da refeição sempre foi algo

feito com prazer em minha família. Não se atendia o telefone, não se via

televisão. Era hora de conversar, de estar junto. Aos domingos, almoço na casa

da avó, sempre cheio de gente. As crianças comiam à mesa da copa, e era uma

emoção ser promovido à sala de jantar. Mas, ao mesmo tempo que sempre foi

prazeroso, comida nunca foi algo com que me importasse muito, que parecesse

particularmente especial ou interessante. Comia feliz, mas a comida em si não

era exatamente o centro de minhas atenções.

Minha primeira percepção de que comida poderia ser algo especial

veio de um relato de viagem de minha mãe. Ao voltar de uma viagem ao Chile

(do alto de meus dez anos, parecia tão estranho quanto ir à China), ela me

contava sobre a casa de Pablo Neruda e, em seguida, de um espaguete de três

cores com frutos do mar. Hein? Macarrão verde, vermelho e preto? Ouriço?

Lula? A primeira reação foi um “muxixo”, de nojo. Mas ela contava com tanto

prazer, estava tão feliz por ter provado o prato, que fiquei curiosa. E me peguei

pensando que também queria comer algo assim tão maravilhoso, que me

deixasse com vontade de voltar.

Foi mais ou menos por essa época que resolvi provar figos, porque

eram bonitos. Lula frita, com perninhas e tudo. Acho que me tornei mais

aventureira. No meio da adolescência, ao ver pai e madrasta cozinharem, quis

aprender um pouco. O básico. O molho de macarrão com rúcula e linguiça que

ele fazia e repito até hoje. Comecei a ajudar na cozinha, a perguntar, descobrir

que existiam relações e equilíbrios em um prato e em uma refeição. Aos vinte

anos, decidi produzir minha primeira refeição pensada como um presente para

alguém: um risoto de camarões para um namorado. A madrasta, pelo telefone,

me ensinou tudo: de fazer o caldo ao ponto do arroz. Ficou gostoso, ele comeu

feliz, e eu fiquei encantada com a possibilidade de fazer, na minha casa, tudo

aquilo que tivesse vontade de saborear. (Como assim, aquelas coisas podiam ser

feitas numa cozinha normal e eu não sabia? Hum…)

Mas a relação social que temos atualmente com a comida é estranha.

Tive minha fase da obsessão por emagrecer e encher a geladeira de produtos

light e diet, shakes sem gosto e de comer sem vontade. Felizmente, meu lado

hedonista falou mais alto, e a minha curiosidade também. Há alguns anos,

descobri o tremendo prazer de ler sobre comida. A internet me apresentou blogs

que falavam sobre restaurantes que me entusiasmaram e que quis conhecer.

Foi aí que decidi provar de tudo. Se tanta gente provava e escrevia sobre, não

poderia ser ruim (e como me arrependo das muitas vezes em que não confiei

nos parentes e não provei algo que hoje adoro!). Comi tutano, miúdos, timo,

bochecha de porco. De alguns gosto mais, de outros, menos. Rodei restaurantes

pela cidade, elegi favoritos, fiquei chata e não vou mais a diversos lugares,

porque comer em São Paulo é caro e pagar caro para comer mal é horrível.

Fiz roteiros de viagens baseados em comida. E foi aí que me mudei para

Barcelona, e minha relação com comida mudou mais uma vez.

198 199

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Acostumada a trabalhar muito, me vi com tempo demais nas mãos.

Os blogs de crítica já haviam me levado aos de receitas, e eu colecionava várias

sem nunca preparar nada. De repente, me encontrei com tempo de sobra, numa

cidade com mercados maravilhosos. Percorri todos e elegi o Santa Caterina

como meu favorito. Escolhia a receita, ia ao mercado, comprava tudo fresco.

