angústia e representação - cchla.ufrn.br de dax... · “o digno-de-ser-questionado é o que,...

275
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA UFPB UFPE UFRN Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento LIBERDADE E NEGAÇÃO DA VONTADE: Análise do ser-livre como representação e na angústia Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia (PIDFIL) UFPB-UFPE-UFRN como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz Natal 2011

Upload: votu

Post on 05-Dec-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA UFPB – UFPE – UFRN

Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento

LIBERDADE E NEGAÇÃO DA VONTADE:

Análise do ser-livre como representação e na angústia

Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia (PIDFIL) UFPB-UFPE-UFRN como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz

Natal 2011

Page 2: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento

LIBERDADE E NEGAÇÃO DA VONTADE:

Análise do ser-livre como representação e na angústia

Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia (PIDFIL) UFPB-UFPE-UFRN como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz Orientador – Presidente

Departamento de Filosofia UFRN

Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero Membro Interno

Departamento de Filosofia UFRN

Prof. Dr. Jesus Vázquez Torres Membro Interno

Departamento de Filosofia UFPE

Prof. Dr. Paulo César Duque Estrada Membro Externo

Departamento de Filosofia PUC-Rio

Profa. Dra. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola Membro Externo

Departamento de Filosofia USP

Natal, 30 de setembro de 2011.

Page 3: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

para Jaque “Lintche”, amor, inspiração, esposa,

horizonte e origem do pensamento aqui buscado.

Page 4: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, ao Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz, meu orientador, pelos cursos

inspiradores e, em especial, pela confiança depositada em tema por tantos e tanto tempo

colocado sob suspeita. Adicionalmente, não posso deixar passar sem menção sua amizade e

colaboração.

Um agradecimento especial ao Prof. Dr. José Thomaz Brum, em cuja presença acendeu-se a

primeira centelha do que viria a surgir como a presente tese, tendo sido o primeiro a conhecer

meu projeto, ainda em suas linhas mais incertas. Desde então, fins de 2002, nunca deixei de

contar com seu apoio, simpatia e receptividade.

Ao Prof. Dr. Jesus Vázquez Torres, pelo apoio, pelas conversas e pelos excelentes cursos. Ao

Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero, pelas boas discussões, pelo apoio e pelas cuidadosas

sugestões em meu exame de qualificação. À Profa. Dra. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola e

ao Prof. Dr. Paulo César Duque Estrada pela receptividade, pelas belas palavras e contribuições

para os futuros desdobramentos do presente estudo.

Ao coordenador do curso de Filosofia do Campus Caicó da Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte (UERN), onde leciono, José Francisco das Chagas Souza, pela compreensiva

generosidade dispensada a mim, sobretudo durante a fase final de meu doutoramento.

À secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRN, Thiare e Jacqueline.

A Jaque, minha esposa, por tudo de inefável que sempre nos acompanha, o solo mesmo em que

se enraíza cada um de nossos dias em comum e de onde floresce nosso filho Werther.

Aos bons amigos, com abraços especiais para Christian Lynch e para Rossano Pecoraro, cujo

trabalho representou para mim a abertura de novos caminhos, e também para Georgia Amitrano

e Leonardo Almada, que tão fortemente me apoiaram desde o começo deste estudo.

Aos amigos e colegas de curso, Luiz Fernando Fontes Teixeira e Alan Marinho Lopes.

Page 5: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Resumo

A compreensão usual de “liberdade” sempre esteve mais ou menos vinculada ao poder de efetivação ou realização, de uma intenção, de um desejo, de uma capacidade. Assim, “ser livre” é comumente interpretado à luz do conceito de “livre-arbítrio” e sob a categoria da possibilidade de agir. Embora não sem precedentes na História da Filosofia, Schopenhauer, refutando a tese do livre-arbítrio, propõe a negação da vontade (de viver) como possibilidade máxima, se não única, da liberdade humana. A tese que o deixou famoso foi, contudo, profundamente mal compreendida e mesmo mal recebida um tanto graças à própria forma como é apresentada, por meio de exemplos muitas vezes exóticos envoltos em ares de misticismo e exaltações a tradições orientais que, incapazes de satisfazer filosoficamente o leitor, são antes curiosidades antropológicas. O saldo final do pensamento schopenhaueriano parece ser um pessimismo inimigo da vida. No entanto, examinada de perto, a leitura típica da tese schopenhaueriana se mostra repleta de inconsistências que, deve-se mostrar, não pertencem ao autor, mas a seus intérpretes. Uma nova leitura sobre a negação da vontade como possibilidade máxima da liberdade humana exige uma crítica das inconsistências e preconceitos já enraizados. Para tanto, em primeiro lugar, elucida-se as maneiras de se compreender o “nada querer”, que não se reduz à mera recusa ou ao conformismo, podendo ser positivamente interpretado como um modo especial de querer: a admissão de si mesmo pelo que se é. Pouco mais de um século após vir à luz O mundo como vontade e representação, Heidegger propõe em sua ontologia fundamental que o ser-livre próprio diz respeito à decisão originária pela qual, na angústia da suspensão no nada, o Dasein singulariza-se como o ente que é em-um-mundo e para-a-morte, concluindo que a possibilidade extrema da liberdade é ser-livre-para-a-morte. Desenvolvendo a hipótese de que a liberdade, propriamente compreendida, é pertinente ao nada e a possibilidades indeterminadas, busca-se um diálogo entre o pensamento de Schopenhauer e a filosofia existencial em um movimento de reconstituição e superação da tradição metafísica por meio de que o problema da liberdade converte-se em uma questão de Ontologia. Do ponto de vista da “existência de fato”, conforme se mostra em seguida, toda atividade (ou inatividade) humana é ordinariamente mediada por representações, segundo as quais “eu” e “mundo” aparecem como entidades distintas, encontrando-se cada indivíduo dado ligado às “coisas do mundo” pelo interesse, cujo conceito adequado deve ser suficientemente explorado. Partindo-se desta base, procede-se ao exame suficientemente pormenorizado das representações usuais da liberdade em vista de sua destruição pela Ontologia, atingindo-se, enfim, a proposta existencial conforme as formulações de Kierkegaard e Heidegger. Retomando a análise da obra de Schopenhauer, chega-se ao resultado de que a compreensão da liberdade como querer-ser, peculiar às filosofias da existência, também se aplica à filosofia de Schopenhauer. Nesse sentido, a negação da vontade corresponde ao máximo de liberdade na medida em que a Vontade, pela ruptura como o mundo como representação, retorna a si mesma naquilo que tem de mais essencial: a absoluta indeterminância originária da possibilidade extrema para-ser.

Palavras-chave: Vontade. Liberdade. Angústia. Existência. Representação. Singularidade.

Page 6: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Abstract

Common understanding about what ‘freedom’ means has always been more or less related to the power to realize something intended, desired, a capability. Therefore, ‘being free’ is commonly interpreted under the concept of ‘free-will’ and the category of possibility to act. Although there are predecessors in History of Philosophy, Schopenhauer refuses the thesis of free will proposing otherwise the denial of willing (to live) as the ultimate possibility for human freedom, if not the only one left. The thesis that would make him famous was deeply misunderstood and so miscarried somewhat due to the way it was many times presented by the means of exotic examples wrapped in a mystical mood besides exaltations to Eastern traditions, which may satisfy anthropological curiosity instead of being capable to satisfy the reader in a philosophical way. It seems to result from Schopenhauer’s thought a kind of pessimism against life. Otherwise, typical readings on the Schopenhauerian thesis are found full of inconsistencies once closely regarded, which blame does not belong to the author but to his interpreters. A new reading about the denial of willing as the ultimate possibility for human freedom demands a criticism on the inconsistencies and prejudgments deep grounded. For this, we firstly clarify the ways of understanding the ‘willing nothing’, which cannot be reduced to the mere refusal or conformism, being instead positively understood as a special manner of willing: the admission of oneself for the sake of one is. A few more than a century later The world as will and representation came to light, Heidegger proposes in his fundamental ontology that the proper being-free concerns to originary decision by which, in anguish of being suspended in nothingness, Dasein renders itself singular as the being who is in-a-world and to-death, concluding that the ultimate possibility of freedom is being-free-to-death. Developing the hypothesis that freedom, properly understood, concerns to nothingness as to indeterminate possibilities, we seek for a dialogue between Schopenhauer’s thought and existential philosophy aiming to reconstitute and overcome Metaphysics tradition turning the question about freedom into a matter of Ontology. From the ‘factual existence’ perspective, as we must show, every human activity (or inactivity) is ordinarily mediated by representations, in which ‘me’ and ‘world’ appear as distinct entities. So, each one among determininate individuals finds itself connected to the ‘things in the world’ by interest, which proper concept must be sufficiently explored. Starting from this point, we may proceed to detailed analysis of usual representations of freedom aiming their destruction by Ontology and then reaching existential thesis according to Kierkegaard and Heidegger. Turning back to the analysis of Schopenhauer’s work, we conclude existential understanding of freedom as will-to-be can also be found in Schopenhauer. In this way, denial of willing means ultimate freedom once the Will turns back to its own essence by suppressing the world as representation, which means the originary absolute indetermination of the extreme possibility to-be.

Keywords: Will. Freedom. Anguish. Existence. Representation. Oddity.

Page 7: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

“... jamais a filosofia parte da teoria; sua essência é observar, em face de cada objeto que a ela se oferece, o papel do espectador,

do pesquisador; fornecer preceitos não é seu feito. [...] Desde que se considere o valor ou não-valor de uma existência,

redenção ou danação, aquilo que implica o equilíbrio não mais são conceitos sem vida, é a parte íntima,

a essência mesma do homem, [...] o demônio de sua escolha [...] o saber é por si mesmo sem valor; é um mero instrumento,

falta saber manuseá-lo.” (A. Schopenhauer; MVR, §53)

“O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado,

e de forma alguma, como o que submerge na voracidade de uma mania de dúvida.”

(M. Heidegger, Sobre o Humanismo)

“Agora parece haver necessidade do contrário: o sentido está tão enraizado no que é terreno,

que se faz mister uma força igual para erguê-lo dali. [...] Pela insignificância daquilo com que o espírito se satisfaz,

pode-se medir a grandeza do que perdeu.” (G. W. F. Hegel, FE, Prefácio, §8)

Page 8: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Sumário

Apresentação 10

Prólogo 17

1. A negação da vontade: uma possibilidade obscura 19

1.1. Insuficiências interpretativas 22

1.2. A ambiguidade da Vontade 26

1.3. Os fenômenos autênticos da negação da vontade e sua positividade 34

2. “O” nada(-querer) segundo um duplo olhar 39

2.1. A caminho da positividade do livre nada-querer contra o psicologismo 40

2.2. A positividade ontológica do não-querer 47

2.3. A essência sempre autoafirmadora da Vontade 52

2.4. O não-querer em Heidegger: observações iniciais sobre a serenidade 59

3. Heidegger contra Schopenhauer: digressão sobre o “(des-)interesse” 66

3.1. A interpretação meramente utilitária do interesse 69

3.2. Interesse como relação ontológica 76

3.3. A positividade essencial do livre desinteresse 80

3.4. Aprofundando convergências 86

4. O homo amphibios 91

4.1. Das origens ao Iluminismo 92

4.1.1. A paradoxal ambiguidade da ação trágica 93

4.1.2. A gênese não-temática da racionalização da vontade 95

4.1.3. O ideal de libertação do espírito no mundo antigo 100

4.1.4. Liberação do sujeito e vida política 111

Page 9: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

9

4.2. O dualismo kantiano e a crítica schopenhaueriana 122

4.2.1. A explicitação da negatividade do conceito vulgar de “liberdade” 122

4.2.2. Considerações gerais acerca do amor-de-si 126

4.2.3. O conceito positivo de “liberdade” por Kant 131

4.2.4. O dualismo kantiano e a perspectiva de sua superação 139

5. A angústia do ser-livre 150

5.1. Kierkegaard e a angústia do possível da liberdade 152

5.2. Heidegger e a tese da dívida originária 166

5.3. O querer a si-mesmo assumido pela singularização na angústia 172

5.4. Observações adicionais acerca da tematização existencial do ser-livre 184

6. A fuga para o ente e para as representações do ente: queda do ser-no-mundo e vontade de existir 193

6.1. A angústia em O mundo como vontade e representação 193

6.2. A vontade de existir como livre querer originário 203

6.3. Sobre o mesmo assunto: Nietzsche contra Schopenhauer 212

6.4. Retomando a questão em torno “do” nada 219

6.5. O acontecimento da liberdade 229

6.6. Fuga e querer impróprio... até a morte 235

Epílogo 246

Considerações Finais 252

Referências 266

Page 10: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Apresentação

Gostaria de iniciar o presente trabalho registrando sua concepção e gestação antes de

propriamente apresentá-lo tal como se encontra aqui, já entregue à luz. Isto nos remete à década

passada, mais precisamente à tarde em que meu interesse por Schopenhauer e Nietzsche, cujas

obras vinham sendo lidas por mim desde a adolescência, agora enriquecido pelo estudo de

Heidegger, ressurgiu de tal modo que um proveitoso desvio para a Antiguidade começava a

chegar ao fim. Tal desvio levara-me, durante o Mestrado, das “filosofias da Vontade” à filosofia

antiga, respondendo a um outro interesse que eu nutria na época por questões de ordem

teológica e cosmológica. Nesse proveitoso desvio, imergi no pensamento grego-helenístico, no

período clássico, na mística judaica e no incipiente neoplatonismo, representando a possibilidade

de um amadurecimento filosófico de todo ausente então, devo admitir.

Naquela tarde de 6 de novembro de 2002, eu coordenava uma mesa de comunicações que,

intitulada “Ética e Vontade”, parcialmente dedicada ao pensamento de Arthur Schopenhauer, foi

aberta por palestra do Prof. Dr. José Thomaz Brum. Naquela oportunidade pude começar a

conhecê-lo melhor, vindo posteriormente a saber que, além de tradutor de Clément Rosset,

filósofo francês que àquela época começava a exercer enorme influência sobre mim, fora seu

orientando, escrevendo a tese de que se originou o livro O pessimismo e suas vontades, lido por mim

dois anos antes e utilizado como importante referência em meu trabalho monográfico para

ingresso no Mestrado... De volta àquela tarde, parece relevante recordar que, tendo há pouco

tomado conhecimento da filosofia existencial, há pouco tendo iniciado minhas leituras

sistemáticas de Ser e tempo, há pouco tendo descoberto que a angústia constituía relevante tema de

filosofia contemporânea, repentinamente me pareceu haver um vínculo mais estreito entre

angústia, liberdade e a vontade cega schopenhaueriana, vínculo este que poderia apontar um

interessante caminho para se discutir e compreender algo cuja literatura filosófica em geral apenas

aparentemente explicava: o problema da possibilidade da negação da vontade, aquele querer sem

meta e inapreensível, segundo Schopenhauer. Tratava-se apenas de uma “intuição”, mas que,

expressa de modo um tanto desordenado e intempestivo, originou uma breve, porém importante

conversa com o professor Brum.

Considerando as diversas mudanças estruturais sofridas em meu “plano expositivo” e de

trabalho desde então, bem como as diversas apresentações orais e escritos publicados, ao dar

início à redação desta tese, quase sete anos depois – dito en passant, à proximidade do nascimento

de meu primeiro filho –, percebi que não poderia começar por outro ponto que não aquele mais

Page 11: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

11

original: o problema da possibilidade da negação da vontade. É daí, de tudo aquilo que nisto se

encontra implicado e que se pode deduzir, que eu, como que em um procedimento “analítico”,

encontro o mais viável ponto de partida para uma abordagem tão difícil de uma problemática

bem maior, ou “menor”, mais íntima a cada um, e que talvez por isso mesmo produza tanto

“estranhamento” em nosso meio acadêmico, fatalmente cômodo em suas inquietações bem-

delimitadas – não que sejam triviais; talvez, mais seguras... E não será outra coisa além desta

“seguridade” da de-limitação a merecer muito de nossa atenção, para o que certa distância é

necessária. E isto significa: mantermo-nos, em certa medida, e na medida certa – assim espero! –,

distantes especialmente dela para melhor contemplá-la: a seguridade. Para tanto, um longo

trabalho preliminar se faz necessário e a presente tese deve atingir precisamente este objetivo.

Considerando que a seguridade, pretensamente conquistada mediante a delimitação do “espaço

de atuação de forças”, explicitando-se aí relações bem determinadas de causas e efeitos, fazendo

do mundo, de si mesmo e dos outros, um complexo coerente de representações, as concepções

de “liberdade” que servem a tal propósito devem ser suficientemente problematizadas. Segundo a

orientação adotada neste trabalho, o pensamento schopenhaueriano torna-se crucial.

A Vontade schopenhaueriana, que é irredutível em si mesma a um “querer-isto” ou

“querer-aquilo”, serve à exposição da vida como fenômeno autoproduzido, sem finalidade outra

que não a própria vida, incondicionalmente, o que significa que se vive porque e, sobretudo,

enquanto se quer, ou melhor, porque cada um já sempre é manifestação da própria vontade de

viver, cada um é vontade de viver, vontade esta indefinível, em si mesma não-racional, cega,

imponderável. Há de se enfatizar: “enquanto se quer” não significa ser-nos possível, por um “ato

de livre-arbítrio”, dar um fim ou conservar a vida em sua essência, muito embora nossos esforços

se dirijam para isto. A vida se “justifica” por si mesma, de modo que não há qualquer para quê que

lhe dê sentido extrínseco, que a faça surgir, tampouco um quê ou um quem a tenha produzido; não

há evolução, não há teodiceia; não há arché, não há telos, não há aitia, exceto em nossas

representações. Dito de outro modo: se é verdade que a vida se explica em sua própria dinâmica,

enquanto já é vida, pelas ciências, não há qualquer explicação possível que lhe esclareça a origem,

restando-nos apenas admiti-la como o que é por si mesma. As categorias próprias ao mundo da

vida não são legitimamente aplicáveis a qualquer outro “mundo” – na linguagem de

Schopenhauer, a forma de nosso conhecimento acerca do mundo como representação é

impotente para se conhecer o mundo como vontade. Já nos encontramos sempre em um mundo,

postos em inalienável relação com o que de mais é no mundo junto a nós e conosco segundo a

mesma fatalidade. É ela, a Vontade, a nos pôr em relação, não sendo ela mesma essa relação, pois

Page 12: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

12

toda relação é já relação representada por um sujeito, relação entre duas ou mais partes, e já a

multiplicidade é um produto das formas do conhecimento representacional, sendo-nos mesmo

impossível imaginar uma unidade pura e absoluta. Desse ponto de vista, as representações são

inescapáveis. A Vontade, em si mesma, por sua vez, nem representa nem é representada,

distinguindo-se absolutamente de seu modo de manifestação, bem como de sujeito e objeto,

polos de toda e qualquer representação (Schopenhauer, 2004, [cap. I]1 p. 687). Desta

incondicionalidade, ou ausência de fundamento, razão de ser (Grundlosigkeit), conforme nos diz

Roger em seu prefácio a Sobre o fundamento da moral (Schopenhauer, 2001, p. XLV-LI), são

deduzidas três determinações principais, quais sejam: a indestrutibilidade da Vontade (nascimento

e morte são fenômenos que, como tais, não a atingem); a unidade da Vontade (unidade metafísica

não-relacional que se opõe às unidades física – sensível – e conceitual – abstrata –, ambas

consistindo em representações submetidas ao princípio de individuação); e a liberdade da

Vontade (estendida a tudo aquilo que é, posto que, sendo liberdade daquilo que é um e

indestrutível, não pertence ao racional ou qualquer espécie determinada, ou seja, a vontade não é

nem uma propriedade, nem uma faculdade).

Desse modo, o “conhecimento” das “determinações” da Vontade que cada um de nós é

originariamente supõe a superação do princípio de razão segundo suas formas – respectivamente,

do tempo para a indestrutibilidade, do espaço para a unidade e da causalidade para a liberdade –

e, por conseguinte, da perspectiva do mundo como representação. Sendo a Vontade a alteridade

da representação do ponto de vista do conhecimento, sua determinabilidade, conforme

enumerada por Roger, depende da desconsideração das condições formais do conhecimento

empírico. Trata-se, portanto, de uma determinação formal, pois implica dizer que é impossível uma

experiência da Vontade em si mesma. Se tais determinações são deduzidas da supressão das condições do

pensamento por representações, em verdade, a busca pelo incondicionado no fundo das

representações consiste, antes, na investigação de uma positividade ontológica no sentido de que

toda relação, inerente a toda representação, se estabelece segundo uma intrínseca dicotomia que

já sempre traz consigo um “não” privativo. À negatividade ontológica da Vontade

schopenhaueriana, vinculada ao nada e à indeterminância, contrapõe-se a negatividade lógica que

1 Sempre que possível, serão indicados entre colchetes, ao lado das referências do tipo autor-data, dados para uma localização mais universal das passagens citadas. Estes dados podem consistir em números de capítulo, parágrafo ou paginação original em edições referenciadas internacionalmente. Isto vem facilitar a consulta pelo leitor em casos de obras clássicas volumosas e/ou com múltiplas edições. No caso de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, os capítulos da parte principal da obra são indicados pelo símbolo “§”, enquanto que os capítulos dos Suplementos o são pela abreviatura “cap.”.

Page 13: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

13

sustenta toda possibilidade de representação não-absurda2 – por exemplo, o princípio de

contradição indica a impossibilidade de se representar (na percepção ou no pensamento) algo

como sendo e não sendo ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista. Ou seja, a dedução

negativa daquilo que a Vontade não é, do ponto de vista ontológico, releva sua positividade, nada

tendo a ver, pois, com uma teologia negativa que simplesmente opõe Deus à temporalidade, à

espacialidade e à natureza declarando-o como a alteridade de tudo que é mundano, isto é, o

humano. A teologia negativa supõe uma relação dada entre Deus e mundo, segundo a qual um é o

que o outro não é. Por isso Deus terá surgido como fundamento, causa-primeira extrínseca de toda

outra existência: por ter sido pensado segundo a lógica, ou seja, abstratamente, em uma relação

negativa com o mundo. Schopenhauer, por sua vez, coloca a questão a partir de Kant, radicalmente:

se a razão de ser (Grund, fundamento) é um princípio do conhecimento e não do mundo, o

conhecimento essencial deste último deve prescindir de tal princípio, e se toda ciência se erige

graças ao princípio de razão, deve-se buscar um modo de conhecimento inteiramente outro. A

diferença entre Schopenhauer e seus antecessores se torna manifesta quando se trata do

problema da liberdade. Isto é, em vez de empreendermos uma “crítica da razão” que venha a

delimitar o âmbito do cognoscível, como fizera Kant, devemos adotar uma nova atitude em face

do próprio conhecer, a qual deverá supor, por insólito que pareça de início, um completo

redimensionamento do problema da liberdade – não porque estejamos tratando da Vontade; pelo

contrário, a questão mesma acerca da Vontade recebe novo dimensionamento quando nos vemos

enfrentando o problema da liberdade, em si mesma independente de toda “faculdade de arbítrio”.

Diferente do que pressupõe a teologia negativa, a Vontade, em Schopenhauer, é o mundo,

distinguindo-se dele apenas por uma questão de perspectiva, o que muito difere do que afirmam

o neoplatonismo e o panteísmo.

O caráter não-justificado da existência senão pelo livre querer-viver, viver este significativo

e em busca de significância junto à necessária constituição de relações referenciais por intermédio

de representações, parece traduzir uma visão de mundo segundo a qual vivemos apoiados em

concepções de realidade bastante incertas, ingênuas, desviados, por nossa própria racionalidade

produtora de abstrações, daquilo que a cada vez se nos mostra segundo o que essencialmente é.

O fenômeno se mostra pelo que é; somos nós a buscar nele outra coisa tal como uma essência ou

um fundamento. Compreendendo o mundo a partir de seu aspecto mais empobrecido e

superficial (mesmo quando se trata de “essências”), aquele redutível às categorias de nosso

entendimento, às nossas possibilidades de experiência sensível ou de “pensamento” – assim

2 Deve-se admitir a possibilidade de representar absurdos como A = não-A, bem como dizer “um gato não é um gato”. Tais representações são, todavia, sem sentido; podem ser ditas, mas não percebidas nem pensadas significativamente. Em síntese, são “flatus vocis”.

Page 14: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

14

tradicionalmente tratado pela filosofia como pelas ciências especiais –, apoiando-nos no que de

mais abstrato e ao mesmo tempo mais “palpável” – isto é, ao alcance de nosso intelecto – se nos

dá a conhecer, nossas representações, na verdade nos colocamos em fuga com relação ao fundo

que, embora tão desejado, mais nos aterroriza: a responsabilidade de assumirmos nossa própria

liberdade para-ser, a decisão originária segundo a qual, exclusivamente, somos o que somos.

Enfrentar o próprio ser-livre, o fato incontornável de sermos isto que somos, o fenômeno de

nossa própria decisão quando ainda não éramos indivíduos – pelo contrário, tornamo-nos

indivíduos pela decisão –, parece pesar como “o maior dos pesos”, utilizando-me da expressão de

Nietzsche ao enunciar, pela primeira vez, em A gaia ciência, a hipótese do eterno retorno. Não

lançar mão de um algo ou um quem como responsável pela nossa “natureza” ser tal como é –

aquilo que Sartre denominará “má-fé” –, mas, pelo contrário, enfrentar o próprio ser-livre, é

permitir-se uma “sombria” suspensão na indeterminância que incontornavelmente precede todo

“ato livre” da vontade, contribuição de Kierkegaard a nosso tema, adequadamente aprofundada

por Heidegger.

Será possível manter-se livre, ter a vontade não determinada por fins, motivos, razões, ou

seja, termos vontade livre das relações por ela mesma postas entre o que nós mesmos já somos e o

mundo como que nos separando dele? Será antes possível retomar a liberdade uma vez

determinados segundo a natureza, após a já efetivada “queda” mediante a decisão-de-ser já

tomada previamente a toda consciência ou reflexão ou experiência? Existir como se a liberdade

não fosse algo que se exerce por intermédio de uma consciente e calculante, pragmática

deliberação em vista de representações subjetivas de bem-estar? Será possível suportar a angústia

perante um mundo cuja significância e sentido, familiaridade e seguridade, não sendo

simplesmente dadas naturalmente, exigem de nós colocarmo-nos em meio aos entes? Será

possível existirmos significativamente sem nos deixarmos conduzir por meras representações a

um tempo reconfortantes e inquietantes? Suprimirmos e superarmos nossa ordinária

interpretação reducionista da realidade em benefício de um ser-livre que, por sua vez, em si

mesmo, não nos garante o controle sobre as coisas, justamente a segurança procurada em toda

forma de poder? Entendermos que a liberdade mesma nada tem a ver com controle? Ou será que

vivemos de e para representações tão-somente para nos desembaraçarmos dessa liberdade que

tanto de nós exige e que “livremente” decidimos abandonar? Que implica sermos livres? Como

entender este ser-livre? Ter diante de si tão-somente possibilidades em lugar de portos seguros?

Que de nossa essência se negligencia em determinarmo-nos por representações do real por nós e

em nós mesmos engendradas naquela fuga?

Page 15: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

15

A busca por respostas deve ter início aqui com a discussão sobre a possibilidade mais

extrema, e supostamente menos “própria” ou “natural” à vontade, ou querer em geral: sua

autonegação, ou autossupressão. Ou seja, a “recusa” de um certo modo – bastante ordinário – de

relacionamento com aquilo que há a nossa volta, com o próprio mundo. Uma possibilidade, no

rigor do termo, extra-ordinária. Se, para tratar da liberdade, deve-se abordar o possível como tal e,

assim, tem aqui privilégio a possibilidade de negação da vontade, isto se deve ao fato de que

talvez seja no ato que contradiz toda determinidade natural e suspende as condições de sua

inteligibilidade que a liberdade mais claramente pode se mostrar, o que, no entanto, não se deve

confundir com uma “possibilitação da liberdade” mediante a mera supressão de impedimentos

fatuais, perspectiva que será detalhadamente criticada no decorrer do estudo. A partir da

possibilidade de negação, e do que esse ato implica, uma compreensão do “não” e do “nada”,

chega-se aos elementos necessários a uma análise da liberdade e seu conceito, isto é, não apenas

do que ela seria como tal, mas também, e em especial, de nossas representações a seu respeito (eis

o que o subtítulo indica por “ser-livre como representação”). Este é o conjunto da problemática

central na tarefa assumida no presente estudo, a saber, uma destruição ontológico-existencial do

conceito vulgar de “liberdade” mediante uma abordagem histórico-analítica. Naturalmente, uma

sugestão de resposta ao problema da negação da vontade de viver não é o objetivo último desta

investigação, mas apenas – embora pré-requisito necessário – o ponto de partida para uma análise

da existência e de nossa compreensão do existir, aqui interpretado como expressão de nosso

próprio querer-ser, da incondicionalidade inerente à faticidade de já sempre, cada um de nós, ser-

no-mundo como ser-livre, em suspensão sobre o kierkegaardiano abismo da possibilidade da

liberdade, que a cada vez nos exige posicionamento e decisão.

A isto deverão suceder futuras análises acerca de nossa adesão às determinações segundo

promessas de segurança e felicidade. Afinal, que hão de ser tais promessas e qual o sentido íntimo

de nossa adesão a elas ou “necessidade” delas? Dizer que se trata de promessas de bem-estar e

que todos “visam ao bem e à sabedoria”, como afirmavam os pensadores clássicos, não responde

à questão na medida em que não se tem esclarecida nossa necessidade de bens quaisquer,

tampouco em virtude de que se toma ou se pode tomar algo pelo bem, nem ainda se esclarece

satisfatoriamente a necessidade, propensão, ou mesmo dever da vontade em aderir a

determinações quaisquer... Nesse ínterim, o bem como meta ou mesmo a perspectiva da salvação

se mostram apenas como simulacros de resposta, não sendo de modo algum evidente o sentido

último destes fins, o que nos faz recuar em face de toda Ética e toda Teologia. Antes, faz-se

necessária uma análise de nosso conhecimento teórico e de nosso conhecimento prático, bem

como das respectivas representações que os constituem ou a que aderem. Todavia, considerando-

Page 16: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

16

se a amplitude e complexidade do trabalho preparatório exigido para tais análises, o qual deve

lançar seu olhar para o todo da tradição filosófica ocidental, o exame de suas consequências sobre

os modos habituais de se lidar com o saber e com os afetos deverá ser deixado para estudos

posteriores.

Page 17: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Prólogo

O enigma da negação da vontade vem constituir o ponto inicial de nossa investigação na

medida em que sua realização coloca nossa própria essência, segundo Schopenhauer, em face do

nada que constitui o verdadeiro fundo do mundo como representação. As insuficiências de base

que caracterizam a interpretação usual da negação da vontade em Schopenhauer constituem o

tema do primeiro capítulo: “A negação da vontade: uma possibilidade obscura”.

A fim de se dar início à superação dessas insuficiências, passa-se logo ao segundo capítulo:

“‘O’ nada(-querer) segundo um duplo olhar”. O “mundo” torna-se nada, se aniquila, palavra que

remete ao latim nihil. É de se observar que nesse nada a Vontade conhece a si mesma e, além

disso, tal acontecimento, que não consiste em uma experiência subjetiva, tampouco em fato

objetivo, exprime o máximo de liberdade possível. A liberdade da Vontade perante o nada de si

mesma se nos mostra, pois, como abertura privilegiada daquilo que a Vontade é em si mesma,

colocando-se “entre parêntesis” tudo aquilo que até então parecia ser “o mundo”. O mundo, para

além ou aquém de toda representação, de toda dicotomia calcada na relação sujeito-objeto,

adquire um caráter cuja compreensão exige uma completa ressignificação do que significa ser-

livre. Para tanto, o enigma da negação da vontade tem sua possibilidade de esclarecimento

condicionada à tematização do sentido próprio desta negação, bem como do sentido próprio de

“vontade” nesse contexto. A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: Reside a liberdade em

um poder negar ou, muito pelo contrário, é justamente por um deixar de negar em se afirmando a si

mesma que a liberdade se libera para si própria como vontade livre? A fim de que possamos

defender a segunda alternativa, é necessário distinguir preliminarmente a negação como noção

categorial relativa e como positividade existencial, ou seja, como elemento constitutivo de

representações e como fundo próprio de toda singularidade fenomenal. O que se nega na negação

deve ser compreendido, antes de tudo, ontologicamente a fim de que o ser-livre pelo “não” apareça

em sua propriedade. Somente a partir daí se pode atingir um esclarecimento da vontade como

interesse e de sua negação como desinteresse.

O tema do desinteresse é abordado de modo privilegiado, desde Kant, do ponto de vista de

uma filosofia do Belo, servindo como preparação para a crítica da compreensão usual de

liberdade, mais que enraizada na filosofia ocidental desde seus primórdios. No entanto,

permanece o obstáculo da perspectiva representacional, mesmo em Schopenhauer, na medida em

que o conhecimento da Vontade por ela mesma na contemplação estética se pauta na intuição da

Ideia no tempo pelo sujeito puro. Se esse sujeito não é mais um “eu quero”, por sua vez, é ainda

Page 18: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

18

uma subjetividade (pura) adequada a um objeto (o ideal). Em torno desta problemática se

constitui a preparação para a tematização das representações da liberdade, estabelecendo um

estreito vínculo entre o terceiro capítulo, “Heidegger contra Schopenhauer: digressão sobre o

‘(des-)interesse’”, e o que se segue, “O homo amphibios”, dividido em duas partes. Desse modo,

após uma análise comparada da história do conceito filosófico de “liberdade” – primeira parte,

“Das origens ao Iluminismo” –, quase sempre entendido, ao menos até Kant, como contrapartida

do conceito de “necessidade” e por este determinado em seu conteúdo como espécie de

causalidade, que é um princípio de toda representação, deve ter lugar a definitiva superação do

racionalismo que caracteriza e assim obstaculiza toda compreensão da essência da liberdade que

se pretende traduzir na possibilidade de negação da vontade – segunda parte, “O dualismo

kantiano e a crítica schopenhaueriana”. Tanto no capítulo terceiro quanto no quarto, destaca-se a

originalidade de Schopenhauer que deverá reforçar a atenção sobre o sentido da negação da

vontade em seu caráter existencial.

Nesse processo histórico-analítico ganha relevo a perspectiva existencial em sua

tematização de um ser-livre originário, momento em que o tema da angústia emerge e, fazendo

retornar a questão sobre o nada, favorece a compreensão do ser-livre como querer-ser si-mesmo

e suas implicações (trata-se do “ser-livre na angústia”). Assim, o quinto capítulo, “A angústia do

ser-livre”, concentra-se nas contribuições de Kierkegaard e Heidegger, onde também se conquista

a caracterização dos limites da Ética em face da Ontologia, tornando duvidosa a apropriação do

problema da liberdade, do querer e mesmo do poder pela Ética, pela Política e pelo Direito.

Adicionalmente, e finalizando a presente etapa deste estudo, preparatória em seu todo, a

perspectiva existencial deve conduzir à superação do conceito de vontade como representação da

possibilidade de agir, bem como à elucidação do sentido geral da decadência como fuga da

angústia, ou seja, o sentido originário da adesão a interpretações de mundo amparadas em

representações que, sustentando referencialidades, alheiam o ser-no-mundo de si mesmo segundo

seu interesse íntimo nas mais diversas formas de asseguramento. Retomando-se nesse contexto a

filosofia de Schopenhauer, a essência da vontade como querer-ser singularizante mostra-se

originariamente ligada a uma outra possibilidade já sempre decidida, um saber próprio ao homem

sobre si mesmo que, angustioso, já sempre o põe em fuga da liberdade: a morte. Neste percurso

se deverá esclarecer, por fim, o sentido de já sempre sermos os únicos responsáveis por nossa

própria existência e por que, pela negação, a liberdade autêntica se reconquista a si própria na

mesma medida em que se suspende o véu através do qual o mundo não passava de uma

justaposição de fenômenos. Esta é a problemática a ser tratada no sexto e último capítulo: “A

fuga para o ente e para as representações do ente: queda do ser-no-mundo e vontade de existir”.

Page 19: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

1. A negação da vontade: uma possibilidade obscura

Certamente, uma falta na relativamente extensa obra de Schopenhauer consiste no fato de

não se encontrar ali uma efetiva explicação da doutrina negação da Vontade por ela mesma. É

sabido, e ele mesmo o reconhece, que muitos de seus escritos, tais como os Parerga e paralipomena

– como indica o próprio título grego da compilação: acréscimos e descartes –, não tratam de nada

(ou muito pouco) novo com relação ao dito anteriormente, ao menos no que concerne a seus

temas centrais. Mesmo obras relativamente complementares tais como a mal sucedida e propalada

Sobre o fundamento da moral têm seus princípios fundamentalmente já contemplados em O mundo

como vontade e representação, sobretudo nas edições posteriores, acrescidas de cinquenta capítulos de

Suplementos e um Apêndice3 contendo sua “Crítica da filosofia kantiana”, que pode ser encarada,

em vários pontos essenciais, como um recalcado parricídio4. Talvez por um certo senso

autocrítico, se não por preguiça, Schopenhauer faz sempre remissão à sua “obra capital”, quando

não à sua tese de doutoramento Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, bastante

originais, à parte a inegável e profunda dívida a Kant, sendo justamente pela crítica e apenas por

ela que a genialidade de Schopenhauer pode ser vislumbrada como a do valoroso discípulo que

supera o mestre.

Enfim, talvez seja lícito concordar com o fato, evidente nos escritos de Schopenhauer, de

que seu anseio por reconhecimento público e também acadêmico o tenha levado a multiplicar sua

obra em vista de despertar a atenção para si e suprindo a ausência de comentários que a falta de

notoriedade acarreta. Isto não é de modo algum um caso único na produção de grandes filósofos.

Nesse caso, as autorremissões adquirem um papel estrategicamente autopromocional, pondo em

evidência os livros já publicados quando não há muito de novo ou revisto a dizer, embora isso

não devesse ser bastante para justificar a indiferença ou mesmo despertar a repulsa de tantos

pensadores. Schopenhauer quis, sem conseguir, esgotar o tema de uma só vez, e qualquer

3 Por esta razão, bem como por economia, as referências e citações serão feitas preferencialmente a partir da terceira edição de O mundo..., exceto quando esta não parecer suficiente no tocante a alguma abordagem ou formulação particular. Schopenhauer justifica o caráter esparso de sua exposição dizendo, na última página do “Apêndice” de O mundo...: “meus escritos, tão pouco numerosos, não foram todos compostos de uma vez, mas sucessivamente, no curso de uma longa vida, e com intervalos distanciados; por conseguinte, não se deve esperar encontrar condensado em um só lugar tudo aquilo que pude dizer sobre um mesmo assunto” (Schopenhauer, 2004, p. 668). 4 Por vezes, após a exaltação inicial, as críticas chegam a ser bastante sarcásticas ou mesmo ofensivas, tais como aquelas dirigidas a seus “inimigos” do idealismo alemão. Isto é anunciado no “Apêndice” de O mundo... nos seguintes termos: “É preciso que os erros sejam isolados, neutralizados, e depois esquecidos. Também, na polêmica que vou inaugurar contra Kant, tenho apenas em vista os seus erros e suas fraquezas; ponho-me como inimigo contra ambos e lhes declaro uma guerra sem misericórdia, uma guerra de extermínio; longe de querer arrumá-los ou encobri-los, tenho como fim somente colocá-los sob total claridade a fim de melhor assegurar-lhes a destruição.” (Schopenhauer, 2004, p. 522; grifos nossos).

Page 20: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

20

acréscimo substancial posterior seria prontamente incluído na obra fundamental, tornando-a, de

certo modo, suficiente dentro de suas pretensões até o limiar do enfadonho, o que não deixa de

ser admirável. Afinal, parece que seu pensamento chegou à maturidade entre sua tese de

doutoramento e a elaboração da “obra capital”, de maneira que um plano completo de

pensamento já foi sistematizado e nela realizado, muito embora seu autor continuasse, ao longo

da vida, encontrando mais o que dizer.

Contudo, com estas palavras não se pretende nenhuma leviandade em julgar Arthur

Schopenhauer, nem mesmo sob o aspecto “moral” – tal busca por notoriedade, embora

contradiga sua própria ética destruidora do egoísmo e, por extensão, da vaidade, ao lado de

outros muitos fatos quase anedóticos de sua vida privada, talvez testemunhe uma das “verdades”

contidas em seu pensamento, qual seja, a impossibilidade de uma conversão do caráter pela

simples “vontade” individual ou pelo conhecimento racional.5 As observações feitas aqui são

relevantes enquanto permitem ressaltar o curioso fato de que um dos pontos altos (se não

culminante) de seu pensamento, segundo ele mesmo estima (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 489;

[cap. XLVIII] p. 1380), recebeu exaustivas descrições por meio de também não menos exaustivos

exemplos e referências biobibliográficas das mais diferentes espécies e qualidades. Ora, sabe-se que

exemplos, bem como definições, não explicam, ainda que sejam úteis ao esclarecimento, isto quando

não o dificultam. Dito de modo técnico, por mais que Schopenhauer se empenhe em suplementar

sua doutrina da negação da vontade com análises, procedendo à aplicação da doutrina a casos

particulares6, jamais chega a uma explícita síntese que explique o porquê da negação e não apenas

exponha seu como. Seus exemplos parecem sustentar uma indução, uma vez que Schopenhauer

não formula uma doutrina da negação da vontade em sentido estrito que permita deduzir

5 Não é à toa que Russell (1967, p. 305-306) diz que seu “evangelho da resignação [...] não é muito coerente nem muito sincero”, fornecendo exemplos desta “insinceridade”. Acusação desse tipo também é feita por Guéroult (cf. Lancelin; Lemonnier, 2009, p. 105). A isto Schopenhauer (2004, p. 482 [§68]) já antecipara uma resposta, dizendo, por exemplo: “não se é necessariamente bom escultor porque se é um belo homem, nem se é um belo homem porque se é um bom escultor”, sendo “uma pretensão muito estranha querer que, antes de recomendar uma virtude”, um moralista “a possua ele mesmo”, assim como não é necessário “que o santo seja filósofo” ou “que o filósofo seja santo” (v. tb. p. 76 [§9]). Comparar com o que diz Kant (2007, p. 16 [BA IX]), em tom bem mais ameno: “O homem, com efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da força necessária para a tornar eficaz in concreto no seu comportamento”. 6 Talvez se possa tomar como justificativa para esse método expositivo de Schopenhauer – em verdade, “pouco filosófico” – a necessidade de que não se trate apenas de uma exposição abstrata, conceitual, filosófica, segundo ele mesmo diz, mas que faça com que o olhar do leitor se volte para a vida concreta, vivida por alguém, pois só o testemunho, só a vivência pode preparar a espécie de conhecimento necessário à negação da vontade, pois é um conhecimento intuitivo que se encontra “somente na ação, em nossa conduta” (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 482-483; [2003b], [cap. XIV, §172] p. 420). Por isso, trata-se de esclarecer a afirmação e a negação da vontade expondo “os modos de vida pelos quais uma e outra se exprimem, e de ver seu significado” (id., 2004, [§60] p. 412; grifo nosso). Em uma palavra, trata-se da exposição de seus fenômenos. Sobre isto, veja-se também o início do último capítulo suplementar a O mundo..., intitulado “Epifilosofia” (id., ibid., p. 1414-1415), em que a ausência de porquês é justificada pela necessidade de se desvencilhar do princípio de razão suficiente, ou seja, de não discorrer sobre o mundo como vontade como se se tratasse de fenômeno regido pela lei da causalidade, o que é cabível e até necessário apenas quando se trata do mundo como representação.