Voltava e preparava. Não foram poucas as vezes em que desisti do plano original

por encontrar um produto mais bonito. Cara de pau, tentei fazer um pouco de

tudo, e cozinhava para os amigos provarem. Eu me aventurei nas comidas

brasileiras que nunca havia tentado fazer e sempre achei que eram fáceis: arroz,

feijão, picadinho, pastel, pão de queijo. Que erro! Nunca valorizei tanto o tempo

e trabalho de quem cozinhou para mim, e nunca ri tanto como ao ver amigos

japoneses maravilhados com a combinação de texturas de feijão e farofa.

Aprendi muito com amigas indianas dedicadas e generosas. Errei muitas coisas,

acertei outras tantas. Algumas ficaram incomíveis. Descobri que quase nada me

irrita mais do que errar um prato. Mas poucas coisas me fazem mais feliz do que

ver prazer nos olhos de quem come algo que fiz. E me tornar autossuficiente para

satisfazer quase todas as fomes que tenho.

Descobri que comida é aprendizado. Hoje, os amigos ligam para

pedir opiniões e sugestões de restaurantes, conheci chefs e o funcionamento

de algumas cozinhas. Leio muito, como mais ainda. De tudo (menos pimentão).

Penso na origem de ingredientes, tento loucamente aprender a evitar o

desperdício e a reaproveitar tudo – algumas vezes com muito sucesso, como a

torta de casca de abóbora ou o pesto de folhas de cenoura. Procuro feiras de

produtos orgânicos porque gosto de conversar com o produtor, saber de onde

vem o que vai para a minha mesa, porque descobri que o que eles me trazem tem

muito mais sabor – e por isso acabo comendo menos. Percebi que sou capaz de

descobrir mundos de sabores diferentes, e isso incrementa a possibilidade de

combinar o que tenho em casa em uma refeição. É ótimo. Mas não é a melhor

coisa de comer e cozinhar.

Hoje, sou avessa a dietas restritivas de qualquer tipo, porque não

consigo imaginar não comer algo de que gosto e me incomoda profundamente

essa obsessão estranha que nossa sociedade tem com comida: enquanto

enchemos o Instagram de fotos de pratos e celebramos chefs de cozinha, nos

privamos da gordura, do açúcar, do glúten e da lactose em favor da proteína

em barra, do light, daquilo que está no rótulo e eu não sei nem pronunciar. Nós

nos esquecemos do que, para mim, se tornou o mais importante: cozinhar – e

comer – é uma demonstração de afeto. Nesse mundo de pressa e passagem,

é fácil cortar a comida e o sono para trabalhar ou ir à academia. Por isso,

para mim, tomar o tempo para fazer um bolo para os amigos ou uma torta

para mim mesma é um ato de profundo carinho. Quando cozinho e me sento

para comer, ou quando se sentam comigo, o maior presente que nos damos é

tempo. Tempo de conversar, de saborear, de estar consigo e com o outro. Um

de meus personagens literários favoritos, o comissário Salvo Montalbano do

siciliano Andrea Camilleri, só come em silêncio, para melhor saborear a comida.

Confesso que não consigo. Quando posso me dar tempo de presente, associo

a comida a meus outros dois maiores prazeres: a boa conversa ou os livros.

Comida, para mim, é isso. É prazer, claro. Mas é, sobretudo, um ato de amor.

200Teresa Chaves é professora de História do Ensino Médio.

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O tempo passou. Minha preocupação ética continua,

mas minha vida voltada à produção artística acabou

chegando aos ouvidos de meus alunos. É bem verdade

que o advento da internet contribuiu para isso, mas a cisão

que se estabelecia entre o Felipe-professor-de-Filosofia-

e-tutor e o músico Fepa começava a me incomodar.