Page 21: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

21

logicamente algo além de seus exemplos. Somos, portanto, obrigados a apreender a doutrina a

partir de casos particulares.

Com efeito, se este modo de exposição deixa a doutrina na obscuridade, a profusão de

exemplos mais atrapalha do que auxilia o leitor crítico, mais interessado na “consistência” e na

própria essência da negação da vontade do que no em que ou como reconhecê-la na vida concreta

de algum indivíduo anônimo. Um bom exemplo disto se exprime na incontornável questão:

Como a Vontade tão voraz se acalma em sua própria imobilidade, no fim de si mesma e sua

voracidade, quando sua natureza é aniquilar e inquietar, e pode ser ela mesma a voluntariamente, em

um derradeiro movimento de retorno sobre si mesma, não mais querer, e, por fim, uma vez querendo

isto, nunca deixa de se manifestar como corpo que, a qualquer momento, torna a querer para além

de si?7 Esta tese parece insustentável e inadmissível em uma reflexão que não se deixe convencer

pela mera narração de casos exóticos, fora o evidente paradoxo aí expresso. Em suma, é o

próprio Schopenhauer a tornar pretensamente fácil a compreensão pelo leitor na medida em que

o conduz a reduzir algo tão complexo a fatos de que se pode ter notícia em obras de cunho

antropológico ou folhetins, geralmente à luz de curiosidades religiosas, como as práticas de

mártires ou faquires, como se as práticas ascéticas servissem à apropriada elucidação da negação

da vontade como possibilidade última do querer... Do mesmo modo, é o próprio Schopenhauer a

comprometer a consistência e a relevância filosófica do que afirma tão repetidas vezes como

sendo a mais importante aquisição de sua doutrina. Para Russell (1967, p. 307), à parte a

“considerável importância como uma fase do desenvolvimento histórico”, a filosofia de

Schopenhauer termina sendo incoerente e um tanto superficial... Por sua vez, nesta “dialética

trágica da vontade” percebe-se a convergência de salvação e aniquilamento que caracteriza,

segundo Szondi (2004), a “tragicidade” em geral; o trágico, em Schopenhauer, como em outros,

teria no princípio de individuação seu “autêntico fundamento”8 (ver Szondi, 2004, p. 64).

Feita esta apreciação geral e bastante inconclusiva sobre o perfil do pensamento

schopenhaueriano, devemos passar à tematização preliminar de alguns dilemas e dificuldades

confrontadas em sua leitura que, a nosso ver, não costumam receber resposta satisfatória. Por

exemplo, as questões do pessimismo, do solipsismo, da ambiguidade da vontade, do ascetismo e

do misticismo, sempre no interesse de considerar mais de perto o que usualmente se qualifica

como inconsistências doutrinárias.

7 Evidentemente esta é uma formulação bastante grosseira e preliminar, cujo intuito é não apenas indicar a própria superficialidade da compreensão usual quanto explicitar a complexidade da tese, de modo que a imprecisão desta síntese um tanto apressada reside, antes de tudo, na impossibilidade de se reduzir a tese a uma tal linearidade própria a uma sequência de eventos contraditórios entre si. 8 Afinal, se, por um lado, é na aniquilação da individualidade que se encontra a salvação, por outro lado, a salvação só é possível ao fenômeno máximo da individuação, a saber, o indivíduo humano. Neste sentido é que a eterna luta da vontade pode ser compreendida como dialeticamente trágica.

Page 22: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

22

1.1. Insuficiências interpretativas

O importante livro de Pernin sobre Schopenhauer – “importante” no sentido de fornecer

uma ampla exposição introdutória a seu pensamento –, dedica pouco mais de três páginas ao

tema da negação da vontade, o que muito surpreende por se tratar do próprio ápice dessa

filosofia. Restrita ao como da negação, Pernin (1995, p. 171) mostra com relativa correção que a

mesma começa (?) pela “renúncia aos frutos da ação”, passando-se então ao ascetismo na medida

em que “o corpo é a manifestação direta da vontade em um indivíduo dado” – ou seja, não basta

deixar de desejar coisas exteriores (motivos para agir, os “frutos da ação”) quando já se é uma

vontade –, tratando-se “de esgotá-lo e reduzi-lo, enquanto a morte não faz o resto”. De todo

modo, isto faz parecer que a negação pertence ao mundo da vida. Algo mais, porém, é aí

apontado: “Aqui, encontramos uma dificuldade. A renúncia ao querer não pode ser voluntária, deliberada

sem contradição. Não podemos esforçar-nos voluntariamente para a nossa salvação. Grande

mistério da aventura mística que se deve considerar!”. Isto significa: embora seja a Vontade a

negar a si própria, e tal negação seja neste sentido voluntária, não se trata da vontade deliberativa

(racional) de um sujeito – característica do “voluntário” ao menos desde Aristóteles (ver abaixo,

capítulo 4.1) –, estando a referida recusa fora da esfera individual. Isto parece o mais estranho à

primeira vista, mas é por isso que não cabe ao sujeito – que é mero fenômeno da Vontade – a

decisão de negar a Vontade, mas somente a ela mesma. Afinal, toda deliberação parte de motivos,

sendo por eles determinada, enquanto que a negação da vontade consiste em ato livre, impossível ao

sujeito, desde sempre já determinado segundo a vontade de que ele mesmo é fenômeno.

Portanto, não é cabível interpretar que a Vontade desaparece realmente em sua totalidade

fazendo com que o mundo desapareça como em um passe de mágica mediante sua negação in

abstracto pela vontade individual, mesmo porque o corpo persiste in concreto como vontade afirmada.

Negar não pode significar o mesmo que fazer desaparecer, como veremos mais adiante. Do

mesmo modo, a supressão do fenômeno é inútil, mesmo nos casos do aborto, do infanticídio

(Schopenhauer, 2004, [§69] p. 501-502) ou do suicídio (p. 499-501), que só afetam fenômenos

individuais.9

9 Ver von Hartmann apud Nietzsche, 2005b, (§9) p. 155-156: “proclamar-se-á provisoriamente que a afirmação do querer-viver é a única legítima; pois é unicamente pela total aceitação da vida e dos seus sofrimentos, não por uma covarde renúncia ou um abandono egoísta, que se pode servir ao processo universal. / A busca de uma negação individual da vontade é também absurda e inútil, ou seja, mais absurda ainda do que o suicídio. / O leitor avisado compreenderá, sem precisar de outras explicações, como se configuraria uma filosofia prática edificada sobre estes princípios, compreenderia que esta filosofia tinha o significado não de um divórcio, mas de uma reconciliação com a vida” (grifo nosso). Nietzsche trocará de posição, desprezando, em Crepúsculo dos ídolos (2000b, [“Incursões de um extemporâneo”, §16] p. 76) a já corrente associação entre von Hartmann e Schopenhauer. Identificamos em von Hartmann refutações a duas das três interpretações errôneas para a negação: ambas têm em comum serem iniciativas individuais (a aniquilação do desejo pela prática ascética e a aniquilação da pessoa, esta última desqualificada pelo

Page 23: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

23

Se de fato diz Schopenhauer (2004, [§25] p. 174) que “se, per impossibile [em latim no

original alemão], um só ente, o mais modesto que fosse, viesse a se aniquilar completamente, o

mundo inteiro deveria desaparecer”, não é cabível que se trate de uma efetiva possibilidade a não

ser que recusássemos à coisa-em-si a indestrutibilidade que lhe é própria – afinal, “se aniquilar

completamente” deve incluir a Vontade ela mesma como aquilo que fundamentalmente somos. A

propósito, vale observar que a expressão “per impossibile” indica antes tratar-se de um recurso

retórico pelo qual se destaca a unidade da Vontade em vez de se propor uma tese contrária à da sua

indestrutibilidade. Deve-se, então, antes de concluir apressadamente que se trata de uma nova

contradição de Schopenhauer, atentar para o contexto da “suposição” (hypothesis) aqui transcrita

[§25], que consiste no discurso sobre a unidade da Vontade malgrado seus múltiplos graus de

objetivação manifestos pelos indivíduos. Do ponto de vista formal, trata-se da condição da

contemplação estética, em que o sujeito se vê alheio às formas do conhecimento na medida em

que supera o princípio de razão, de maneira que toda matéria torna-se aí amorfa e destituída de

qualidades, assim como o próprio sujeito deve com isso desaparecer enquanto fenômeno (ver

Schopenhauer, 2004, [cap. I] p. 684-685). Não se diz, contudo, que não subsista como coisa-em-si,

como Vontade. A propósito, o fato de o mundo não mais aparecer como uma justaposição de

entidades individuais não significa que um fenômeno possa por sua própria força interior dar fim

àquilo de que é fenômeno. Por sua vez, persistindo o fenômeno, da negação do desejo individual por

coisas particulares não decorre mais do que a castidade e o ascetismo, transformações estas que,

embora sendo as mais exploradas por comentadores e pelo próprio Schopenhauer, nada

esclarecem filosoficamente, mas apenas antropologicamente. Há de se observar também, com relação a

este último caso, que o ascetismo, como se verá a seguir, é uma expressão, uma decorrência e não o

princípio da negação da vontade. Fica claro na leitura de Pernin, porém não mais do que na própria

obra de Schopenhauer, que se trata de uma negação que provém do universal e se dirige ao universal,

mas não no sentido de que a Vontade ou o mundo ou qualquer de seus fenômenos simplesmente deixem de ser em

absoluto!

Por meio de uma leitura mais atenta, Pernin (1995, p. 171-172) parece chegar a uma

compreensão clara do como da negação, mas, sem uma análise das essências da liberdade e da

vontade, bem como da própria negação, suas palavras mais conclusivas são ainda, para nós,

inconclusivas:

próprio Schopenhauer). A terceira seria a de que a coisa-em-si é aniquilada como tal por ela mesma, o que é absurdo não apenas por ser a Vontade indestrutível, mas também porque o fenômeno não é mais do que sua expressão, como que agindo em seu nome, jamais podendo subsistir nesse caso. O problema levantado neste capítulo, considerando estas três interpretações insustentáveis, foi pela primeira vez discutido no trabalho “Angústia, representação e negação da vontade em Arthur Schopenhauer”, apresentado no VIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), ocorrido em 2003 na cidade paranaense de Toledo, constituindo o mais antigo registro da pesquisa aqui desenvolvida.

Page 24: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

24

As manifestações da vontade são sempre ligadas ao conhecimento pelo jogo das motivações que as ocasionam. Mesmo no caso excepcional da renúncia, o conhecimento deve exercer suas funções de solicitação. A renúncia será a resposta da vontade a um conhecimento de conjunto, que intervém sempre a título de solicitação. A inteligência se faz puro espelho da vontade, abandonando sua parcialidade servil de uma maneira decisiva. [...] O mundo da representação se desvanece como as máscaras do Carnaval e a paz desce sobre um ser que abandonou a sua individualidade. O caráter empírico é então dissolvido, negado. Como no teatro de marionetes, pode-se romper os fios que os ligam às mãos que os manobram; do mesmo modo, o caráter é suprimido porque as representações não desempenham mais o seu papel de motivos. E (carta a Jean Auguste Becker, de 23 de agosto de 1844) isso é compatível com a tese do determinismo indestrutível das nossas ações. O caráter pode ser negado, embora não possa ser mudado. A liberdade se manifesta diretamente na ordem fenomenal para destruí-la. Em lugar de representações mobilizantes, obtemos um espetáculo de conjunto tranquilizante.

Em momento próprio, dever-se-á discutir o papel do conhecimento na negação da

vontade, sendo entretanto necessário não apenas aprofundar a noção de motivo como motivo

representado, mas também, e principalmente, garantir que essa “intuição”, esse “conhecimento

de conjunto” não é ele mesmo uma representação, uma mera fantasia do espírito como tantas

outras, uma simples “mistificação” de uma experiência subjetiva e ilusória que, como tal, é ainda

um motivo da vontade ansiosa por felicidade.10 Na ausência de “rigor” com relação ao

pensamento sobre a essência da vontade, toda “mística” schopenhaueriana recai em esotérico e

arbitrário dogmatismo: “O mundo em si é assim, e não se o vê como tal enquanto já não se pode

vê-lo como é em si”. Nenhum exemplo particular é capaz de justificar filosoficamente essa tese, não

passando de testemunho que, para ser aceito como tal, já deve supor a prévia inclinação para

aceitar aquilo que é testemunhado, pois, caso contrário, é mero exotismo ou esoterismo... Mais

que isso: Russell mostra o quão há de escandaloso nessa “mitologia” em torno de uma Vontade a

um tempo metafisicamente fundamental e moralmente má e perversa, prova de que

Schopenhauer é, segundo ele, um pessimista (1967, p. 300).

É um insulto aos místicos dizer que acreditam nesta mitologia. E a insinuação de que, sem conseguir a completa não-existência, o sábio pode, não obstante, viver uma vida de algum valor, não é possível de conciliar-se com o pessimismo de Schopenhauer. Enquanto o sábio existe, existe porque conserva a vontade, que é o mal. Pode diminuir a quantidade do mal debilitando sua vontade, mas não pode jamais adquirir um bem positivo. (Russell, 1967, p. 305)

10 De todo modo, segundo as pretensões e limitações do presente estudo, tal discussão não poderá ser exaustiva nem exceder o necessário para caracterizar o sentido da liberdade da vontade que se nega e, é claro, o que é aí livremente negado.

Page 25: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

25

Ora, retornemos ao questionamento acerca de Schopenhauer ser de fato um pessimista.

Não será esta “incoerência” um indício do contrário, do mesmo modo que se evadem aí aqueles

que enxergam alguma ponta de otimismo no saldo final da doutrina schopenhaueriana da

salvação? Afinal, Russell, ao inferir o pessimismo com que rotula Schopenhauer, também

apresenta uma interpretação demasiado maniqueísta da “Vontade como mal”, o que não faz

sentido se o “pessimismo” schopenhaueriano consiste em justamente não reconhecer nenhum

bem real positivo, sendo negativo e ilusório todo bem representado. Categorias morais não

podem passar de abstrações regidas pelo princípio de razão suficiente. De que então este “mal”

seria a contrapartida? A que se oporia este satan (inimigo, adversário, opositor) na ausência do

bom Deus? Se, por sua vez, se concebe esse “mal” como categoria ontológica – no sentido de

carência de ser, tornado célebre por Santo Agostinho em remissão aos “padres” capadócios –,

que faltaria a um querer cego e indeterminado? O saber sobre o Bem? Com efeito, atribuir uma

essência determinada à Vontade ou ao mundo, qual seja, como bons ou maus em si, suporia um

sentido previamente dado, um fundamento, o que não se acomoda no pensamento de

Schopenhauer que, antinaturalista, concebe o mundo como absurdo, a Vontade como sem

princípio e sem finalidade, um mundo sem causalidade em si mesmo. A este problema responde

muito bem Piclin, citado em nota por Roger – que, aliás, recusa a tese de Rosset (1967; segunda

edição em 1994) segundo a qual Schopenhauer é um “filósofo do absurdo”11 – ao final de seu

prefácio a Sobre a essência do fundamento: “Pode ser que o vocabulário de Schopenhauer e a

mordacidade de sua frase por vezes tenham enganado o intérprete, mas não achamos que a

doutrina de Schopenhauer seja ambivalente, como se existissem para ele uma ‘boa’ Vontade e um

‘mau’ Querer-viver” (Schopenhauer, 2001, p. LXXXI, n. 106; ver p. XII, n. 11). Veremos mais

adiante que “bom” e “mau” são categorias atribuíveis ao caráter, que, embora seja chamado de

coisa-em-si (Vontade) no sentido de constituir a essência particular a cada indivíduo, só se aplicam à

Vontade enquanto, respectivamente, se nega e se afirma, designando, respectivamente, a propriedade ou

a impropriedade de sua autoconsciência, como bem se lê no §22 da monografia Sobre o fundamento da

moral. Em que consiste sua propriedade? No mesmo lugar responde Schopenhauer (2001, [p. 271]

p. 218-219):

11 Roger se justifica citando a qualificação do mundo por Schopenhauer como “demoníaco”, o que significaria “regido pelo Mal”. Conforme tentamos mostrar aqui, a oposição ao otimismo explica esta retórica, mas não pode ser compreendida em desconsiderando a crítica ao racionalismo que supõe um mundo ordenado. Se, de fato, Schopenhauer se mostraria como um profundo pessimista afirmando que há uma ordenação perversa da natureza, não parece ser este o caso, como teremos a oportunidade de constatar ao longo deste estudo. Em momento próprio, ademais, veremos em que sentido, sim, Schopenhauer pode ser melhor compreendido como “filósofo do absurdo”. Brum (1998, p. 32), por sua vez, recorrendo a Julian Young e Clément Rosset, considera Schopenhauer, ao mesmo tempo, filósofo do absurdo e pessimista. O que a posição de Roger indica, nesse ínterim, é que, apesar de citar Piclin, em nota final, e um tanto fora de contexto, compartilha de uma interpretação típica.

Page 26: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

26

“A individuação é o mero fenômeno que nasce mediante o espaço e o tempo, que não são nada além de formas de todos os objetos condicionadas por meio de minha faculdade cerebral de conhecimento. Por isso, também a multiplicidade e a diferenciação dos indivíduos é um mero fenômeno, quer dizer, só está presente na minha representação. Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência.”

A rigor, portanto, o que se nega – em mim, no outro, no mundo – não é nada de

“positivo”, mas, pelo contrário, de ilusório... Nega-se o objeto da subjetividade em nome do

essencial, recusa-se a multiplicidade pelo reconhecimento da unidade da Vontade. Vontade “má”

é vontade afirmada como indivíduo dotado de uma falsa autoconsciência. Brum (1998, p. 48), que

parece assumir a interpretação de que a vontade “é o mal e a maldade”, por outro lado,

demonstra compreender claramente que se trata aí da vontade afirmada no mundo: “Percebe-se

que, à medida que o homem se afasta da afirmação da vontade, se torna melhor, menos perverso,

segundo Schopenhauer. A vontade (que é o mal e a maldade para Schopenhauer) deve ser

domada para que a ilusão do princípio de individuação se dissipe”. “Afirmar o seu apego ao

corpo, ou afirmar sua vontade, já é isolar-se dos outros, participar da ilusão da individuação”

(Brum, 1998, p. 43). Enfim, parece que algo de positivo é negado não como em si, mas como objeto

real de nossas representações que consiste precisamente naquilo que a consciência egoísta e

sobretudo a má tomam para si como verdadeiro: a separação dos entes entre “eu” e “não-eu”,

entre “si mesmo” e “o outro”. Em que lugar se poderia encontrar, pois, um “solipsismo

schopenhaueriano”? Em lugar algum senão no mundo como representação!

1.2. A ambiguidade da Vontade

De volta então às lacunas deixadas por Pernin, perguntamos: e se o princípio de

individuação, condição de toda entidade dada, só é superado in abstracto, e não por um claro e

verdadeiro conhecimento do em-si? Segundo que mistério a negação do caráter empírico coincide

com a negação da vontade se o caráter empírico é particular? Negação do que antes se afirma

como caráter já não é uma mudança de caráter e não somente no caráter? Ou será que a negação

do caráter, em suprimindo-o, suprime o que, por natureza e segundo a mesma é imutável? Em

que sentido isso se concilia com a indestrutibilidade das ações e com a imutabilidade do caráter?

Ou será, finalmente, que a negação do caráter consiste tão-somente na superação daquilo que faz

com que nos creiamos ao mesmo tempo substanciais e distintos de todo o resto, particularizados, a

saber, o representar-se como indivíduo? Eis aí um grande dilema para as “filosofias da diferença”

Page 27: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

27

que, se opondo às “filosofias da identidade”, desconsideram a face extralógica da questão – posta

por Schopenhauer e, antes dele, por Mestre Eckhart – à luz da qual, superada a identidade-

pessoal, precipitam-se no nada todas as diferenças.

A sequência da pretensa explicação de Pernin, que aí se encerra dando lugar a

considerações sobre as circunstâncias favoráveis à negação da vontade (!), gera mais perguntas do

que fornece explicações. Seu principal valor para o iniciante reside tão-somente no seguinte: “o

caráter é suprimido porque as representações não desempenham mais o seu papel de motivos”. A

compreensão desta fugidia e breve afirmação é o passo inicial e decisivo para a compreensão da

relação entre angústia e representação, mas apenas um passo, contudo fundamental, como se verá,

para a compreensão do sentido da própria negação da vontade.12 O caminho para tanto é mais

longo, e há bastante a percorrer até que se chegue lá... Afinal, defende-se aqui que, na verdade,

são as representações que desaparecem ou, melhor dito, a vontade individual se torna indiferente

a elas a ponto de não mais reconhecer-se como tal. Não seria um superação subjetiva e abstrata,

pois o próprio locus da faculdade abstrativa, o sujeito, em sendo suprimido na negação desde sua

subjetividade imediata, mesmo que não em seu ser, é instantaneamente posto à parte e perde seu

poder de efetivação (ver abaixo, capítulo 3). Não suprimida a essência, essa vontade persiste

enquanto há vida, de modo que nenhum dos fenômenos desaparece “realmente”, mas deixam de

atrair minha adesão, deixam de me comprometer – i.e., é suspenso o caráter de já sempre estar

previamente (pro) posto (metido) junto a (com) fenômenos enquanto motivos representados no

interesse de minha vontade.

Em que, portanto, reside a “tranquilidade”? Em um mundo que sofre como não mais eu

mesmo sofro? Eu mesmo ainda sou, e o que eu sou é também fenômeno, representação de um

eu compassivo que não mais se diferencia de qualquer não-eu, mas que sofre como e com todo não-eu

– nisto consistiria Mitleid, dito em breves palavras. Trata-se, pois, de uma certa espécie de

representação que deixa de me afetar uma vez que a vontade se nega em mim... Mas como

entender a persistência de alguma representação se na compaixão está suspensa a diferenciação,

dando lugar à identificação? Com-padecer supõe uma unidade de indivíduos distintos, não uma

efetiva dissolução das individualidades. Não é esta dissolução que Schopenhauer pretende indicar,

mas a imediaticidade do modo como o não-eu é representado, ou seja, sem a interferência da

egoidade interessada para a qual o outro é um objeto – suprime-se o espaço que me distancia do

outro. Na pura intuição em que se funda a compaixão não há uma destruição da individualidade,

mas a superação do egoísmo pelo qual ordinária e originariamente o eu se afirma contra o não-eu,

12 Este passo, fundamental para considerações ulteriores, será dado em nosso sexto capítulo à luz da discussão sobre os pensamentos de Kierkegaard e Heidegger no capítulo quinto.

Page 28: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

28

objetando-o – etimologicamente, “objeto” consiste naquilo que “jaz diante de”, como algo de

oposto, contrário, donde o termo “objeção”; a relação é muito clara no alemão “Gegenstand”,

“objeto”. “A compaixão é um acontecimento no âmbito da vontade. Uma vontade que sofre por

sua própria essência e, mediante a contemplação da dor alheia, deixa, por instantes, de querer-se

exclusivamente a si mesma em sua limitação individual.” (Safranski, 1991, p. 439) Que ambos os

polos da relação sujeito-objeto persistem como tais de algum modo, mesmo no compadecer, fica

claro na seguinte passagem da monografia Sobre o fundamento da moral, sinalizando que a diferença

constitutiva subsiste nesse fenômeno muito embora não aja como motivação. “Já que não posso

entrar na pele do outro, então só através do conhecimento que tenho dele, isto é, da representação

dele na minha cabeça, é que posso me identificar com ele, na medida em que minha ação anuncie

aquela diferença como suprimida.” (Schopenhauer, 2001, [§16, p. 208] p. 136) A negação da

egoidade na compaixão não elimina sujeito ou objeto; o que deixa de haver é a relação cognitiva

fundamental de ser-para. Segundo Schopenhauer (2001, [§16, p. 211-212] p. 140), deve ficar claro

que ele é o sofredor e não nós e justo na sua pessoa e não na nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele, portanto nele, e sentimos sua dor como sua e não temos a imaginação de que ela seja nossa. E, mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a nossa consciência com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão.

Isto jamais se confunde com o prazer na própria felicidade frente à dor alheia. Conforme

citação do próprio Schopenhauer ([§19, p. 247-248] p. 187-188), esta concepção de compaixão

fora antes formulada por Rousseau no quarto livro do Emílio. “Como foi dito, só através do fato

de que eu sinta esse sofrimento, embora me seja dado como algo externo, meramente por meio

da intuição ou por notícia, que eu o sinta por simpatia [mitempfinde], o sinta como meu e, no entanto,

não em mim, mas num outro”, eliminando toda distância entre o padecer e o ver padecer, indicando

“que a barreira entre eu e o não-eu tenha sido, por um momento, suprimida”. A partícula “com”

(“mit”) de “compaixão” (“Mitleid”) indica o compartilhamento de um mesmo sentimento por mais

de um. Trata-se de um processo “misterioso, pois é algo de que a razão não pode dar conta

diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo caminho da experiência” por

real e cotidiano que seja seu fenômeno, justamente porque não é razoável sentir em outro assim

como está descartado o sentir em mim pela imaginação. ([§18, p. 229] p. 162-163). Certo é que a

negação da vontade enquanto suspensão de meus interesses, embora promova em mim uma

desconsideração de minha individualidade, não suprime a fatalidade de ser o “quem” que sou.

A negação como tal da vontade como tal, portanto, permanece na obscuridade e

inexplicada, e mesmo seus fenômenos são “misteriosos”. O que temos de indício até o momento

Page 29: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

29

é a substituição do interesse pela compaixão como aquilo que passa a “ligar” eu e não-eu, agora

imediatamente, e não mais por intermédio das representações egoístas – naturalmente isto só se

aplica a uma compaixão em sentido estrito, não à mera prática da benevolência caridosa para com

os outros que ordinariamente envolve autoelevação. Todavia, sem a devida justificativa filosófica,

Schopenhauer não passa de um pregador, e de um pregador pessimista. Mas não o reduzamos a

tão pouco tão cedo... A princípio é certo que, mediante a negação da vontade, promovendo na

vontade que sou – ou melhor, na vontade que meu corpo e minha egoidade manifestam – uma

não-motivação por objetos por já não ser eu mesmo um sujeito volitivo dirigido a/por

representações segundo algum interesse, a indiferenciação mostra-se como um nada, como uma não-

existência, posto que não mais me tomo em consideração. Conclui Russell (1967, p. 305):

Não podemos interpretar isto de outro modo senão significando que o fim dos santos é chegar o mais aproximadamente possível da não-existência, que, por alguma razão jamais explicada claramente, não podem conseguir por meio do suicídio. Por que razão se deve preferir o santo a um homem que esteja sempre bêbedo, não é fácil de se verificar [...].

O teor deste questionamento de Russell é fácil de identificar. Se o fim é a libertação pela

não-existência, pelo nada, por que não se a conquista pela reiterada neutralização da

“consciência”? Por que, afinal, é ao invés requerido um conhecimento de certa espécie?

Conhecimento de que? De nada? O como e o que são sempre expostos, mas não claramente em

seu sentido – para não falarmos em “porquês” –, como diz Russell (se é que o sentido se descobre

apropriadamente por meio de explicações). Isto indica, todavia, que a vontade deve, de algum modo,

estar aí. A natureza da autonegação do fenômeno corporal pelo suicídio ou da consciência pelo

entorpecimento das faculdades é evidentemente negativa, reativa – como diria Nietzsche –, e,

como será desenvolvido mais adiante, egoísta, tendo como apoio a adesão à individualidade – eu

me aniquilo; eu me entorpeço. Abre-se mão da responsabilidade pela própria existência na mesma

medida em que, paradoxalmente, se busca assumir o controle sobre ela, mesmo em produzindo o

descontrole da não-consciência, como em um querer-não-mais-responder. A negação da vontade

nada pode ter a ver com controle, seja pela autodestruição de si como algo que não se quer, seja

pelo autocegamento pela via de um torpor autoinfligido artificialmente.

Ainda, contudo, que se dê este passo além do que Russell não conseguiu ver, permanece

intacta a essência de sua dúvida, proveniente de uma certa perplexidade diante do fato de que a

possibilidade da negação da vontade só pode ser adequadamente compreendida em sua

positividade, como ato livre, ativo, e não como mera recusa ou renúncia encobridora; enfim, de

Page 30: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

30

outro modo que não aquele consolidado na tradição.13 Embora também expressa de modo ainda

inconclusivo, merece menção a hipótese de Roger no já referido prefácio, tratando da inversão da

Vontade que, essencialmente afirmadora, se nega a si própria: “Ela se inscreve no plano de uma

metafísica em que a vontade pode, sem dúvida, tanto se afirmar quanto se negar, mas em que a

Verneinung [negação], isto é, a resignação, prefigurada pela compaixão, se aproxima ao máximo da

essência. [...] não da ‘minha essência’, pois esse possessivo doravante está ultrapassado, mas da

Vontade” (Schopenhauer, 2001, p. LXXX-LXXXI).

O ascetismo como primeiro modo de expressão da negação da vontade não deve ser

simplesmente reduzido a um “ódio à vida”, traço geral do niilismo segundo Nietzsche, ou mero

sinal de pessimismo segundo os comentadores em geral. Neste sentido, é a princípio muito

estranho que a aguda interpretação inicial de Nietzsche haja degenerado na medida em que parecia

cada vez mais inconciliável com seu próprio projeto filosófico, com o perdão da palavra que

afirma ter ele um “projeto”, coisa sumariamente recusada pela maioria de seus adeptos. De todo

modo, a exaltação do ascetismo por Schopenhauer é adequadamente compreendida à luz das

expressões fundamentais da afirmação da Vontade em geral. A afirmação da Vontade como

querer-viver supõe dois estágios radicais na existência natural de todo indivíduo vivo: 1) conservar

a vida a todo custo apesar de todo sofrimento que isto implique; 2) perpetuar o querer-viver

individual por meio da procriação, pela qual é a própria individualidade como tal (não o indivíduo

dado – isto é muito importante!) que se perpetua na descendência (Schopenhauer, 2004, [§60] p.

414). Na falta deste segundo estágio, o primeiro deixaria de ter lugar, pois a vida extinguir-se-ia

dentro de alguns anos.

Algo aqui é bastante importante: pode-se apontar no ser humano uma inquestionável

superioridade com relação aos demais fenômenos da Vontade, que nada tem a ver, em última

instância, com a racionalidade ou a ordem da criação. Trata-se do fato de ser a única espécie

capaz de levar a liberdade à perfeição, ou seja, negar o que a Biologia (ciência da vida natural,

regida por determinações) designa como instinto de conservação da espécie – a Biologia, enquanto

ciência que é, interpreta a vida como necessidade, sujeita a causas universais e inescapáveis, o que se

traduz na noção de “instinto”, entendido como impulso interno, predeterminação impessoal e

incontrolável. Em outras palavras, embora Schopenhauer explique metafisicamente esse

“instinto”, bem como o da conservação da própria vida, recorrendo à noção de “vontade-de-

viver” – justificando, portanto, a Biologia –, traz duas contribuições originais: 1) não se encontra

na racionalidade a dignidade humana – pelo contrário, na medida em que a razão apenas fornece

representações de motivos estimulantes para o querer-viver como, de modo menos perfeito, o

13 V. acima, nota 9, a originalíssima apreciação de von Hartmann.

Page 31: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

31

fazem os instintos em outros animais –; 2) embora reconhecendo a excelência humana na

possibilidade do ato livre, distingue-se da tradição quanto à compreensão do uso próprio dessa

liberdade, dizendo que ela se mostra perfeitamente apenas na negação de todo querer positivo,

indo mesmo contra toda determinação natural e independentemente de qualquer obrigação

moral, sendo assim rejeitada a deontologia kantiana.14 O mundo inanimado não é capaz da

autoconservação ou da reprodução, o que é, todavia, equilibrado pela sua tendência à permanência,

sem falar no “princípio” de indestrutibilidade da matéria; o mundo vegetal é capaz de ambas, mas

de modo inteiramente passivo; o mundo animal já é capaz de ambas lutando incondicionalmente

por tal e qual; nisto a humanidade se destaca, pois, diferente da simples animalidade, tem como

possibilidade agir de modo antinatural, ou seja, contra toda determinidade natural (Schopenhauer,

2004, [§70] p. 506).

Cabem aqui algumas observações. Ao rejeitar a redução da vontade à razão e, por extensão,

à consciência, Schopenhauer contraria toda uma tradição do pensamento ocidental, opondo-se

especialmente a Kant, e mais: menospreza a razão como faculdade submetida aos impulsos da

primeira. Nesse ínterim, Schopenhauer não apenas absolutiza a incondicionalidade da vontade –

movimento ausente tanto em Kant como em Leibniz, por exemplo – e, com isso, ao menos tenta

superar a mera inversão de valores morais e antropológicos... Do mesmo modo, Schopenhauer

não apenas parece ser o primeiro a excluir a vontade do âmbito do “espírito”. Mais notório deve

ser que Schopenhauer, embora como todos os modernos reconheça na possibilidade da liberdade

a “dignidade” humana, diverge de todos ao afirmar que ser livre consiste em um dirigir-se às

cegas. Como se lê no texto Sobre a vontade na natureza (Schopenhauer, [s.d.], p. 3-4), em que

Schopenhauer se opõe ao dualismo em Fisiologia15, a vontade (Wille) se distingue da

arbitrariedade (Willkür) – distinção já encontrada em Kant (Caygill, 2000, p. 318-319) – por esta,

derivada daquela e iluminada pelo intelecto, consistir em uma eleição segundo motivos, obrando

voluntariamente/involuntariamente segundo determinações causais, enquanto a vontade

independe de motivos, reflexão, consciência ou preferências, sendo justamente por isso que, para

14 O duplo caráter do ser humano – ser-determinado pela natureza; ser-livre pela moralidade – será tema de capítulo posterior (4.2), onde se aprofundará a problemática aí envolvida. 15 Tal dualismo consistiria em atribuir origens diferentes aos movimentos voluntários e involuntários, indicando como voluntários os conscientes e, involuntários, os inconscientes. Nesse sentido, Schopenhauer não substitui esse dualismo – redutível à dicotomia racional/irracional – por algum outro; ao invés disso, submete o voluntário e o involuntário igualmente à ordem das representações, que, como tais, são sempre expressões da Vontade. Não há aí dualismo, mas o fenômeno decorrente da intervenção do fisiológico. Voluntário e involuntário têm em comum o fato de remeterem a uma causalidade. Em outras palavras, a dualidade entre a Vontade e sua expressão fenomenal só faz sentido do ponto de vista da representação, sendo produto do intelecto, e não uma realidade em si. Também tudo o que se considera voluntário e involuntário, como decorrente ou não do exercício de uma faculdade de arbítrio, não passa de representação.

Page 32: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

32

Schopenhauer, nenhum arbítrio pode ser indiferente.16 As próprias noções de “voluntário” ou

“involuntário”, como diz ele no mesmo lugar, não podem dizer respeito à vontade, mas ao

arbítrio segundo motivos ou a excitações (representações), respectivamente. Assim, nossos

olhares devem ser desviados de nossas ações para nossos motivos e destes para sua

insubstancialidade representacional, de modo que a natureza humana, comum à do mundo

fenomenal em sua totalidade, é tornada irredutível a categorias racionais – pois as precede

também ontologicamente – bem como a princípios ou fins. O próprio homem, em sua concretude

fenomenal, é um “meio” pelo qual se expressa na natureza o ser-livre que, como tal, e não na mera

representação conceitual da “humanidade”, é fim em si mesmo.

A possibilidade, exclusiva do homem, de expressar de modo mais perfeito o ser-livre reside

em poder não mais se dirigir a fins. Uma vez que o homem não está, graças a suas representações

abstratas, confinado à experiência imediata, suas ações também sofrem a influência motivante de

conceitos proporcionando-lhe uma liberdade relativa em comparação aos animais desprovidos de

razão (Schopenhauer, 2001, [§6, p. 148] p. 59). Não que o homem deva ou mesmo possa

livremente pautar sua conduta em meras abstrações, mas sim, que tais abstrações lhe permitem

uma deliberação acerca dos meios, possibilidade expressa fenomenalmente através da diversidade

dos caráteres particulares. Além disso, o mundo se lhe apresenta ou se lhe pode apresentar como

fenômeno da vontade livre – o homem sabe, por exemplo, que quer a felicidade e o fim do

sofrimento; suas representações são dotadas de consciência e ele se compreende como um si mesmo.

Somente reconhecendo-se como egoidade – que é uma representação abstrata – é dada ao

homem a possibilidade, ainda que remota, de negá-la ou, pelo contrário, afundar-se nela segundo

a ilusão de que é capaz de controlar suas ações pelo arbítrio, muito embora tal decisão já não se encontre

em seu poder como indivíduo. A liberdade meramente relativa, expressa na diversidade do

fenômeno humano, diz apenas que o indivíduo se coloca acima da espécie apesar de efetivamente

não o ser; seu egoísmo é mais evidente. Se isto se funda na diversidade do caráter próprio a cada um,

tal caráter é desde sempre determinante. A liberdade perfeita deverá exigir a superação da egoidade,

o que só é possível na medida em que o intelecto, no uso de sua capacidade puramente intuitiva,

16 Kant (1974b, p. 368 et seq., especialmente n. 4) fizera do arbítrio uma espécie de “primeiro-motor” da ação, de modo que, diferente de Schopenhauer, afirma que não há arbítrio indiferente pois, quando não se decide por máximas particulares (más), se decide por uma lei universal expressa em um juízo cuja forma é a do imperativo categórico. O próprio Kant observa que esta causa-primeira, fundamento de todo agir, nos é insondável na medida em que, não causada por qualquer outra, escapa ao nosso entendimento; por sua vez, não admiti-la levaria a um regresso infinito – o argumento é análogo àquele aristotélico sobre o movimento; afinal, todo agir também o é. Devemos concordar que, sem uma decisão originária, não haveria qualquer ação livre. No entanto, deixando de lado a deontologia kantiana, Schopenhauer não aceita o arbítrio segundo leis ou máximas como fenômeno mais originário da liberdade na medida em que isto reduz a liberdade à causalidade, assim como a própria vontade parece estar reduzida ao uso da liberdade no arbítrio em vista da ação, ou seja, a escolha de causas para si mesmo. A crítica desta redução será estabelecida a partir do estudo histórico empreendido em capítulo posterior (4).

Page 33: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

33

supera tanto as abstrações da razão quanto as relações causais dadas no entendimento. O

intelecto, diferente da razão e do entendimento, é antes vinculado à pura sensibilidade, de modo

que o “inteligível” e a “inteligência” se referem a intuições puras da unidade, como a Ideia

schopenhaueriana (ver capítulo 3, abaixo). Por esta razão, o intelecto seria capaz, como ocorre na

contemplação estética, de intuir a representação imediata da Vontade, a Ideia, para além de toda

multiplicidade fenomenal. É neste sentido que o intelecto, sendo irracional (vernunftlosen Intellekt),

pode ser dito independente da razão (e também do entendimento (Verstand)!)17 ou da própria

vontade, ao menos enquanto dirigida a objetos.

[...] não é somente a vontade ela mesma que escapa da esfera de ação do princípio de razão suficiente. O intelecto puro também excede os limites da racionalidade ou fundamentação. Além disso, em sua forma desindividualizada, genérica, o intelecto também está situado fora do domínio da vontade [...]. O ponto final do processo de autoconhecimento da vontade e a subsequente autonegação é um intelecto sem-intenção [will-less] e calado [wordless] no qual toda realidade fora negada – por si. (Zöller, 2000, p. 213)

Em última análise, é pelo intelecto irracional que a liberdade da vontade se pode realizar, o

que nos permite concluir que esta se objetiva mais perfeitamente naquele do ponto de vista do

ser-livre, e, no homem, do ponto de vista da individualidade, embora não imediatamente como

na Ideia.

Uma última observação, bastante provocativa, é deixada aqui antes como uma pergunta:

Não será o impulso para a reprodução uma consciência profunda da vacuidade da individualidade

determinada, do eu, pela qual a Vontade impõe-se já sobre a representação de modo a que o

indivíduo aceite sua própria finitude em troca da alegria da posteridade? Em caso de uma

resposta positiva, não haveria aí uma ambiguidade, própria à Vontade, uma vez que, em se

afirmando no “instinto de conservação da espécie”, ao mesmo tempo se nega na medida em que

o indivíduo é feito resignar-se mediante o amor dos filhos? Não seria esta ainda uma forma de

negação da Vontade que jamais concorreria com a intervenção das representações da razão, ou

será que devemos acatar sem questionamento a reiterada afirmação de Schopenhauer de que, para

a Vontade, o indivíduo não tem qualquer valor ao lado da espécie? Tais questões são algumas

17 No uso comum, o termo alemão “Verstand” tem o sentido substantivo de intelecto e inteligência, compartilhando a raiz das palavras que designam “compreensão” etc. Por apropriada que seja sua tradução, em português, por “entendimento”, fica claro que se trata de uma operação racional. Ao empregar um termo de origem latina, “Intellekt”, Schopenhauer pretende indicar algo distinto daquele comportamento cognitivo, provavelmente no intuito de se aproximar da intuição imediata e não-discursiva das Ideias platônicas. O contrassenso da expressão “intelecto irracional”, em verdade, indica uma faculdade de inteligir de maneira extra-representacional, intelecção esta para a qual, pelo próprio espanto cuja marca se fixa na consciência, se busca em termos como “belo” e “sublime” uma tradução para o sentimento de uma “experiência” (estética) inusitada da vontade em mim.

Page 34: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

34

daquelas que não poderemos responder aqui, pois, para tanto, dever-se-ia antes desenvolver uma

análise profunda do sentido da vida e do amor como complemento ao estudo preparatório aqui

desenvolvido. De todo modo, uma outra coisa é certa na filosofia de Schopenhauer: se a

existência individual de nada vale para a Vontade, e por isto (?) se destrói a cada instante, é

também nela que a cada vez a mesma Vontade se afirma.