Formado em Filosofia desde 2000, fui gravar meu

primeiro disco em 2010. No ano seguinte, esse álbum

foi lançado. Nesse período de dez anos, entre o fim da

faculdade e a criação de meu primeiro produto musical

profissional, estudei Música, Cinema (documentário)

e me aproximei do Teatro. Eu me experimentei e me

entendi como artista. Quando aproximei o professor do

artista, minha existência nesses dois universos começou

a ganhar mais significado. O peso da responsabilidade de

ser um educador não pode nos afastar daquilo que somos

e vivemos. As pessoas são múltiplas, o mundo é veloz, as

transformações são como condição de realidade e quase

perdem o status da mudança. Importar para o ambiente

escolar a diversidade é enriquecedor para a experiência

pedagógica e educativa. Os sarcófagos acumulam poeira.

A educação precisa de luz, criatividade e reinvenção.

(Um “salve” para as múltiplas facetas de professores e

alunos.)

Acabo de lançar meu segundo disco como cantor e

compositor. Chama-se Baseado em fatos reais. Hoje,

alunos, professores, amigos e músicos me chamam de

Fepa. Quebrou-se a cisão.

Felipe Corazza

é professor

de Filosofia

e tutor do

Ensino Médio.

Música e educação: combinam?O professor Felipe, de Filosofia, fala sobre sua carreira musical.

Um dia, muitos anos atrás, um professor amigo meu

comentou sobre como os alunos ficavam surpresos

quando o encontravam fora da escola. Eles o viam no

supermercado e diziam: “Nossa, professor, você por

aqui?” Ele dizia que os alunos deviam imaginar que

o professor sai da sala de aula e entra no armário

dentro da sala dos professores, e dali só sai para dar

a próxima aula. Haveria uma espécie de sarcófago dos

educadores.

Parece que ser professor traz uma responsabilidade

ética maior do que outras profissões que existem por

aí exigem. O que é permitido fazer fora do ambiente

escolar? (Vai que algum aluno me vê nessa festa, nesse

show, nessa peça de teatro ou simplesmente de chinelos

indo comprar pão na padaria?) Não sei dizer se foi o

receio de ser visto fora do espaço escolar fazendo algo

muito diferente, mas sempre preservei minha vida fora da

escola. Acredito que o fato de ter começado muito cedo

a ensinar (aos 22 anos) tenha contribuído para tamanha

discrição.

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Levando na flauta...

Nasci e cresci em uma casa com música, muita música. Filha de mãe pianista e pai

violonista, e com tia também pianista, os instrumentos musicais sempre estiveram

presentes na minha vida. Desde muito pequena, ouvia e participava das aulas

de piano ministradas por minha tia, irmã de meu pai, com quem morei

durante toda a infância. O som de uma nota desafinada doía no ouvido,

si bemol, fá sustenido… sabia reconhecê-los quando soavam em

desarmonia. Estudei piano clássico dos cinco aos doze anos, tendo

minha tia como professora, e só retomei meus estudos musicais

após os quarenta anos de idade, mas tendo escolhido outro

instrumento musical – a flauta transversal.

A flauta é um dos instrumentos mais antigos. Seu som é

suave, puro, e seu timbre, expressivo. Tocar flauta requer

que corpo e mente se acalmem para que o sopro saia e

flua harmonicamente. Instrumento ideal para quem vive

em um mundo rápido, em uma cidade grande, com uma

vida atribulada. É uma atividade artística completa, porque

requer foco, sensibilidade e integração entre pensamento e

movimento.

E assim a flauta entrou em minha vida, com aulas semanais

ministradas por uma professora que soube me ajudar a fazer o

som fluir. Atualmente, tenho dedicado parte do meu tempo de estudo

à flauta celta irlandesa, tinwhistle, um instrumento mais rústico, com um

timbre mais agudo.

Conheci pessoas que, assim como eu, escolheram suas profissões, mas que gostam de

fazer soar a flauta transversal. E foi dessa forma que criamos o Di Varius, ora um

trio, ora um quarteto ou mesmo um quinteto formado por outros estudantes

de flauta como eu. Não temos muito tempo de ensaio, mas, às vezes, os

integrantes do Di Varius se organizam para brincar de tocar flauta.