1.3. Os fenômenos autênticos da negação da vontade e sua positividade

Esclarecido isto, conclui-se que Schopenhauer, com razão, encontra um traço especial da

vontade humana. Este traço especial, segundo um olhar mais geral, retomando o que dizíamos há

pouco, não poderia ser melhor expresso do que na livre recusa da procriação, detendo assim o

movimento de perpetuação do fenômeno do querer-viver.18 Tal recusa não contraria apenas a

natureza e a moral, mas também uma gama de afetos e práticas sociais mais do que internalizadas

e consolidadas. O passo seguinte seria a própria mortificação do corpo, uma vez que este é ainda

vontade determinada na natureza, condição para toda outra manifestação do desejo. Que isto

prova? Que a liberdade da vontade é passível de realização no mundo dos fenômenos tão-

somente na espécie humana, sendo já explícito que isto não se deve à faculdade deliberativa da

razão, ao arbítrio, mas à inteligência, mesmo porque não se trata de um poder-agir independente.

Provisoriamente, não tiremos daí senão um ensinamento geral acerca da maneira pela qual o homem se distingue entre todos os fenômenos da vontade; com efeito, somente nele a liberdade, a independência com relação ao princípio de razão suficiente, este atributo reservado à coisa em si e que repugna ao fenômeno, tem oportunidade de intervir até no fenômeno; de uma só forma, é verdade: um dia produzindo uma contradição do fenômeno consigo mesmo. (Schopenhauer, 2004, [§55] p. 366)

Fica claro, entretanto, que se trata de uma “prova” sobre o homem, isto é, antropológica, não

sobre a vontade. Não que a filosofia de Schopenhauer seja antropocêntrica, como era usual em

seu tempo; em sua filosofia, como na de Nietzsche, o homem é antropocêntrico. De todo modo, pode-se

destacar a possibilidade da negação da vontade, pelo homem, como fenômeno de interesse para o

reconhecimento da liberdade e, daí, investigar-lhe a essência. Nesse sentido, se o primeiro

18 Deve-se ressaltar, em conformidade ao que já se afirmou acima, que não se trata da efetiva supressão de cada coisa senão como fenômeno, ou seja, daquilo que aparece como objeto na e para a representação de um sujeito. Se a relação sujeito-objeto somente se dá na consciência humana, o desaparecimento do mundo como representação, e não como coisa em si, já seria como o desaparecimento do mundo como tal. Um exemplo abusivo inspirado na Monadologia de Leibniz (1983a, [§6] p. 105): se cada mônada particular reflete todas as demais, todo um mundo, o desaparecimento, per impossibile, de uma única mônada seria como o desaparecimento de todo o universo.

Page 35: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

35

momento da via ascética é a castidade, não se trata tão-somente da recusa do apetite ou mesmo

do instinto sexual, mas do que ele significa em sua efetividade: a perpetuação da vontade

enclausurada na natureza, e não como coisa em si, mesmo porque, sendo a coisa em si alheia à

temporalidade (uma das formas do princípio de razão, tal como já lemos em Kant), é

indestrutível (Schopenhauer, 2004, [§54] p. 350-351). Dito mais claramente: não se trata da mera

supressão da vontade do indivíduo para procriar, como mera contenção deliberada do apetite

sexual, mas do impedimento do próprio ressurgimento da Vontade como tal, na sua totalidade,

sob a forma de um fenômeno qualquer, sendo ela mesma suprimida – o não-aparecimento de um

novo corpo é mera consequência natural de um ato livre de negação. É como se a Vontade, pela

negação da posteridade, expressasse a consciência do indivíduo acerca de sua insubstancialidade,

tirando todo o sentido de uma conservação de si mesmo pela descendência. Schopenhauer

mostra que esta “decisão” da Vontade não pode ser ela mesma pautada por motivos – neste caso,

não seria apropriadamente dita livre –, ou seja, como algo derivado de abstrações conceituais, mas,

em vez disso, deve provir de uma intuição pela qual se rompe – conforme já foi indicado e se

aprofundará adiante – com o princípio de individuação submetido ao princípio de razão

suficiente (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 476 et seq.). Neste sentido, ainda afirma Schopenhauer

(2004, [cap. XLVIII] p. 1387), citando uma referência de Clemente de Alexandria a Cassiano, o

vínculo entre a castidade e a superação da diferença fenomenal entre o masculino e o feminino, significando

uma superação do princípio de individuação em uma de suas expressões, a saber, a diferença de

gênero.

Isto explica por que Schopenhauer vincula sempre essa espécie de conhecimento da

unidade da Vontade ao desvelamento do mistério do mundo pela experiência mística, querendo

dizer com isto que não se trata de uma deliberação racional e calculada, pois esta sempre avalia

antes de supostamente decidir, como no caso exemplar daquele que exerce a caridade por causa da

salvação pessoal. O ascetismo, pois, parte da virtude ensejada pela intuição do mundo como

Vontade, e então avança um primeiro passo para a libertação, não sendo, contudo, nem

suficiente, nem fundante, mas tão-somente uma das expressões fáticas da liberdade da Vontade que

se nega. A castidade refletida seria, ao contrário, aquela comprometida com qualquer perspectiva

de evasão do sofrimento pessoal, comumente buscada nas religiões. Nesse movimento ascético

de regressão da Vontade para si mesma, primeiramente a castidade “nega a afirmação da Vontade

que vai além da vida do indivíduo” (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 478) para em seguida a negação

voltar-se para a Vontade que se expressa no próprio indivíduo que faz o que comumente

desagrada bloqueando toda influência de motivos exteriores animadores do querer-viver para além

do aqui e agora, bem como o próprio sentimento de desagrado que nos impele a tais motivos.

Page 36: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

36

Todavia, não parece lícito que Schopenhauer tome o ascetismo como sinônimo da negação da

vontade, como chega a fazer (2004, [§68] p. 481), mas, mais precisamente, como seu fenômeno mais

evidente, o que ainda não o esclarece em sua essência:

[...] o fenômeno maior, mais importante, mais significativo, que já se manifestou no mundo não é o do conquistador, é o do asceta. O que admiramos nele é a vida silenciosa e oculta de um homem chegado a uma concepção tal que, renunciando ao querer-viver, seu esforço age em toda parte e preenche todas as coisas, somente nele se manifestando a liberdade, de modo que sua conduta é justamente o oposto da conduta habitual. (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 485)

Nesse caso, dizer que a negação da vontade e o ascetismo são o mesmo não pode querer

dizer senão que o ascetismo, como expressão, manifesta o que é em si: vontade negada. Do

ponto de vista abstrato, conceitual, os preceitos morais do asceta são a caridade e o

reconhecimento de si no outro pela via do desvencilhamento do princípio de individuação e da

subjetividade, sem o que nenhuma negação sincera da vontade é possível, sendo por isso mesmo

que o interesse sexual cessa. Como tal libertação somente é possível pela vivência na medida em

que se tenha uma intuição mística do real, Schopenhauer, defensor do que considera um

autêntico e primitivo Cristianismo evangélico, tardio e deficiente com relação ao Hinduísmo

védico e ao Budismo, rechaça todo racionalismo cristão posterior em benefício de pensadores

como Mestre Eckhart (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 486), e isto porque e na medida em que suas

doutrinas não se justificam por conceitos, mas sim pela intuição. A propósito, apesar de não se

apresentar como pessimista, esta qualificação poderia ser imputada a Schopenhauer na medida

em que, explicitamente e por diversas vezes, se opõe a toda forma de otimismo racionalista –

entendendo-se aqui por “racionalismo” todo pensamento pautado em “abstrações conceituais”

tomadas como princípios (pré-conceitos) para deduções, sempre em benefício de uma visão de

mundo otimista: “o otimismo, nas religiões, como na filosofia, é um erro fundamental que fecha

o caminho a toda verdade” (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1397). De todo modo, a mera

oposição ao otimismo e ao racionalismo não basta para que se reduza o pensamento

schopenhaueriano aos seus contrários.19

Além das práticas ascéticas decorrentes da intuição da unidade da Vontade, Schopenhauer

(2004, [§68] p. 492-498) reconhece uma segunda via de negação, qual seja, a purificação pelo

19 Reconhecendo ser “ponto pacífico” a qualificação de Schopenhauer como pessimista, a qual jamais dirigiu publicamente a si mesmo assim como, por sua vez, jamais a recusou, não pretendemos estabelecer uma controvérsia, mas sim evitar os efeitos costumeiros do enraizado preconceito. Vale conferir o verbete “pessimismo” no dicionário de Cartwright (2005, p. 124-126), bem como “irracionalismo” (p. 89-90), onde se pondera e se aponta algumas limitações da apreciação de Schopenhauer como irracionalista na medida em que se coloca, com efeito, na contracorrente do tradicional racionalismo.

Page 37: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

37

sofrimento extremado, desesperador, ou a proximidade da morte como iminência do que se

mostra como uma queda no nada, promovendo uma espécie de conversão, de metanoia, ou seja, um

giro de cento e oitenta graus que desvia o caráter do interesse pessoal mediante a perda de toda

esperança de salvação, o vislumbre da inutilidade de todo esforço nesse sentido. Se na primeira

via impera o reconhecimento da Vontade no sofrimento característico do mundo da vida, na

segunda, a negação se dá mediante o próprio sofrimento sentido de modo extremo a ponto de

aniquilar todo desejo, uma efetiva des-esperança.20 Em ambos os casos temos em comum o

aniquilamento de um si-mesmo egoico quando nada mais se espera ou se quer, pois o próprio

“si-mesmo” se encontra suprimido como sujeito volitivo. Aliás, se a pergunta formulada por Kant

(2001, [A 805 / B 833] p. 639) no que concerne ao problema da religião, a que são inerentes o da

existência de Deus (problema teórico) e o da moral (problema prático), consiste no “Que me é

permitido esperar?”, a resposta final de Schopenhauer seria: “Nada”. Isto significa a supressão de

representações de motivos ou razões para viver.

Nesse caso, a distinção entre a ausência de motivos para viver e a rejeição da vida individual é

digna de nota, pois, na medida em que Schopenhauer (2004, [§69] p. 499) considera o suicídio

como o contrário da negação da vontade de viver, como afirmação de um não viver sem razões, é

necessário entender a negação como um viver sem razões, o que suspende, junto a todo desejo e

individualidade, toda preocupação e cuidado de si, com a própria vida. Vive-se por viver e por

nada mais, pois, em essência, vive-se sempre por nada, sem causa e sem propósito “objetivamente”

sustentáveis senão do ponto de vista dos “otimistas”, que se valem para isto de representações

vazias; vive-se tão-somente por querer viver e mais nada, enquanto se é e na medida em que se é

desde sempre o fenômeno de uma vontade-de-viver. Do mesmo modo, segundo a liberdade da

Vontade, esta não se nega por causa da dor como um efeito que se segue a uma causa segundo o

princípio de razão (p. 495). Afinal, já vimos que a Vontade “despreza” o indivíduo em que se

manifesta. Por sua vez, o suicida seria aquele que não suporta a verdade de viver sem razões e perante a

inutilidade de todo esforço enquanto a negação da vontade-de-viver consistiria, por sua vez, em um

não se esforçar em buscar razões pelas quais continuar vivendo, suportando a vida embora não a querendo, pois

querer a vida é representar-lhe um sentido capaz de justificar o esforço para viver. Necessário notar, à luz da

sabedoria budista, que isto não implica um esforço por aumentar o próprio sofrimento e acelerar

a morte, razão mesma pela qual se prega a caridade e o equilíbrio, não a revolta.

Tudo isto já indica que a intuição da unidade da Vontade e o conhecimento que aí se dá se

referem à constatação de que se é por nada, implicando o “fundo vazio” das representações ao

20 Neste sentido, uma mais aprofundada compreensão do sentido da “certeza da morte” deverá ser desenvolvida no capítulo final deste estudo.

Page 38: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

38

lado da inutilidade de todo e qualquer esforço por fazer da vida algo dotado de sentido absoluto e

real. Portanto, uma vez que a Vontade consiste na realidade última de todo fenômeno, ou seja, de

toda representação, “o” nada21 se encontra intimamente ligado à Vontade e, por conseguinte, à

sua liberdade essencial, a qual deve então se exercer mais propriamente pela negação. Nada-

querer como próprio ao ser-livre como tal se mostra então como algo a ser desvendado, o que

faz remeter ao tema da angústia mediante a suspensão nesse nada bem como à natureza da

alienação desse ser-livre originário junto a representações, agora passíveis de ser entendidas como

motivos na ou para a fuga de si, tema de nosso último capítulo. É evidente que um “atalho”

poderia ser aqui tomado: dirigir a atenção diretamente ao problema da representação e do

conhecimento – o próprio Schopenhauer o fez seguindo seus princípios, constituindo assim uma

filosofia da imanência. Todavia, cabe-nos, antes disso, tomar o caminho mais longo em torno das

condições ontológicas e pressupostos ainda não explicitados para que então se possa finalmente

justificar a tese de Schopenhauer sobre a condição humana, o que uma preliminar explicitação

geral de sua antropologia não foi capaz de realizar. Somente assim, pela compreensão que se

opõe à mera crítica doutrinária – onde talvez fizesse sentido um esforço para “provar”, por

exemplo, que não há aí pessimismo –, poder-se-á adquirir a suficiente independência da doutrina

dada em benefício do pensamento do problema que se colocara ao doutrinador. Tal problema nos

conduzirá a uma abordagem do ponto de vista da transcendência, bem entendida como o já

sempre ultrapassar da Vontade relativamente ao dado representacional que a expressa, ou seja,

uma abordagem acerca daquilo que a imanência nos faz pensar – isto de modo algum deve ser

interpretado como um tratamento da Vontade como “entidade transcendente” em oposição à

imanência fenomenal. Afinal, sendo o presente estudo orientado segundo um tema, dever-se-á

recorrer à tradição filosófica como um todo, na medida do possível, sem atentar demasiado a

filigranas exegéticas de valor estritamente conceitual, que muito bem fazem para que vejamos o

que está próximo em detrimento do que se encontra ao redor – por estimável que isto seja junto

a especialistas, trata-se de algo que não favorece senão o encurtamento da visão, um verdadeiro

“pecado filosófico”. Por isso mesmo o presente capítulo não tem a pretensão de esgotar o tema,

nem o poderia em poucas páginas introdutórias a nosso tema mais geral. Desse modo, temos

salientado até aqui apenas as insuficiências mais expressivas e ao mesmo tempo mais corriqueiras

sem, com isso, querermos desprezar o quanto a literatura especializada avançou a este respeito,

mas, em vez disso, estabelecer o ponto de partida e tecer o fio condutor de nossas considerações,

cientes de que tal economia traz consigo o inconveniente de certa aspereza.

21 Não é lícito fazermos preceder à palavra “nada” um artigo definido, o qual, geralmente exigido pelo discurso, não pode ser empregado senão entre aspas.

Page 39: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

2. “O” nada(-querer) segundo um duplo olhar

Com a tematização da negação da vontade chegou-se, até o momento, somente aos

fenômenos dessa negação, os quais mostram a liberdade da Vontade, que lhes é essencial. Também se

concluiu que a negação consiste na superação das representações causais e conceituais mediante a

intelecção da unidade à parte da qual nada é. O próprio mundo é então como um nada; mais que

isso, a própria Vontade “é”, enquanto fundo de todo fenômeno, nada, não “alguma coisa”. Pelo

termo “fundo” pretendemos indicar o íntimo, o essencial, e não algo dado ou exigido enquanto

causa ou fundamento, razão de ser dos fenômenos. Além de nada ter como causa, a Vontade

nada causa, sendo para além de toda causalidade própria às representações e fenômenos; a

Vontade não é um ente e já mostrara Kant que toda causa é uma condição do entendimento, da

linguagem e do raciocínio. Por isso mesmo denominamos esse “fundo” desde já “nada” e, assim,

concluímos o caráter absurdo do mundo schopenhaueriano.

[...] a vontade como realidade por trás ou por baixo do “mundo como representação” não é para ser considerada como o fundamento ou, ainda mais especificamente, a causa do mais elevado, [o] mundo representacional. É precisamente a marca da vontade no eu [self] e, por extensão, da vontade no mundo que seja ela mesma sem fundamento e, em contrapartida, não funcione como o fundamento de qualquer outra coisa. Não há razão ou fundamento para o ser da vontade, nem para quaisquer de suas manifestações. Racionalidade ou fundamentação somente ocorrem no “mundo como representação”, dependente do intelecto. Sem dúvida, em última instância, é a vontade mesma (como fonte única da realidade) que manifesta a si própria no e como o intelecto enquanto pensa os entes. Mas a relação entre a vontade como tal e os objetos suficientemente fundados do intelecto é apenas indireta; nunca há uma fundamentação direta, legalmente governada, de uma dada representação ou objeto na vontade como tal. (Zöller, 2000, p. 212-213)

Desse modo, podemos dar início a um esclarecimento mais filosófico para o problema, e

não apenas uma exposição antropológica do fenômeno, seja voltada para a sua expressão humana

(práticas ascéticas), seja para sua justificativa epistêmica (doutrina do intelecto irracional – ver

acima, nota 17 e seu contexto). Para tanto, deve-se distinguir um sentido positivo de um sentido

negativo de “nada-querer” no intuito de pôr de lado, por razões metodológicas, o que não passa

de representação particular. Enquanto críticos diagnosticadores do niilismo, Nietzsche e

Heidegger também deverão ter sua parte na discussão ao lado de Schopenhauer e Mestre

Eckhart, mediante o que duas hipóteses positivas deverão ser defendidas: de que a Vontade sempre

se afirma e de que nada-querer também diz respeito a um liberar sereno, ou seja, uma alternativa

Page 40: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

40

para a inquietação apropriadora do querer. Por meio disso se deve mostrar ainda que a

negatividade lógica constitui o ente determinado, individual, e somente a ele pertence.

2.1. A caminho da positividade do livre nada-querer contra o psicologismo

A crítica usual segundo a qual o ascetismo – paradigma da negação do querer – é reduzido

ao niilismo, à recusa da vida e do próprio valor da existência encobre a positividade fundamental da

negação do querer-viver, na qual pretendemos encontrar o sentido mais originário do ser-livre, ou

seja, o ser-livre independente das representações usuais. Esta positividade consiste na afirmação da

liberdade sobre a determinidade do fenômeno em sua naturalidade. Liberdade e natureza se

contrapõem na medida em que a Vontade contradiz livremente seu próprio fenômeno.

Todavia, entender o livre não-querer como simples recusa disto ou daquilo envolve

evidentemente um contrassenso, muito embora seja isto que o senso comum entende por

“liberdade da vontade”, vinculando-a à faculdade (psíquica) de escolha, ou seja, à capacidade de

arbitrar.22 O contrassenso reside no fato de que, sendo o não-querer determinado, relativo a algo,

sua motivação reside na coisa recusada, ou melhor, naquilo em virtude de que se a nega, ou seja,

o que se encontra implicado na possibilidade de sua recusa ou aceitação e que, enfim,

antecipadamente determina a suposta escolha. Daí se conclui a servilidade do arbítrio, fazendo depender a

ação de seu motivo. Por exemplo: se me desagrada determinado gênero cinematográfico, tal

desagrado previamente determina minha “escolha” segundo a qual me recuso a assistir um

determinado filme “X”. Isto torna minha recusa previsível e passível de explicação, ou seja,

inteligível em termos de uma causalidade, o que Hume explicou com perfeição tanto em seu

Tratado quanto em sua Investigação. Portanto, trata-se de uma doutrina psicológica da liberdade; como

tal, está fundada no modo científico de tematização do fenômeno da escolha, ou seja, o modo de

conhecer segundo causas. Para se ter uma compreensão clara da limitação desta psicologia, basta

que se atente para o fato de que tal concepção estritamente mecânica do fenômeno da escolha –

trata-se aí do mecanismo mental da reação a estímulos avaliados pelo sentido interno, ou

sentimento – é igualmente válida como explicação para o comportamento de qualquer ser vivo, o

que é muito bem observado por Schopenhauer ao fazer analogia entre ação/reação no mundo

inorgânico, excitação no mundo vegetal e motivação no mundo animal, tema do §23 de O mundo

como vontade e representação. Tal mecânica, porém, devemos deixar na gaveta do

comportamentalismo, mais conhecido como behaviorismo... – cá entre nós, uma pseudociência.

22 Não apenas o senso comum, mas a própria tradição filosófica (v. abaixo, capítulo 4.1).

Page 41: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

41

É sabido quão longe no tempo se encontram as raízes dessa psicologia, que, se foi

preservada incólume até o aparecimento da doutrina freudiana do inconsciente, isto se deu graças

à noção de arbítrio, ou deliberação consciente – no capítulo 4 teremos oportunidade de

acompanhar essa história mais pormenorizadamente, assim como seu pressuposto

epistemológico, o da redução da liberdade à causalidade, que também receberá ali sua crítica.

Embora Freud tenha sido sensível ao fato de que a ação dos motivos não é tão previsível a partir

do estudo da consciência como se pensa, e então tenha formulado uma “entidade” – por muitos

estimada como descoberta (!) – que lhe permitisse dar conta de tal embaraço, sua “solução”

permanece calcada nas exatas mesmas bases da psicologia clássica. Se é legítimo o nome de

Psicanálise a esta ciência nova, cuja criação é requerida pela pretensa novidade de seu objeto – o

inconsciente –, por outro lado, enquanto ciência que pretendia ser, tem seu início, condicionando

assim a própria criação de seu conceito-chave, na exigência de uma causa para comportamentos não

racionalizáveis segundo os antigos paradigmas, a saber, os da consciência racional.23 O que antes

se denominava “louco”, em vista de seus ataques imprevisíveis, agora é apenas “neurótico”. As

causas de seus comportamentos não repousam na consciência racional, mas na inconsciência

pulsional. Poder-se-ia dizer que Freud está para a psicologia clássica como Sartre está para a

metafísica essencialista tradicional, ou seja, como seu inversor. Acreditamos, pois, que Freud fora

muito pouco preciso em seu orgulhoso elogio a Schopenhauer24 caso tenha desprezado o fundo

meta-físico de seu pensamento. Quando aquilo que parecia distinguir o homem das demais

espécies – a consciência – não é mais suficiente, Freud trabalha sobre seu avesso – a

inconsciência –, aplicando-lhe, contudo, regras análogas, procedimento que, como veremos

(capítulo 4.2, abaixo), Kant já empreendera à sua maneira.

De todo modo, não devemos subestimar a obra de Freud, tampouco aquela dos

pensadores que se posicionaram de modo semelhante em face do problema. Nem Freud nem

Kant jamais superaram a adesão à cientificidade, mas suas posturas são evidentemente honestas

neste sentido. Seu pensamento é válido, afinal. É assim que se comporta a vontade individual,

enclausurada na natureza onde manifesta preferências. A palavra já indica em que consiste “pré-

23 A psicanálise freudiana e todo seu legado constituem um grande exemplo da necessidade de destruição ontológica da redução do comportamento a pressupostos epistemológicos sedimentados, uma das tarefas para a qual o presente trabalho pretende servir como preparação. Deste legado, todavia, merecem ser excluídos nomes como Lacan, Winnicott e Boss. 24 “O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer – ele não somente afirma o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão – não deve ser remetida à minha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche, outro filósofo cujas conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente, com os laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim, justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da prioridade do que em manter minha mente desimpedida.” (Freud, 1996, p. 62) Ainda que a audaciosa pretensão freudiana de originalidade seja reconhecida, nada impede que sua leitura de Schopenhauer e Nietzsche tivesse sido ela mesma determinada pelo que pretendia ali encontrar.

Page 42: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

42

ferir”, segundo sua composição latina por præ e ferre: “antecipadamente levar-se a/ser arrastado

por...”. Toda preferência indica a eleição de algo em detrimento de outro, o que, por sua vez,

supõe diferença e, por definição, sujeição da ação ao princípio de razão suficiente sob a forma do

princípio de individuação – omnis affirmatio est negatio. Além disso, e mais importante, toda eleição

já se encontra previamente determinada quando se efetiva ou meramente se toma consciência

dela, sendo por esta razão que a negação da vontade supõe a supressão do caráter empírico, ou

seja, daquela determinação que, constituindo fundamentalmente e desde a origem nosso modo

pessoal e atual de ser, já sempre nos pré-dispõe a isto ou àquilo. Por outro lado, a in-diferença

que propriamente se segue à negação da vontade consiste na ausência de predileções ou

inclinações (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 488), não havendo a representação de um que a ser

escolhido ou recusado, tampouco um pelo que ou um a fim de que, um motivo em virtude de que se

inclinar a isto ou àquilo. Naturalmente, não pode se tratar de uma indiferença de arbítrio, pois

todo arbítrio supõe preferência ou pré-dileção – do latim dilectio, “benquerer” –, ainda que se trate

de preferir não escolher. Nas palavras de Schopenhauer ([s.d.], p. 3), admitir indiferença no

arbítrio consiste em afirmar “a possibilidade de efeitos sem causa”. Isto é: Segundo os defensores

da doutrina do “liberum arbitrium indiferentiæ”, exerço maximamente minha liberdade se minha

escolha não é pautada por interesses – é-me indiferente tomar leite ou café; contudo, para

Schopenhauer, não é admissível que eu beba um ou outro sem qualquer motivo apenas pelo fato

de minha vontade dirigir-se a um como ao outro indistintamente ou não se inclinar a qualquer

um deles em particular. Se de fato há aí alguma indiferença, em sentido fraco, como uma apatia

ou ausência de expectativa de satisfação nos efeitos da ação, não se pode dizer que haja aí

qualquer arbítrio ou escolha. Por sua vez, havendo arbítrio, há nele uma causa implícita e,

portanto, prévia determinação para agir deste ou daquele modo ou para simplesmente não agir.

Desse modo, “liberdade” e “arbítrio” parecem se contradizer reciprocamente. Pode-se ainda

acrescentar que uma escolha indiferente não pode ser provada como tal, mas apenas que não são

reconhecidas pelo agente suas motivações, preferências ou predileções – ora, isto já é explicado

pela psicologia humeana. Enquanto determinação, a escolha arbitrada pertence à classe do

necessário na medida em que já tem pressuposta uma finalidade, diferindo da necessidade natural

apenas quanto à espécie, pois, neste último caso, não se trata de uma finalidade subjetiva.

Feitas estas considerações preliminares, deve-se observar que recusar a vida por causa do

sofrimento, como muito bem observa Schopenhauer, não consiste em um “não” dirigido à vida

ela-mesma, mas ao sofrimento; ou seja, recusar-se a sofrer não significa necessariamente recusar a vida como

tal, mas sim, pelo contrário, recusar-se a viver em determinada condição, sendo esta vida o que se rejeita

– eis o objeto determinado da recusa, e não toda vida possível. Negar a vida, nesse caso, é negar a

Page 43: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

43

minha vida efetiva, como algo singular, um objeto distinto do que eu mesmo sou como sujeito, não

uma universalidade. Em sua Fenomenologia, ao tratar da “consciência infeliz”, Hegel (1992, [§230]

p. 151), o grande desafeto de Schopenhauer, já havia reconhecido a diferença: “Porque o

renunciar à vontade própria, só por um lado é negativo: segundo seu conceito, ou em si. Mas ao

mesmo tempo, é positivo, quer dizer: é pôr a vontade como um Outro, e, determinadamente, pôr

a vontade como um não singular, e sim como um universal”.25 É de se supor que, satisfeitos os

desejos, suprimida a dor, viver-se-ia alegremente segundo esse ponto de vista abstrato ou

representação subjetiva. Significa dizer, contudo: a vida mesma é nesse caso privada de valor em

si, sendo antes avaliada segundo o que nela ocorre; o viver encontra-se submetido e reduzido ao mero

fenômeno individual da vida, avaliado segundo representações de possibilidades, sendo ele mesmo (o

fenômeno da vida) uma representação do sujeito que sofre. Ora, daí decorre que, se na representação de

um sujeito a vida é destituída de valor em si mesma, tendo seu valor alhures, residindo naquilo

que se pode ou quer realizar26, a negação da vida infeliz, como dirá Nietzsche, é uma negação

niilista na medida em que termina por contaminar todo o fenômeno da vida e a própria vida em si mesma,

universalmente, mas isto é uma consequência. Se, para Schopenhauer, viver implica, por si só,

sofrimento – assim como em Nietzsche implicará dor –, ao recusar a própria vida em virtude do

que a vida não é, o suicida aniquila o próprio fenômeno segundo uma ilusão: a ilusão da

possibilidade de uma vida feliz. Eis por que o suicídio não se confunde com a negação (universal)

da vontade de viver, sendo antes um ato inútil e insensato na medida em que intenta aniquilar o

mundo em sua totalidade pela mera supressão do indivíduo, ou melhor, da representação

individual do que o mundo em sua totalidade é para o sujeito: uma fonte de sofrimentos.

(Schopenhauer, 2004, [§§54/69] p. 357-358/499) Ora, se a afirmação de Schopenhauer de que a

25 Deve-se observar que a “positividade” do negativo não tem o mesmo sentido em Hegel e em Schopenhauer. Para Hegel, o renunciar negativo – dialético e concreto, embora conceitual, relativo ao “não” antitético que promove a superação pela e na síntese – é superior ao positivo – alienado e abstrato, embora material, relativo ao posto em sua efetividade, um algo outro que jaz ali contraposto a nós, um ob-jectum em sua diferença. Nesse caso, Hegel inverte valores científico-metafísicos consolidados, conservando, contudo, a primazia do saber, do conceito. Schopenhauer, por sua vez, não admitindo a hegeliana concretude do conceito e da Ideia (representações do intelecto e da Vontade), valorizará a recusa de cada representação positiva ou conceitual da Vontade como alteridades de um eu, ou seja, da vontade como outro, pois que todo ente é uma só Vontade. O interesse da referência a Hegel não é, todavia, o de penetrar semelhanças ou diferenças com relação a Schopenhauer, mas chamar a atenção para o fato de que Hegel já se mostra sensível ao reconhecimento não apenas desse duplo caráter da renúncia à vontade própria, mas também, e sobretudo, da correlação entre positivo e universal, negativo e singular no que respeita à qualidade e à quantidade dessa renúncia. 26 Não é por outra razão que a proximidade da morte e a velhice, caracterizadas como momentos propícios à tomada de consciência acerca da inutilidade de todo esforço, podem conduzir à negação da vontade. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLIX] p. 1410-1411) V. Machado (1997, p. 71): “[...] as condições últimas de avaliação são as condições de vida e [...] fazer da vida objeto de avaliação implicaria se colocar fora da vida. Em última análise, os juízos de valor sobre a vida são apenas sintomas de um tipo de vida, visto ser a própria vida que avalia através do homem quando ele estabelece valores”. Sobre isto, cf. Nietzsche, 2000b, p. 18 (“O problema de Sócrates”, §2: o valor da vida não pode ser avaliado), p. 37 (“Moral como contranatureza”, §5: “Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores...”).

Page 44: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

44

supressão de um indivíduo, um sujeito cognoscente, implicaria a supressão do mundo como um

todo, em si, não merecesse problematização, realmente deveríamos concordar com a dúvida de

Russell: por que, afinal, a queda na não-existência pelo suicídio não é uma autêntica negação da

vontade? Portanto, é necessário compreender que nenhum ato individual afeta o universal.

É a paralisia resultante de não se poder continuar vivendo segundo essa ilusão sem contudo

deixar de crer nela que conduz ao ato extremo da afirmação da Vontade, segundo Schopenhauer:

a violência contra o fenômeno da vida, violência esta que em nada afeta a vida como tal. O

movimento que poderia levar à negação da vontade é subitamente interrompido, a dor não exerce

seu papel libertador (Schopenhauer, 2004, [§§68-69] p. 497; 500-501), sendo antes suprimida de

modo ilusório (individualmente) como ilusória (subjetivamente representada) é a razão do

ressentimento contra a vida, a saber, a esperança de ser feliz, esperança esta que, uma vez

frustrada, em vez de dar lugar ao des-esperar, leva o indivíduo a fugir da dor (e do in-esperado) pelo

aniquilamento de sua pessoa (Schopenhauer, 2004, [§54] p. 360) deixando intacta a Vontade.27 Se a

morte afeta o indivíduo, fenômeno da vontade-de-viver à luz do princípio de razão suficiente e

existente apenas para o intelecto e por ele como representação, a Vontade lhe é indiferente

(Schopenhauer, 2004, [§54] p. 350), e isto não se pode negligenciar quando lemos que a Vontade

despreza o indivíduo em prol da espécie. É nesse sentido que: 1) o suicídio ou o infanticídio ou o

aborto apenas dirigem sua negação ao fenômeno individual e não à Vontade em sua

universalidade; 2) o suicida é avaliado por Schopenhauer como o doente que se recusa a tomar os

remédios e a concluir seu tratamento. Se, pelo suicídio, temos uma situação como a do “arco-íris

que subsiste apesar da sucessão contínua das gotas que lhe servem um instante de suporte”

(Schopenhauer, 2004, [§69] p. 500), a negação seria a supressão não das gotas – a essência –, mas

do arco-íris – o fenômeno.28 O asceta, tendo negado a vontade de viver, sabe intuitivamente que,

se não há pelo que viver, tampouco há pelo que morrer, enquanto o suicida se mata pela supressão do

sofrimento, determinado por isto como por um motivo e segundo razões e cálculos. Em síntese, a

negação da vontade é diametralmente oposta à mera recusa do desejo ou da dor que o mesmo

acarreta ao indivíduo, de modo que o próprio ascetismo e a desesperança não podem ser

reduzidos a isto. A oposição da compaixão ao egoísmo e à maldade testemunha a favor desta

distinção.

O nada que se recusa no suicídio é, na verdade, o nada-de-bom, o nada-de-alegria, o vazio

que “acomete” toda existência. Em outras palavras, pode-se dizer que o suicida diz “não” ao que em

27 Sendo assim, a crítica posterior de Nietzsche não parece tão precisa, mas que se deixe isto à parte, por enquanto. 28 É evidente que a metáfora schopenhaueriana opõe a fugacidade irrelevante do indivíduo à permanência do todo, mas buscamos, ainda assim, ampliar o conteúdo simbólico para indicar o contraste entre coisa-em-si e fenômeno, ou seja, a relativa insubstancialidade daquilo que é percebido em face do que essencialmente constitui o fenômeno.

Page 45: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

45

verdade são ele mesmo e tudo aquilo que espera da vida: nada. Precipitar-se no nada da não-existência é,

paradoxalmente, negar “o” nada, não querer-nada, recusar-se a nada-querer. Eis um “não” negativo à

vida, o niilismo pelo qual a autodepreciação conduz à autodestruição. Como pode se dar um

“não” positivo? Ao fim do quarto livro de O mundo..., Schopenhauer (2004, [§71] p. 516) encerra

sua exposição distinguindo o nada dos afirmadores e o nada dos negadores da vontade:

[...] para aqueles que a Vontade ainda anima, o que resta após a supressão total da Vontade, é efetivamente o nada. Mas, ao contrário, para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, é nosso mundo atual, este mundo tão real com todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que consiste no nada.

No primeiro caso, temos “nada” entendido como negação absoluta, como não-ser

enquanto tal. Isto mostra com clareza que o nada é, para os afirmadores da vontade de viver, um

simples vazio, a representação abstrata de uma efetiva ausência de entes, um aterrorizante des-

aparecimento do ente como tal, uma pura negatividade. Decerto, é problemática a noção de um

“nada absoluto”, sobretudo se entendido como “vazio”, e não apenas por ser um absurdo para a

ciência – que, aliás, lida apenas com o representável –, mas sim por sempre e necessariamente

supor algo dado, negativamente, como ausente. Tal representação do nada é algo completamente

abstrato, uma mera privação de ser que é, a rigor, irrepresentável (Schopenhauer, 2004, [§71] 512-

514; [2003b], [§161] p. 409) – digamos “a rigor” porque, sem rigor, o vazio em geral é, sim,

abstratamente representável como espaço desocupado; trata-se de uma acepção secundária de

“vazio” que, embora passível de experiência, é ainda mais abstrata na medida em que todo espaço

físico é ocupado plenamente por ar. Por sua vez, mediante a negação da vontade, o que se

apresenta é o mundo em sua verdade, como Vontade, sendo este último “nada” a expressão da

independência dos motivos exteriores pelo próprio colapso da dicotomia exterior-interior, a

(re-)conquista da liberdade pelo ato livre e incondicionado (positivo) da negação da vontade, pela

qual nada se quer além de si, pois nada mais se apresenta como (objeto) desejável, como sentido

ou como causa, e assim o sujeito é suprimido (ao menos como sujeito empírico-psicológico), não a

coisa em si que nele se manifesta.

De todo modo, a compreensão do nada por Schopenhauer ainda carece de algum

aprofundamento ontológico na medida em que é dependente do problema do conhecimento: “a

consciência, encontrando-se inteiramente suprimida, o resto do mundo cairia no nada, pois, sem

sujeito, não há objeto” (2004, [§68] p. 478). Nesse caso, uma coisa é correta: “nada” significa

nada-de-ente; nada-de-representação; quer dizer, não significa uma entidade abstrata representada

como ausente. Não se trata mais de um vazio, de uma efetiva ausência, mas de uma

indeterminância e indiscriminação do que se mostra como uma única Vontade presente em

Page 46: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

46

estado puro, sem mediação do intelecto; trata-se daquilo que é alheio a toda possibilidade de

representação. Este é um bom exemplo de como uma leitura fragmentária de Schopenhauer pode

levar a equívocos, caso não se atente para o fato de que o que está em jogo na negação são os

polos em relação no ato cognitivo. Pela livre negação da vontade se supera a perspectiva do

mundo como representação, enquanto que, pelo aniquilamento do fenômeno nada se supera; o

indivíduo se suprime justamente pela incapacidade de superar o nada da vontade que ele mesmo

é.

Como já foi dito, a linguagem de Schopenhauer chega a turvar o que já é obscuro,

misterioso, mas deve-se ter em conta, e deverá ficar plenamente claro no decorrer deste estudo,

que a representação, enquanto fenômeno intelectual, nada tem de substancial, não sendo em si

mesma nada senão Vontade, muito embora seja justamente ao fenômeno que nos referirmos

como sendo algo, como sendo o ente em si, e não apenas para nós – isto já é problematizado por

Hegel desde o começo da Fenomenologia do Espírito. Uma vez compreendido este ponto, se deve

observar que a negação da vontade, definitivamente, não corresponde à compreensão do nada

como simples vazio apesar de, no entender de Schopenhauer, o que não é ente (fenômeno,

representação) é coisa alguma; é, no entanto, Vontade, “essência” inefável de todas as coisas no

sentido de que é o que cada coisa em si mesma sempre é. Seria dizer, apropriando-nos da

linguagem heideggeriana, que “a Vontade não é o ente, e não pode ser pensada segundo as

categorias ônticas do entendimento, da lógica dos conceitos determinados, mas por isso mesmo

deve ser pensada seguindo o fio condutor dos modos de ser do ente que já sempre se encontra

em relação com ela em sua essência, ente este que somos nós mesmos”. Somos nós mesmos que,

enquanto homens, capazes de representar o ser-livre, temos a possibilidade da negação como

possibilidade extrema do ser-livre da Vontade. Com efeito, algo muito importante é acrescido no

§161 do segundo volume dos Parerga e paralipomena ([2003b], p. 408):

Contra algumas tolas objeções, observo que a negação da vontade de viver não enuncia de fato o aniquilamento de uma substância, mas o puro ato de não querer: aquele mesmo ente que até então quis, agora não quer mais. Dado que conhecemos este ser, a vontade, como coisa em si somente no interior e através do ato de querer, não temos a faculdade de dizer ou de entender, depois que ela abandonou esse ato, que há de ser ou fazer: por isso a negação é para nós, que somos a manifestação do querer, uma passagem para o nada.

Ou seja, a queda no nada o é para nós, que, enquanto fenômenos da vontade de viver,

dizemos e entendemos apenas o representável, isto é, aquilo em que se manifesta a Vontade.

Ainda que com esta passagem tenhamos uma explícita declaração de que a negação da vontade

não implica a supressão de nada que seja em si, mas tão-somente a perda da objetalidade – por

Page 47: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

47

conseguinte, da cognoscibilidade e da afetividade movidas por representações – em razão da

superação da egoidade, o problema ontológico-existencial aí envolvido ainda não é tratado, nem

mesmo colocado às claras, ficando claros os limites do mundo da imanência. Conclui-se apenas

que a Vontade vive ainda na negação da vontade, cujo caráter existencial pode ser compreendido

como um ser em meio ao nada pela suspensão de toda individualização – o horror ao vazio grita

na consciência animada pela vontade individual; mas que disposição caracterizará o misterioso

“puro ato de não querer”, no qual não há um alguém que realize a “passagem para o nada”?

2.2. A positividade ontológica do não-querer

Por espantoso que pareça a muitos, a positividade da negação da vontade como expressão

da liberdade originária é ainda mais explícita em Nietzsche. Em seu Dioniso – mito e culto, Walter

Otto (apud Casanova, 2003, p. 53) assim caracteriza a embriagada dissolução dionisíaca da

individualidade em consonância ao que lemos em O nascimento da tragédia, escrito por Nietzsche

enquanto ainda era discípulo de Schopenhauer:

O mundo com o qual já estamos familiarizados, o mundo no qual os homens se estabeleceram de modo tão seguro e agradável, não está mais aí! O bramar da chegada dionisíaca varreu este mundo para fora daqui. Tudo está transformado. Mas não em um doce conto de fadas, em um paraíso de ingenuidade infantil. O mundo originário emergiu, as profundezas do ser se abriram, as configurações originárias de tudo o que há de criativo e dizimador, com seus deleites infindos e com seus pavores infindos, vieram à tona e dissiparam a imagem inofensiva do mundo bem ordenado do hábito. Elas não trazem nenhuma ilusão e nenhum sonho, elas trazem a verdade – uma verdade que enlouquece.

Esse “pavor” mediante a perda do solo habitual tranquilizante, sobre o qual se erigem e no

qual pretensamente se fundam as individualidades bem determinadas, é precisamente o humor

que, segundo Casanova (2003, p. 37), Nietzsche reconhece nos homens “diante da nadificação do

princípio de individuação”, nadificação produzida pela dissolução dionisíaca contraposta “à

quietude promovida pelo elemento apolíneo”. Nesse sentido, observa Casanova que “o termo

quietude não possui nada em comum com a mera ausência radical de movimento interior”, mas

sim, “aponta para o cerne de uma significação ontológica: para a disposição que as essências

singulares alcançam quando se acham de posse de suas determinações próprias”. É em meio ao

“elemento apolíneo” que a “individuação da totalidade traz consigo a instauração dos limites de

realização” que, de acordo com Casanova (2003, p. 38) “marcam o espaço no interior do qual

cada ente se descobre como idêntico a si mesmo e diferente de outros entes”. Ou seja, Nietzsche

Page 48: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

48

designa “apolíneo” o modo de ser que encontra a tranquilidade na diferença posta pela

individuação, e, “dionisíaco”, o modo de ser que, rompendo com essa determinação fantásmica,

chega à verdade mais profunda da indiferenciação originária e anômica, por isso mesmo

“apavorante” na mesma medida em que não oferece qualquer ponto de apoio, restando apenas o

oscilar da embriaguez extática. O humor em questão deve então estar essencialmente vinculado a

essa experiência de ausência de solo, de determinação, de egoidade. Diz ainda Casanova (2003, p.

38-39):

Os homens alcançam em meio à vigência do princípio de individuação uma experiência reconfortante de familiaridade em relação ao ser dos entes em geral e encontram aí, simultaneamente, uma aparente fixação definitiva de seu próprio ser. Desta experiência reconfortante de familiaridade diante do mundo circundante e desta aparente fixação definitiva de seu ser advém uma suposição da validade universal da lógica inerente ao mundo individuado. Eles tendem a confundir a si próprios com o que emerge da individuação e a transportar os princípios reguladores do processo de conformação dos fenômenos para o cerne da realidade: eles esquecem que as delimitações ontológicas e as leis estruturadoras destas delimitações se resumem ao modo de constituição de suas configurações e não podem ser estendidas ao em-si da realidade. À medida que os homens se veem em um tal esquecimento, toda ruptura do princípio de individuação tende a ser vivenciada como uma perda de si mesmo e como uma supressão radical de toda logicidade racional. À experiência desta perda e desta supressão corresponde, evidentemente, um pavor monstruoso.

À experiência desta perda e desta supressão corresponde, dizemos, a angústia da negação

do mundo como representação, da individualidade, da vontade de viver. Nisto reconhecemos a

máxima expressão da relação entre angústia e representação – a primeira como disposição

privilegiada mediante a supressão da segunda; esta última, como meio de fuga e apoio

tranquilizante para a familiaridade ausente ou suspensa na primeira. Na representação de uma

ordem encontramos a cada vez o conforto que a cada vez a angústia ameaça nos furtar. O

conforto maior e mais “seguro” não há de ser encontrado senão na representação de si-mesmo

como ponto de “fixação de meu próprio ser”, fixação substancializadora no sentido de uma

certeza acerca da existência efetiva do “eu” em que me reconheço e com o qual me identifico.

Não é à toa que a perda de tal certeza, ou mesmo alguma ameaça contra ela se nos mostre

ordinariamente como algo “apavorante” a que se pode remeter mesmo o comum “temor da

morte”, a ser tematizado mais adiante no capítulo 6. Tamanha a importância desse “eu”,

podemos chegar a preferir destruí-lo a mantê-lo quando não nos provê de qualquer satisfação; eis

o caso do suicídio. De todo modo, para que se compreenda como este pavor pode se

transformar, segundo Nietzsche, em êxtase, deve-se “considerar a positividade do elemento

dionisíaco”, o que, no entanto, só deverá nos ocupar mais adiante.

Page 49: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

49

Segundo Casanova (2003, p. 46, n. 42), “uma diferença fundamental entre Nietzsche e

Schopenhauer” é que “este vê o perecimento como destino inexorável da aparência”, i.e. do

fenômeno, “e se empenha em afirmar a vontade como uma instância à qual não podemos senão

nos resignar”, enquanto Nietzsche, por sua vez, “faz da união entre o devir dionisíaco da vontade

e a perfeição apolínea da individuação o modo pleno de justificação da existência”, pois, “no

instante em que ela [a arte dionisíaca] atrai o nosso olhar para a visualização da dor constitutiva

das existências finitas, esta visualização mesma nos salva de uma postura meramente resignada ou

de um desespero niilizante” (p. 55).29 “Os indivíduos depararam-se, por um lado, com a

necessidade de aniquilação e passam a ver nesta aniquilação mesma o destino comum a toda

finitude; eles alcançam, entretanto, por outro lado, através da própria aniquilação, a reconciliação

com a realidade como um todo” (p. 54). Por isso mesmo, mais adiante, complementa Casanova

(p. 59):

Na força desta embriaguez consiste o risco maior, do qual nos salva o elemento apolíneo da tragédia. Se nos unificássemos imediatamente com o ânimo musical dionisíaco, a sensação incontrolável de embriaguez diante da infinitude do princípio provocaria, subsequentemente, em meio ao retorno à experiência cotidiana, uma náusea profunda e um nojo em relação a toda e qualquer finitude. Como no caso do pessimismo schopenhaueriano, a vida “individual” perderia o seu valor próprio [...]. A bela aparência do herói trágico não nos deixa, contudo, mergulhar absolutamente no sem-fundo desta experiência e nos atrai para a visualização-afirmação do prazer próprio a toda finitude.

Desde esse período inicial, portanto, já aparece na obra de Nietzsche a exigência de

resposta ao “grande nojo” da existência, não se tratando, portanto, de um problema surgido após

sua ruptura com Schopenhauer ou ainda mais tardiamente. A esta altura, seria tautológico dizer-se

“existência individual”. Toda existência é, por definição, individual; o mundo da multiplicidade é

um mundo de indivíduos e por isso mesmo nenhuma existência, nenhuma individualidade deve

ser compreendida à luz do simples estar-em-meio a uma multiplicidade. O nojo ao mundo da

vida, ao mundo da multiplicidade, é também, e antes de tudo, uma recusa ao modo de ser próprio

ao individual, ao finito. Assim sendo, qualquer “reconciliação com a realidade como um todo” só

é possível passando-se pela re-afirmação do “valor próprio da vida individual”, atitude esta tão

mais vigorosa na medida em que se estabelece pela superação do princípio de individuação ao

29 A nosso ver, o desenvolvimento pleno desta distinção deveria conduzir a uma tematização do amor em sua propriedade. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche encontra na beleza a justificação da existência. Posteriormente, surgirão os temas do amor fati, do eterno retorno e da superação do espírito de vingança. O elemento fundamentalmente amoroso da Mitleid schopenhaueriana, aliado ao modo fundamental de ser-no-mundo como Sorge, em Heidegger, deveria complementar esta abordagem. O amor seria a disposição própria a uma relação não-exclusora e não-distanciada entre um ente determinado e cada outro.

Page 50: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

50

invés de procurar fundar-se em frágeis razões, no egoísmo, ou qualquer mera representação

asseguradora e tranquilizante. No sentido de preservar a ordem expositiva deste estudo, adiemos

o aprofundamento da atitude afirmadora, que, no entanto, não poderá ser conduzida às suas

últimas consequências neste estudo preparatório. Por agora, basta-nos reter que a afirmação da

existência pautada na mera representação tende à alienação quando não ao fracasso: no primeiro

caso, na visão de mundo determinística; no segundo, no sentimento de impotência decorrente

dessa mesma visão – afinal, na representação impera a causalidade. A impotência do individual-

finito em face do infinito de possibilidades da Vontade, deve-se ressaltar, só faz sentido do ponto

de vista dessa mesma finitude. Tal afirmação da existência deve se voltar para a própria essência

do ser-indivíduo e dela mesma provir, a saber, o originário querer-viver reencontrado, segundo

Nietzsche, na celebração dionisíaca superadora do princípio de individuação. Nela, o querer-viver

é con-firmado em sua totalidade como “mais uma vez” – o ressurgimento do deus morto, o

“sim!” à fragmentação, ao despedaçamento, à dor. Nesta confirmação, o indivíduo não é

afirmado a partir de sua finitude, mas a partir daquilo que a transcende: a beleza. No com-

prazimento perante a beleza, a ser tematizado em nosso próximo capítulo, a própria relação com

o fenômeno se vê transformada, anunciando-se aí uma liberdade autêntica e privilegiada. A

individualidade como tal se impõe a si mesma como eterna e indestrutível na forma da beleza

própria àquilo que é obra de si mesmo, mas não no sentido de uma causa sui, pois toda

causalidade daí se retirou, tampouco de uma substantia, pois toda substância é, por definição,

determinada, ainda que indeterminável em si mesma – “ser obra de si mesmo” significa ser o que

é.

Superada a individuação, a Vontade resta a sós consigo, sendo interessante observar que, se

a negação é superação da multiplicidade fenomenal, a Vontade se reafirma nesse mesmo

movimento no indivíduo como livre e incondicionado querer-viver; em sua unidade ela se impõe

afirmativamente sobre toda a pluralidade por ela mesma negada. A negação da fragmentação é

condição do ser si-mesmo inteiro, o que deve ter como consequência a eliminação de toda e

qualquer distância entre o si-mesmo e a vida na qual se manifesta segundo o seu próprio querer

livre. A Vontade é, pois, por definição e essencialmente, afirmativa; o que se nega é apenas o

fenômeno enquanto fenômeno, sempre necessariamente condicionado. Em sua ambigüidade, toda

afirmação da Vontade no âmbito fenomenal é ao mesmo tempo negação do outro. Se o

indivíduo é destituído de “valor próprio” enquanto indivíduo, é por sua vez afirmado segundo sua

proveniência, ou seja, não por aquilo que o faz deficitário relativamente à Vontade como um todo,

mas pelo que o dignifica e eleva, que o revela como livre, como querer a si a despeito de sua

Page 51: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

51

insubstancialidade. Diz Nietzsche (1996a, p. 102-103) no parágrafo inicial do §17 de O nascimento

da tragédia:

Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas. Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual – e não devemos todavia estarrecer-nos: um consolo metafísico nos arranca momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes. Nós mesmos somos realmente, por breves instantes, o ser primordial e sentimos o seu indomável desejo e prazer de existir; a luta, o tormento, a aniquilação das aparências se nos afiguram agora necessários, dada a pletora de incontáveis formas de existência a comprimir-se e a empurrar-se para entrar na vida, dada a exuberante fecundidade da vontade do mundo; nós somos trespassados pelo espinho raivante desses tormentos, onde quer que nos tenhamos tornado um só, por assim dizer, com esse incomensurável arquiprazer na existência e onde quer que pressintamos, em êxtase dionisíaco, a indestrutibilidade e a perenidade deste prazer. Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos, porém como o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.

Poder-se-ia arriscar, mediante esta leitura, que Nietzsche foi e é o melhor e mais original

intérprete de Schopenhauer que já tivemos... Como refutar a conclusão de que a tão obscura

negação da vontade de viver, cujo efeito sobre o homem schopenhaueriano não pode ser outro

senão a resignação, consiste, para possível lamento de seu formulador, na admissão de que a

Vontade, a sós consigo, sendo o que ela é, afirma-se originariamente em nós e apenas nesta

afirmação nos torna enfim livres do jugo de suas manifestações? Afinal, todo sofrimento se

mostra como decorrência de nosso autodesconhecimento bem como da recusa da individualidade

manifesta pela vontade que nós mesmos somos e, nesta medida, nos põe em luta contra todo o

resto – em última análise, em luta contra nós mesmos. O suposto “lamento” de Schopenhauer

não é tanto a causa da negação, mas expressão da consternação perante a absoluta

inescapabilidade do destino que nós mesmos, originariamente, quisemos, o destino que nós

mesmos sempre somos. Em referência ao trecho citado, comenta Casanova (2003, p. 56-57):

O elemento dionisíaco apresenta-se inicialmente através do poder de dissolução próprio à torrente aniquiladora da individuação. Esta torrente aniquiladora não lança, contudo, as diversas conformações da realidade simplesmente em direção ao nada; ela reconduz muito mais estas conformações ao cerne de sua proveniência originária. Portanto, o elemento dionisíaco também produz uma supressão radical da dita cisão entre os indivíduos em geral e a vontade. [...] O momento negativo da perda de si mesmo encontra, então, por correlato, uma religação com o princípio de determinação da existência. [...] Por um breve instante nos confundimos com a essência originária e sentimos em nós mesmos a vontade em sua dinâmica própria: nós nos imiscuímos em seu elemento mais constitutivo embriagados com a eternidade de sua vigência para além de toda

Page 52: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

52

individuação. [...] Em meio à experiência da total dissipação de nossas identidades habituais, a vontade se apresenta em sua superabundância constitutiva e se abre para nós a partir da força indestrutível de seu ímpeto em direção à existência.

2.3. A essência sempre autoafirmadora da Vontade

A Vontade livre nada quer senão ela mesma, de modo que, ao negar-se em nós, “quer-nos”

não querendo nada além do que somos: nesta liberdade de querer-se apenas a si encontra-se a

perfeição da pobreza originária da Vontade, pobreza própria daquilo que é como um “nada” na

medida em que, em seu ser, não é um ente – a Vontade, em sua autonegação, em um aparente

paradoxo, se autoafirma em sua verdade. Antes de Schopenhauer, Mestre Eckhart, e talvez ninguém

melhor do que ele, dera grandes contribuições para uma doutrina positiva do nada-querer. “Um

homem pobre é aquele que nada quer”, diz Mestre Eckhart (2006, p. 287) no sermão 52. Que

queria dizer o místico alemão repetidas vezes exaltado por Schopenhauer? À parte o ascetismo

que comumente se atribui a Mestre Eckhart como horizonte de sua mística de forte inspiração

neoplatônica, verifica-se, mesmo nos sermões alemães, fundamentalmente edificantes, um

relevante e até inovador posicionamento filosófico no que concerne a tema dos mais caros ao

pensamento moderno posterior: a centralidade da vontade. Embora não por meio de uma

explícita teorização acerca da vontade como determinação fundamental do que mais íntima e

propriamente somos – isto seria demasiado anacrônico –, Mestre Eckhart nos fornece valiosos

elementos de reflexão acerca da liberdade da vontade, do ser-livre como tal e, por conseguinte,

uma doutrina acerca de nossa decaída de uma condição originária de liberdade para uma

existência impropriamente determinada por um modo superficial e entificado de compreensão da

realidade. Por fim, aí também podem ser reconhecidas tanto uma doutrina da negação da vontade

quanto uma fundamentação da compaixão que, dedutível dessa negação, envolve e pressupõe

uma superação do princípio de individuação, articulações que se tornarão centrais no pensamento

de Schopenhauer.

Em seu sermão 5b, Mestre Eckhart (2006, p. 66) diz que se deve estar livre do “não”. Que

será “o ‘não’”? Uma recusa? Com efeito, não se trata de uma recusa – pelo menos não no sentido

habitual. Ao contrário, uma afirmação: o “não” é o “não-si-próprio”, o “não-o-mesmo”, a

diferença. A diferença consiste no não-próprio, na alteridade intrínseca a tudo que é ente/criatura,

que se determina segundo o que é e, ao mesmo tempo, segundo o que por sua vez não é – p. ex.,

Page 53: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

53

o homem não é imortal, o que significa que ele é mortal, segundo o princípio lógico do “terceiro

excluído” à luz de outro princípio: o de contradição, garantia de toda identidade ôntica.

Tomo um carvão em brasa e o coloco em minha mão. Se dissesse que é o carvão que queima minha mão, estaria lhe fazendo muita injustiça. Se é para dizer justamente o que me queima, então: É o “não” que faz queimar, pois o carvão tem algo em si que a minha mão não tem. Ei-lo, e é exatamente este “não” que me queima. Se, porém, a minha mão tivesse em si tudo o que o carvão é e pode efetivar, ela assim teria totalmente a natureza do fogo. [...] É então este “não” que atormenta as almas que estão no inferno, mais do que a vontade própria ou outro fogo qualquer. [...] Assim, se quiserdes ser perfeitos, deveis ser livres do “não”. (Eckhart, 2006, p. 66-67)

A afirmação de Mestre Eckhart não é trivial, como poderia parecer à luz da máxima que

prega “amar ao próximo como a si mesmo” (e não como outro). Contudo, é de se destacar que o

carvão não queima em virtude do que ele mesmo é, como também não o faz a vontade própria. Não se

trata então da afirmação de uma identidade. Eckhart, aqui, dá um passo atrás ao dizer por que o

“próprio” não é o que atormenta, mas sim, o não-próprio, a diferença, a falta de simplicidade, a

des-unidade, a multiplicidade. O queimado é queimado pelo que ele mesmo não é. O não-ser pertence

a tudo que é ente, como em Schopenhauer, a tudo que tem o caráter de pessoa ou, em sentido

mais amplo, de criatura, segundo a terminologia de Mestre Eckhart. Apenas a isto se aplica o

“princípio” do terceiro excluído e aqueles a este ligados necessariamente pela lógica: o de

identidade e o de contradição. Nesse sentido, a vontade própria só queima na medida em que é

uma vontade aderida ao “não”, ou seja, não enquanto é própria, mas sim enquanto se liga ao que

ela mesma não é em sua intimidade, enquanto se liga ao criatural, ao individual, fazendo provir

sua essencialidade de um outro que não ela mesma em sua singularidade.30 Poder-se-ia dizer que

tal vontade é queimada no inferno segundo o que ela mesma não é. Que é a vontade em sua

intimidade, por si mesma, a vontade própria? A vontade é livre.

Enquanto a vontade está intacta de todas as criaturas e de toda criaturidade, a vontade é livre. [...] [...] Seja quando for, sempre que essa vontade, seja < só > por um instante, retorna de si mesma e de toda criaturidade para sua origem primeira, então a vontade está < de novo > em pé em sua maneira justa e é livre; e nesse instante terá recuperado todo o tempo perdido. (Eckhart, 2006, p. 68)

30 Vale observar que Hegel (1992, [§204] p. 138) talvez seja o primeiro a retomar algo desta reflexão, dizendo, na Fenomenologia: “Mediante essa negação consciente de si”, para ele, própria ao cético, “garante a consciência-de-si para si mesma a certeza de sua própria liberdade: produz a experiência da liberdade, e assim a eleva à verdade. O que desvanece é o determinado ou a diferença que se estabeleça como firme e imutável, de qualquer modo e seja donde for. Nessa diferença nada há de permanente, e deve desvanecer ante o pensar, pois o diferente é justamente isto: não ser em si mesmo, mas ter sua essencialidade só em um Outro”.

Page 54: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

54

A liberdade consiste no que é próprio à vontade, que, uma vez aderida à criaturidade, à

entidade pessoal, adere inerentemente ao “não”, devendo, portanto, retornar a seu caráter

originário saindo do “si-mesmo” da criatura determinada. Como foi dito, o que a criatura (ou ente

individual) é, por si mesma, como o carvão, como a vontade, não queima; queima o que o

queimado não é. Padece-se pelo que não se é. Estão “separados de Deus” aqueles que não têm aquilo

que têm aqueles outros que estão na contemplação de Deus e verdadeira bem-aventurança

(Eckhart, 2006, p. 66). Por isso, aqueles apartados de Deus devem sair de “si mesmos”, e, para

tanto, devem recuar. “Recuar” de onde, ou de quê? Da saída de seu próprio, daquilo que deixaram

por nada, uma vez que “enquanto essa vontade nobre”, a vontade livre, “se inclina às criaturas, ela

flui com as criaturas em seu nada” (Eckhart, 2006, p. 68). Eis a razão pela qual Eckhart parece

inconsistente ora dizendo que devemos sair de nós mesmos, ora dizendo que não devemos sair

de nós mesmos; ora dizendo que devemos sair para Deus, ora dizendo que não devemos sair para

Deus. Sair para Deus como não-eu, como outro, como “o Criador”, é afastar-se do próprio; só

consiste em um justo e livre sair para Deus quando se trata esta saída de uma saída de minha

criaturidade como ente para meu próprio fundo essencial (Eckhart, 2006, p. 67), que é idêntico a

Deus. Sendo o fundo de Deus o meu próprio fundo, deixo a pessoa que “sou”, que enquanto

criatura “não é Deus”, pelo que propriamente sou, e não pelo “Deus” que é outro, que não-sou,

como fazem as pessoas que, segundo sua natureza criatural, “amam mais a Deus do que a si

mesmas” (Eckhart, 2006, p. 94), conforme lemos no sermão 10. Esse “Deus” que é pessoa, que é

outro, que é também criatura e indivíduo, é o ente que ainda não era antes das criaturas a que se

refere Eckhart no sermão 52 (2006, p. 288-292).

Assim, pois, dizemos que o homem deve existir tão pobre que não seja nem possua lugar algum onde Deus [representado como ente] possa atuar. Onde o homem < ainda > contém < em si > lugar [um “não”, um vazio ontológico], ali < ainda > conserva diferenciação. Por isso peço a Deus [Um] que me esvazie de Deus [ente, “pessoa”]; pois meu ser essencial é acima de Deus, na medida em que concebemos [representamos] Deus como a origem das criaturas [o outro criador]. Naquele ser de Deus, onde Deus está acima de todo ser [indivíduo] e acima de toda a diferenciação [“não”], lá eu era eu mesmo [apartado do “não”], ali eu queria [livremente] a mim mesmo e conhecia a mim mesmo, segundo meu ser que é eterno, mas não, segundo meu devir, que é temporal. E por isso sou [em meu ser próprio] não-nascido e, segundo o modo de meu ser não-nascido, jamais posso morrer. Segundo o modo de meu ser não nascido, fui eternamente e sou agora e permanecerei eternamente. O que sou segundo minha natividade [criatura, esta pessoa, este indivíduo] há de morrer e será aniquilado, pois é mortal e deve portanto corromper-se com o tempo. No meu nascimento < eterno > [em que era e sou Um com Deus] nasceram todas as coisas, e eu era causa de mim mesmo e de todas as coisas. (Eckhart, 2006, p. 291)

Page 55: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

55

É criatura “tudo que percebemos e vemos abaixo de Deus” (Eckhart, 2008, [sermão 86] p.

127; grifo nosso), que existe segundo relações, fora da eternidade, e assim Mestre Eckhart pode dizer

no sermão 11 (2006, p. 97), em uma citação, que três são as coisas que impedem o conhecimento

de Deus: o tempo, a corporalidade e a multiplicidade. Com isso se delineia o que não cabe à livre

vontade querer. Já foi dito: tudo que é pessoal. Ou seja, aquilo que diz respeito ao eu e suas

relações. Desta vontade é devido apartar-se, sair. “Quem nada busca do que é seu, nem alguma coisa,

nem em Deus nem nas criaturas, esse habita em Deus e Deus nele habita. Para um homem assim,

é prazeroso deixar e menosprezar todas as coisas, pois o seu prazer é conduzir todas as coisas à

máxima plenitude.” (Eckhart, 2006, [sermão 10] p. 93) “Se o espírito conhecesse seu puro ser

desprendido, não mais poderia se inclinar para nenhuma coisa, tendo bem mais de persistir no

seu puro ser desprendido.” (Eckhart, 2006, p. 94) Diversas outras passagens tratam dessa

“negação da vontade” (Eckhart, 2006, [sermão 6] p. 69; [sermão 11] 97; [sermão 52] 287-292),

mas o resgate da liberdade própria da vontade consistirá, pois, em um outro querer, um querer não

voltado para fora do que realmente se é, para as criaturas, mas para aquilo que já sempre se é

intimamente, eternamente. O livre querer da vontade que não sai de si consiste no querer pura e

simplesmente. Um querer que não consiste em querer algo além de si, como ocorre à “vontade

criada” (Eckhart, 2006, p. 288) alienada na multiplicidade, na corporeidade e na temporalidade

entendida como sucessão de eventos, ou seja, à pessoalidade do eu, do tu e do ele. Trata-se antes de

um querer a si, devendo “querer e desejar tão pouco como queria e desejava quando < ainda >

não era” (Eckhart, 2006, p. 289).

Quando ainda estava na minha causa primeira, não possuía nenhum Deus, sendo assim era a causa de mim mesmo; assim eu nada queria e nada desejava, pois era um ser vazio e um conhecer de mim mesmo no gozo da verdade. Assim eu queria a mim mesmo e nada mais. O que eu queria, isto eu era, e era o que eu era, isto eu queria, estando assim vazio de Deus e de todas as coisas [criadas]. Mas quando, por livre decisão da vontade, eu saí e recebi meu ser criado, tive então um Deus [pessoal]. [...] [...] lá onde o supremo anjo, a mosca e a alma são iguais, lá onde eu estava e queria o que eu era e era o que eu queria. (Eckhart, 2006, p. 289; grifo nosso)

Neste último modo de querer consiste o nada-querer do pobre, o qual, sendo ainda um

querer, consiste no querer da vontade livre, una com o verdadeiro Deus que era, como essa

vontade, antes das criaturas. Nada querendo além do que se é, não se é determinado por outro,

por um motivo externo; nada conhecendo além de si, não se sabe algo outro, sabe-se apenas (o)

que é; nada possuindo além do que já sempre se tem, não se é ocupado por outro – em cada caso,

a liberdade é na ausência do “não”, da “falta”; a vontade é livre do “não”-si-mesmo e, portanto,

não se volta para outro fora de si nem pelo outro se determina. Na ausência da alteridade, para a

Page 56: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

56

vontade não-individual, tudo é um, simples, e o próprio Deus, causa primeira, sou eu, livre

também enquanto não-causado por outro, causado tão-somente por mim, e não será senão pela

própria vontade que advenho criatura, venho a ser alteridade de Deus e, portanto, alteridade de mim

mesmo, aderido ao “não” – como criatura, como indivíduo, sou também tudo aquilo que não sou;

por exemplo, sou uma criatura que não é eterna.

Contudo, como resgatar tal liberdade originária uma vez determinado enquanto criatura? A

resposta seria: através de um certo olhar não criatural como o de um sujeito para um objeto, mas

um olhar da indiferenciação a que se desvela a unidade de ser, a unidade de vontade, uma

vontade incondicional, um querer incondicionado. Talvez, a mais esclarecedora exposição sobre

o sentido de tal vontade encontre-se na seguinte passagem do sermão 5b (Eckhart, 2006, p. 67),

logo após o discurso sobre o “não”:

Quem pelo espaço de mil anos perguntasse à vida: “Por que vives?” – se ela pudesse responder, não diria outra coisa a não ser: “Eu vivo porque vivo”. Isso vem porque a vida vive do seu próprio fundo e emana a partir do seu próprio. Por isso vive sem porquê, justamente por viver < para > si mesma. Quem, pois, perguntasse a um homem verdadeiro, que opera a partir de seu próprio fundo: “Por que operas tuas obras?” – se quisesse responder direito, não diria outra coisa a não ser: “Eu opero porque opero”.

Fica já bastante claro que esta liberdade nada tem a ver com a escolha de meios ou a ação

determinada por motivos, nada tem a ver com justificativas. A formulação “viver sem porquê”

consiste em viver em virtude da própria vida, sem razão e sem motivo, um nada-pelo-que viver

segundo o qual não se vive para algo, em vista de se atingir algo que ainda não se é, querendo algo

que ainda não se tenha, descobrindo algo que ainda não se saiba; é-se pelo puro e simples ato de

querê-lo, na faticidade de simplesmente ser por-si-próprio e para-si-próprio, livre de pré-

determinações ou pro-jetos, sem haver sido lançado no mundo por um outro, por uma outra

vontade. Qualquer outro motivo, qualquer outra alteridade, todo “não” encontra-se suspenso na

superação da pessoalidade criatural, e por isso mesmo este “viver por si e para si” nada tem a ver

com egoísmo. Nesta negação de todo querer-o-que-não-sou, de todo ter-em-vista o que é não-eu,

que não é meu próprio, abre-se a perspectiva da compaixão (Mitleid), que não consiste em

penalizar-se pelo outro como outro, mas no outro como eu mesmo, não por mera analogia entre o

sofrimento do outro e o meu próprio sofrimento, mas por identidade de um só sofrimento (Leiden)

com(mit)-partilhado. Superada a criaturidade, são indiferentes o outro-conhecido, ou outro-próximo,

e o outro-desconhecido, ou outro-distante; isto porque são, antes de tudo, indiferentes o outro e eu

mesmo. Nesta com-unidade essencial de uma só vontade livre e não-subjetivada/objetivante se

funda o verdadeiro amar sem ver a quem; não há quem neste amor, amor superior, divino em razão

Page 57: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

57

de, como já mostrara Santo Agostinho, não se dirigir à multiplicidade dos corpos, à pluralidade

das criaturas segundo afetos particulares. Pode-se ainda dizer, contrariando a compreensão usual,

já manifesta em Platão, que amor, sob este ponto de vista, não é relação, não é sentimento, não é ativo,

tampouco passivo; incomensurável a qualquer paixão, consiste no que surge mediante (ou dispõe

para) a supressão do desejo particularmente interessado, mediante a reconquista da liberdade pela

qual se é o que se é, incondicionalmente. Amar e ser-livre, neste caso, são também como um e o

mesmo, alheios a todo “não”, a toda diferença, a toda eleição, o que, por sua vez, talvez permita-

nos melhor compreender a possibilidade do caráter universal da soteriologia evangélica.31

Com efeito, esta aparente digressão parece elucidativa, e isto com o aval do próprio

Schopenhauer (2004, [§68] p. 486), que afirma que em parte alguma de seu desenvolvimento “o

espírito do Cristianismo [...] foi mais perfeita e fortemente expresso” como em Mestre Eckhart,

sendo digno de nota que a influência deste pensador sobre Schopenhauer é também reconhecida

por Russell (1967, p. 304). Aliás, esta expressão “mais perfeita” do espírito do Cristianismo deve

ser entendida como expressão do espírito da santa re-signação, como perfeita expressão da

própria perfeição. Trata-se não apenas de um mero “renunciar”, ou de um “anular” no sentido da

supressão do pecado como “marca” (signum) da existência. O latim resignare admite ainda os

sentidos de “descobrir”, “deslacrar”, “abrir” segredos ocultos, “desocultar”, “desvelar” a verdade,

arrancar o “selo” da existência, que consiste em nosso caráter pessoal aderido aos fenômenos da

vontade nele representados. Àquele que atinge a perfeição não há de se apresentar coisa alguma a

desejar, a querer além do que já se é. Trata-se de uma negação do “não” implicado em toda

escolha – ver capítulo 5, abaixo –, em toda preferência, em toda diferença, de modo que, na

compaixão, o eu se desfaz na alteridade de tal modo que a relação distanciadora é suprimida

juntamente a seus polos, fazendo recair toda diferença fenomenal no nada que, em verdade, a

constitui, segundo as palavras de Mestre Eckhart. A própria palavra “perfeito”, do latim perfectus

(acabamento, aperfeiçoamento), já indica o caminho para a compreensão de seu sentido: trata-se

daquilo que se encontra em cada parte feito, acabado, atual, sem falta, carência, necessidade. O

que é perfeito é, por definição, absolutamente livre, não lhe cabendo que recusar na mesma

medida em que, e justamente porque, acabado e pronto, nada se lhe pode adicionar ou retirar,

nada lhe falta ou excede. Nega-se todo “não” inerente à vida, e não a própria vida, tampouco a

vida que é minha enquanto relação com outros. Por esta razão, além das articulações possíveis com

temas relativos ao trágico nietzscheano, encontramos nas parábolas de Zaratustra um explícito

31 Neste sentido, juntamente à consideração da tragicidade da existência, deve ter lugar uma discussão mais aprofundada sobre o sentido do amor, incluindo o amor ao mundo e à vida, conforme já indicado em nota anterior. Aqui, encontra-se tão-somente uma indicação preliminar da pertinência desse tema à problemática geral do presente trabalho.

Page 58: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

58

assentimento a esta noção de perfeição, que, por sua vez, parece compatível à perspectiva

schopenhaueriana a respeito da castidade enquanto nada-querer além-de-si. Trata-se de uma

passagem de “O Canto Ébrio” (§9), o penúltimo canto da última parte de Assim falou Zaratustra,

onde se lê:

E tu, videira! Por que me louvas? Mas se te cortei! Eu sou cruel, tu sangras: – que pretende o teu elogio da minha ébria crueldade? “Tudo o que se tornou perfeito, tudo o que está maduro – quer morrer!”, assim falas. Abençoada, abençoada seja a tesoura do vindimador! Mas tudo o que não amadureceu quer viver; oh, dor! A dor diz: “Passa, momento!” Mas o que sofre quer viver, para tornar-se maduro e prazenteiro e almejar, – almejar algo mais longínquo, mais elevado, mais claro. “Quero herdeiros”, diz o que sofre, “quero filhos, não me quero a mim.” – O prazer, porém, não quer herdeiros, não quer filhos – o prazer quer a si mesmo, quer eternidade, quer retorno, quer tudo eternamente igual a si mesmo. Diz a dor: “Despedaça-te, sangra, coração! Caminha, perna! Voa, asa! Para a frente! para o alto! Oh, dor!” pois muito bem! Ânimo! Ó meu velho coração. – A dor diz: “Passa, momento!” (Nietzsche, 2000a, p. 375-376)

Com efeito, a videira, com a satisfação da vida, diz “sim!” à morte, mas não por querê-la

como fuga da dor que inspira o desejo de mudança, mas, pelo contrário, porque apenas aquilo

que uma vez termina pode retornar. Este canto dionisíaco da videira, fonte do inebriante vinho

da vida, o vinho que, conforme uma velha expressão latina, alegra o coração humano, anunciando

já a afirmação trágica do eterno retorno, exprime com clareza o lugar do “sim” à morte que, na

verdade, afirma o ter-vivido o bastante, o ter-superado o “não” à vida próprio àqueles que

buscam em algo além, em algo outro, o prazer de desembaraçar-se de si mesmo, da própria dor,

como se tal fosse possível. Não que a vida tenha ela mesma se esgotado e perdido sua força. Pelo

contrário, nesta afirmação trágica, afirma-se o presente, o momento, o tempo próprio do vigor da vida

como uma plenitude que nada deixa a desejar, além da qual nada há a almejar, uma realização mais

alta ou um crescimento a que se deva avançar e progredir. No momento presente se afirma tudo

que nele converge e se quer eternamente, sem correção, sem emenda, sem futuro ou esperança. O

prazer autêntico, diferente de qualquer contentamento na fruição temerosa e voraz do que se

possui e se pode perder, nada quer do futuro, mas tão-somente a eternidade de sua presença; a dor,

sim, exige futuro a fim de que o momento doloroso passe e não mais retorne, sem se dar conta de

que, desse modo, a própria passagem do momento prazeroso faz-se dolorosa – o homem

ressente-se do passar e cultiva a dor do tempo, o que certamente exige estudo pormenorizado de

suas formas: o ressentimento, o tédio, a ansiedade e o temor.

Esta parece ser a essência do nada-querer próprio a uma vontade enfim liberta e des-

iludida. No outro extremo é que se encontram o medo da morte e a fuga da dor, a negação

Page 59: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

59

propriamente negativa em que é a própria vontade que se encontra impedida de se realizar; nesse

medo da morte é que a maioria nutre seu querer-viver, como veremos abaixo no capítulo 6, assim

como nessa fuga da dor alimenta esperanças de felicidade e posteridade, sempre em uma

encoberta recusa de si mesmo, em uma autoilusão. Além disso, já aparece nesta passagem uma

distinção entre a dor como fato da vida, inerente à própria fisiologia, e o sofrimento, um

sentimento em relação àquela dor que nos indica, antes, um comportamento em face dela ao qual se

opõe a alegria. É, portanto, possível uma alegria na dor – a alegria trágica –, que admite a dor

como fato da vida como o é também o prazer.32 Diante do exposto, consideramos

profundamente pertinente, para elucidação da problemática schopenhaueriana, tanto uma

adequada aproximação de Nietzsche quanto, mais ainda, uma justa remissão a Eckhart. Contudo,

uma posição crítica deve ser confrontada, jamais evitada: a de Heidegger.

2.4. O não-querer em Heidegger: observações iniciais sobre a serenidade

Fica assim claro que Mestre Eckhart e, extensivamente, Schopenhauer, embora

concebendo a serenidade “no domínio da vontade”, não a concebem como “abandono da

vontade própria em prol da vontade divina”, de uma vontade outra e absoluta que simplesmente se

oponha ao “egoísmo pecaminoso” tal como interpreta a tradição, inclusive Heidegger ([s.d.], p. 35)

na conversa sobre a essência do pensamento entre um investigador (Forscher), um erudito (Weise) e

um professor (Gelehrte).

Deve-se observar que a questão da serenidade (Gelassenheit) passa, mesmo em Heidegger,

pelas questões do conhecimento, da essência do pensamento e da essência do próprio homem,

não sendo a serenidade redutível a um mero estado de alma, um sentimento. Não se trata, porém,

de desvincular a serenidade do estar-liberto (Gelassensein) da “transcendência horizontal”, mas de

dizer que não é por ele precedida necessariamente (Heidegger, [s.d.], p. 49), uma vez que

horizonte e transcendência são experienciados “a partir dos objetos e da nossa atividade de

representação e são definidos apenas em relação aos objetos e à nossa atividade de

representação” (p. 38). Vimos que tanto em Mestre Eckhart quanto em Schopenhauer a

serenidade tem lugar à luz de um nada-querer essencial e mais originariamente alheio à perspectiva

do mundo como representação, de modo que não pode estar a ele condicionada como um efeito

implicado em uma causa. Justamente por isso parece inadequado compreender-se o nada-querer

32 Mais uma vez, o presente estudo deve constituir uma preparação para a tematização da alegria trágica, bem como das indicadas formas assumidas pela “dor do tempo”, tematização esta que torna necessária uma cuidadosa abordagem do eterno retorno nietzscheano, o que evidentemente extrapola nossas atuais pretensões.

Page 60: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

60

como precedido pelo estar-liberto, mas como o próprio estar-liberto que, por definição, não se

encontra submetido à causalidade, menos originária enquanto princípio de representações. Como

diz o professor no diálogo (Heidegger, [s.d.], p. 34), a serenidade “não é provocada, mas sim

permitida”. A liberdade refere-se a um liberar, não a algo de causado. A isto acrescenta o erudito

que se trata de “aceder a algo que não é um querer”, ou seja, não remete a algo dado que se nos

ponha como objeto ou como motivo. Segundo a formulação de “Sobre a essência da verdade”:

“A liberdade se revela então como o que deixa-ser o ente” (Heidegger, 2000f, p. 161).

Na referida conversa sobre o pensamento, em que se discute sobre a essência do

pensamento, reconhece-se a necessidade de superar a concepção de pensamento como

representação e como querer – ou como vontade – que teria vigorado ao menos até Kant. No

entanto, mesmo se a essência do pensamento não-é ela mesma pensamento, e se por

“pensamento” se entende representação, talvez seja apressado afirmar que a essência do

pensamento é, portanto, não-querer do mesmo modo e no mesmo sentido que é não-

representação. Afinal, como temos visto até aqui, “não-querer”, “nada-querer”, consistem em

expressões demasiado ambíguas e, como tais, obscuras e obscurecedoras.

Erudito: Não-querer significa, em primeiro lugar, um querer, um querer dominado por um não, mesmo no sentido de um não que incide sobre o próprio querer e o recusa. Não-querer significa, portanto, recusar voluntariamente o querer. A expressão não-querer significa, também, em segundo lugar, o que é pura e simplesmente estranho a todo o tipo de vontade. Investigador: Por isso, também nunca pode ser realizado e alcançado por meio de um querer. Professor: Mas talvez nos aproximemos dele através de um querer do tipo do não-querer designado em primeiro lugar. [...] Investigador: Será a minha presunção correta ao determinar a relação entre um não-querer e o outro da seguinte forma? Quer um não-querer no sentido da recusa do querer a fim de que, através deste, possamos avançar em direção à procurada essência do pensamento, que não é um querer ou, pelo menos, prepararmo-nos para tal. Professor: Não só a sua presunção é correta como, pelos Deuses, diria eu se eles não nos tivessem abandonado, descobriu algo essencial. Erudito: Se competisse a algum de nós tecer elogios e se tal não estivesse fora do estilo das nossas conversas, estaria tentado a dizer que você nos superou e se superou a si próprio com a interpretação da expressão ambígua “não-querer”. (Heidegger, [s.d.], p. 32-33)

Parece entrar em jogo a já apontada distinção entre Wille e Willkür. O primeiro sentido do

não-querer explicitado pelo erudito parece consistir naquele a que se refere Schopenhauer, e não é

de todo descartado, mas, pelo contrário, tomado como mediador para o não-querer no segundo

sentido. Entretanto, se esta “recusa voluntária do querer” for entendida, como parece ser o caso,

Page 61: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

61

à luz de algum “tipo de vontade”, a saber, uma escolha deliberada (Willkür), então nos encontramos

no oposto do que efetivamente significa a “negação da vontade” em Schopenhauer, pois é

precisamente a Willkür que é suprimida pela Wille que se nega. Como foi dito, na negação da

vontade se suprime tudo aquilo que suscita preferências, escolhas ou deliberações: a visão do

mundo como multiplicidade segundo o princípio de individuação, sendo somente segundo esta

visão que se pode deliberar, escolher, pois sempre está aí implicada mais de uma alternativa. A

possibilidade da contradição do querer pelo querer como expressão da liberdade da vontade

apenas chama a atenção para o “estranhamento a todo tipo de vontade” como estranhamento em

relação à mobilização de um sujeito por objetos de desejo uma vez que a dicotomia sujeito-objeto

se encontra superada. Pela mesma razão, o pensamento cuja essência está sendo buscada não se

confunde com a mera representação de objetos do entendimento. Sendo a liberdade própria à

vontade como coisa em si, segundo Schopenhauer, e não ao fenômeno, somente ela, que não é

uma propriedade de uma subjetividade transcendental, dado que, de seu ponto de vista, não há

tais coisas como “objetos transcendentais”, não há um “horizonte” segundo o qual se nega

objetos. Nesse caso, o diálogo entre um investigador, um erudito e um professor traz e reitera

uma corriqueira confusão quanto ao sentido das palavras de Schopenhauer, a qual somente se

sustentaria se a coisa em si pudesse ser tida como uma subjetividade transcendental que, ao negar,

negasse objetos, ou seja, fenômenos ou representações, quando, na verdade, trata-se de um liberar-se do

mundo como representação pela supressão do individual. Assim entendido, o diálogo, com

efeito, exprime antes uma simpatia com o que diz Schopenhauer:

Professor: Quando acedemos à serenidade em relação à Região [Gegnet] queremos o não-querer. Investigador: A serenidade é, de fato, o libertar-se do representar transcendental e, assim, um prescindir do querer do horizonte. Este prescindir já não procede de um querer, a não ser que o motivo para a admissão [Sicheinlassen] na pertença à região [Gegend] careça de um vestígio do querer, vestígio esse que, porém, desaparece na admissão e se extingue por completo na serenidade. [...] Erudito: Já o fato de a regionalização da Região, bem como o Condicionamento, serem essencialmente exteriores a qualquer atividade ou causação, mostra quão decisivamente toda essência da vontade é estranha a tudo isso. Professor: Pois toda vontade quer efetividade e quer a realidade efetiva como seu elemento. (Heidegger, [s.d.], p. 57)

A pertença à Gegend poderia ser traduzida como a pertença ao mundo (ôntico) como

representação, não havendo diferença essencial entre a Gegend e o horizonte em sua relação

conosco (Heidegger, [s.d.], p. 38-40), estando sempre referida segundo nossa atividade de

representação – ressoa aí o significado do termo alemão “gegen”, a noção de algo que se opõe e

Page 62: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

62

contrapõe, traduzindo a partícula “ob” que constitui o termo “objeto”, donde Gegenstand, aquilo

que se contra-põe, que está-diante-de. Desse modo, Gegend aproxima-se da categoria lugar. Por sua

vez, em Heidegger, a Gegnet (p. 41) diz respeito à “extensão livre” em seu sentido ontológico mais

originário, “extensão” esta mais originária em que não têm caráter de objeto as coisas que nela

aparecem. Por isso a Gegnet não é um espaço ôntico, potencial objeto determinável segundo as

categorias de uma Geometria ou de uma Geografia.33 Não há, pois, na Gegnet, objetos a que se

dirigir a Willkür como fenômeno subjetivo e motivação abstrata da Wille. Acontece que a Wille é

condição de toda Willkür ou, dito melhor, toda Willkür supõe uma Wille objetivada e objetivante,

isto é, uma vontade individualizada dirigida a representações. Daí dizer que “toda essência da

vontade é estranha a tudo isso”. Entretanto, é evidente que o texto de Heidegger supõe a vontade

no sentido não apenas de uma faculdade do espírito, mas também, e em especial, de forma

metafísica a vigorar em todo interesse. Já vimos quão inadequado é transpor para a coisa em si o

caráter da vontade individualizada no fenômeno.