E como brincamos…

Têm sido muitos os aprendizados durante esses anos tocando

flauta. Aprendi a embocadura correta desse instrumento e o

dedilhado preciso das notas que dele saem. Os sons agudos me

encantam, gosto de fazê-los soar; já os sons graves não vibram

com tanta naturalidade para mim. Aprendi que a memória

muscular é uma habilidade adquirida após muita prática

do instrumento musical. Aprendi que o treino constante

embeleza os sons e as melodias.

Muitas vezes, a rotina não permite que essa prática musical

seja tão intensa, mas mesmo assim estudar flauta transversal

ou a flauta celta tinwhistle tem uma grande função em minha

vida. É uma forma de criar, de me expressar e de relaxar. O prazer

em produzir sons, fazer música, e não apenas apreciá-la, é uma

experiência única.

205

Cláudia Amorim confessa sobre sua outra vocação, além do ensino de Inglês: a música.

Cláudia Colla de Amorim é coordenadora

da área de Inglês da Móbile.

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r e s e n h a

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Tinta rala

Com essa frase impositiva, Guilherme Valiengo, um dos diretores do documentário

Cidade Cinza (2012), iniciou um debate com os alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no

auditório da Móbile neste ano.

Finalizada em 2012, a película, que demorou seis anos para ser produzida e que conta

também com Marcelo Mesquita na direção, aborda um tema de muita notoriedade na mídia

atual, o grafite. Antes visto como arte marginal, o grafite ganhou, nos últimos tempos, status de

celebridade e tem ocupado lugares antes improváveis para esse tipo de expressão.

O filme não se concentra somente em artistas já reconhecidos por seus trabalhos, como

Osgemeos, Nunca, Nina, Finok, zefix e Ise; delineia também a história do movimento e o percurso

de outros integrantes. Como documentário, destaca a política de limpeza urbana da Prefeitura

que cobre os muros de tinta cinza, indo de encontro ao reconhecimento do grafite como arte.

Com início em 2008, essa política, intitulada “cidade cinza”, ganhou força apesar dos

protestos dos artistas e da população, e diversos grafites foram desaparecendo sem muitas

explicações ao cidadão. Muros, antes coloridos, em menos de uma hora passaram a receber

uma camada rala de tinta cinza. (Entre tantos e diversos desenhos apagados, um painel de

700 m2, grafitado por vários artistas, entre eles a dupla Osgemeos.) A explicação dada pelos

órgãos públicos: engano. Com o foco nessa política e os trâmites para os artistas repintarem o

painel, o filme mergulha no universo dos grafiteiros, nos estilos criados por eles, e levanta alguns

Resenha sobre o longa Cidade cinza.

“Independentemente de gostarmos ou não, o grafite faz parte da cidade de São Paulo!”

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questionamentos sobre o uso dos espaços públicos por diferentes esferas do poder público e da

população. Outro ponto que ganha atenção no documentário é o critério que se estabelece para

apagar ou não um grafite, uma vez que fica a cargo da equipe contratada pela Prefeitura para

manter a cidade cinza decidir se as pinturas são “bonitas” ou “feias” e, consequentemente, se

devem ser apagadas ou mantidas.

De acordo com Guilherme Valiengo, “o grafite é parte do cenário urbano e já conquistou

seu lugar na cultura da cidade, mas, enquanto forem cobertos, parte da cultura paulistana

também será”. O filme trata, enfim, de uma grande ironia: enquanto o grafite de nosso país ganha

reconhecimento mundial por seu estilo único, devido às técnicas e materiais utilizados neles, o

poder público brasileiro vem se especializando em criar métodos para aguar as tintas de muitos

desses artistas. Nossa única sorte é que a tinta cinza é rala!

210Luca Caltran é professor de Artes Plásticas

do Ensino Fundamental da Móbile.

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