Portanto, a afirmação “toda essência da vontade é estranha a tudo isso” só é correta se se

aceita antecipadamente que toda vontade quer efetividade, ou seja, realizar-se como ente, “existir”,

viver, “fazer coisas”, como atividade ou causação. Ora, se, por um lado, é o próprio Schopenhauer

a dizer que vontade e vontade-de-viver são o mesmo, por outro enfatiza que a vida é um

fenômeno determinado. Significaria, então, dizer que a vontade, como coisa em si, livre, quer

necessariamente, segundo sua própria essência, não-ser-livre. Isto se mostra como um completo

contrassenso na medida em que tem como resultado que toda vontade é, por sua própria natureza,

pré-determinada pelo fenômeno da vida, ou seja, que vontade de “nenhum tipo” é em si mesma

livre. Em última análise, não-querer converte-se em um absurdo, em uma impossibilidade constitutiva

devido à autolimitação inerente à própria essência da vontade. Tal aparente inconsistência só

pode ser solucionada se se considera que Schopenhauer, ao identificar a coisa em si com a

vontade-de-viver, está apenas se referindo ao mundo tal como se nos mostra, como fenômeno

ordenado, e não como é em si mesmo, o que escapa às possibilidades de conhecimento e de

discurso – em capítulo posterior (6) chegaremos a uma alternativa mais apropriada do que esta

interpretação meramente preliminar acerca da identidade entre vontade e vontade-de-viver.

Prevalece, nesse caso, a afirmação de que a coisa em si é livre e incondicionada. Mas dissemos

acima, à luz da tematização nietzscheana, que o próprio da vontade é, sim, afirmar-se na

33 A essência do pensamento, uma vez distinguida do pensamento como representação segundo categorias e como querer interessado, deverá então consistir na “serenidade em relação à Gegnet” (Heidegger, [s.d.], p. 56). A noção de “região” aí considerada já havia sido tematizada no §22 de Ser e tempo, mas, naquele contexto, o que aqui se denomina Gegnet, era então chamado Gegend. Não que Heidegger tenha mudado de ideia ou mesmo invertido sua posição inicial; Heidegger busca escapar ao conteúdo usual de Gegend, similarmente a quando passa a adotar a grafia Seyn em lugar de Sein.

Page 63: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

63

existência, na efetividade, no mundo da vida... Acontece que, em primeiro lugar, tal afirmação é

apenas sua possibilidade mais própria, porém não a única, assim como, em segundo lugar, na

afirmação segundo a negação, o existir desde então é um acontecimento liberador do jugo próprio à

vida fenomenal. Em outras palavras, a Vontade se faz (e é em si mesma) exterior a tudo aquilo

que é próprio às suas manifestações, e apenas por isso há a possibilidade da autonegação.

Por esta razão não se deve perder de vista, por trás da obscurecedora declaração de que

“vontade é vontade-de-viver”, que Schopenhauer diz só se poder tratar da Vontade segundo seus

modos de expressão, os quais são de duas espécies: afirmação e negação do querer-viver. Toda

vontade quer, e então consiste no fundo de todo querer algo, único modo pelo qual se mostra

positivamente à intuição, mas daí a afirmar que vontade é apenas afirmação como efetividade vai

uma longa distância, pois: primeiramente, e essencialmente, a Vontade é em si mesma cega, isto é,

não-dirigida a qualquer objeto determinado ou representado, prescindindo de toda realização e de toda

vitalidade; em segundo lugar, toda direção da vontade a objetos é entendida por Schopenhauer

como desconhecimento da Vontade por ela mesma, ou seja, algo, em certa medida, impróprio na medida

em que a liberdade encontra-se aí ausente... Não há liberdade no mundo como representação. Em

síntese, de modo algum o efetivar-se pode ser considerado essencial à Vontade em si mesma, mas

tão-somente aos seus modos positivos de expressão, ou seja, a seus fenômenos. O fenômeno é,

portanto, a Vontade como que decaída de si mesma – o caráter e o sentido desta queda serão

tratados mais profunda e pormenorizadamente em momento posterior.

Não deve, todavia, ser nossa tarefa buscar resguardar a todo custo a “liberdade da vontade”

como fizeram tantos pensadores, mas analisar com rigor sua possibilidade, sobretudo quando é o

próprio Heidegger a se ocupar mais satisfatoriamente do “ser-livre” em sua positividade.

Portanto, a depreciação de Schopenhauer por Heidegger se deve a um posicionamento deste

último em previamente vincular o primeiro a uma tradição que, de fato, merece a crítica. Pode-se

ainda arriscar o palpite de que Heidegger tem Schopenhauer em mente nesse diálogo, ainda que

de maneira implícita, e não apenas os citados Kant e Mestre Eckhart. Este palpite parece

encontrar respaldo na resposta do investigador à última fala do professor aqui transcrita,

aparentemente alusiva a Nietzsche, notório devedor de Schopenhauer:

Com que facilidade não poderia uma pessoa que nos ouvisse dizer isto ser levada a afirmar que a serenidade paira no irreal e, desse modo, na nulidade, e é mesmo destituída de qualquer energia ativa, um permitir avolitivo de tudo e, no fundo, a negação da vontade de viver! (Heidegger, [s.d.], p. 57)

A negação da vontade de viver é uma provável alusão a Schopenhauer, pois nenhum outro

pensador é tão conhecido por esta doutrina e a crítica implícita na fala citada coincide com aquela

Page 64: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

64

de que nos ocuparemos no próximo capítulo. Aqui, o investigador manifesta a compreensão

dessa negação como algo meramente negativo, dessa nulidade como um vazio e desse “permitir

avolitivo” como mera apatia. Acreditamos já ter sido mostrado com suficiência não ser este o

caso em Schopenhauer, tampouco em Mestre Eckhart – em cujos sermões também foram

explicitados elementos para um pensamento da negação da vontade –, mas alguma dúvida ainda

pode permanecer na medida em que há nessa fala algo de um evidente esforço no sentido de

desvincular um não-querer do outro, o de Heidegger daquele de Schopenhauer (ou de Mestre

Eckhart), de um não-querer “niilista”. Nesta oposição ao não-querer apático, atribuído

explicitamente alhures por Heidegger a Schopenhauer como saldo final de seu pensamento, o

diálogo prossegue propondo uma positiva admissão que, irredutível à dicotomia ativo-passivo34,

que ainda guarda relação com a vontade deliberativa (preferir fazer ou não-fazer), remete ao tema

da “resolução”, ou decisão (Entschlossenheit). Eis o que mais nos interessa no presente momento.

A decisão é tematizada no §60 de Ser e tempo e diz respeito ao movimento estrutural de

abertura do Dasein que de fato tem primazia sobre toda e qualquer “escolha” fatual na medida em

que esta não apenas a supõe como também consiste sempre em uma recusa e, portanto, em um

fechamento de possibilidades, conforme já dito acima e ainda há de ser melhor explorado mais

adiante (capítulo 5). Por razões de cunho metodológico, e no intuito de preservar a ordem

expositiva, o tema “decisão” não pertence ao presente momento, mas àquele dedicado à

“angústia de ser-livre”, ou seja, à positividade existencial da liberdade; neste capítulo, tematizamos

antes a negatividade em geral em seu sentido ontológico. Antes disso, e mediante o que tem sido

discutido até então, faz-se necessário realizar um breve esboço da história do conceito de

34 A carta Sobre o humanismo (Heidegger, 1967), em seu todo, traz muitas contribuições relativas à questão de que agora nos ocupamos, em especial como crítica aos pares de oposição próprios ao discurso lógico-metafísico. Com relação ao problema específico da atividade, leia-se, por exemplo: “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a Essência [das Wesen] do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade [Wirklichkeit] se avalia por sua utilidade. A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar [Voll-bringen]. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência.” (p. 23-24). “Assim o pensamento é um atuar. Mas um atuar que, ao mesmo tempo, ultrapassa toda prática. O pensamento não supera o operar e o produzir pela magnitude de sua eficiência nem pelas consequências de sua eficácia [Wirken] mas pela pouca monta de seu con-sumar, desprovido de efeito e sucesso.” (p. 95-96). Também é de se notar nesse texto de Heidegger (p. 94) a compreensão de “vontade” no Idealismo alemão, remetendo-nos a um dos sermões de Mestre Eckhart aqui citado apenas em parte: “A Essência do Ser é pensada aqui como a vontade incondicionada no sentido de realidade absoluta. Essa vontade se quer a si mesma e se quer a si mesma como a vontade do saber e do amor. É nessa vontade que se oculta o Ser, como a vontade de potência”. Fica claro a que é reduzido, ou segundo que perspectiva acerca do sentido de “vontade” Heidegger pode encontrar em Schopenhauer uma vontade como realidade ou efetividade absoluta, o ente na totalidade, estendendo isto a Nietzsche e mesmo a Mestre Eckhart em certo sentido. Contudo, dever-se-á compreender que não é este o caso, bem como que o querer schopenhaueriano, em si, diz respeito antes ao existir do que ao agir, conforme ficará claro nos capítulo 4 e 6, abaixo. Note-se também que Heidegger acaba caindo na mesma equívoco por ele criticado na medida em que ele mesmo, entendendo “vontade” como vontade de operação, não encontra na negação schopenhaueriana nada mais do que uma niilista recusa da efetividade movida pela não-utilidade de toda volição, considerada a marca do “pessimismo” de Schopenhauer, também já problematizada neste estudo. De todo modo, como já indicamos acima, concordamos com a exigência de se tematizar essa “vontade do saber e do amor”.

Page 65: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

65

“liberdade” em busca da essência da liberdade da vontade (capítulo 4). Um único passo, porém,

parece ser exigido para dar início a tal história, qual seja, explicitar de modo mais convincente o

equívoco cometido por Heidegger em sua leitura da negação schopenhaueriana da vontade (de

viver) (capítulo 3). Tal explicitação pode ser empreendida a partir da polêmica acerca do conceito

de “interesse”/“desinteresse” no âmbito da discussão sobre o Belo em Kant, a qual, em razão

mesmo das associações possíveis entre Estética e Ética, já permite uma proveitosa antecipação do

tema do conceito de “liberdade”, a ser discutido no âmbito de uma “destruição” histórica.

Page 66: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

3. Heidegger contra Schopenhauer: digressão sobre o “(des-)interesse”

Antes de explorarmos o conceito schopenhaueriano de “desinteresse” e sua crítica por

Heidegger, comecemos por sua procedência, a saber, pelo que dissera Kant (2008, [B 5] p. 49) a

respeito do “interesse” na Crítica da faculdade do juízo.

Chama-se interesse a complacência [Wohlgefallen] que ligamos à representação da existência de um objeto. Por isso, um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição, quer como seu fundamento de determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinação.

É precisamente a ausência dessa espécie de complacência (i.e. prazer compartilhado,

comprazimento) que caracterizará, segundo Kant, o juízo estético. Ou seja, o juízo estético não

apresenta vínculo com representações de objetos particulares (objetos a posteriori do

conhecimento empírico). Por esta razão, não se trata aí de objetos de apetição, ou desejo, entes

exteriores que determinem nossa vontade condicionando-a direta ou indiretamente –

respectivamente, “como fundamento” ou “como vinculando-se necessariamente ao fundamento

de determinação”. Antes de qualquer coisa, pode-se perceber que a proximidade entre juízo

estético e juízo moral não é “inventada” por Schopenhauer, de maneira que há, já em Kant, uma

aparente remissão ao ético na apreciação do belo, pois lhe serve de base o conceito de

“liberdade”, segundo o qual o sujeito moral é aquele que não se encontra condicionado por

inclinações, instintos ou fins pragmáticos exteriores a si. Sobre isto, observa, em nota, Robles

(1992, p. 90, n. 10):

No §42 [da Crítica da faculdade do juízo], falando da analogia exata entre o juízo puro de gosto e o juízo moral, e do uniforme interesse imediato em seus respectivos objetos, diz Kant “A isso se acresce a admiração da natureza, que se mostra em seus belos produtos como arte, não simplesmente por acaso, mas por assim dizer intencionalmente, segundo uma ordenação conforme a leis e como conformidade a fins sem fim; este [fim], como não o encontramos exteriormente (ausserlich) em lugar algum, procuramo-lo naturalmente em nós próprios (in uns selbst) e, em verdade, naquilo que constitui o fim último de nossa existência, a saber, a destinação moral [...]”35 (B 170-171).

35 A citação de Kant é traduzida conforme edição brasileira de 2008 por nós utilizada.

Page 67: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

67

A liberdade da vontade não depende da existência de objetos, de maneira que o imperativo

categórico é a forma de um juízo proposta por Kant em contraposição a uma ética de fins (o bem,

a felicidade etc.) ou utilitária. Salientando este ponto, em cujos pormenores deveremos nos deter

mais abaixo (capítulo 4.2), cabe-nos recordar o que diz Kant a respeito do desinteresse que

caracteriza a moralidade, tal como exposto na terceira seção de sua Fundamentação da metafísica dos

costumes.

Mas, por que é que devo eu submeter-me a este princípio, e isso como ser racional em geral, e portanto todos os outros seres dotados de razão? Quero conceder que nenhum interesse me impele a isso, pois daí não poderia resultar nenhum imperativo categórico; e contudo tenho necessariamente que tomar interesse por isso e compreender como isso se passa [...] e sobre que é que fundamos o valor que atribuímos a tal modo de agir, valor que deve ser tão grande que não pode haver em parte alguma nenhum interesse mais alto [...]. (Kant, 2007, [BA 102-103] p. 97-98)

Trata-se, pois, de um desinteresse por qualquer objeto exterior cuja representação nos

condicione, contraposto a uma autônoma tomada de interesse pela própria liberdade da vontade, na

qual se encontra satisfação. Será também no belo que, como na lei moral, um comprazimento36

incondicionado e universal será encontrado.

Cada um tem de reconhecer que aquele juízo sobre beleza, ao qual se mescla o mínimo de interesse, é muito faccioso e não é nenhum juízo-de-gosto puro. Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas ser a esse respeito completamente indiferente para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz. Mas não podemos elucidar melhor essa proposição, que é de importância primordial, do que se contrapomos à complacência pura e desinteressada no juízo de gosto, aquela que é ligada a interesse [...]. (Kant, 2008, [B 6-7] p. 50)

36 A palavra “comprazimento” traduz “Wohlgefallen”, uma condição de bem-estar, havendo também sido utilizados por Kant “Komplazenz”, bem como o latim “complacentiam”, termos que indicam não um prazer individual, mas compartilhado. Em atenção ao uso diverso e por demais restrito de “complacência” na linguagem corrente, que o aproxima de “compaixão”, sofrer ou padecer junto, sentir ou sofrer com(o) o outro, preferiu-se aqui “comprazimento” segundo as pertinentes razões apontadas por Rohden (1992, p. 124) como sendo as de Marques. O fato de “complacência” favorecer a aproximação entre Ética e Estética não parece justificar que a “forcemos” lexicalmente. Contudo, manteve-se a palavra “complacência” nas citações da tradução de Rohden. Já com relação à palavra “satisfação”, utilizada por Torres Filho em sua tradução mais antiga (Kant, 1974a), tendo em vista a pretensão à universalidade e necessidade (v. Loparić, 1992, p. 55, n. 4) que caracterizam o juízo de gosto e sua comunicabilidade, deve-se fazer a ressalva de que o termo carrega um sentido alheio ao que se pretende indicar, qual seja, o de “saciedade” – “satisfactio” significa também “reparação”; “satis” está ligado a “suficiência”. Ou seja, “satisfação” se empregaria mais adequadamente como referência a um estado em que uma necessidade é atendida, uma falta é preenchida, uma exigência, cumprida, o que, decerto, não é o caso no que se refere ao prazer estético, mas sim quando se trata de um interesse, de uma cobiça ou carência, necessidade.

Page 68: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

68

Mas é o próprio Kant a esclarecer, em nota, que: “Um juízo sobre um objeto da

complacência pode ser totalmente desinteressado e ser contudo muito interessante, isto é, ele não se

funda sobre nenhum interesse, mas produz um interesse; tais são todos os juízos morais puros”.

Se ele se detivesse neste ponto, se poderia dizer que Schopenhauer negligencia o caráter

“interessante” – embora não interessado a priori – do juízo-de-gosto, porém conceder sua

analogia com o juízo moral. Todavia, embora a relação exista, Kant prossegue dizendo que,

exceto em sociedade, “em si os juízos de gosto também não fundam absolutamente interesse algum” (grifo

nosso). Portanto, não são nem interessados nem interessantes em si mesmos, pois não tratam de

“um objeto da complacência”, mas da complacência em si mesma, independentemente dos

demais seres humanos – melhor dizendo, concernem ao com-prazimento como tal em sua

universalidade. Conforme mostra Caygill (2000, p. 199), a distinção entre interesse imediato da

razão (puro e prático) e interesse patologicamente mediato da razão, constante na Fundamentação,

não se aplica ao contexto da Crítica da faculdade do juízo justamente por não termos aí a exigência

da existência real do objeto. Afinal, prossegue Kant (2008, [B 6] p. 49-50): “Se alguém me

pergunta se acho belo o palácio que vejo ante a mim”, quer

saber somente se esta simples representação do objeto em mim [i.e., subjetiva e imaginativamente, e não como realidade] é acompanhada de complacência, por indiferente que sempre eu possa ser com respeito à existência do objeto desta representação. Vê-se facilmente que se trata do que faço dessa representação em mim mesmo, não daquilo em que dependo da existência do objeto, para dizer que ele é belo e para provar que tenho gosto.

Não há, pois, qualquer objetividade no comprazimento, mas uma espécie de puro

sentimento. Tendo em vista o elogio que Heidegger faz a Kant, seguindo Hegel, Schopenhauer é

“vilanizado” em sua apreciação, e não apenas por haver, inadvertidamente, desviado Nietzsche37,

mas toda a apreciação posterior da estética kantiana, que teria sido “interpretada equivocadamente

por Schopenhauer da maneira mais fatídica possível” (Heidegger, 2007a, p. 101; ver Cacciola,

1999, p. 5). Com efeito, é uma enorme responsabilidade que recai sobre Schopenhauer... A

37 Nietzsche teria formulado sua crítica a Kant pautado na leitura de Schopenhauer do desinteresse, opondo-lhe uma concepção de arte como estando “ligada aos interesses vitais” ao invés de possuir “um caráter ascético” (Brum, 1998, p. 101). Nesse sentido, Nietzsche estaria seguindo Stendhal, para quem, segundo diz na “Terceira Dissertação” da Genealogia da moral, §6, o efeito do belo é “precisamente a excitação da vontade (‘do interesse’)” (Nietzsche, 1999, p. 95). Vontade excitada, motivada, é sempre interessada. No mesmo lugar, ainda diz Nietzsche, mostrando que não lê Kant como Schopenhauer: “E não se poderia, por fim, objetar a Schopenhauer mesmo que ele errou em se considerar kantiano neste ponto, que de modo algum compreendeu kantianamente a definição kantiana do belo [...]?”. “A fórmula kantiana do prazer desinteressado que fornece o belo só é possível se fizermos abstração do papel do homem como criador do mundo estético.” (Brum, 1998, p. 100) Já naquele trecho da Genealogia... Nietzsche contrapõe a estética do criador à estética do espectador. Para Nietzsche (2000b, p. 77-82 [“Incursões de um extemporâneo”, §§19-20/ 22-24]), a beleza, como a feiúra, são criações enraizadas mesmo em nossa fisiologia; a beleza se liga ao eros como ao impulso reprodutor, sendo a arte “o maior estimulante para a vida”.

Page 69: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

69

passagem tomada por Heidegger em sua crítica é a conclusão do “primeiro momento do juízo de

gosto” na “Analítica do Belo”, onde se lê a seguinte definição: “Gosto é a faculdade de

ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou

descomplacência independente de todo interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo”

(Kant, 2008, [B 16] p. 55; Heidegger, 2007a, p. 99). Logo, o que compraz não é o objeto belo,

mas o belo como objeto, sendo por isso que o juízo de gosto prescinde da existência do objeto que

carregue o belo como uma propriedade. Heidegger então interpreta essa independência de

interesse como significando um não “querer ter algo para si” a fim de utilizá-lo ou dele dispor

como meio para algo. “Quando tomamos um interesse por algo, o estabelecemos em vista de

algo que queremos empreender e a que, com isso, aspiramos. Isso pelo que tomamos um

interesse é sempre tomado, representado já em vista de algo diverso.” (Heidegger, 2007a, p. 100)

De fato, Heidegger deixa claro que o interesse se refere àquilo que deve seu valor não a um fim

intrínseco, mas, ao contrário, extrínseco. Trata-se, pois, de um valor meramente relativo, pois, na

ausência do fim exterior, o objeto em si mesmo é destituído de serventia e, por conseguinte,

desinteressante, inútil. Nisto mesmo a filosofia guarda profunda afinidade com a arte, bem mais

profunda do que supunha Aristóteles (981 b 17-20). Em termos kantianos, seria dizer que o

objeto de interesse é aquele que satisfaz a inclinações, e não à vontade entendida como

racionalidade prática, em si mesma autônoma.

É nosso objetivo na presente etapa do estudo preparar as bases para a discussão da

essência da liberdade à luz das reflexões ético-políticas e suas respectivas limitações ou

contribuições. Para tanto, deve-se antes explicitar a relevância ontológica do conceito de

“interesse” superando a interpretação utilitária – i.e. material/causal – segundo a qual indica-se

uma relação mediata com um fim. Mediante essa superação, dever-se-á explicitar a essência do

interesse como relação em contraste à perspectiva do desinteresse como possibilidade liberadora,

permitindo, assim, uma reavaliação da posição de Heidegger em face de Schopenhauer. Tal

reavaliação é sumamente necessária, como veremos, ao estabelecimento de um possível diálogo

amistoso entre seus respectivos posicionamentos filosóficos, possibilidade esta que, por si só,

constitui imenso problema que não poderá ser aqui levado a suas últimas consequências.

3.1. A interpretação meramente utilitária do interesse

Uma vez que o belo consiste em um objeto, segundo Heidegger, inutilizável como

instrumento para o que quer que seja, a conclusão tirada é a de que, “para acharmos algo belo

Page 70: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

70

precisamos deixar aquilo mesmo que vem ao nosso encontro” ou seja, não buscado

deliberadamente em função de algo “vir até diante de nós puramente como ele mesmo, em sua

própria estatura e dignidade” (Heidegger, 2007a, p. 100). Desse modo a obra de arte nos abre

algo de originário. Precisamos, prossegue Heidegger, “liberar o que vem ao encontro como tal no

que ele é, deixar e permitir-lhe alcançar o que pertence a ele mesmo e o que ele pode trazer para

nós” (grifo nosso). Isto porque Heidegger, primeiramente, explica o interesse por uma outra via

que não a da mera finalidade: a da apropriação. O objeto de interesse é aquele do qual nos apropriamos

em vista de um fim segundo o qual esse objeto pode ser modificado por nós, já tendo sido antes

adequado a nós enquanto simples meio para um fim que lhe é extrínseco. Esta consideração é

particularmente importante para Heidegger, pois, além de estar marcada por sua interpretação da

vontade de poder como vontade de vontade, se contrapõe à perspectiva de liberar o ente para o

seu ser-próprio, deixá-lo ser tal como é para-si, isto é, a coisa-mesma como tal e não apenas para-

nós. Neste sentido, convém observar que toda essa apreciação que Heidegger faz do belo em

Kant é estritamente a mesma de Hegel, que diz, em alusão à primeira passagem citada (Kant, 2008,

[B 5] p. 49):

Quando temos um interesse, por exemplo, de curiosidade ou um interesse sensível para nossa necessidade sensível38, um desejo de posse ou de consumo, os objetos são importantes não por causa deles mesmos, mas em face de nossas necessidades. O existente tem então um valor somente diante de uma tal necessidade e a relação é de tal natureza que, por um lado há um objeto e por outro uma determinação distinta dele, mas para a qual referimos o objeto. Quando, por exemplo, consumo o objeto para dele me nutrir, este interesse somente reside em mim e permanece estranho ao próprio objeto. A relação com o belo, porém, segundo Kant, não é desta natureza. O juízo estético deixa de lado o objeto [Objekt] em vista dele mesmo, na medida em que concede ao objeto [Gegenstande] possuir sua finalidade em si mesmo. (Hegel, 2001, [86] p. 76)

Claro é, no entanto, que a não-apropriação do objeto se deve ao reconhecimento do fato

de ele ter seu fim em si mesmo, tal como, em sua filosofia moral, diz Kant (2007) ao afirmar que

o homem, enquanto detentor de uma dignidade própria, não deve ser utilizado como simples meio,

mas respeitado como fim em si é notória a persistência da conexão entre a ética e a estética

kantianas, manifesta no caráter não apenas incondicionado, mas também inapropriável do belo

como do bem. Isto fica ainda mais claro nas três características destacadas a seguir por Hegel

(2001, [86-89] p. 76-78), estando intimamente ligada a esta primeira (a dignidade própria), a

38 Esta consideração reitera a necessidade de, uma vez explicitada a imensa importância existencial do interesse, aprofundarmos o estudo acerca de suas expressões como “vontade do saber” e “vontade do amor”, a primeira voltada para satisfações intelectuais e a segunda para satisfações afetivas.

Page 71: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

71

terceira, segundo a qual “o belo deve possuir a Forma da conformidade a fins, na medida em que

esta conformidade a fins é percebida no objeto sem a representação de uma finalidade” – por

isso, conformidade a fins sem fim. Ou seja, se o objeto não tem sua finalidade em algo que lhe

seja exterior, qual seja, os fins de um sujeito, sua finalidade reside nele mesmo, segundo sua

dignidade própria e livremente. Por conseguinte, não sendo distintos e separados a finalidade e o

objeto, segundo Hegel, “a finalidade e a estrutura material estão tão imediatamente unidas, que a

existência apenas é quando sua finalidade nela habita”, de maneira que “o belo não deve trazer

em si a conformidade a fins como uma Forma exterior, mas a correspondência conforme a fins

do interior e do exterior deve constituir a natureza imanente do objeto”. Em síntese, dando-se ao

comprazimento, o objeto resta tal como é em-si e para-si, sem qualquer intervenção por parte do

sujeito deste comprazimento, o que vem reforçar o seu caráter incondicional e incondicionado.

De acordo com esta apreciação, em si mesma precisa, é que Heidegger cai no “lugar

comum” da má leitura de Schopenhauer que atribui a este último uma má leitura de Kant.39 Para

Heidegger (2007a, p. 99), Schopenhauer recai na compreensão vulgar de “desinteresse” como

“indiferença ante uma coisa ou um homem” determinado, sendo neste sentido superficial que

deveríamos entender a suspensão (ascética) da vontade.

Se a relação com o belo, o deleite, é determinada como “desinteressada”, então o estado estético se mostra, de acordo com Schopenhauer, como uma suspensão da vontade, um aquietamento de toda aspiração, o puro aquietar-se, o puro não-mais-querer, o puro pairar na ausência de participação. (Heidegger, 2007a, p. 99)

39 Muito desta má leitura é por vezes devido ao fato de Schopenhauer não se vincular ao chamado neokantismo, tampouco ao chamado Idealismo Alemão, e isto por pensar na contracorrente, valorizando a “Estética Transcendental” no lugar e em detrimento da “Lógica Transcendental”, a qual ele simplesmente põe de lado no que se refere à “Doutrina Transcendental dos Elementos”. Recorde-se ainda a furiosa falta de compostura com que Schopenhauer se refere a contemporâneos como Fichte, Schelling e Hegel. O curioso, e talvez mais grave, é que a rejeição de Schopenhauer por Heidegger não se deve a isto, mas antes ao modo como o primeiro se insere na história da metafísica mediante sua doutrina da Vontade. Ora, é o próprio Heidegger a afirmar no curso do semestre de inverno de 1935-1936, Que é uma coisa?, o seguinte: “A filosofia deles [Fichte, Schelling e Hegel] formou-se tendo por base a filosofia de Kant – ou melhor, o seu repúdio – até aquilo que, nas exposições históricas correntes, é conhecido pelo nome de ‘Idealismo Alemão’. Nesta filosofia, Kant foi, com todo o respeito, ultrapassado, mas não superado. Tal não poderia acontecer, porque a verdadeira posição-de-fundo de Kant não foi atacada, mas, simplesmente, abandonada; não foi sequer abandonada, porque quase não foi assumida – foi apenas contornada.” (Heidegger, 2002, [§14] p. 66; grifo nosso) Que posição-de-fundo seria esta? Por razões de economia, damos apenas uma pista: “A primazia da lógica, na Crítica da razão pura, tem unicamente a sua base na não-primazia do objeto da lógica e na posição auxiliar do pensar face à intuição. [...] A pequena extensão da Estética – como primeira doutrina autônoma da intuição – é apenas uma aparência exterior. Porque a Estética é agora o decisivo, quer dizer, porque ela desempenha em todo o lado o papel determinante, é que ela dá tanto que fazer à lógica. Por isso a lógica deve ter uma tal extensão.” (Heidegger, 2002, [§24 e] p. 146; grifos nossos). Isto mostra que Heidegger deixa de reconhecer em Schopenhauer, ao menos, o primeiro pensador a assumir dedicadamente a “posição-de-fundo de Kant”, sacrificando nesse movimento, como bem se sabe, sua própria carreira acadêmica.

Page 72: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

72

Heidegger (2007a, p. 100) então se pergunta se o desinteresse kantiano será mesmo esta

indiferença, esta suspensão da vontade, ou se, pelo contrário, “não é, antes, o empenho supremo

de nossa essência, a liberação de nosso si mesmo para a restituição livre do que tem uma

dignidade própria em si, a fim de que ele só o tenha puramente”. Heidegger adota a segunda

resposta, dizendo ser do malentendido acerca do interesse que advém a “opinião errônea de que a

suspensão do interesse impede toda e qualquer ligação essencial com o objeto” (Heidegger,

2007a, p. 101).

O contrário é o caso. A ligação essencial com o próprio objeto entra em jogo justamente quando é levada a termo “sem interesse”. Não se vê que somente agora o objeto ganha a aparência como objeto puro, que esse ganhar-a-aparência mesmo é o belo. A palavra “belo” visa ao aparecer no reluzir de tal aparição.

Cabe mostrar, em primeiro lugar, que o suposto malentendido de Schopenhauer acerca da

noção de “interesse” ou de “desinteresse” consiste, antes, em um malentendido de Heidegger acerca

da noção schopenhaueriana de “vontade”. Em segundo lugar, cabe mostrar aliás, o mais

surpreendente que Heidegger não discorda do que Schopenhauer de fato diz em sua obra (!).

Desconsiderando-se por agora a transposição particularmente fenomenológica com que

Heidegger procura traduzir Kant40, passemos à questão em destaque tão logo retornemos à

diferença entre o juízo moral e o juízo de gosto para salientar que não basta ao comprazimento

estético que seu objeto seja dotado de um fim em si mesmo.

Não nos deixemos levar pelo que diz Heidegger de modo a perdermos de vista que mesmo

o fato de o objeto ser dotado de dignidade própria é condição apenas necessária, mas não

suficiente para a contemplação estética do belo. Aquilo que é bom, por exemplo, pode sê-lo de

dois modos: bom para algo ou bom em si mesmo. No primeiro caso, apraz como meio e, portanto, por

causa de outro; no segundo, apraz por si mesmo (Kant, 2008, [B 10] p. 52). Não é necessário

reiterar que o belo não é um utensílio o que é muito importante para Heidegger , pois isto já é

dito implicitamente quando se recusa a qualidade “belo” a tudo aquilo que “apraz como meio”.41

40 Isto ocorre especialmente em cursos como, por exemplo, Que é uma coisa? e Os problemas fundamentais da fenomenologia, ministrado em Marburg no semestre de verão de 1927. Neste último, encontramos o seguinte: “A razão da deficiência da explicação kantiana dos conceitos relativos à existência se encontra provavelmente à vista: Kant ainda trabalhava com uma psicologia muito rudimentar. Poder-se-ia crer que, se houvesse tido a possibilidade, de que dispomos hoje, de investigar de forma exata algo como a percepção, em vez de mover-se em meio a construções conceituais dualistas e perspicácia vazia, teria podido situar-se no terreno das ações e então teria-lhe surgido igualmente uma visão distinta da natureza da existência.” (Heidegger, 2000b, [69] p. 78-79) Reduzindo Schopenhauer a seu contexto, sua originalidade ficara oculta para Heidegger sob o véu da “psicologia rudimentar” própria à época. 41 Dizer que uma caneta é bela, quando não por um uso abusivo da língua, nada pode ter a ver com a escrita, com o manuseio ou com o que é por ela traçado, ou seja, sua beleza não só nada tem a ver com seu uso como é bastante comum que “belas canetas” sejam poupadas do uso, mas, ao contrário, preservadas; percebe-se ainda que “bom”, neste

Page 73: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

73

Mas o objeto dotado de dignidade, bom em si e por si mesmo, é, também, ainda um objeto de

interesse para o juízo moral, e seu caráter aprazível se dá “mediante a razão pelo simples conceito”.

Sua superioridade relativa ao objeto agradável reside no fato de este último ser aprazível à

sensação por intermédio dos sentidos (i.e. a posteriori). O juízo pelo qual se declara um objeto

como sendo agradável expressa “um interesse pelo mesmo”, que “mediante sensação ele suscita

um desejo de tais objetos”, de maneira que tal “complacência pressupõe não o simples juízo

sobre ele, mas a referência de sua existência a meu estado, na medida em que ele é afetado por um tal

objeto” (Kant, 2008, [B 9] p. 51-52; grifo nosso). Em outros termos, o agradável é experimentado

segundo as formas da sensibilidade, estando restrito ao conteúdo sensível da experiência, de

modo que não é capaz de produzir senão inclinações portanto, sentimentos condicionados a

objetos dos sentidos. Como veremos, “estar-referido-a” traduz com perfeição o significado de

“interesse”. O bom, por sua vez, se apresenta como bom ao entendimento, supondo sempre um

interesse pela existência de algo, ainda que meramente possível, como a felicidade nisto é

pertinente à vontade, referido a ela.

O agradável, visto que como tal representa o objeto meramente em referência ao sentido, precisa ser primeiro submetido pelo conceito de fim a princípios da razão, para que se o denomine bom, como objeto da vontade. Mas que então se trata de uma referência inteiramente diversa à complacência se aquilo que deleita [i.e., o agradável] eu o denomino ao mesmo tempo bom, conclui-se do fato que em relação ao bom sempre se pergunta se é só mediatamente-bom ou imediatamente-bom (se útil ou bom em si); enquanto em relação ao agradável, contrariamente, essa questão não pode ser posta, porque a palavra sempre significa algo que apraz imediatamente. (O mesmo se passa também com o que denomino belo). (Kant, 2008, [B 11-12] p. 52-53)

Mas nem isto faz do agradável algo mais próximo do belo, justamente por ser sempre objetal

no sentido de estar inscrito em uma relação de cognição entre sujeito e objeto, onde este é um

fenômeno por oposição à coisa em si, submetido, pois, às formas da sensibilidade, assim como o

bom o está a conceitos determinados. Segundo Kant (2008, [B 13-14] p. 54), o agradável e o bom

concordam no fato de que

sempre estão ligados com interesse ao seu objeto, não só o agradável (§3), e o mediatamente bom (o útil), [...] mas também o absolutamente e em todos os sentidos bom, a saber, o bem moral, que comporta o máximo interesse. Pois o bom é o objeto da vontade (isto é, de uma faculdade da apetição determinada pela razão). Todavia, querer alguma coisa e ter complacência na sua existência, isto é, tomar um interesse por ela, é idêntico.

exemplo, é uma qualidade bastante ambígua. Já um objeto belo quando pode ser bom para uma decoração, não belo para uma decoração.

Page 74: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

74

A seguir, Kant [B 14] enfatiza que não é “simplesmente o objeto [que] apraz, mas também

sua existência” no caso do agradável e do bom, razão pela qual “o juízo de gosto” é meramente

contemplativo, não se tratando, contudo, de uma contemplação “dirigida a conceitos”. O juízo de

gosto não é um “juízo de conhecimento (nem teórico nem prático) e, por isso tampouco é fundado

sobre conceitos e nem os tem por fim”. Temos aí a base para a segunda característica apontada por

Hegel (2001, [86] p. 76), a universalidade: “Kant diz que o belo deve ser aquilo que é representado

sem conceito, isto é, sem categorias do entendimento, como objeto de um comprazimento

universal.” É justamente na medida em que o belo prescinde da relação de correspondência – i.e.

referência – a conceitos que deve despertar imediatamente um comprazimento, o qual, sem a

mediação do entendimento, não carrega absolutamente nada de subjetivo ou de contingente.

Depreende-se disto que a existência fenomenal não é o que importa ao juízo de gosto, seja ela

efetiva ou meramente possível, de maneira que, se há o belo como objeto de um juízo estético,

trata-se de um objeto muito peculiar que escapa tanto à sensação quanto ao conceito

determinado que ordinariamente, segundo Schopenhauer, determinam a vontade individual.

Sendo assim, o objeto belo não comprazerá nem por sua materialidade sensível nem por sua

inteligibilidade conceitual, mas sem qualquer mediação, tal como se fosse a própria coisa em si ela mesma,

tal como diz Schopenhauer no terceiro livro de O mundo... O caráter especialíssimo desse

“objeto”, que é o belo, é algo de fundamental para a compreensão do sentido preciso do

desinteresse kantiano. Acaba de ser mostrado que, se de fato não se trata de uma indiferença, não

é redutível à mera incondicionalidade, com o que Heidegger e mesmo Hegel parece se

contentar mediante o acréscimo, em certa medida supérfluo, do caráter não-instrumental ou não-

utilizável/apropriável do belo.

Cabe aqui um breve parêntese para dizer que Heidegger parece, hegelianamente, partir da

ideia de que a relação com o objeto (em geral) é efetivamente posta em jogo, em sua realidade

própria, quando a não-intervenção do sujeito libera o objeto em seu ser-em-si-e-para-si. Por sua

vez, parece que Kant, e também Schopenhauer, dizem algo além disso. A mera incondicionalidade

e não-utilidade não esclarecem a natureza própria do belo, pois, nesse caso, perder-se-ia a distinção

fundamental feita por Kant entre o juízo moral e o juízo de gosto recorde-se que o juízo moral (universal)

também não serve como garantia para a conquista da felicidade e o encontro do sumo bem. Se

Schopenhauer reduz a estética à ética, ou, pelo contrário, funda sua ética na possibilidade aberta

pela contemplação estética, trata-se de um outro problema42 se fosse este o caso, de fato estaria

42 “Mais do que uma banal deturpação de leitura fundad[a] no mau entendimento do conceito de desinteresse kantiano, compreendido como ascetismo ou degrau para se atingir a negação da vontade, o que se descobre em Schopenhauer é a radicalização de uma postura que vê na arte não propriamente uma depuração de um mundo toldado pelos interesses sensíveis, mas a elaboração de uma obra que, embora inscrita no sensível, fala uma outra

Page 75: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

75

se desligando de Kant, o que, aliás, Schopenhauer faz explicitamente em muitas ocasiões, e

poderemos ver, em capítulo posterior, por que a ética kantiana não lhe poderia servir de base.

Quanto a isto, basta-nos, na presente oportunidade, reconhecer que o juízo moral, assim como o

juízo de gosto, seja em Kant, seja em Schopenhauer, ou mesmo em Heidegger ou Hegel, deva

prescindir de inclinações.

Pode-se dizer que, entre todos estes [três] modos de complacência [Komplazenz] [o que deleita como agradável, o que apraz como belo e o que se estima, aprova como bom], única e exclusivamente o do gosto pelo belo é uma complacência desinteressada e livre; pois nenhum interesse, quer o dos sentidos, quer o da razão, arranca aplauso. Por isso, poder-se-ia dizer da complacência que ela, nos três casos nomeados, refere-se a inclinação ou favor ou respeito. Pois favor [Gunst] é a única complacência livre. Um objeto da inclinação e um que nos é imposto ao desejo mediante uma lei da razão [objeto do respeito] não nos deixam nenhuma liberdade para fazer de qualquer coisa um objeto de prazer para nós mesmos. Todo interesse pressupõe necessidade ou a produz; e, enquanto fundamento determinante da aprovação, ele não deixa mais o juízo sobre o objeto ser livre. (Kant, 2008, [B 15-16] p. 55)

Com isto faz-se ainda mais claro o que pretende dizer Kant com a palavra “interesse”: a

constatação de uma relação de necessidade que liga o sujeito a seu objeto dispondo um em função do outro, seja

este objeto um meio para um fim (querer por inclinação) ou um fim em si mesmo (querer por

respeito). Ademais, Kant também defende – ver abaixo, capítulo 4.2 – que o desprazer na ação

pode indicar que se age por dever, não por inclinação. Desse modo, o caráter não-instrumental,

universal e de conformidade a fins intrínsecos não exaurem a distinção feita por Kant entre o

juízo moral e o juízo de gosto. O desinteresse diz então de uma não-necessidade e um não-dever,

de modo que as questões dos fins e da utilidade sequer se colocam aí imediatamente. Vale

observar que a última passagem citada pode favorecer equívocos, os quais se deve eliminar antes

de se prosseguir. O fato de apenas o juízo de gosto ser livre não contradiz a liberdade da vontade

enquanto, no dizer de Kant, razão pura prática, assim como o fato de o respeito não produzir um

livre comprazimento não significa que ele mesmo não se funde na liberdade tal como a entende

Kant, isto é, como autonomia. Afinal, como esclarece o próprio Kant a seguir, o respeito é respeito

pelo dever, pela necessidade da ação moral segundo a lei da razão, a qual, embora tenha a liberdade

da vontade como fundamento, uma vez convertida em objeto de aprovação pela razão em suas

máximas, torna-se condicionante de todo agir, por isso não permitindo liberdade ao juízo sobre o

linguagem que não a do senso comum e da ciência [que explicam o mundo segundo as representações da racionalidade abstrata], a saber, a do sentimento [que exprime imediatamente a realidade intuitiva]. Embora aproxime ética e estética, na sua metafísica do belo, o pensamento de Schopenhauer guarda a especificidade desta última, e seria bem difícil dizer se, nele, é a ética que contamina a estética ou, ao contrário, se não é justamente a estética que contagia a ética, já que esta se funda em um sentimento metafísico, a compaixão, que contraria os interesses egoístas.” (Cacciola, 1999, p. 13)

Page 76: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

76

objeto (a lei moral). Por isso não será este o caminho que tomaremos em nossa crítica a Kant.

Embora não se trate de um objeto da inclinação (sempre condicionante), trata-se de um objeto

que obriga e “faz com que se tome interesse” na medida em que foi feito interessante, segundo a

distinção já exposta acima. É na medida em que o juízo moral contém algo de subjetivo como

elemento de separação perante o fim objetivo da vontade que a universalidade do imperativo

categórico não produz um comprazimento universal, restando como mero dever que pode ser

cumprido ou não, e ainda ser cumprido sem prazer algum – pelo contrário! Aí reside a insuficiência

do dever com relação ao belo no que diz respeito ao comprazimento no modo do favor.

3.2. Interesse como relação ontológica

Há ainda outras observações a serem feitas. A ênfase de Heidegger na não-utilidade própria

ao desinteressante se justifica etimologicamente. Em alemão, “desinteresse” pode ser dito como

Uneigennützigkeit, ou ainda como Gleichgültigkeit. O primeiro termo diz, literalmente, o caráter de

ser impróprio para utilização; o segundo termo, cujo sentido literal indica que algo tem o mesmo

valor (que outro), consiste precisamente naquilo que se traduz ordinariamente por “indiferença”.

Inutilidade e indiferença são relações meramente negativas. Fica claro que Heidegger atribui a

Schopenhauer a compreensão vulgar de desinteresse como Gleichgültigkeit – que ocorre diversas

vezes em O mundo..., inclusive e sobretudo em referência aos estoicos – opondo a isto a noção de

desinteresse enquanto Uneigennützigkeit – que ocorre apenas uma vez em O mundo...43 Como

consequência, a ênfase heideggeriana parece na verdade inverter o que dissera Kant: para um, a

não-apropriação se deve à dignidade; para outro, a dignidade se deve à não-apropriação. Segundo

Heidegger, portanto, é na medida em que deixamos que o objeto seja por-si que sua beleza aparece

enquanto dignidade própria, podendo-se dizer que nisto consiste o que ele denomina “ligação

essencial com o objeto”, ou seja, o modo próprio da relação sujeito-objeto, na qual nenhum dos

dois se retira, ao contrário do que segundo ele defendera Schopenhauer; pelo contrário,

apresentam-se como tais. Entretanto, não é assim que Kant e Schopenhauer entendem o

desinteresse, mas como Interesselosigkeit, o oposto de Interesse – termo que supera a todos em

ocorrências em O mundo... –, idêntico a seu correlato latino.

Tanto Interessent como Beteilligter (“interessado”) não se referem a utilidade ou valoração,

mas a relação, precisamente àquela de encontrar-se em meio a (inter-) algo que é (-esse), um ente ou

43 Vale notar, todavia, que Heidegger, na conferência “Que é metafísica?”, utiliza justamente o termo “Gleichgültigkeit” para referir-se à relação de indiferença com as coisas e nós mesmos na angústia, o que se explica pelo fato de, na angústia, o ente em sua totalidade não mais se encontrar à mão, passível de ocupação.

Page 77: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

77

representação do ente dado. Teil significa “parte”, Teilung, “divisão”, de modo que o oposto disto

é a indivisão, a não-partição, a indiferenciação que não é o mesmo que indiferença no gosto ou

na escolha dentre coisas distintas, mas de igual valor; ademais, a indiferença nada tem a ver com

moralidade (Kant, 1974b, 369-370)44 e, portanto, não há liberdade na indiferença, como repetidas

vezes também dirá Schopenhauer. De acordo com o que diz Robles (1992, p. 88, n. 8), em nota,

acerca da indiferença quanto à existência do objeto: “Ela não deve ser confundida, obviamente,

com uma suposta passividade: é, pelo contrário, a atividade plena do ‘livre jogo’. E, não obstante

o juízo não seja produtivo como o é o gênio e seu sujeito possa carecer de toda destreza

produtiva [hacedora], nessa atividade também tem lugar uma certa produtividade.” Tal

produtividade é a da imaginação, conforme expusera Kant na Crítica da razão pura. Sendo assim,

trata-se de uma indiferença no sentido ontológico a priori, não no sentido valorativo a posteriori, isto é,

com relação a algo em particular. Como observa Kulenkampff (1992, p. 69, nota), espécies de

comprazimento “somente podem ser especificadas segundo razões”, ou seja, proposicionalmente,

discursivamente, embora o prazer como tal não diferencie. A propósito, o próprio Heidegger

reconhece essa noção de “interesse” como Interesse, uma inócua relação onde “indiferença” é

antes uma consequência do próprio interesse do que a designação de seu contrário, conforme

significado por Kant e, em especial, por Schopenhauer em seu tratamento sobre o tédio mediante

a voracidade da vontade, cuja ação em nós não é outra senão produzir interesse. Eis a definição de

Heidegger (2007d, p. 113):

Inter-esse quer dizer: ser sob, entre e no meio das coisas; estar numa coisa de permeio e junto dela assim persistir. Para o interesse atual, porém, vale só o interessante. O interessante faz com que, no instante seguinte, já estejamos indiferentes e mesmo dispersos em alguma outra coisa que, por sua vez, tampouco nos diz respeito quanto a anterior. Hoje, acredita-se frequentemente dignificar algo achando-o interessante. Na verdade, com um tal juízo, subestimamos o interessante levando-o para o domínio do indiferente e assim o empurramos para o âmbito daquilo que logo se tornará tedioso.45

44 V. nota 5, de Kant, na página 369: “Uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) seria meramente uma ação resultante de leis naturais, que não estão em qualquer relação com a lei moral, como lei da liberdade, enquanto não é um fato e em relação a si não acontece, nem é necessária, nem como mandamento, nem como proibição, nem mesmo como permissão (autorização legal).” Significa que se trata de uma ação sem razão e sem motivo; um efeito sem causa, como repetirá Schopenhauer. Na página seguinte, Kant procura mostrar que ser bom ou mau indiferentemente significaria decidir-se ora por leis universais, ora por leis particulares, o que implicaria uma contradição da razão consigo mesma; o que normalmente há é a sujeição do universal ao particular mediante as propensões da natureza humana à fraqueza, à impureza ou mesmo à maldade (Kant, 1974b, p. 374). A separação entre o natural e o moral em Kant será mais detalhadamente analisada no próximo capítulo. No presente momento, deve apenas ficar claro que um “gosto indiferente” não pode ser considerado um gosto propriamente dito, não havendo sentido em reconhecer o belo ou o sublime em um estado de indiferença. 45 Já em Ser e tempo Heidegger tratara de comportamentos correlatos do Dasein como, por exemplo, a curiosidade. A busca frenética por novidades, por importância, já são ali tratadas como dispersão, como relação imprópria com o tempo. Neste sentido, a adesão ao “interessante” caminha a par da efemeridade de nossas ocupações bem como do consequente descomprometimento com relação àquilo que a cada vez merece nossa atenção. Trata-se, pois, de um elemento adicional a ser devidamente preparado para uma tematização mais aprofundada, nisto residindo um dos

Page 78: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

78

Ora, tanto em Kant quanto em Schopenhauer, embora de modos distintos, temos a

apresentação de uma existência humana dividida, partida em dois “mundos” incomensuráveis,

tema a ser explorado em nosso próximo capítulo. Todo o valor da estética enquanto Filosofia do

Belo, para ambos os pensadores, cada qual a seu modo, reside precisamente no fato de tratar da

reconciliação entre as partes cuja unidade reside no próprio homem, sendo este mesmo o papel da

Crítica da faculdade do juízo como um todo.

Na arte não se está mais no âmbito do indivíduo, mas do universal. Isto se dá graças à ausência do interesse subjetivo próprio ao indivíduo e ao seu querer-viver. Nesse ponto fica patente uma concordância [da estética schopenhaueriana] com a estética kantiana, pois para Kant é o desinteresse que torna possível a universalidade para o juízo estético, já que o caráter privado do interesse a impediria. (Cacciola, 1999, p. 10)

O homem é aquele cujos juízos põem em relação o empírico e o inteligível, o físico e o

metafísico, o natural e o moral, a representação e a vontade, o fenômeno e a coisa em si.

Interesse não é o objeto mesmo, tampouco um mero sentimento, mas a relação objetiva e

objetivante entre dois entes, conforme já se indicou, a saber, o sujeito e o objeto, que são o que

são por esta relação, nela e para ela. Assim, como observa Safranski (1991, p. 294), “o ‘interesse’

não surge do conhecimento, mas o precede e nos abre uma dimensão completamente distinta”

daquela consolidada na tradição filosófica, a qual fazia o interesse proceder do conhecimento,

reduzindo ao conhecimento até mesmo os sentimentos. O termo latino “esse” indica o ente, aqui

considerado na relação posta pelo “inter”, que significa não apenas “entre”, “no meio de”, “junto

a”, mas também “durante”, “para”, “em direção a”, de modo que expressa não apenas relações

estáticas, mas um movimento espacial e/ou temporal de um ponto a outro, a proximidade como tal

em sua possibilidade, o próprio movimento do ato volitivo como tal. Por isso interesse pode ser

dito o mesmo que excitação da vontade. O des-interesse é então a supressão da mediação volitiva entre

eu e não-eu, liberando e estabelecendo o caráter imediato próprio ao juízo de gosto. Logo, não pode

ter lugar aqui qualquer espécie de “ligação essencial com o objeto”, como quer Heidegger, pois o

objeto não é belo enquanto objeto, mas o belo é que é o belo como tal, sendo por isso que Kant

faz abstração da existência, ou efetividade: o objeto como tal é dispensado e “substituído” pelo

belo em si e por si. O belo, por sua vez, não é algo intuído pelos sentidos, de modo que não é

coisa (res) com que se possa entrar em relação e então sofrer de determinação subjetiva. Embora

o bom não seja também intuído pelos sentidos, é, segundo Kant, pensado pela inteligência,

aspectos que evidenciam a centralidade do interesse na problemática existencial aqui iniciada. Ver também Rosset (2000, p. 127-136), que discute a fuga do tédio tematizado a ideia de “importância”.

Page 79: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

79

tornando-se um objeto ideal cuja existência é desejada pela vontade que, então, por ele toma

interesse. Desse modo, a exigência kantiana de existência por parte do sujeito interessado se deve à

necessidade de um ente com que se entre em relação, o que, no entanto, não ocorre quando se

trata do belo. Diz Robles (1992, p. 84):

Esta noção [de prazer desinteressado], que em princípio é paradoxal – todo prazer parece ser interessado, enquanto supõe existência: a do objeto, a do sujeito, ainda que seja somente essa dimensão que Kant denomine “patológica” –, deve ser interpretada como um comprazimento imediato, isto é, imediatamente ligado à atividade pela qual a representação do objeto é aprovada, e referida, pois, não à existência deste, mas à sua presença.

A condicionalidade, a finalidade, a necessidade, a inclinação, a utilidade, não são pertinentes

ao belo pelo simples fato de serem modos ou categorias daquilo que Heidegger procura preservar

em sua terminologia: ligações. Neste sentido, as palavras de Hegel (2001, [87] p. 76-77) parecem

mais precisas: “na observação [Betrachtung] do belo não tomamos consciência do conceito e da

subsunção que se opera sob esse conceito e não deixamos que aconteça a separação do objeto

singular e do conceito universal”, como ocorre no juízo (moral), que estabelece sempre uma

relação (subjetiva) de correspondência. Com efeito, não será tanto Kant quanto Schopenhauer a

observar que todo juízo, seja moral, seja de gosto, sempre supõe o recurso ao princípio de razão,

sendo, portanto, sempre subjetivo e relativamente inadequado à expressão daquele

comprazimento – ver abaixo. Em conexão com a quarta e última característica o caráter

necessário do comprazimento que prescinde da correspondência a um conceito46 , Hegel (2001,

[88] p. 77-78) destaca, a título de conclusão, que:

Em todos estes enunciados kantianos encontramos, pois, uma inseparabilidade daquilo que em nossa consciência sempre era pressuposto como separado. Esta separação encontra-se superada no belo, na medida em que a universalidade e a particularidade, finalidade e meio, conceito e objeto se interpenetram completamente. Assim, Kant também vê o belo artístico como uma concordância, na qual o próprio particular é adequado ao conceito. O particular enquanto tal é de início contingente em relação a outros particulares e ao

universal; e justamente esta contingência na obra de arte ou seja, o sentido

[Sinn], o sentimento [Gefühl], o ânimo e a inclinação não apenas é subsumida por categorias universais do entendimento e dominada pelo conceito de liberdade em sua abstração universal, mas se encontra de tal modo unida ao universal que se mostra a ele adequada internamente e em si e para si.

46 Sobrevilla (1992, p. 46) constata que se trata “de uma universalidade e necessidade somente estéticas e não lógicas: como a dedução dos juízos de gosto mostra, podemos pressupor que a forma de um objeto natural que cause em nós a experiência do belo também a haverá de causar nos demais”. Trata-se, pois, de uma necessidade subjetiva, da sensibilidade, não do entendimento, de modo que não é algo regulado por leis.

Page 80: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

80

3.3. A positividade essencial do livre desinteresse

Feita esta crítica preliminar à abordagem relativamente insuficiente de Heidegger, mas

considerando seu efeito sobre a apreciação que faz de Schopenhauer, e mesmo a esclarecendo,

passemos à consideração do sentido da liberação da vontade em Schopenhauer segundo a crítica

heideggeriana. Para Heidegger, Schopenhauer entende ou melhor, entende mal que a

liberação da vontade com relação aos objetos que a condicionam equivaleria a uma apatia diante

da realidade pela qual toda a relação entre sujeito e objeto se perderia, ao invés de se realizar

plenamente.

A primeira observação que se deve fazer é que, para Schopenhauer, a Vontade, enquanto

coisa em si, independente do princípio de razão, é em si mesma cega, ou seja, incapaz de intuições.

Por sua vez, Kant (2001, [A 51/B 75] p. 89) havia denominado “intuições cegas” aquelas não

submetidas à unidade do conceito. Como, em Schopenhauer, todo conceito é mera abstração de

representações intuitivas (pré-racionais), poder-se-ia concluir que, para ele, toda intuição é cega, ou

seja, indeterminada, mas a filosofia de Kant é aqui reformulada. O fenômeno, uma vez que

objetiva a Vontade em geral, não é cego, ou seja, absolutamente indeterminado em sua

objetalidade. Cada qual é, pelo contrário, determinado segundo sua unidade própria: a

individualidade corpórea, intuída materialmente segundo o princípio de causalidade. A

determinidade da representação da matéria como causalidade não pode, por sua vez, ser

legitimamente estendida à coisa em si, ao mesmo tempo em que independe do conceito, cuja

unidade é uma unidade abstrata do múltiplo sensível concreto, diferente da unidade empírica de

cada individualidade. Indeterminada e cega, portanto, universal e incorpórea, apenas a Vontade

em si mesma o é; já a vontade objetivada se manifesta (fenomeniza) seguindo inclinações, sendo a

vontade-de-viver a mais fundamental neste âmbito para a primeira não se impõe qualquer tipo

de necessidade e, para ela, destituída de intuição, não se colocam objetos, tanto menos

representações de objetos de qualquer espécie. Desse modo, apenas indivíduos dotados de

entendimento que tem a função de dar unidade aos dados sensíveis são capazes de intuição

completa, e, dentre estes, apenas aqueles dotados de razão que tem a função de abstrair os

dados do entendimento são capazes de estabelecer a relação segundo a qual conhecem em

geral: a relação sujeito-objeto. Apenas as representações produzidas segundo esta relação, de

acordo com Schopenhauer, se constituem como objetos conscientes, pois todo dado que escape

a isto pertence ao âmbito não-discursivo e, assim, impensável, irrepresentável pelo intelecto.

Conclui-se disto que, se o próprio Kant admite a indeterminabilidade conceitual do belo, o

conhecimento deste que Schopenhauer não admite como um juízo, posto que apenas a razão

Page 81: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

81

(sempre discursiva) é capaz de elaborar juízos, e sempre por abstração deve ser não-discursivo

e, ao menos para Schopenhauer, intuitivo, não-racional.47 Não é à toa que, conforme diz Caygill

(2000, p. 199), o argumento da Crítica da faculdade do juízo “se desenvolve pela negação da

existência de explicações do juízo estético”. Em outras palavras, o desinteresse nada tem a ver

com a finalidade ou qualquer outra causa, mas com algo mais fundamental: a suspensão da relação

sujeito-objeto, sem a qual não é possível haver qualquer interesse finalista, tampouco explicações,

pois o próprio sujeito do conhecimento desaparece. Mas resta ainda saber se não há inclinações

para o agradável. Para que deixe de haver este último tipo de interesse, é necessária apenas a

suspensão de uma das formas da sensibilidade enquanto elemento da relação causal suspenso o

tempo ou o espaço, não há mais a que dar unidade o entendimento. Sem a unidade de espaço e

tempo produzida relacionalmente pelo entendimento, a pluralidade é subsumida à universalidade

da coisa em si, que é a Vontade, suprimindo-se assim toda espécie de relação entre indivíduos –

nesse caso, o “dado” deixa de sê-lo no instante em que se suprime sua relação comigo, o

espectador. Na condição de coisa em si, a Vontade não pode ser confundida com o desejo

condicionado ou inclinação para objetos representados, mesmo porque ela, para Schopenhauer,

precede todo e qualquer objeto na medida em que nenhum objeto se dá a não ser como

fenômeno ou sua representação. Como, então, e em que sentido se dá a suspensão da vontade,

ou, em outras palavras, suprime-se suas excitações?

Em sua crítica, Heidegger parece basear-se exclusivamente no trigésimo capítulo dos

Suplementos a O mundo como vontade e representação, intitulado “Do puro sujeito do conhecimento”.

Entretanto, na leitura da obra de Schopenhauer, é sempre necessário dar atenção ao caráter duplo

47 “Já que apontamos o caráter não individual da apreensão do belo em Schopenhauer, aproximando-o assim de Kant, a crítica que Schopenhauer faz do juízo sobre o belo não viria justamente pôr a perder tal proximidade? De fato, é por uma outra via que Schopenhauer pretende garantir o caráter universal do belo. É através da mediação da Ideia, que ele define como não abstrata, que o sentimento do belo passa a ser supraindividual. A solução schopenhaueriana exige o recurso às ideias que, como ele mesmo diz, foram tomadas de empréstimo a Platão para garantir a intuibilidade direta do belo, deixando o caráter de juízo, que segundo ele denota uma interferência do abstrato naquilo que é intuitivo. [...] Quando Schopenhauer fala da Ideia como objetivação primeira da Vontade, fica claro que o que ele pretende excluir é a participação do conhecimento racional abstrato do âmbito da arte. [...] Apesar das críticas de Schopenhauer ao ‘intelectualismo’ da teoria da arte de Kant, ambas concepções estéticas se aproximam, se vistas de modo diverso. Por um lado, [...] de fato, basta notar que o juízo reflexionante refere-se a um conceito, porém indeterminado, sendo a Ideia estética uma representação da imaginação a que nenhum conceito é adequado e ‘que [consequentemente] nenhuma linguagem alcança totalmente e pode tornar inteligível’ [Kant, 2008, [B 193] p. 159]. Por outro, numa leitura que mostre que o desinteresse em Schopenhauer não reflete apenas uma atitude niilista em face do mundo, mas tem por função principal traduzir a especificidade da arte, enquanto esta constitui uma instância ‘paralela’ ao mundo e suscetível de um outro tipo de abordagem.” (Cacciola, 1999, p. 12-14) Com efeito, a fidelidade de Schopenhauer a Platão é contestável, e controvertida, mas a apreciação heideggeriana segue a mesma direção da crítica feita à leitura de Kant por Schopenhauer: “Este esteticismo, acrescido do escárnio da filosofia (isto é, de Hegel e Schelling), cumprido por Schopenhauer e sua interpretação superficial de Platão e de Kant, fez amadurecer nas últimas décadas do século XIX um entusiasmo que usou e abusou da superficialidade e do embaçamento da não-historicidade como critério do verdadeiro” (Heidegger, 2000c, [XI] p. 70).

Page 82: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

82

da Vontade: a vontade objetivada e a vontade não-objetivada. Ademais, a Vontade se objetiva em

diversos níveis de representação:

Para se chegar a uma intuição mais profunda do ser do mundo, é essencial fazer-se uma distinção entre a vontade considerada como coisa em si e sua objetividade adequada [perfeita, i.e. imediata]; em seguida, fazer-se uma segunda [distinção] entre os diferentes graus de clareza e de perfeição dessa objetividade, qual seja, as Ideias, de um lado, e, de outro, o simples fenômeno das ideias submetido às diferentes expressões do princípio de razão e da modalidade inerente ao conhecimento individual. (Schopenhauer, 2004, [§35] p. 234-235)

O belo é encontrado na ideia, e não no fenômeno que a representa, tratando-se a ideia de uma

outra espécie de objeto. Conforme escreve Schopenhauer (2004, p. 226) no terceiro livro de O

mundo..., §32,

a ideia não é para nós senão a objetividade imediata, portanto adequada, da coisa em si, a qual, por sua vez, corresponde à vontade, mas à vontade enquanto ainda não objetivada, [ainda não] tornada representação, pois a coisa em si deve precisamente, segundo Kant, estar livre de todas as formas inerentes ao conhecimento como tal, e foi um verdadeiro erro da parte de Kant não haver incluído dentre essas formas, e no topo da lista, a forma que consiste em “ser-um-objeto-para-um-sujeito”; pois tal é a forma primitiva e a mais geral de todo fenômeno, isto é, de toda representação.

A ideia, portanto, enquanto objetividade imediata da coisa em si, sem confundir-se com

esta, é aquilo que pode ser de algum modo conhecido para além ou aquém do princípio de razão.

Como nos diz Brum (1998, p. 97-98): “Se, na atividade do conhecimento, o que importa são as

relações entre as coisas – o princípio de razão –, na arte o tempo é congelado. [...] E nesse frágil

instante o mundo surge como Ideia, como espetáculo oferecido à contemplação”. Enquanto toda

consciência individual se determina segundo esse princípio, a superação da vontade pela

inteligência entendida por Schopenhauer como sinônimo de sensibilidade pura48 consiste em

uma suspensão da vontade que move o indivíduo segundo inclinações i.e., mediante relações

entre representações condicionadas de fenômenos individuais , e não da vontade como coisa em si,

que não está em relação com coisa alguma além de, imediatamente, consigo mesma. No mesmo

capítulo dos Suplementos em que aparentemente se baseia Heidegger, lê-se:

Pois, para abarcar o mundo com uma vista puramente objetiva [i.e., não determinada pelo sujeito submetido ao princípio de razão], é necessário não mais se

48 Schopenhauer (2004, [§4] p. 35) admite a inadequação terminologia kantiana na medida em que “sensibilidade” já supõe matéria, ou seja, o objeto do entendimento. Isto indica que a controversa possibilidade de uma “sensibilidade pura” deve ser lida em Schopenhauer com reservas e considerando a deficiência da linguagem.

Page 83: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

83

saber pertinente a ele; e as coisas ganham em beleza a nosso olhar à medida que a consciência exterior aumenta e a consciência individual se dissipa. (Schopenhauer, 2004, p. 1094; grifo nosso)

Ou seja, dissipando-se a consciência individual, tem lugar não uma indiferença, mas uma

indiferenciação objetiva pois toda diferenciação supõe o princípio de individuação e, toda

consciência, uma subjetividade individual submetida ao princípio de razão individualizante

segundo a qual não mais faz sentido qualquer relação de pertinência entre o eu e o mundo como representação,

pois são agora como o mesmo. Na linguagem de Heidegger, dir-se-ia: é-se no mundo não mais

como um ente simplesmente dado dentro de outro entre simplesmente dado. Ao contrário, apenas

um sujeito pode ser “indiferente”. Neste sentido, na indiferenciação, o sujeito do querer desaparece

frente à Ideia, que então impera em sua objetividade pura; puro também é o sujeito livre do

princípio de razão, tendo em vista que não se trata tampouco de uma kantiana subjetividade

transcendental. Desse modo, o “silêncio completo da vontade” (Schopenhauer, 2004, [cap. XXX]

p. 1098), necessário a tal intuição puramente objetiva, intuição esta sempre de um “sujeito puro”,

diz respeito à vontade objetivada como subjetividade movida (determinada) por inclinações e

interesses, mas não àquela Vontade cega e incondicionada que é a coisa em si, de que a Ideia é

mera expressão objetiva para a inteligência intuitiva, não mediada, portanto, pelo entendimento

como faculdade de representação – nisto consiste seu caráter “puro”.

Pois em todo espírito, uma vez dedicado à contemplação verdadeira, puramente objetiva do mundo, despertou em si uma tendência, oculta e inconsciente que fosse, para apreender a verdadeira essência das coisas, da vida, da existência. É, com efeito, a única essência que interessa ao intelecto como tal, ou seja, ao puro sujeito do conhecimento, liberto dos fins da vontade; do mesmo modo que, para o sujeito cognoscente na qualidade de indivíduo, são os fins da vontade que, exclusivamente, apresentam algum interesse. (Schopenhauer, 2004, [cap. XXXIV] p. 1138; grifos nossos)

É de se notar que a “suspensão da vontade” consiste na liberação do intelecto com relação

aos fins da vontade, ou seja, liberação dos interesses. “A contemplação estética, segundo

Schopenhauer, designa esse nível de consciência (estético) que não tem mais nenhuma relação com

a consciência ordinária, submetida a suas funções utilitárias e aos interesses da Vontade.” (Brum,

1998, p. 89) Trata-se de uma ruptura com a relação objetal que caracteriza a existência individual

movida por representações “ilusórias”, e não de uma mera mortificação ascética como muitos

pretendem que seja, induzidos em erro graças à ênfase de Schopenhauer na mística cristã e no

ascetismo oriental. Como a Heidegger, interessa a Schopenhauer, na contemplação estética, a

realização de uma “ligação” mais própria e concreta (por oposição às abstrações dualistas

Page 84: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

84

representadas) com a realidade objetiva do mundo tal como é em-si, concretude esta que consiste

justamente na superação das representações subjetivas. A Ideia, para Schopenhauer, é ainda

representação, mas re-presentação (uma presentificação secundária) da Vontade ela-mesma, e não

(produto) da consciência individual, subjetiva. Em outras palavras, a peculiaridade do caráter de

representação da Ideia consiste em que sua determinidade não é produto de uma intuição

empírica, tampouco de uma abstração racional, ambas subjetivas.

Se atentarmos para o fato de que representação e objeto querem dizer o mesmo em Schopenhauer, ao desaparecer o hiato entre sujeito e representação, ao se fundirem os seus polos, é a própria noção de representação que está sendo posta em causa, na contemplação do belo. Na arte não mais se trata de representar o mundo fenomênico, mas a representação, ao se referir à ideia, desloca-se do múltiplo apreendido pelo entendimento, por meio do espaço, tempo e causalidade, para o uno atemporal. Assim Schopenhauer não deturpa a estética de Kant por ter lido o desinteresse como negação do corpo [i.e., da individualidade própria a todo fenômeno conforme representada pelo entendimento] e da vontade [individual] e afastamento do sensível [que só dá a conhecer objetos particulares da experiência]. A sua leitura do desinteresse é bem mais radical, na medida em que é por meio do belo desinteressado que se torna possível um conhecimento verdadeiro, não de um referente oculto, de algo real [particular], mas sim daquilo que é ideal [universal]. Ora, tal modo de conhecimento só é possível pelo viés do mundo visto como representação e não do mundo como Vontade, já que esta remete a uma atividade infinita e sem finalidade49. (Cacciola, 1999, p. 9)

Desse modo, o que se deve destacar é que “ligação” é um termo inadequado, pois toda

ligação (ou relação) propriamente dita, referindo-se a indivíduos distintos, é necessariamente

interessada, mesmo quando se trata de uma relação (negativa) de indiferença, onde não temos

mais do que um interesse às avessas, uma simples contrariedade, uma anti-patia. Uma vontade

desinteressada seria, portanto, uma vontade liberta de si mesma, e parece ser esta liberação “A

essência íntima da arte”, tema do capítulo 34 dos Suplementos a O mundo... Mas poderá haver

49 A vontade é em si mesma sem finalidade, movendo-se infinitamente. Uma “atividade infinita” jamais poderá ser “atual” no sentido aristotélico, mas puramente “possível”; tal “movimento” não poderá, pois, ser outro que não em meio às possibilidades de si mesma. Nisto consiste o esforço perpétuo da vontade para a qual toda finalidade é meramente provisória, razão pela qual toda satisfação proporcionada pelo fenômeno é sempre efêmera e finita. Como foi dito acima, a vontade é princípio de determinação, impulso determinante, e não ela mesma determinada, sendo justamente por isto que a contemplação do belo não é possível do ponto de vista da vontade, mas apenas do ponto de vista da representação destituída da determinabilidade requerida pela vontade. Por outro lado, se a representação aparece destituída de seu caráter relacional imposto pela vontade (o de ser-um-objeto-para-um-sujeito), sua indeterminabilidade a torna una e idêntica à Vontade como coisa em si, de maneira que a Ideia, enquanto objetividade adequada e pura, se confunde com a Vontade ela-mesma, de que é, portanto, o “claro espelho”. Por isso mesmo o sublime pode ser encontrado, segundo Schopenhauer, na violência irracional e despropositada das incomensuráveis forças naturais. Como se verá na próxima citação, o conhecimento adquirido pelo sujeito puro perante a Ideia é como o conhecimento da Vontade por ela mesma na medida em a indistinção entre eu e o mundo escapa ao modo de representação que sempre supõe diferença, conforme já apontado anteriormente. “Sujeito puro” e “objeto puro” são, pois, como termos abusivos pelos quais Schopenhauer estabelece tão-somente uma analogia.

Page 85: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

85

uma vontade desinteressada? Mesmo em Kant podemos encontrar uma resposta positiva, posto

que o interesse pelos objetos estimados (como bons) consiste em um interesse livremente

escolhido segundo o respeito. Quanto a Schopenhauer, a resposta nos é dada mediante a

identificação que ele faz entre Vontade e Ideia, ou seja, entre a coisa em si e sua objetividade

imediata, a qual, não passando pela subjetividade, representa-se como um reflexo de espelho50.

Assim como, na ideia, desde que ela se libera, sujeito e objeto são inseparáveis, porque é em se completando e se penetrando reciprocamente com igual perfeição que fazem nascer a ideia, a objetividade adequada da vontade, o mundo considerado como representação, do mesmo modo, no conhecimento particular, o indivíduo cognoscente e o indivíduo conhecido restam inseparáveis enquanto coisas em si. Pois, se fazemos completa abstração do mundo considerado propriamente como representação, não nos resta mais nada se este não for o mundo considerado como vontade; a vontade constitui o “em-si” da ideia, a qual é a objetividade perfeita da vontade; a vontade constitui também o “em-si” da coisa particular e do indivíduo que a conhece, que não são senão a objetividade imperfeita da vontade. Considerada enquanto vontade, independentemente da representação e de todas as suas formas, a vontade é una e idêntica no objeto contemplado e no indivíduo que, em se elevando a esta contemplação, toma consciência de si mesmo como puro sujeito; ambos, por conseguinte, se confundem juntos; pois eles não são em si senão a vontade que conhece a si mesma; quanto à pluralidade e à diferenciação, elas não existem senão a título de modalidades do conhecimento, isto é, somente no fenômeno e em virtude de sua forma, o princípio de razão. Do mesmo modo que, sem objeto nem representação, não sou sujeito cognoscente, mas simples vontade cega, sem mim, sem sujeito cognoscente, a coisa conhecida não pode ser objeto e permanece simples vontade, impulso cego. (Schopenhauer, 2004, [§34] p. 233)

Vê-se que se trata de uma superação positiva, não de uma recusa. A Ideia aparece como

“forma” insondável pela linguagem, inexplicável pelo entendimento, inapropriável pela

imaginação – nesta forma não há intervenção; trata-se da pura presentificação que apenas do

ponto de vista de uma “subjetividade pura” pode ser representada como “objetividade pura”,

onde “puro” é uma qualidade de ser no modo peculiar de ser-presente. Relembrando que a

questão do interesse não é redutível à questão da finalidade ou à da utilidade, o colapso da

50 Vale observar que a célebre metáfora do “espelho do mundo” só pode ser adequadamente compreendida se concebermos o espelho segundo condições ideais (tal como faz a mecânica ao tratar do movimento ou da queda dos corpos eliminando o atrito). Ou seja, deve-se fazer abstração das qualidades materiais do espelho de modo a concebermos o espelhar como tal: a produção de imagem fiel ao original, embora, como imagem, carente da essência daquilo que reflete, não seja, a rigor, o mesmo que o refletido. Mas, talvez, por esta razão seja lícito dizer que Ideia e Vontade são o mesmo, caso concordemos com o que diz Heidegger (2007g, p. 170) em conferência de 1951 dedicada a um poema de Hölderlin: “O mesmo não se confunde com o igual e nem tampouco com a unidade vazia do que é meramente idêntico. Com frequência, o igual se transfere para o indiferenciado a fim de que tudo nele convenha. O mesmo é, ao contrário, o mútuo pertencer do diverso que se dá, pela diferença, desde uma reunião integradora. O mesmo apenas se deixa dizer quando se pensa a diferença. No ajuste dos diferentes vem à luz a essência integradora do mesmo. O mesmo deixa para trás toda sofreguidão por igualar o diverso ao igual. O mesmo reúne integrando o diferente numa unicidade originária. O igual, ao contrário, dispersa na unidade pálida do um, somente uni-forme”. O “igual”, podemos dizer, equivaleria aqui àquela unidade abstrata e formal pretendida pelo conceito, um produto da razão, não uma integridade originária.

Page 86: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

86

oposição inerente à relação sujeito-objeto imposta pelo princípio de razão nos leva a concluir

que, na ausência de um dos polos, o outro também perde seu sentido próprio na mesma medida

em que, com isto, chega-se à sua verdade, tal como reconhece Cacciola. De fato, sujeito e objeto

são posições relativas, e, se todo interesse só pode ser interesse-por/para-algo, o que se dá na

contemplação do belo não é mera indiferença, mas, na verdade, a indiferenciação resultante da

superação do dualismo gnosiológico o qual, aliás, o próprio Heidegger procura superar51, como

Hegel antes dele. Perde-se mesmo o sentido da oposição entre vontade e representação, de modo

que a vontade que resta suspensa é aquela vontade individual e interessada o querer subjetivo

que representa para si determinações. A Vontade enquanto impulso cego, como é em si, não visa

a fim algum, não tem diante de si qualquer objeto que não ela mesma, seu reflexo, seu “claro

espelho”. Se toda relação é posta segundo o princípio de razão e, assim, cada objeto em relação

ao sujeito do conhecimento é posto em relação com sua vontade, a mera superação do princípio

de razão consiste na supressão de objetos passíveis de desejo subjetivo. Por conseguinte, a vontade

não mais quer. No conquistar-se a si mesma, a Vontade é positivamente liberada no desinteresse.

3.4. Aprofundando convergências

Ora, mas esse “aquietamento da vontade”, que tanto desconforto causa a Heidegger no que

se refere à interpretação schopenhaueriana da estética de Kant, pode também ser reconhecido, de

maneira curiosamente similar ao que lemos em Schopenhauer, em Hegel quando este trata da

reconciliação entre sujeito e objeto pela qual um resta subsumido ao outro:

Desse modo, o pensamento toma corpo no belo artístico e a matéria não é determinada externamente por ele, mas existe livre por si mesma, na medida em que o natural, o sensível, o ânimo e assim por diante possuem em si mesmos medida, finalidade e concordância e a intuição e o sentimento são igualmente elevados à universalidade espiritual, enquanto que o pensamento não só renuncia à sua hostilidade com a natureza, mas nela se asserena e o sentimento, o prazer e o fruir são legitimados e santificados [grifo nosso]; de tal modo que natureza [i.e., necessidade] e liberdade, sensibilidade e conceito encontram seu direito e satisfação em um só termo. (Hegel, 2001, [88] p. 78)

51 “Discípulos excessivamente zelosos de Heidegger sustentam que ele foi além da própria dicotomia sujeito-objeto, mas ele só superou, é claro, certa concepção dessa dicotomia. O que importa é que existe um intervalo entre sujeito e objeto. É nesse intervalo, na polaridade entre os dois, que o significado pode surgir. Se devemos situar os humores em algum lugar, eles também terão de ser situados nesse intervalo, pois constituem uma parte essencial de nossa relação com o mundo.” (Svendsen, 2006, p. 141) Se, por um lado, é extremamente discutível em que medida Heidegger teve êxito nesse projeto de superação, por outro, é evidente que sua obra enseja uma nova experiência de pensamento, própria à hermenêutica fenomenológica e, a nosso ver, já preconizada também por Schopenhauer. A aproximação desse “intervalo” por intermédio dos humores, especialmente da angústia, consiste mesmo no ponto central da articulação entre angústia e representação, para o que o presente estudo consiste no primeiro passo.

Page 87: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

87

Mesmo de um ponto de vista “hegeliano” há de se reconhecer que Schopenhauer teria

dado um passo além de Kant, pois, para ele, a “reconciliação aparentemente completa” não é

mais “apenas subjetiva”, aproximando-se mais de um “produto” de uma contemplativa ascese

mística que virá servir de fundamento à produção do belo artístico enquanto intuição imediata da

coisa em si, bem como constituir o modo próprio desse reconhecimento eis o significado do

desinteresse schopenhaueriano: a ruptura com os objetos do desejo enquanto tais, enquanto

objetos de um querer, dotados de uma finalidade extrínseca a que estejam condicionados.

Dito isto, a consideração final a ser feita a respeito do que diz Heidegger em sua crítica a

Schopenhauer refere-se à noção de “aquietamento”, já tendo sido discutidos o sentido da

“suspensão da vontade”, o do “não-mais-querer” e o da “ausência de participação”. Conforme

citado acima, Heidegger se pergunta, em oposição às palavras de Schopenhauer, se “não é, antes,

o empenho supremo de nossa essência, a liberação de nosso si mesmo para a restituição livre do

que tem uma dignidade própria em si, a fim de que ele só o tenha puramente”. Conforme se

buscou mostrar nesta já longa digressão, o esforço a que se refere Schopenhauer, do qual ele

almeja a liberação, consiste no movimento perpétuo da vontade interessada em satisfazer suas

inclinações, motoras do sujeito-do-querer (Schopenhauer, 2004, [§38] p. 252-253). Tal

movimento, diga-se de passagem, não inclui os movimentos do corpo que independem de

representações, pois apenas as representações podem servir como motivos (Schopenhauer, [s.d.],

p. 4), o que significa dizer que tal liberação não exige a mortificação, o ascetismo. Pelo contrário,

no segundo capítulo dos “Aforismos sobre a sabedoria de vida”, diz Schopenhauer ([2003a], p.

437-438), defendendo, em conformidade aos preceitos de Buda, a conservação da saúde como requisito

para se ter a alegria necessária a uma vida de algum modo feliz:

Sem um oportuno movimento cotidiano não se pode permanecer são: todos os processos vitais, para que se completem de modo apropriado, tornam necessário um movimento tanto das partes em que desenvolvem quanto do todo. [...] Em todo o interior do organismo domina um incessante e rápido movimento. [...] Se, portanto, como é o caso do modo de vida completamente sedentário de infinitos homens, o movimento externo é quase totalmente ausente, surge um desequilíbrio evidente e prejudicial entre a calma externa e o tumulto interno. O contínuo movimento interno quer de fato ser de algum modo apoiado pelo externo.

Significa dizer que a redução ascética das necessidades não corresponde a criar para si dores

desnecessárias que, sem a intervenção do sujeito, não seriam sofridas. Portanto, embora querer a

vida não seja a recomendação de Schopenhauer, em consonância com o Budismo, não é

contraditório que se recomende o cuidado do bem-viver enquanto se vive, sendo este o sentido da

advertência inicial dos “Aforismos” assim vinculados a uma “eudemonologia”. Afinal, descartada

Page 88: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

88

a via do suicídio e reconhecida a verdade de que temos por essência o querer-viver e enquanto

vivemos o exprimimos, a “eudemonologia” nada contém de otimismo ou de pessimismo, mas

antes defende a todo tempo que se deve assumir o que se é a fim de que a vida seja o menos

dolorosa possível. Toda dor provém de nossas representações, o mesmo valendo para toda

felicidade possível – eis a lição fundamental dos “Aforismos”. Não se trata, pois, de um esforço

pela felicidade, pois sua medida é dada por nosso caráter, não por nossas ações sempre

condicionadas por representações. Interessa-nos, contudo, que a recusa do que se é não é vista

por Schopenhauer, em hipótese alguma, como caminho de salvação.

Em contraposição a todo esforço para satisfação de nossas representações desejosas, há,

por sua vez, um outro esforço muito mais digno, o qual pode-se dizer é o único capaz de

promover a “liberação de nosso si mesmo” com relação a uma vontade para a qual nada é dotado

de dignidade, servindo-lhe apenas como meio para seus fins sempre renovados, inclusa aí a

própria inteligência em seu uso ordinário-cotidiano. Na “passagem do estado de ator ao de

espectador”, “é agora contemplado, posto entre parêntesis” aquele “mundo que era vivido, e de

forma angustiosa” (Brum, 1998, p. 86). Portanto, o caráter liberador da contemplação estética,

segundo Schopenhauer, consiste no fato de que a vontade se depara com aquilo que é em si

mesmo destituído de finalidade – lembrando que toda finalidade é finalidade de um sujeito que

representa segundo interesses. Suspende-se toda consideração teórica ou prática em face do

puramente estético deixando de ter lugar qualquer atuação do indivíduo; há apenas o espectador,

se não o puro espetáculo, uma vez que são o mesmo, na contemplação, contemplado e

contemplante. É então que tem lugar o mais digno esforço a que nos referimos, que não é nem o

esforço volitivo, nem o esforço físico. Diz Schopenhauer (2004, [§34] p. 230-231; grifo nosso):

Quando, elevando-nos pela força da inteligência, renunciamos à consideração das coisas da maneira vulgar; quando cessamos de buscar, à luz das diferentes expressões do princípio de razão, tão-somente as relações dos objetos entre si, relações que sempre se reduzem, em última análise, à relação dos objetos com nossa vontade [i.e. ao interesse], ou seja, quando não consideramos nem o lugar, nem o tempo, nem o porquê, nem o quão-bom das coisas, mas pura e simplesmente sua natureza; [...] quando mergulhamos inteiramente e enchemos toda a consciência com a quieta contemplação de um objeto natural atualmente presente, paisagem, árvore, rochedo, edifício ou qualquer outro; [...] então, o que é assim conhecido, não é mais a coisa particular enquanto tal, é a Ideia, a forma eterna, a objetividade imediata da vontade; neste grau, por conseguinte, aquele que é arrebatado nessa contemplação não é mais um indivíduo (pois o indivíduo anulou-se na própria contemplação), é o sujeito cognoscente puro, liberado da vontade [que lhe determina desejos], da dor e do tempo.

Trata-se, pois, da liberação de si como “alguém” que está perante o mundo como se nele

não estivesse, como se fosse nada, “alguém” cujo não-pertencimento (não ser simplesmente dado

Page 89: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

89

entre outros) é exatamente o que lhe permite, também, liberar o objeto para ser o que é; ele

mesmo, o sujeito puro, é tão-somente o que é.

Exercer domínio sobre as coisas, já que elas são subjugadas pela conceitualização abstrata, não pode mais valer como conhecimento genuíno. O verdadeiro conhecimento visará libertar as coisas para si mesmas, descobrindo sua universalidade só através da penetração no particular e não pela sua “não-determinação”. O verdadeiro conhecimento tem de procurar deixar as coisas serem belas, e acima de tudo deixar que elas sejam. (Scheer apud Cacciola, 1999, p. 8)

De acordo com o que mais adiante diz Cacciola (1999, p. 10), essa “força da inteligência” a

que se refere Schopenhauer, enquanto manifesta pela atividade do gênio, e não por um niilista ou

apático repousar-se, advém de uma imensa capacidade intelectual que de modo algum consiste

em uma erudição, mas em um poder intuitivo do sentimento aliada a uma vontade poderosa.

Trata-se de uma inteligência capaz de compensar a inabilidade para o conhecimento relacional,

necessário mesmo à sobrevivência, pela capacidade inata de se sobrepor à visão comum e à visão

científica do mundo. O gênio, “em vez de se distender, de mergulhar na inação, põe-se, por si

mesmo, durante esse curto espaço de tempo, a trabalhar só e livre”, o que não é possível “sem

uma enérgica atividade” (Schopenhauer, 2004, [cap. XXXI] p. 1109-1110; ver Heidegger, [s.d.], p.

58)52. É aí que Cacciola (1999, p. 9) encontra uma outra espécie de “relação”, mais própria e

verdadeira, que consiste no interesse objetivo que liga o gênio à ideia: “o interesse objetivo tem

uma positividade, pois se refere à pura contemplação, que resulta em uma coincidência com o

objeto, diferenciando-se, portanto, do interesse pessoal ou individual atinente ao conhecimento

submetido às cadeias de causas e razões”. Não se trata, pois, de um interesse do entendimento,

pois não consiste em uma relação causal, tampouco da razão, pois não é conceitual. Sua

“objetividade” repousa no caráter não-particular de sua ligação com o belo. É nos seguintes

termos que Schopenhauer (2004, [cap. XXXI] p. 1126-1127), no capítulo especialmente dedicado

ao gênio nos Suplementos, distingue interesse objetivo e interesse subjetivo:

Todo homem de gênio já é uma criança grande precisamente por olhar o mundo como coisa estranha, como espetáculo, ou seja, com um interesse puramente objetivo. Além dele, apenas a criança é isenta daquela gravidade seca dos homens comuns que, incapazes de sentir outro interesse que não o seu próprio, jamais veem nas coisas algo mais do que motivos para suas ações.

52 Comparar também com o que diz Kierkegaard (1979c, p. 136) a respeito da resignação infinita do cavaleiro da fé: “É-me lícito, portanto, afirmar que importa possuir força, energia e liberdade de espírito para realizar o movimento infinito da resignação, inclusivamente para que a sua execução seja possível”.

Page 90: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

90

Sendo assim, segundo Cacciola (1999, p. 10), o desinteresse, tal como expresso pelo gênio

em sua obra, “transmuda-se em um interesse objetivo, que deve traduzir a verdade da coisa”, de

modo que se pode encontrar, justamente na estética schopenhaueriana, “a contrapartida do

pessimismo presente no ponto de vista do mundo como vontade”, na medida em que trata de

um conhecimento puro que, traduzindo o sentimento do belo, não mais visto apenas como

“prazer puro”, consiste no verdadeiro conhecimento. Concedendo-se, então, que haja uma

“ligação essencial com o objeto” proporcionada pelo belo, a despeito da relativa inadequação

terminológica para este caso, não será esta expressa pelo interesse objetivo schopenhaueriano?

Como resultado desta necessária digressão sobre o sentido do desinteresse e sua relação

com a liberdade, associada ao tema que a ensejou – ou seja, mediante a busca por uma

compreensão positiva do nada/não-querer, positiva no sentido de provir de uma atividade

essencialmente livre e promotora da serenidade como superação do mundo como representação

–, deve-se reconhecer que a leitura de Heidegger acerca da vontade e, por conseguinte, de sua

negação, traz consigo certas limitações que urgem por explicitação e crítica. Tais limitações

consistem, sobretudo, no fato de, uma vez convicto do pertencimento de Schopenhauer, e

mesmo de Nietzsche, à tradição metafísica, não ter Heidegger percebido aí contribuições

poderosas e até decisivas para a ressignificação do conceito de liberdade e, com isso, para a

superação de uma concepção substancialista do “eu”, bem como, por extensão, da própria

metafísica. Por meio de tais contribuições, a vontade não pode mais ser apropriadamente

identificada com pensamento por representação, nem tampouco reduzida aos quereres

subjetivos. Como foi visto, tal ressignificação torna-se o ponto central a partir do qual se torna

possível uma adequada compreensão da negação da vontade como possibilidade extrema do ser-

livre como tal, assim como colabora na tarefa de execução de um passo fenomenológico rumo à

compreensão mais originária do ser-homem. É certo que muito ainda permaneceu no silêncio,

sobretudo aquilo que deverá encontrar lugar mais conveniente no decorrer do trabalho e seus

esperados desdobramentos, como é o caso dos aspectos relativos ao relacionamento do homem

com o saber e com o amar. A Estética, por sua vez, sem lugar especificamente destinado a ela

neste estudo, terminou por receber extenso tratamento – embora se buscasse evitar excessos –, e

de tal maneira que, em grande parte, algo do que se deverá tratar a seguir já se encontra em

grande medida preparado.

Page 91: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

4. O homo amphibios

A expressão homo amphibios, pela qual se pretende indicar a compreensão do homem como

duplo, ambíguo, equívoco, vem nomear a parte de nosso estudo voltada à sinóptica análise da

história das doutrinas sobre a natureza humana no que diz respeito, fundamentalmente, ao

tradicional problema da oposição entre liberdade e necessidade, saber prático e saber teórico,

moralidade e naturalidade, cultura e fisiologia. É possível reconhecer que a questão se desenvolve

em dois grandes momentos cuja fronteira não é muito bem definida, porém claramente situável

no contexto geral do Iluminismo. O primeiro momento, que tem início com a própria tradição

filosófica ocidental, ou mesmo na Grécia trágica, é marcado pela compreensão negativa da

liberdade, quando esta tende a ser reduzida ao seu pretenso oposto – a este momento corresponde

a primeira parte do presente capítulo. Já o segundo momento, marcado, ao contrário, pela

compreensão positiva da liberdade, ganha contorno mais explícito com as tematizações da

existência em meados do século XIX, notadamente com Kierkegaard e Schopenhauer, passando

por Nietzsche até chegar a sua plena formulação na analítica existencial de Heidegger, e isto a

partir de esforços já realizados por pensadores do Iluminismo, do Romantismo e do Idealismo

alemão. Se, em princípio, podemos antecipar que toda a porção subsequente deste estudo dedica-

se ao segundo momento, no presente capítulo, dedicamos a segunda parte a uma mais

pormenorizada discussão acerca da crítica de Schopenhauer à crítica kantiana, em especial no que

concerne à fundamentação da filosofia prática e suas raízes na crítica da razão especulativa.

Deve-se de antemão observar que pelos termos “negativo” e “positivo” não se pretende

apontar nenhuma qualidade “moral”, mas sim lógica, inerente às próprias definições de

“liberdade”, sendo tal distinção necessária se se deseja aprofundar o problema da essência da

vontade, para o que é necessário considerar a própria essência do ser-livre, tradicionalmente

vinculada a uma obscura e equívoca noção de poder. Deve-se ainda observar, e também

demonstrar, que a compreensão positiva aqui advogada depende da superação da “lógica”

reguladora de nossas representações e, por conseguinte, de nossa linguagem, de nossa adesão às

determinações formais de entendimento e expressão como vias únicas de pensamento.

Em verdade, a expressão homo amphibios não é inteiramente nossa, mas inspirada na seguinte

passagem dos Cursos de estética de Hegel (2001, [80-91] p. 72-73), que diz:

A formação espiritual, o entendimento moderno produz no homem esta contraposição que o torna anfíbio, pois ele precisa viver em dois mundos que se contradizem, de tal sorte que a consciência, nesta contradição, também se

Page 92: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

92

dirige para lá e para cá e, jogada de um lado para o outro, é incapaz de satisfazer-se por si tanto num quanto noutro lado. [...] Mas mediante esta discrepância entre a vida e a consciência apresenta-se para a formação moderna e seu entendimento a exigência de que tal contradição se solucione.

Hegel aqui se refere à contraposição entre o universal ideal e o particular sensível, que

ganha formulação paradigmática na obra de Platão e se estende até a obra crítica de Kant que, em

princípio, separa os âmbitos puro e empírico, teórico e prático, noumênico e fenomênico,

autônomo e heterônomo, até que, enfim, na Crítica da faculdade do juízo, “libera-se” o juízo estético

do crivo das categorias do entendimento, restando, contudo, a elas mais ou menos submetidas

tanto a ciência como a moral. De acordo com a visão kantiana acerca da divisão crítica, ao

noumênico – termo remetente ao nous grego – pertenceria a simples, porém distintiva capacidade

de “apenas” pensar os problemas específicos da metafísica, os fundamentos não passíveis de

experiência e os conceitos puros ou meras ideias – trata-se do âmbito do inteligível. Por sua vez, o

âmbito do fenomênico – termo também remissivo ao grego phainomenon – abrangeria toda a

possibilidade de conhecimento seguro, i.e. garantido pelo entendimento e suas leis, teórico e

prático – este é o domínio do sensível, que deverá incluir as bases para toda lógica, razão pela qual

a “Lógica Transcendental” se radica na “Estética Transcendental” na medida em que as

categorias do entendimento remetem às formas da sensibilidade. Em verdade, uma pré-história

dessa contradição já motivava Platão, e por ela começamos.

4.1. Das origens ao Iluminismo

Por “origens”, a rigor, pretendemos demarcar o começo do questionamento acerca da

liberdade humana, o qual compreendemos ter lugar nas tragédias gregas mais do que nas

epopeias. Conforme dito acima, o contexto do Iluminismo histórico, ou seja, o século XVIII

europeu, nos traz os primeiros sinais de uma superação da compreensão negativa da liberdade, de

modo que indícios de uma transição podem ser reconhecidos em pensadores tão diversos como

Leibniz, Rousseau, Hume e Kant. Sendo assim, nesta primeira etapa, partiremos da ambiguidade

da liberdade no contexto da representação trágica do sentido da ação até chegarmos à

apropriação do tema pelo pensamento político moderno, passando, entre esses dois marcos

gerais, pelo projeto filosófico de racionalização da vontade e pelos ideais de libertação do espírito

que estreitamente se ligam a tal projeto.

Page 93: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

93

4.1.1. A paradoxal ambiguidade da ação trágica

Nas tragédias de Sófocles, diferente do que ocorria nas de Ésquilo, se põe em questão o

alcance da decisão humana face à fatalidade expressa no oráculo. É desconcertante a fúria com

que Ésquilo faz Krátos (Poder) subjugar, coagir e mesmo insultar o deus Hefœstos no Prometeu

acorrentado (c. 450 a.C.?) em nome da limitação de todo agir ao poder supremo de Zeus, em

detrimento do amor, da compaixão e da liberdade.53 Em Rei Édipo (c. 430 a.C.), fica claro que a

efetivação do pronunciamento oracular conta com a própria iniciativa do jovem príncipe em

escapar do desígnio, restando indecidido se de fato teria assassinado Laio e desposado Jocasta se

jamais tivesse tomado conhecimento de seu “destino”. Nesse caso, o paradoxo expresso na peça

nos impede de afirmar com absoluta segurança se a fatalidade, o desígnio de Moira, é algo de

inescapável que acompanha e move o indivíduo ou se a desgraça do protagonista é devida a mais

ninguém senão a ele mesmo, a sua luta voluntária e improfícua contra destino, donde muitas

interpretações podem ser postas e na mesma medida questionadas. De todo modo, preferimos a

este respeito a análise de Brandão (2001, p. 42-43):

[...] Sófocles fez de sua tragédia o desenvolvimento normal de uma vontade e de um caráter numa situação determinada. [...] Em Sófocles, [...] o herói é dotado de vontade, de uma vontade livre para agir pouco importa quais sejam as consequências, e os deuses agem, mas sua atuação é à distância, por meio de adivinhos e de oráculos [...]. À época do cantor de Édipo [...], o espírito de Maratona e de Salamina transformara-se em mito e novas aspirações intelectuais tentaram substituir ou ao menos enfraquecer, quando não minimizar, a importância dos deuses frente à vontade e à consciência humana. [...] Eis aí o motivo por que, se o teatro de Ésquilo é uma catástrofe inevitável, [...] nele só se podem julgar os fatos. No teatro de Sófocles, ao contrário, desde o momento em que se entronizou o “lógos”, a razão, a vontade humana, só se podem julgar os atos. Por isso mesmo, em Ésquilo importa o fazer, em Sófocles, o agir. [...] Desse modo, no poeta de Édipo Rei, a bitola teatral é a progressão interna: seu teatro é um drama de krisis, de “uma escolha” e sobretudo um drama de concausância [em oposição à moira, ou destino cego], isto é, suas personagens agem livremente, para que seu destino inelutável se cumpra plena e integralmente. Por isso mesmo, em Édipo Rei, o papel do destino termina no momento em que a peça se inicia.

Para Nietzsche (2005a, [§3] p. 28-29), essa distância dos deuses é “imensurável”, por isso

mesmo exigindo “a mais profunda entrega e resignação” perante o caráter sublime e impenetrável

53 Por sua vez, no escrito de juventude intitulado “A visão dionisíaca do mundo”, Nietzsche (2005a, [§3] p. 28), com razão, não encontra na obra de Ésquilo “nenhuma necessidade que leve o indivíduo ao crime, todos podem escapar dessa necessidade”. Por isso mesmo a justiça divina impede com suas intervenções o estado de licenciosidade, pois nada lhe escapa, na mesma medida em que a ação é totalmente imputada ao indivíduo, e não ao destino, legitimando-se assim a dureza do castigo.

Page 94: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

94

da justiça. Por outro lado, tal impenetrabilidade, considerada a perspectiva da liberdade do agir

segundo escolhas, substitui nas representações do agente o peso do destino pela angustiosa

possibilidade de contorná-lo – angustiosa na medida em que tal possibilidade não traz consigo

certeza alguma acerca do próprio poder senão em aparência; exige-se do agente a confiança no

próprio poder de contornar o destino, porém sem qualquer garantia. Em seu comentário de 1795,

como que inaugurando as análises modernas da tragicidade, diz Schelling (apud Szondi, 2004, p.

29):

O fato de o criminoso ser punido, apesar de ter tão-somente sucumbido ao poder superior do destino, era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra concedida à liberdade. A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para também reparar essa humilhação da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar – mesmo que através do crime perpetrado pelo destino [...]. Foi grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre.

O que isto vem deixar indecidido é o paradoxo entre a possível inevitabilidade da derrota do

herói e o fato de o destino ter-se cumprido em seu detrimento e, no fim das contas, por suas

próprias mãos, legitimando, enfim, a expiação do herói por haver tentado enganar o destino, não

por este ser inescapável – daí a diferença entre fatalidade e castigo. Os versos de Ésquilo (apud

Szondi, p. 2004, p. 88), pela boca de Aquiles, já dizem tudo neste sentido: “Assim falou a águia,

ao perceber as penas na flecha que a perfurava: Então somos abatidas por nossas próprias asas”.

De acordo com Szondi (2004, p. 89), “não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade,

mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína”, não

sendo “trágico que o homem seja levado pela divindade a experimentar o terrível, e sim que o

terrível aconteça por meio do fazer humano”. “A liberdade”, conclui Szondi no mesmo lugar, ao

tratar do Édipo de Sófocles, “nem é inteiramente concedida ao herói, nem negada por

completo”. Afinal, diz Szondi (2004, p. 99), ele “cumpre à sua revelia o ato terrível ao tentar

evitá-lo”. À luz da fala da águia, podemos dizer, lembrando ainda Ícaro, que as asas que podem

nos levar às alturas do céu sem fim são por sua vez o instrumento de nossa ruína. Em breves

palavras: a liberdade é indissociável da tragicidade. Embora haja justificativas mais eloquentes

para que Dioniso fosse chamado por Liber dentre os romanos, esta indissociabilidade parece

tornar mais profunda a relação entre o trágico – o bode (tragos) expiatório – e o livre.

Em Antígona (441 a.C.), a questão reaparece mais vinculada ao problema político, à

contraditoriedade entre as leis da tradição não-escrita, justificadas pela natureza e pela divindade,

Page 95: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

95

e a possibilidade de novas leis justificáveis pela deliberação humana segundo suas emoções,

conveniências e inclinações, modelo ímpio e autoritário encarnado por Creonte, a nova figura do

poder agora secularizado. A relação entre nomos e physis, já debatida entre os sofistas, envolve o

problema da legitimidade e fundamentação dos princípios reguladores do agir e traz

necessariamente consigo o problema da liberdade de ação e discurso, de modo que a leitura de

Brandão sobre a tragédia de Édipo parece muito influenciada pelo que lemos na tragédia de sua

filha Antígona. De acordo com Szondi (2004, p. 43), Hegel reconhece nesta obra de Sófocles, por

ele estimada como “a obra de arte mais excelente e mais perfeita de todas as maravilhas do

mundo antigo e moderno”, a “colisão entre amor e lei como esses dois conteúdos se chocam no

caso de Antígona e Creonte”. “Ambos”, segundo Solger (apud Szondi, 2004, p. 47), “expiam

conjuntamente a cisão para sempre irreconciliável entre eterno e temporal”, devendo-se esta cisão

interna do homem ao “fato de que ele participa do mais elevado”, a ideia, “e no entanto precisa

existir”. Hebbel, por sua vez, reconhece na protagonista a culpa de se haver desvinculado da

totalidade da vida ao obedecer às “leis da individuação”, de modo que sua individualidade

sucumbe pelo fato de ela ser o que é (ver Szondi, 2004, p. 64-65). Em cada caso o fenômeno

trágico é modernamente identificado, como defende Szondi, com uma cisão e mesmo com uma

dialética intrínseca entre o homem e seu mundo, ou ainda inerente ao homem consigo mesmo. A

expiação de Creonte é testemunho de que a cisão entre Estado e natureza, entre humano e

divino, é por si só perniciosa, não havendo vitória possível para qualquer dos lados nem, talvez,

possibilidade de remissão na reconciliação do que fora separado. A própria existência humana é,

sob este ponto de vista, por essência, tragicamente conflituosa, ambígua, paradoxal como a queda

de Ícaro determinada por sua elevação, como a derrocada da mais elevada potência, como a

exigência do autoaniquilamento pelo qual o herói trágico se realiza como tal. A via da ascensão é

a mesma da descensão, parafraseando o famoso fragmento de Heráclito.

Difícil é, de qualquer maneira, reconhecer na poesia trágica uma tematização explícita ou

mesmo a relevância da liberdade enquanto tal como problema, mas antes algo mais simples e

próximo, embora não menos profundo: a representação artística dos sentidos do agir humano e

da expectativa motivadora por seus resultados.

4.1.2. A gênese não-temática da racionalização da vontade

No que tange mais especificamente à tradição filosófica, antes que se chegasse a

elaborações teoréticas acerca da natureza humana – ausentes no discurso pré-ontológico da

poesia de então –, o pensamento gravitara em torno da questão do movimento, que pode ser

Page 96: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

96

entendida grosso modo como tratando da natureza da mudança em geral.54 Com isto se começa a

delinear noções filosóficas de “causa” através da investigação do princípio, ou arché. Pela

investigação do princípio e do fim (telos) do movimento como suas causas explicativas, realiza-se o

primeiro questionamento sobre a natureza em vista de uma compreensão da unidade, da

legitimidade do próprio conhecimento sobre o mundo, impondo-se a exigência de decisão sobre

o caráter necessário ou contingente de toda transformação. Se, por um lado, a compreensão da

physis como contingência liberava o agir humano, permitindo o “livre” desenvolvimento ético-

político, tal perspectiva implicava uma carência de justificativas consideradas indispensáveis para

se evitar o autoritarismo e a arbitrariedade e sem as quais não poderiam fazer sentido noções tais

como a de “responsabilidade”. Afinal, não há pelo que se responder em um mundo onde as

coisas se dão fortuitamente, sem razões, como muito bem observará Hume, para quem liberdade e

acaso são sinônimos (1996, [seção VIII, parte 2] p. 102-103; 2009, [livro 2, parte 3, seção 2,

parágrafo 6] p. 447). Aí residiria a notável originalidade de Anaxágoras na leitura feita por

Nietzsche em um texto de 1873, “A filosofia na época trágica dos gregos”, cuja influência

schopenhaueriana é ainda bastante evidente. Não havendo colocado a questão sobre o “para

quê”, ou finalidade do movimento, talvez já compreendendo as dificuldades postas pela teleologia

que conduziriam inexoravelmente à doutrina aristotélica da eternidade do mundo,

Anaxágoras tinha sempre de acentuar e encarecer com a máxima energia que o espírito [i.e. o Nous] é arbitrário; todos os seus atos, mesmo o daquele movimento primordial, são atos da “vontade livre”, enquanto todo o resto do mundo se forma rigorosamente determinado, e aliás determinado mecanicamente, depois daquele momento primordial. Essa vontade absolutamente livre, entretanto, só pode ser pensada como sem finalidade, mais ou menos ao modo do jogo da criança ou do impulso lúdico do artista. (Nietzsche, 1996b, [§19] p. 265)

Por outro lado – e isto talvez nos ajude a suspeitar por que a posição anaxagórica não

haveria de vigorar55 –, a compreensão da physis como necessidade não apenas permitia sua

54 Pode-se arriscar a enunciação de uma tese que, de todo modo, não pode ser aqui desenvolvida a contento, mas apenas anunciada: que a kinesis é o problema original da ciência, não o ser em sentido lato. Se um “ser” se busca aí é aquele do fenômeno móvel, de maneira que a compreensão de ser como imutabilidade é antes uma resposta tardia a um questionamento que antes se detivera em tentativas de compreensão da physis. O problema da mutabilidade, por sua vez, já se encontra nas religiões arcaicas do Ocidente e do Oriente, sendo ainda uma das questões basilares do pensamento hindu. 55 Anaxágoras, no fim da vida (c. 430 a.C.), seria perseguido e maldito dentre os atenienses. Em sua leitura, Nietzsche, por meio de suas palavras finais, parece vincular a visão anaxagórica de mundo àquela de Heráclito, pela qual nutre conhecida simpatia. Importante notar, ainda nesta interpretação, dois pontos: uma distinção um tanto kantiana entre os âmbitos da vontade e da natureza; a concepção de liberdade da vontade como ausência de finalidade, de um porquê determinado, e não como mera ausência de necessidade. Se, por um lado, tal constatação pode sustentar uma acusação de anacronismo por parte de Nietzsche – o que, aliás, não conflita com sua concepção extemporânea de conhecimento histórico –, por outro, dá relevo a uma possibilidade de pensamento certamente extraviada sob a ditadura da “vontade de conhecer”, da “vontade de verdade”, com início na era socrática.

Page 97: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

97

aproximação pelo conhecimento, segundo a via da causalidade, como também garantiria a

sustentação de doutrinas morais fundadas na ordem natural ou em doutrinas antropológicas

acerca de uma natureza humana. Nesse sentido, gradativamente, a oposição entre physis e nomos –

o âmbito das leis instituídas, antes pelos deuses, ora pelos homens (ver Brandão, 2001, p. 53-54)

– aparentemente vai se resolvendo em uma proposta de adequação do nomos à physis – i.e. da

livre/particular deliberação moral à necessidade/universalidade natural – expressa na célebre e

fluida fórmula “agir conforme à natureza”, de maneira que a conduta humana se veja justificada

segundo uma ordem natural dada, a existência regida por um sentido extrínseco. Embora a referida

fórmula haja recebido as mais diversas interpretações ao longo da história do pensamento, desde

o mais estoico conformismo à mais licenciosa arbitrariedade, trata-se, aqui, de modo genérico, da

conformação da liberdade da alma passível de erro e das leis da polis a uma natureza ordenada

(kosmos) sempre justa na medida em que é estimada como dotada de um fim/princípio supremo, geral

e absoluto, a saber, o Bem, o perfeito equilíbrio da natureza. Ser livre é ou está ligado ao ato de

escolher o bem com conhecimento, e não por acaso, pois quem escolhe o bem sem conhecimento, não

sabendo por que o escolheu, ou seja, não reconhecendo com clareza as causas finais ou

intermediárias (os fins ou os meios) de seu próprio agir, pode igualmente errar e, portanto, agir de

maneira instável, exigindo correção. Do mesmo modo, a falta de clareza quanto aos princípios da

ação, bem como com relação ao sentido do discurso, implica a impossibilidade de uma adequada

justificação. Exemplo claro desse pensamento já pode ser encontrado no diálogo de Platão

intitulado Apologia de Sócrates (25 d-26 a). Em síntese, trata-se da exigência do claro conhecimento

acerca dos fins ou efeitos da ação bem como dos meios apropriados para sua realização. Isto

enseja o surgimento ao conceito filosófico de “consciência” e à sua interpretação vulgar, sem o

que não há sobre que fundar qualquer espécie de responsabilidade ou de moralidade.

Assim se elege a constância como valor, valor este que, aparentado da necessidade, deve

iluminar a “livre” escolha. Deve ficar claro aqui, nestas linhas gerais, como as interpretações

sobre a existência humana e sua condição tradicionalmente decorrem de uma “vontade de

conhecimento”, e por que a compreensão dessa vontade constitui pré-requisito para os discursos

sobre a conduta humana, que tratam dos critérios que supostamente regem ou devem reger nossa

adesão às coisas do mundo e nosso modo de viver a vida. À obscuridade do oráculo vem

substituir a claridade da razão; o passo grandioso da liberdade é uma “saída da caverna para a luz

da verdade”. A isto, com agudeza, Adorno e Horkheimer darão o nome de “Aufklärung”.

Nesse espírito é que parece se inscrever a eleição da alma racional como aquela porção cuja

natureza se vincula ao conhecimento e à vontade, bem como à liberdade. A faculdade

contemplativa (teórica, do grego theorein) e a faculdade para agir corretamente com consciência

Page 98: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

98

(prática, do grego praxein) estão aqui unidas como faculdades voltadas para a universalidade ideal,

só podendo ser separadas in abstracto. É de se notar que theorein soa como uma visão, um olhar

(orein) para o divino e mesmo próprio/adequado ao divino (theon), e também que conscientia, termo

latino, evoca um conhecimento rigoroso (scientia) e geral (con), compreensivo, isto é, que abarca uma

certa totalidade regular. Nesse sentido, a identificação entre uma razão pura e uma razão prática,

ambas formais e a priori, como duplo aspecto de uma mesma razão que é a um tempo pura e

prática não é uma novidade kantiana, mas já há muito latente; o que é novo, sim, e estranho ao

espírito grego, é precisamente a distinção entre tais aspectos a ponto de contrapô-los no interesse

das ciências empíricas.56

Mas é apenas em aparência que se tem aí uma unidade a que se contrapõe tão-somente uma

alma irracional como aquela porção cuja natureza se vincula à inconstância e à inconsciência, em

sentido amplo que não se reduz ao mero ignorar, mas que consiste na totalidade do âmbito do

não-pensado, não-compreendido, e mesmo do instintivo, “autômato”, “mecânico”. O não-

racional em si não pertence à esfera do conhecimento do que é ou não é, do que pode ser ou não pode

ser e do que deve ser ou não deve ser, de modo que é comumente deixado à parte da reflexão

filosófica, cuja postura tradicional é reduzir tudo ao âmbito do “explicável”, evitando assim o

absurdum, o contraditório, o alógico. Só o constante pode ser objeto do racional e ser, portanto,

pensado, conhecido, explicado. O indeterminável que caracteriza o não-racional não está ao

alcance do que denominaria Kant (2007, [BA 125] p. 114) “princípio filosófico da explicação”.

Assim, os movimentos da alma irracional não são atividades propriamente ditas, pois são

determinados por “forças externas à razão” e nosso assujeitamento a tais forças pode se dar,

objetivamente, segundo determinações naturais (o conjunto dos movimentos fisiológicos), ou

subjetivamente, segundo inclinações apetitivas (o conjunto dos movimentos psicológicos). Tais

movimentos só podem ser explicados, racionalizados, segundo o princípio de causalidade e na

medida em que podem ser a ele reduzidos enquanto efeitos daquelas “forças”. Assim, desprezara-

se o não-racional como tal e abarcou-se o irracional (agora moral e negativamente definido como

mau uso ou omissão da razão) em um sistema de causas onde se encontra ausente a deliberação,

56 O que, em Aristóteles, distinguirá antes de tudo o saber teórico do prático não será a faculdade, nem o objeto, nem o meio de sua apreensão, mas primeiramente o caráter universal ou particular das causas e asserções, o que consiste em um problema ontológico relativo aos modos de ser dos objetos do saber, não em problema estritamente epistemológico. Sensação e experiência são as bases de todo saber, que sempre se constitui mediante o pensamento, seja ele dirigido a objetos naturais, abstratos ou ideais. Toda episteme é teórica, ainda que sobre base empírica, pois tem em vista a universalidade. Os saberes práticos e produtivos são, por sua vez, particulares. Em Platão, pensar, agir e ser ainda se encontram mais unidos, sendo todos os saberes fundados na contemplação (theoria) das ideias incorruptíveis, ou seja, na pura noesis (intelecção), razão pela qual sua Ética, sua Política e sua Estética são universais – são, portanto, saberes teóricos que visam à prática. Assim como o pensamento medieval, mediante o problema da autoridade dos saberes, discutirá a distinção entre os âmbitos da fé e da estrita racionalidade natural, o pensamento moderno procurará atender a exigência de distinguir os âmbitos psicológicos positivos do cognoscível e do meramente pensável. É para os modernos que o método se colocará, pois, como problema crucial.

Page 99: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

99

o pensamento. Enquanto entidade móvel, como que jamais podendo ser esquecida a exigência

aristotélica de uma causa para todo movimento, a alma irracional também aparece cindida entre o

natural necessário objetivo e o passional contingente subjetivo. Este último, embora não possa

ser propriamente dito livre, é casual, senão caótico (errante) em si mesmo, de modo que uma

doutrina das paixões só se torna possível na medida em que se as toma à luz da noção de natureza

humana, que, como tal, tem suas próprias “razões”. Dadas as dificuldades decorrentes de se

atribuir vontade à alma irracional, Kant lançará mão da noção de “forças externas”, bem como

do antigo pressuposto do caráter diretivo da razão, para fazer da vontade (que é sempre diretiva)

a razão pura no seu uso prático, desvinculando-a totalmente dessas forças cegas. Nietzsche

tornou-se importante ao reconhecer já em seus primeiros trabalhos a cisão, atribuída por ele a

Platão e Sócrates, entre apolíneo – ligado à constância causal – e o dionisíaco – ligado à

inconstância casual –, “tipos” que, até a era trágica, encontrar-se-iam inscritos em uma

harmoniosa – porém cega – dinâmica geral da natureza.

Embora esta partição da alma formulada já na antiguidade servisse à fundamentação de

antropologias eficazes na distinção entre o zoon logon echon, ou “animal/vivente dotado de

razão”57, e as demais formas de vida, considerando-se como “animal/vivente” (i.e., dotado de

alma/vida) toda forma de vida cujo movimento tivesse em si mesma (na alma, anima) seu

princípio, mantinha cindida em si mesma a natureza desse “animal racional”, comprometendo

desde a raiz as justificativas para sua “dignidade”, a qual, especialmente a partir do século XVII,

será identificada com a liberdade. Desse modo, o caráter negativo do conceito de liberdade não

está presente apenas quando se reduz tudo à necessidade natural em um determinismo universal,

mas também, e de modo ainda mais obscurecedor, quando se entende aquele conceito à luz da

causalidade em geral, que é um princípio de razão, ou seja, o modo segundo o qual

necessariamente se concebe o real. O “otimismo” antigo era fundamental para que se pudesse

propor uma adequação do nomos à physis, pois, sendo bons em si mesmos os instintos naturais, o

conhecimento da natureza não apenas proporcionaria sua adequada compreensão segundo leis,

mas também a adaptação do agir e das inclinações internas à “vontade da natureza”, ficando de

lado apenas os apetites que não teriam sua fonte nem na natureza nem na razão. Também por

isso Schopenhauer parece ter muita razão em vincular estreitamente racionalismo e otimismo.

Deve-se, contudo, fazer certa justiça aos gregos, especialmente a Platão e a Aristóteles, no

sentido de estarem muito longe de dizer que “saber é poder”, como diria Bacon, que “o

57 “Animal” e “vivente” não são propriamente sinônimos. O primeiro termo traduz o ente cuja mobilidade tem em si, na sua “alma” (anima, psyche) sua causa imediata; o segundo, mais amplo, abrange a totalidade dos entes vivos (zoon). Zoe carrega ainda uma ideia mais abrangente do que bios, ao contrário do que fazem parecer as designações dadas às ciências particulares do fenômeno da vida natural (apropriadamente chamada Biologia) e da vida das bestas (redutivamente chamada Zoologia).

Page 100: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

100

conhecimento liberta”, como diriam os iluministas e, ao seu modo, já os cristãos, ou que “a

consciência liberta”, como diriam os marxistas em sua metafísica invertida. Tais afirmações

otimistas com relação aos efeitos da razão sobre a vida humana, ditadas segundo visões de

mundo cientificistas, idealistas ou materialistas, liberais ou socialistas – cada qual revolucionária a

seu modo –, não podem ser adequadamente identificadas com a noção grega clássica de que o

poder se radica ou se legitima no saber, como tão claro fica na República, de Platão.

4.1.3. O ideal de libertação do espírito no mundo antigo

Já no início de A república aparece a oposição entre poder e razão tal como Platão a

entende. Sócrates, modelo do filósofo, amigo do saber, do discurso, do logos, é constrangido por

Polemarco – cujo nome nos remete a polemos, guerra – a se deter na casa de Céfalo. Ainda que

expresso em tom de brincadeira, não deve passar despercebido o que diz o discurso do poder

quando Sócrates demonstra pretender recusar o convite: “Ora tu estás a ver quantos somos? [...]

ou haveis de ser mais fortes do que estes amigos, ou tendes de permanecer aqui.” (Platão, 1996,

[327 c] p. 2).58 O próprio veículo de Platão, o diálogo, nos remete à ideia de que o pensamento,

de que o próprio logos se faz no jogo discursivo, no caráter dual (dia, dois) de toda con-versa, que

não consiste no unilateral e impositivo dizer dos sofistas, mas inclui sua contrapartida: a escuta.

Sócrates não é o modelo de Platão pelo que ensina e pelo que afirma, mas pelo seu perguntar que

nada mais significa do que um querer ouvir, um dar ouvidos à fala, o que também é naturalmente

requerido de seus interlocutores.59 Como prova disto, ao responder a Polemarco “ainda nos resta

uma possibilidade, a de vos persuadirmos de que deveis deixar-nos partir”, recebe imediatamente

como resposta: “Porventura seríeis capazes de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvir-vos? [...]

compenetrai-vos de que não vos ouviremos.” (Platão, 1996, [327 c] p. 2). O apelo de Sócrates à

escuta do logos não é ela mesma escutada. É mais fácil querer falar do que silenciar para ouvir.

É assim que testemunhamos, nas palavras de Platão, o abismo aberto entre filosofia e

poder, entre saber e força, de modo que a polêmica de Platão se volta não apenas contra os

sofistas e os poderosos que, pela força surda, condenaram seu mestre à morte, mas contra as

consequências de seu discurso unilateral. Isto deve ser pesado por todos aqueles que criticam

Platão, segundo um sociologismo barato, por ter sido um aristocrata defensor de uma elite

prejudicada pela democracia, defensor de uma eugenia etc. É pela força que o não-saber se

sobrepõe ao saber, e até Nietzsche concordaria com isto. Eliminado o livre diá-logo, o discurso

58 Agradeço ao professor Dr. Markus Figueira esta observação inicial, em um de seus cursos, a partir da qual foram desenvolvidas as considerações expostas neste parágrafo. 59 O próprio Platão nos leva a esta conclusão em sua Apologia de Sócrates, 33 a-b.

Page 101: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

101

que serve à expressão do poder será tão-somente um simulacro do logos, como apontará Platão

em O sofista (233 a et seq.); não sendo um diá-logo, trata-se de uma fala sem escuta. Tal simulacro,

como o Geredete de que tratará Heidegger, apela apenas ao interesse do falante, quando não apenas se

impõe ao ouvinte. Isto ainda dá algo a pensar acerca do menosprezo de Platão, na obra em

questão – A república –, pela democracia, onde o livre diálogo é encoberto e desnaturado pela

licenciosidade da fala de uma multidão que, enquanto multidão, impõe sua força, fatalmente contra

si mesma. Não é apenas a “linguagem” da ditadura, mas, sobretudo, e ainda mais, da ausência de

pensamento, da negligência e da indigência, o próprio extravio do sentido do falar. Assim Platão já

nos mostra que nem toda liberdade de expressão consiste em liberdade, mas antes e comumente

em afirmação de forças. Filosofia não é apenas amizade ao saber, uma “teoria” descolada do real

como pretendem os detratores que se ensurdecem diante dela, como se sua prática consistisse na

instituição de uma esotérica “Companhia dos Amigos do Saber”, similar àquela dos “filósofos de

gabinete”, mas um fazer entre amigos, pois, do contrário, não há ouvidos que ouçam. A amizade

do saber não consiste apenas na dádiva, mas especialmente, na disposição receptiva, de maneira que

“do saber” indica uma propriedade do saber ele mesmo, não algo que se lhe acrescenta do

exterior, como bem mostra a estrutura da palavra composta: philo-sophia, a amizade própria ao

saber, que não deixa de ser também um saber sobre o sentido da amizade, que não é mera

“parceria”. O sábio é amigo; não a sabedoria algo pelo que se nutre o sentimento de amizade, um

sentimento que produza isolamento do mundo, seja em uma biblioteca, seja em uma “academia”.

Apenas em um sentido a Academia pode ser justamente estimada como um lugar de ouvintes: se

mesmo os mestres o são. O esoterismo da academia só pode apartar os incapazes de ouvir, pois

neles nenhuma academia é possível. Finalmente, a liberdade de expressão exige a companhia da

liberdade de escuta, pois escravos não escutam; obedecem. Filosofia é, pois, um saber de homens

livres, entre homens livres e para homens livres – seu meio é, portanto, para Platão, a exemplo de

Sócrates, o diálogo. Não é à toa que, antes de Aristóteles, reconhecendo na dialética a “ciência do

filósofo”, Platão (1983b, [253 c] p. 176) já encontrava na Filosofia a “ciência dos homens livres”.

Decerto estas últimas considerações podem soar estranhas, mas em passagem célebre da

Metafísica, de Aristóteles (2002, [981 b 20-25] p. 7), lemos que a própria busca do saber tem, como

condição, a liberdade.

[...] quando já se tinham constituído todas as artes desse tipo [os saberes técnico-utilitários voltados para a satisfação de necessidades e as produções voltadas para o comprazimento, modernamente denominadas “artes do espírito”], passou-se à descoberta das ciências que visam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e isso ocorreu primeiramente nos lugares em que primeiro os homens se libertaram de ocupações práticas. Por isso as artes matemáticas se

Page 102: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

102

constituíram pela primeira vez no Egito. De fato, lá era concedida essa liberdade à casta dos sacerdotes.

É notável que Aristóteles afirme isto com tamanha certeza e precisamente no contexto em

que define a especificidade da episteme como conhecimento de causas próprio ao ser racional, e

como preparação para a exposição das características gerais da sophia e da história do pensamento

filosófico ocidental, muito embora “liberdade” seja aqui entendida de maneira muito vulgar. Na

Introdução à história da filosofia, C.III.a/c, Hegel (2000, p. 441-442/445) também o faz, de maneira

mais explícita e elevada, mas não definitiva a nosso ver:

O pensamento deve ser por si mesmo, deve realizar a sua liberdade, deve separar-se da natureza passando da dispersão à contemplação; deve livremente entrar em si mesmo e chegar assim à consciência da sua liberdade. [...] / Se dissermos que, para a filosofia se manifestar, é necessário a consciência da liberdade, o povo onde a filosofia tem início deve possuir este princípio como base; um povo que possua esta consciência da liberdade funda a sua existência sobre tal princípio [...]. Praticamente, equivale a dizer que nesse povo floresce efetiva liberdade, a liberdade política; esta nasce somente onde o indivíduo por si se conhece como indivíduo [...]. / Por este nexo genérico entre liberdade política e liberdade do pensamento, a filosofia manifesta-se na história só onde e na medida em que se formam constituições livres. / [...] esta liberdade, topamo-la no povo grego. Por isso a filosofia começa nele.60

É evidente a mudança no foco de interesse expresso por Aristóteles e Hegel, sem que, no

entanto, o sentido mais geral e profundo do que cada um diz tenha sofrido qualquer alteração: a

consciência da liberdade se manifesta no desenvolvimento do saber, de modo que este se radica

naquela. O que se traduz no texto de Aristóteles como “estar liberto de ocupações práticas” e, em

seguida, como “liberdade”, é o famoso ócio – como prefere mais corretamente traduzir Ross em

ambos os lugares –, o schole, scholaxein. O “scholasticus”, “estudioso”, “erudito”, é precisamente

aquele que frui dessa des-ocupação empregando suas forças na busca do saber (scientia), não sendo

à toa que aqueles que faziam do saber sua profissão – os sofistas – desfrutassem desse ócio

empenhando-se na vida pública. É bem verdade que tal busca consiste em um escapar ou

“libertar-se da ignorância”, pseughein tes agnoian (Aristóteles, 2002, [982 b 20] p. 10/11), mas isto

não tem em Aristóteles o mesmo significado que adquirirá posteriormente, já apontado, e não

apenas porque este “libertar-se” deve ser entendido em sentido muito estrito, mas, sobretudo,

porque, em uma rara definição de “homem livre”, Aristóteles diz: “chamamos livre o homem que

60 É evidente que Aristóteles e Hegel tratam de enfatizar “ciências” diferentes, e por isto o primeiro reconhece seu início no Egito, com as matemáticas e a astrologia, e o segundo na Grécia, com a ciência entendida em sentido estrito, ou global, como Filosofia. Certamente Aristóteles concorda com o grau inferior e incompleto daquelas ciências abstratas em relação à ciência do ente enquanto ente. Mais adiante nos ocuparemos do privilégio conferido na modernidade à “liberdade política” e à “liberdade de pensamento”, de fato interdependentes.

Page 103: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

103

é fim para si mesmo e não está submetido a outros” (2002, [982 b 25-26] p. 13), ou seja, aquele

que é por si e para si mesmo. Fica claro por que crianças, mulheres e escravos não eram cidadãos

na democracia grega, e também o sentido das condições estabelecidas por Platão para a igualdade

política entre homens e mulheres chegando mesmo a propor uma controvertida dissolução da

família tradicional... Com isto se pode melhor compreender o significado do que fora dito por

Aristóteles mais acima (982 a 17-19): “De fato, o sábio não deve ser comandado mas comandar,

nem deve obedecer a outros, mas a ele deve obedecer quem é menos sábio”. Tal afirmação,

muito mal compreendida fora de seu contexto, em certo sentido, guarda simpatia com o

conteúdo geral da República, de Platão. Se até o Renascimento se menosprezava o trabalhador

manual é porque este, em sua ocupação diária, não desfrutava do ócio necessário à elevação do

saber sobre as coisas mais elevadas, razão pela qual um excelente fabricante de instrumentos não

poderia ser um excelente músico e vice-versa.

Na República, a divisão da população em castas (artesãos, guerreiros e guardiões, ou reis-

filósofos) corresponde a espécies de alma que obedecem mais ou menos aos apelos do sensível.

A libertação do mundo das sombras, ilustrada pela conhecida alegoria da caverna, constitui um

claro pré-requisito para a aquisição do saber necessário ao domínio de si mesmo e, por

conseguinte, para a administração pública, que tem o autodomínio como pré-requisito necessário.

É necessário libertar-se dos falsos saberes para então poder prosseguir rumo ao conhecimento do

que é bom e justo. É a liberdade que libera esse poder-saber, e não o saber que libera a liberdade-de-

poder em geral; a alma precisa antes estar aberta ao saber para então se permitir ser por ele

determinada e então determinar o agir com conhecimento. Como vimos acima, saber não é poder,

mas pode (e deve) nele intervir. Tal libertação, que é da alma, pode ser conquistada mesmo por

aqueles cuja condição material ou social seja desfavorável, como o é a do escravo. Contudo, o

escravo de Mênon não se liberta de sua falsa opinião sem que antes se lhe conceda a oportunidade

de, em lugar de servir a seu senhor, pensar por si. Além disso, é necessário querer pensar, convite

costumeiramente feito por Sócrates que poderia ser aceito ou não pelo interlocutor. Em suma, a

escravidão ao serviço de um senhor ou aos afazeres cotidianos do artesão não é substancialmente

maior do que a da alma ordinária ao corpo que a aprisiona, como diz Sócrates no Fédon, aos

preconceitos ou à sensibilidade, ao “mundo das aparências”; talvez mesmo esteja mais ao alcance

de todo homem libertar-se da escravidão material do que da espiritual – é possível que,

ordinariamente, esta última contribua decisivamente para a primeira, mas, como dissemos, não no

sentido em que prega a “ideologia do esclarecimento” nem segundo os meios por ela indicados.

Deve-se observar, pois, que a não-subordinação e a não-dependência são condições para o

ócio que permite o desenvolvimento da razão; na medida em que o homem se eleva em

Page 104: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

104

sabedoria, adquire o direito à autonomia, a ser entendida como autorregulação, o que a mera

desocupação não garante por si só. Um abastado tolo desocupado, independente no que diz

respeito às necessidades da vida natural, há de ser submetido ao mais sábio na vida moral, mas

este é um caso particular, pois envolve sua negligência na busca do saber. Aliás, Kant (2007, [BA

55-56] p. 61) considerará isto uma falta moral. Afinal, sua “tolice” consiste em dedicar seu tempo

vago a divertimentos, por exemplo, em lugar de dedicá-lo à atividade que o poderia conduzir à

felicidade, a saber, o pensamento, ou contemplação (ver Aristóteles, 1176 b 8-1177 a 11). Dois

pontos são aqui importantes e de certo modo surpreendentes para nós neste século: 1) que

liberdade e autonomia não pareçam significar exatamente a mesma coisa, na medida em que a

primeira, noção mais ampla, não garante a segunda, embora a segunda implique a primeira; 2) que

Aristóteles e, ao que parece, também Platão e Sócrates não tenham se empenhado em definir

explicitamente o que significa “liberdade” em geral.

O que Platão deixa claro, inspirado no exemplo de Sócrates, é que tal libertação inicial da

alma depende, em grande medida e decisivamente, dela mesma, talvez de sua “vontade”. Isto se

comprova não apenas na alegoria da caverna, mas também na passagem em que Sócrates diz a

Mênon: “nada impede que, tendo < alguém > rememorado uma só coisa [...], essa pessoa

descubra todas as outras coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar” (Platão, 2005, [81 d] p. 53;

grifo nosso).61 No caso de Aristóteles, reconhecido por seu rigor analítico e notório cuidado em

precisar os termos de que se utiliza elaborando exaustivas classificações, é estranho que não tenha

lançado mão senão de uma definição comum para “homem livre”. A definição de “homem livre”

é, evidentemente, algo dado que ele toma como consensual para fazer analogia com a ciência que é

própria a tal homem, “chamada livre, pois só ela é fim para si mesma”62 (2002, [982 b 27-28] p.

13), não estando submetida a nenhuma outra, e por isso chamada “filosofia primeira”, próte, que

vem antes de todas e de nenhuma outra deriva, mas da qual todas devem decorrer. Ser “fim para

si” e “não estar submetido a outro” garantem as respectivas dignidades desse homem e dessa

61 A dificuldade parece intrínseca ao caminho do saber, como consta na dramatização da alegoria da caverna. Poder-se-ia aqui aplicar o que diz Nietzsche (2005a, p. 58) em sua conferência sobre “O drama musical grego”, proferida em 18 de janeiro de 1870, acerca da arte grega como “atravessada pela ufana lei de que somente o mais difícil é tarefa para o homem livre”. O homem livre é aquele que dá a si mesmo tarefas, assume suas próprias causas, sendo digno também que não realize o que qualquer outro realizaria, mas o que somente a ele é possível empreender. Tal qualidade não está restrita apenas a heróis como Aquiles ou Héracles, mas também é própria ao sábio, constituindo mais um elemento que dignifica não apenas o homem livre, mas a própria atividade que realiza segundo esta liberdade. Em cada caso encontramos a antiga noção de “aríston”, o nobre, elevado, também traduzido como excelente, virtuoso. Também escreve Kierkegaard (1979c, p. 184) que “uma nobre natureza só se entusiasma com o que é difícil”. Neste sentido, diz Aristóteles (2002, [982 a 10-12] p. 9; grifo nosso) do sábio ser “capaz de conhecer as coisas difíceis ou não facilmente compreensíveis para o homem (de fato, o conhecimento sensível é comum a todos e, por ser fácil, não é sapiência)”. 62 Mediante a citação feita acima do Sofista, de Platão, podemos entender que a relação já é posta por este; Aristóteles, de certo modo, apenas a aperfeiçoa quanto a sua elaboração.

Page 105: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

105

ciência, devendo-se esclarecer que o que é fim para si não é meio para a realização de fins de

outrem.

Um exemplo simples, a título de parênteses, é o do trabalhador assalariado: ele é

duplamente escravo, pois não apenas tem seu tempo tomado pela necessidade de garantir seu

próprio sustento e o de seus dependentes como também os fins de sua atividade produtiva são os

fins de seu empregador, para cuja realização ele funciona como causa eficiente, concorrente, e o

próprio produto não é um fim em si mesmo para nenhuma das partes, mas um meio para a

obtenção do salário ou do lucro, que é, por sua vez, meio para sua subsistência e assim

sucessivamente. Como consequência de ser materialmente escravo, tem também escravizada a

consciência. Marx percebeu esta parte com imensa clareza, mas, considerando apenas o tempo

trabalhado em detrimento do tempo vago, que deve ser o fim das atividades (o repouso), e não

um simples meio para sua reprodução (um intervalo), compreendeu a liberdade de modo bastante

distinto, materializado. Assim, Aristóteles concorda que “por muitos aspectos a natureza dos

homens é escrava” (2002, [982 b 29-30] p. 13). Também Nietzsche (2006, [§283] p. 176) dirá que

“aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista,

comerciante, funcionário ou erudito”, tornando-se ativo como mero representante de uma

espécie, jamais como indivíduo. Trata-se do homem que “de quando em quando deverá ter um

domingo de liberdade, de outro modo não terá como suportar a vida” (Nietzsche, 2006, [§291] p.

179). Se considerarmos o sono saudável de oito horas, concluímos que, nesses termos, nenhum

trabalhador pode ser senão escravo... Um terço de todos os nossos dias já se foi na inconsciência;

outro terço se vai com a jornada diária de trabalho. Pior: considerando que cada homem necessite

de pelo menos quatro horas para suas refeições e higiene pessoal, concluímos que o homem

regular não vive consigo mesmo mais do que uma sexta parte de sua vida, e cada vez mais

sofrivelmente na proporção da complexidade do mundo urbano. Acontece ainda que cabe ao

trabalhador a administração de seu tempo ocioso, donde a controvérsia entre as teses: 1) de que é

na liberdade ociosa que se dá a possibilidade da consciência que conduz ao autodomínio; ou 2) de

que tal possibilidade se dá na atualidade da própria atividade produtiva em andamento.

Na Ética a Nicômaco (Aristóteles, 2001a) de onde seguramente Marx tira seu conceito de

práxis como prática consciente, não temos um quadro diferente: além de não encontrarmos ali

uma clara e explícita definição de “liberdade”, tampouco temos uma para “vontade”, muito

embora sejam ambas as noções subentendidas, contudo não sem obscuridade. A delimitação do

âmbito da vontade se liga à física e à metafísica na medida em que reside na “localização” e na

modalidade do motor da ação: motor externo ou interno, necessário ou contingente. A vontade

entra em jogo quando a ação se origina no próprio agente, sendo voluntária quando está em seu

Page 106: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

106

poder agir ou não agir de tal modo (1110 a 15-17) e involuntária quando tal decisão não está em

seu poder, embora isto seja de mais difícil determinação, de acordo o próprio Aristóteles.

Portanto, a vontade é uma qualidade dos entes animados. Sendo por vezes difícil determinar em que

medida o agente tem em seu poder agir ou não agir de tal modo, a ação voluntária é definida

formal e negativamente como aquela realizada sem coerção externa, de modo que as ações movidas por

paixões internas são consideradas voluntárias, o que se aplica também a crianças e animais

irracionais (1111 a 24-1111 b 3). Desse modo, Aristóteles (1111 b 7-9 e 15) elencará duas espécies

de ação voluntária, a saber, por paixão ou apetite e por escolha. Em ambos os casos o agente tem

responsabilidade, uma vez que é absurdo para Aristóteles tomar circunstâncias externas como

responsáveis pela ação (1110 b 12-14). Como só se pode exercer escolha acerca de meios que

estão ao nosso alcance para a realização de fins determinados, mesmo porque não há deliberação

sobre fins, mas apenas sua admissão (1112 b 12-19), trata-se ainda de uma delimitação negativa do

possível à vontade com relação ao necessário fim assumido. Uma das espécies do necessário é a

coerção externa, natural ou não, identificada com o compulsório, ou seja, um princípio movente

externo que não dá lugar à contribuição do agente (1110 b 1-3 e 14-16; 1015 a 34-1015 b 6).

Assim Aristóteles distingue o voluntário do involuntário, sendo este último de duas espécies: por

compulsão (externa) ou por ignorância (1109 b 35-1110 a 4). Nesse momento é que surge uma

segunda característica do voluntário, a saber, a consciência das circunstâncias particulares da ação

– afinal, voluntário e involuntário se referem ao momento, à ocasião, às circunstâncias da ação –,

pois não se age voluntariamente sem conhecimento do que se faz ou dos meios adequados para

certos fins, o que é pré-requisito de toda escolha, a terceira característica (1111 a 22-23; 1110 a

14-15; 1110 b 20/30-34]). Desde então, toda liberdade se encontrará vinculada ao arbítrio, de

modo que apenas se procurará esclarecer o conceito de “escolha”.

Portanto, à parte a obscuridade da distinção aristotélica entre involuntário e não-

voluntário63, o voluntário, também caracterizado eventualmente pela escolha, que se baseia no

63 Tendo distinguido formal e objetivamente o voluntário do involuntário pela via negativa (não-coerção) e adicionando o conhecimento em que se deve fundar a escolha deliberada, seria não-voluntária toda ação realizada por ignorância (1110 b 17). Por sua vez, ações involuntárias podem ser por compulsão externa ou por ignorância, mas apenas quando se segue pesar, arrependimento, ausentes na ação não-voluntária (1110 b 17-24). Trata-se de dizer que o arrependimento supõe ser pensável poder ter agido de outro modo – causar algo “sem querer” difere, portanto, de agir independentemente de toda vontade. Nesse caso, a distinção entre involuntário e não-voluntário é antes de tudo psicológica e subjetiva, e ainda negativa, pois é na ausência do pesar que se reconhece a impertinência à vontade. Em verdade, encontra-se aí uma grande inconsistência, se não mesmo uma contradição. Se toda ação por ignorância é não-voluntária, uma espécie de ação involuntária deveria ser uma espécie de ação por ignorância caracterizada pelo acompanhamento de pesar e/ou arrependimento. Todavia, se ação não-voluntária em geral é justamente caracterizada pela ausência desses sentimentos, pois a impertinência à vontade não os suscita, não se pode tê-los como indicativos de uma espécie sua, a saber, uma ação involuntária por ignorância. Seria mais cabível dizer o contrário: que toda ação não-voluntária é por ignorância – i.e., não sabendo o que faz –, mas que nem todas as ações por ignorância são não-voluntárias, pois algumas podem ser acompanhadas de pesar/arrependimento. Desse modo, a ação não-voluntária seria uma espécie de ação por ignorância que é, por sua vez, espécie de ação involuntária ao lado da ação por compulsão externa. O que aparentemente se decide é que à ação pode suceder ou não um sentimento de

Page 107: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

107

conhecimento, tem como condição mais fundamental a não-coerção. Só se pode escolher quando

há liberdade para tanto, e a boa escolha deve se pautar no conhecimento do que é justo,

consistindo em uma possibilidade de decisão pela razão esclarecida quando na ausência de causas

externas concorrentes de modo objetivamente irresistível. Assim se pode reconhecer o caráter

secundário ou mesmo terciário do “livre arbítrio” nesse contexto, apesar de a tradição filosófica e

o senso comum concentrarem justamente aí seus argumentos em favor da liberdade humana,

talvez pelo que o livre arbítrio implique. Uma vez que o conhecimento necessário à boa escolha,

como vimos, depende também da não-sujeição a circunstâncias externas, a própria vontade se

encontra previamente restringida pelas necessidades internas e externas, bem como às obrigações

da vida cotidiana, pois só se pode deliberar sobre (e, por conseguinte, escolher) o que não é

contrário à natureza e está ao alcance do conhecimento e do poder de cada um. Também não se

pode deliberar sobre o que é prazeroso, embora se o conheça. De todo modo, fica claro que,

nesses termos, ainda que a escolha possa conduzir à perfeição, e assim o livre arbítrio seria

superior à vontade em geral no que toca à liberdade, não é essencial ao voluntário, que parece estar

sempre ligado a alguma espécie de conhecimento, mesmo no caso de animais irracionais e

crianças. Quando se age por ignorância, age-se, contudo, a partir do que se julga saber, uma mera

crença ou opinião, de maneira que o conhecimento verdadeiro não é necessário para que se

delibere. Além disso, ações por ignorância, involuntárias e mesmo as não-voluntárias (?), têm sua

origem no agente, de modo que a vontade, entendida como motor de toda ação, não parece ser o

mesmo que o voluntário, podendo incluir o que lhe é antitético, não estando por sua vez restrita à

possibilidade de decidir ou ao dever de assumir responsabilidades ou à posse do conhecimento

verdadeiro. Enfim, se não reduzimos a vontade ao poder, convertemo-la em condição necessária,

mas não suficiente, para a liberdade; esta, sim, consistindo em um poder efetivar uma vontade, que,

aliás, sempre quer, em última instância, a felicidade.

Na tentativa de esquematizar a grande confusão instaurada, diríamos que a perfeição da

vontade se dá com o exercício do arbítrio sobre os melhores meios para os melhores fins, o que

responsabilidade pela própria ignorância, muito embora não se aja voluntariamente por ignorância. Contudo, a responsabilização de crianças e animais irracionais por seus atos voluntários ainda parece algo controverso, visto que, embora atendam a paixões, notadamente envolvem relativa ignorância com relação às circunstâncias particulares da ação, sem mencionar que, no caso dos animais irracionais, o pesar ou o arrependimento devem estar de todo ausentes, a não ser que sejam treinados, como cães, a sentir constrangimento perante seu senhor. No caso das crianças, haver-se-ia de admitir conhecimento de certa espécie, bem como no caso dos animais irracionais: tal conhecimento seria o conhecimento do que se quer. Além disso, se se considerar que ações más possam ser empreendidas na ausência de conhecimento do bem, como é o caso das ações egoístas, o que parece ser o que pensavam Sócrates e Platão, como admitir que sejam não-voluntárias apenas pelo fato de o indivíduo mau ou meramente egoísta não sofrer de pesar ou arrependimento; pelo contrário, acreditar-se certo? Se Sócrates e Platão afirmam que só se faz o mal por ignorância e que, desse modo, não se o faz por querer, tal como lemos na Apologia (26 a), estaria a má-escolha, por ser equivocada quanto à natureza do bem final, como no caso das crianças, excluída do âmbito do voluntário?

Page 108: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

108

supõe conhecimento e, além disso, circunstâncias propícias não apenas à aquisição desse saber

como à efetivação do querer determinado pelo arbítrio, o que somente é possível a seres

animados dotados de razão e consciência. No entanto, se colocamos de lado estas condições

ideais, a vontade permanece na obscuridade, pois não apenas os desfechos podem ser contrários

às expectativas do agente como também seu poder de intervenção no curso das coisas pode ser

muito questionável.

Vontade, de todo modo, seria então uma espécie de causalidade que, por ser contingente, é

concorrente de causas mais ou menos inescapáveis que tendem, portanto, a se sobrepor a ela,

assim sendo também a liberdade uma espécie de condição dependente, em primeiro lugar, de

circunstâncias da vida do agente regida, antes de tudo, pela natureza, em seguida pela sociedade,

não estando também ao alcance de todo homem ser fim para si mesmo. Tal espécie de

causalidade poderia ainda ser qualificada como um princípio motor próprio a todo ser animado,

como uma força ou poder naturalmente inerente a essas formas de vida e concorrente das forças

exteriores. À vontade se impõe como obstáculo tudo que é natural assim como à liberdade se

impõe tudo que faz do homem uma espécie de natureza escrava. Em ambos os casos, pensa-se a

liberdade da vontade a partir de e em contraste àquilo que é antes dado. A natureza do que se

denomina “natural” jamais é investigada a contento, tomando-se antes a causalidade como

princípio. Ao menos até aqui domina a physis – por isso mesmo, talvez, impensada como tal –,

embora caiba a essa força intrínseca, ligada à razão, impor-se sobre as determinações materiais da

existência humana. De todo modo, enquanto se pensa a vontade como causalidade, tal como será

dominante até Kant, na mesma medida em que se trata de uma determinação contingente, enquanto

determinação, sempre pressupõe a ideia de necessidade, como veremos mais adiante pela argumentação

de Hume.

Por fim, algo de interessante que encontramos no encerramento da República de Platão

(1996, [617 e] p. 493) merece menção. Em meio à narração do mito de Er, lemos as palavras do

profeta que dizem: “A responsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa.” Com

efeito, a tradução pode nos desviar do que efetivamente indicam as palavras de Platão, a saber:

Aitía helomenou – Theos anaitios. Por quê? Se a expressão “livre arbítrio” é demasiado moderna para

traduzir “helomenou”, a ideia de que se trata aí é evidente: “ser a própria escolha a causa única do

próprio destino”. O contexto da passagem é o das almas que, no Hades, escolhem a vida que

terão a seguir em seu retorno à terra. A sorte decide apenas a sequência das almas que elegerão

suas vidas futuras, não os seus respectivos destinos. Desse modo, o deus não é a causa, mas o são

as escolhas daqueles que escolhem, que somos nós mesmos. O interesse do mito e do trecho

citado é que confere a todo homem o poder de já ser efeito de sua escolha em uma condição

Page 109: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

109

prévia e equalitária de liberdade, exceto pela disponibilidade de vidas possíveis, sendo maiores as

alternativas para aqueles que a sorte permitira escolherem primeiro. Contudo, enquanto mito, não

temos o expresso comprometimento filosófico de Platão com esse pensamento... Quanto à

tradução, “escolha” pode ser de fato mais adequado do que “livre arbítrio”, mas tal cuidado é

comprometido pela tradução de “aitia” por “responsabilidade” e, a seguir, por “culpa”, termos

igualmente carregados pela tradição moral cristã. O que resta é a compreensão de que Platão

estima a hipótese de que cada homem, em vida, responde pelo que ele mesmo escolhera ser, não

cabendo qualquer queixa contra os deuses, contra a natureza e tampouco contra outrem. Outro

problema é que Er teria dito, segundo conta Sócrates no diálogo: “Com efeito, a maior parte fazia

a sua opção de acordo com os hábitos da vida anterior” (Platão, 1996, [620 a] p. 496),

ordinariamente, um modo de vida contrário ao pretérito. Ora, isto significa uma escolha

determinada por experiências adquiridas... Portanto, o mito narrado por Platão só nos ajudaria se

abordasse a escolha primeira, a mais originária, ao invés de uma mera reprodução, nesse período

entre-vidas, das “escolhas” que fazemos cotidianamente a partir de juízos empíricos.64 Por sua

vez, tudo isto parece ser contradito no Timeu (Platão, 1949, [41-42] p. 100-102).

A filosofia posterior de orientação judaico-cristã tendeu sempre a minimizar o papel do

conhecimento natural no que se referia à aquisição da virtude e, por conseguinte, do que

denominava “libertação”, priorizando em seu lugar o conhecimento revelado e com isso

aproximando a razão especulativa comum da sensibilidade, ambas as faculdades voltadas ao finito

corpóreo, mantendo-se reafirmada e aprofundada a doutrina da dupla natureza humana. Esta

posição encontrara formulação paradigmática em Santo Agostinho. Caso notório é, todavia, o de

Fílon de Alexandria, que, no século I, deixa claro não ser o sábio a atingir o bem, mas o bom a

atingir a sabedoria, processo este de ascese que tem início na própria graça, e não na especulação

das escolas (ver, por exemplo, Fílon de Alexandria, 1996, [§35] p. 475/477 e [§§73-80] 495-499).

A graça do conhecimento acerca do divino viria em reconhecimento à bondade do indivíduo, o

que dá certa primazia à vontade, mas sem, entretanto, tomá-la explicitamente de modo positivo

exceto no que diz respeito à liberdade divina para criar, intervir na causalidade natural (operar

milagres) ou revelar. Essa liberdade da vontade é mantida como prerrogativa de Deus – a

possibilidade da ação antinatural como ato de livre vontade –, não havendo talvez nenhuma

exceção a esta regra geral em um largo período de tempo senão, como já foi visto, em Mestre

64 V. Kant (1974b, p. 381): “Quando o efeito é relacionado com uma causa que está a ele ligada segundo leis da liberdade [...], a determinação do arbítrio para produzir não é mais pensada como unida a seu fundamento de determinação no tempo, mas apenas da representação da razão, e não pode ser derivada de um estado qualquer precedente [...] como acontecimento no mundo [...]. Procurar das ações livres, como tais, a origem temporal (como que de efeitos naturais), é, pois, uma contradição; por conseguinte, da constituição moral do homem, enquanto considerada como contingente, porque esta significa o fundamento do uso da liberdade que deve ser procurado unicamente nas representações da razão (assim como o fundamento de determinação do livre arbítrio em geral).”

Page 110: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

110

Eckhart.65 Em si mesmo, contudo, o termo “libertação” parece pouco se distinguir do sentido

platônico. Tal perspectiva, que encontrou maior desenvolvimento dentre os místicos,

especialmente aqueles que consideraram a possibilidade de Deus poder não ter criado o mundo,

não chegou a romper com a doutrina já consolidada da dupla natureza humana, tampouco se

desvencilhou da necessidade de “conhecimento verdadeiro”. Em certo sentido, com exceção

talvez dos neoplatônicos, a mística chegava mesmo a reafirmar a clássica perspectiva grega sobre

novas bases. Afinal, a própria noção soteriológica de libertação supõe sempre evasão de um

mundo de necessidades, de uma vida marcada pela mortalidade, pela finitude, pelas

determinações relacionais e por ocupações mundanas contrapostas ao recolhimento monástico

(também preenchido por ocupações “espirituais”, sobretudo na Alta Idade Média). Liberdade e

natureza continuam sendo inconciliáveis, agora ordinariamente separadas entre mundo (verdadeiro)

e i-mundo (nosso mundo).66 Mesmo no que diz respeito à liberdade da vontade divina temos desde

especulações suspeitas (que previamente qualificam essa vontade como boa, justa, sábia e

perfeita, que cria por abundância de uma virtude dadivosa, concessora da vida) até o mero

silêncio ditado pela impossibilidade de conhecimento da essência divina. Além disso, a vontade

humana não era nem poderia, em geral, ser entendida senão à luz da necessidade de adequação à

vontade divina – objeto de uma crítica generalizada ao pensamento cristão. Como resultado, já

em Santo Agostinho encontramos uma certa radicalização da doutrina da dupla natureza a ponto

de praticamente se negar a liberdade da vontade humana, tal o modo como as qualidades da alma

são isoladas das qualidades do corpo, chegando-se mesmo a falar, a exemplo de Fílon de

Alexandria (1961) no De opificio mundi, em um homem superior (universal ideal assexuado –

andrógino, segundo Fílon e a tradição talmúdica) e um homem inferior (particular corpóreo

sexuado).

Curioso observar que tanto o fatalismo estoico quanto o casualismo epicurista, em suas

respectivas formas de materialismo, praticamente recusaram a liberdade da vontade, mesmo aos

deuses – segundo os estoicos, condenados junto a todo o kosmos à ekpyrosis, a conflagração

universal no fogo (pyros) eterno, ou, segundo os epicuristas, à dissociação atômica. O

materialismo helenístico trazia consigo a redução do humano ao mundo do transitório e do

inevitável como possível reflexo da Era Imperial (muito embora qualquer modo de reducionismo

histórico ou sociologizante sempre deva nos inspirar suspeita). Mesmo o ceticismo, movido pela

65 Embora sejam muitos os momentos em que Fílon de Alexandria parece atribuir às almas uma escolha originária segundo a qual se uniram ou não aos corpos – tornando-se então anjos ou seres viventes –, é controverso se tal escolha não é predeterminada pela vontade divina (cf. Wolfson, 1982, p. 366-367). 66 É legítimo dizer que o mundo em que vivemos é “imundo” em contraste à pureza característica do mundo verdadeiro, reino da liberdade e da autossuficiência. A propósito, o tradutor de Eckhart (2006, p. 66, n. 4) mostra, citando Quint, que um dos significados de “mundum” é “puro”. O mundo físico da natureza é “impuro”, um não-mundo, precisamente por não ser o locus da verdade.

Page 111: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

111

desconfiança com relação a toda doutrina moral, tendia para a conservação das tradições e

instituições na ausência de argumentos contrários suficientes, o que não deixava de ser paralelo

ao princípio de viver em conformidade à natureza. Em cada uma dessas grandes “escolas” da Era

Helenística recomendava-se viver conforme ao dado no interesse da “não-perturbação do

espírito”, possível marca da beatitude oriental importada pelo cosmopolitismo ocidental.

Admitindo o que diziam os materialistas a respeito do mundano corpóreo, os teóricos cristãos

terminaram por isolar os “bens do espírito” – entre os quais a liberdade da vontade – para o

âmbito de uma espiritualidade destacada e de todo alheia ao simplesmente humano. Um dualismo

radical, ainda impensado mesmo por Platão, se cristaliza por mil e quinhentos anos... Depois

disso, já na modernidade,

Razão e liberdade contrapõem-se à natureza. À medida que natureza é o ente, a liberdade e o dever não são pensados como ser. Fica-se na contraposição entre ser e dever, ser e valor. Tão logo a vontade alcance seu máximo des-vio, também o próprio ser torna-se ele mesmo um mero “valor”. Pensa-se então o valor como condição da vontade. (Heidegger, 2007c, [VII] p. 66)

Não será à toa que o problema da liberdade da vontade, perante tudo o que foi dito acima,

consistirá em uma preocupação tipicamente moderna, e o bom esclarecimento deste fato tão

estranho para o homem atual vem justificar o exposto até aqui no presente capítulo. A resposta

moderna não seria outra que não a inversão. Resgata-se de modo duradouro e enfático a

liberdade da vontade, agora mais explicitamente tematizada, porém ainda mais submetida à razão.

4.1.4. Liberação do sujeito e vida política

Descartes (2000a, p. 35-42), na primeira parte do Discurso do método, garante a liberdade do

ego cogitantis tomado a Santo Agostinho lançando mão dos argumentos do ceticismo renascentista

– como, por exemplo, o “relativismo cultural” de Montaigne – para mostrar que não há garantias

de que um homem seja superior a outro homem de modo que a cada qual, no uso de seu bom

senso, é dado o direito de duvidar e seguir seu próprio caminho de investigação. A liberdade aqui,

contudo, é uma liberdade do juízo, força motriz do pensamento político imediatamente posterior,

sobretudo dentre os defensores da democracia que proliferam rapidamente a partir de Locke.

Tratava-se, então, de uma liberdade de avaliação e valoração do dado (necessário por definição!)

da natureza e dos costumes, em que se poderia fundar, em oposição ao teocentrismo papal e à

centralidade política da Igreja, a autodeterminação dos Estados, movimento muito mais forte

dentre os protestantes, mas que, todavia, granjeou a adesão de católicos no sentido de laicizar

Page 112: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

112

seus Estados e, assim, desembaraçá-los das intervenções religiosas após a Contra-Reforma.67

Liberdade do juízo, portanto, é não se deixar determinar pelos juízos de outrem – heteronomia –,

uma concepção já delineada na doutrina baconiana sobre os “ídolos” e que tendia à dissolução de

toda forma de tradicionalismo e à destruição do falacioso princípio de autoridade prezado nos

meios escolásticos.68

Tal liberdade, requerida, encontrada e justificada por Descartes mediante a possibilidade do

erro é melhor esclarecida por sua compreensão de “vontade”, apresentada na quarta meditação.

Ali, diz Descartes (2000c, p. 298-299): “se garanto o que não é verdadeiro [como o sendo], é

evidente que me equivoco, e mesmo que julgue [estar] de acordo com a verdade, isto não

acontece a não ser por acaso e eu não deixo de errar e de empregar mal meu livre arbítrio; pois a

razão nos ensina que o conhecimento do entendimento deve vir sempre antes da determinação

da vontade”. O erro é investigado não segundo sua possibilidade ontológica, como no Sofista de

Platão, mas do ponto de vista psicológico, como produto errático da atividade do pensamento.

Portanto, à vontade cabe arbitrar, pôr em movimento a alma em vista de formar para si um juízo

acerca de uma verdade que é dada anteriormente a toda vontade e que a razão deve, antes de

tudo, conhecer. Nesse sentido, a todo bom arbítrio deve preceder o bom entendimento, que então

deve orientar e, mais do que isto, determinar a vontade. Aqui, a vontade (para agir) parece mais

subjugada do que antes, devendo estar conceitualmente subordinada à liberdade do arbítrio, e não

apenas à liberdade das ocupações, sendo esta a posição dominante ao menos até Kant. Não é por

outra razão que Descartes se recusa a admitir a liberdade na indiferença, pois sendo, para ele, a

vontade mais ampla do que o entendimento, ou seja, inclinamo-nos a mais coisas do que

efetivamente conhecemos, quanto menor a inclinação, menor o emprego da vontade e do arbítrio

e, por conseguinte, menor a liberdade, assim como menor será o conhecimento. Liberdade não se

refere à vontade em geral, mas a um certo emprego da vontade regida ou conduzida pelo arbítrio,

estabelecendo-se assim uma distinção com relação à noção mais ampla de “conatus”. A vontade

parece não passar de um fenômeno psicológico, sendo pela superação desta ideia que Kant

representará um divisor de águas na modernidade.

Porque, para que eu seja livre, não é preciso que seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários, mas, principalmente, quanto mais eu

67 Ainda que de passagem, há de se reconhecer em Espinosa o exemplo mais radical de defesa de tais liberdades contra o autoritarismo teocrático no contexto do século XVII. 68 Não apenas a liberdade aí advogada é radicalmente diferente daquela de que tratam, como vimos, Platão e Aristóteles, como, por sua ênfase na consciência subjetiva, merece tratamento à parte quanto a uma de suas profundas consequências, a saber, a conversão do pathos filosófico de espanto em dúvida e, ainda, a transformação do próprio objeto da dúvida. Este diferencial parece determinar todo o pensamento moderno, mas sua discussão, pertencendo à questão mais ampla do sentido do filosofar ao longo da história, não poderá ser desenvolvida nesta oportunidade. A respeito disto, todavia, encontra-se em fase de finalização um artigo para publicação em separado.

Page 113: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

113

estiver inclinado para um, [...] tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. [...] De forma que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu soubesse sempre com clareza o que é verdadeiro e o que é bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar a respeito de que juízo ou que escolha deveria fazer; e, dessa maneira, seria totalmente livre, sem jamais ser indiferente. (Descartes, 2000c, p. 296-297)

Esse profundo otimismo muito nos remete à concepção socrática expressa na Apologia de

Platão de que o saber nos desvia do erro, pois este consiste em efeito de uma opinião sem

conhecimento. Se simplificarmos tudo isto à proposição de que “liberdade é inclinar-se àquilo

que é corretamente julgado”, parece que temos o contrário do que dirá Kant, pois o dever e o

favor nada têm a ver com inclinações, e definitivamente não é todo juízo correto que pode se

adequar à forma do imperativo categórico, forma do juízo autonomamente livre e puramente

racional, não fundado na experiência. Mais oposto ainda isto será ao pensamento de

Schopenhauer, pois para ele não há como se admitir que a sujeição da vontade ao arbítrio

baseado em representações do entendimento ou de leis constitua ou possa vir a constituir o

máximo de liberdade. Afirmar, como faz Descartes, que maior o conhecimento, maior a

liberdade, soa como resquício da teologia medieval, pois “absolutamente livre” implica e reduz-se

a “absolutamente sapiente”, qualidades que toda a tradição, desde os clássicos, atribui ao divino.

Tal proporcionalidade ainda supõe uma compreensão negativa da liberdade e da vontade na

medida em que, embora não definidas como ausência de necessidade, permanecem impensadas

por si mesmas, e mesmo impensáveis se se desconsidera a possibilidade do conhecimento do

verdadeiro pela razão entendida como faculdade de julgar. Ademais, se o verdadeiro é dado, o

conteúdo do que é “livremente” arbitrado deve ser também dado a priori. Ao conhecimento certo

e seguro, uma ação determinada deve se seguir necessariamente – chega a parecer ironia dizermos

que aí temos um otimismo radical; é que se trata, antes de tudo, de um otimismo da razão em sua

busca por autolegitimação. Não se trata de uma compreensão formal/modal, e sim material, e

mesmo psicológica, mas ainda (ou por isso mesmo) negativa. Orientar-se por representações

parece ser, para Descartes, o destino do ser-livre, o que não esclarece a natureza da vontade, nem

esta o ser-livre, que é antes uma possibilidade da razão. O erro, na moral como nas ciências, não é

um problema de cunho ético ou ontológico (como no Sofista, de Platão), mas, antes de tudo,

psicológico.

Agora, sim, ganha sua máxima força o dito segundo o qual “o saber liberta”, marcando um

dos pontos culminantes da “vontade de conhecimento”, vontade esta dependente do conhecimento

– e até mesmo impossível na sua ausência –, tal como a própria liberdade entendida como

Page 114: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

114

liberdade de duvidar e de conhecer, de maneira que deve então ficar mais evidente o quanto isto

se distancia do que fora defendido pelos filósofos clássicos. “Vontade de conhecimento” e

“libertação pelo saber” vão se convertendo em verdadeiras ideologias. Para melhor se

compreender isto, vale mencionar que a vontade é ainda um princípio de movimento que, ao que

parece, nos constitui como a razão, mas não da mesma maneira que pensavam os antigos. O

conhecimento serviria ao bom direcionamento desse movimento; em sua ausência, tal

movimento seria propriamente errante, cabendo observar que, nesse caso, a liberdade não é própria à

vontade, mas à razão! É à razão que cabe libertar-se dos “falsos ídolos”, e não à vontade ou ao

caráter, como era afirmado dentre os antigos e dentre os medievais. Por isso se pode reafirmar:

trata-se de uma liberdade de juízo, de arbítrio, de modo que a própria liberdade só é

compreendida por Descartes segundo estas funções da alma – portanto, psicologicamente – e aderida

a representações. Isto fica mais claro em As paixões da alma, em cujo artigo 18, primeira parte,

Descartes (2000b, p. 117) reconhece duas espécies de vontade: ações da alma que terminam nela

mesma, voltadas para objetos não-materiais; ou ações que terminam no corpo, em que as partes

do mesmo são postas em movimento em vista da realização de algo. Mais que isso, o artigo 44

traz como título a afirmação de que “Toda vontade é naturalmente unida a algum movimento de

glândula, porém, por habilidade ou hábito, pode-se uni-la a outros” (Descartes, 2000b, p. 131).

Em seu fundo, a tese cartesiana é essencialmente escolástica.

Vê-se que, em Descartes, apesar das fortes influências exercidas pelo pensamento antigo e

pelo pensamento medieval, ocorre uma acentuada naturalização objetivante da vontade e uma

racionalização psicologizante e subjetivante da liberdade ditadas, por um lado, pela fisiologização

do mundo humano – tendência que só tenderia a se aprofundar até nossos dias –, e, por outro,

pela divinização da dignidade humana, uma vez que por muito tempo a liberdade fora atributo

divino em contraste às necessidades da vida humana e que a vontade humana fora por muito

tempo reduzida ao desejo concupiscente, às inclinações do corpo e da alma. Embora seja

controversa a interpretação de que Descartes defende um dualismo corpo/alma, parece claro que

os âmbitos da liberdade e da vontade parecem bastante distintos, tendo a razão primazia sobre

ambos em muito mais larga medida do que se testemunha dentre os antigos. Afinal, só se é livre

na medida em que, pelo conhecimento, se determina a vontade, sendo livre o juízo elaborado

segundo um movimento da alma dotada de conhecimento – é na consciência subjetiva que tem a

liberdade sua origem. Liberdade é uma qualidade da razão esclarecida; vontade é um mero

princípio de movimento da alma; assim, a vontade livre é uma espécie do conatus.

Daí surgiriam ideias muito criticadas por Heidegger como a da identidade entre querer e

pensar, ou vontade e pensamento, pensamento e representação (pois se quer o que se conhece –

Page 115: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

115

o que quero, conheço, represento), ou da identificação do corpo ou da própria natureza em geral

como vontade, bem como de que reside no poder a essência da vontade. Caberá, contudo,

investigar em que medida pensadores como Schopenhauer e Nietzsche são tão dependentes

dessa “ideologia” quanto fazem parecer estas palavras, mesmo porque tal “ideologia”, tão própria

ao pensamento moderno, parece mais obscurecer a essência da vontade e a do ser-livre do que

trazê-las à luz como Schopenhauer e Nietzsche buscariam fazer. Embora herdeiros do

pensamento moderno, Schopenhauer e Nietzsche podem ser positivamente considerados seus

“finalizadores” na medida em que não consideram a liberdade como mero atributo circunstancial

da ação. Além disso, e mais importante, não reduzem ou qualificam a vontade segundo o

conhecimento expresso, mas, em vez disso, para além da mera inversão, consideram o próprio

conhecer expressão de uma vontade, independentemente do que esta venha a deliberar e da

própria possibilidade de livre deliberação.

Todavia, é verdade que a proposta cartesiana rendeu mais frutos no incipiente pensamento

político-social do que nas ciências naturais ou na metafísica que mais diretamente pareciam lhe

interessar. A evidência do indivíduo como pessoa, como sujeito, como substantia, e a

universalização de sua perfectibilidade facilmente conduziram às doutrinas humanistas da

igualdade universal dos homens, não sendo nosso intento tecer considerações valorativas acerca

disto. A já aludida proposta inicial do Discurso do método parece ter sido a mais persistente

contribuição de Descartes, e terminou conduzindo à explícita tematização da liberdade como

problema e à exigência de uma adequada definição para este conceito. No Leviatã, parte 1,

capítulo XIV, Hobbes assume uma postura paradigmática que em nada diferirá do que dirão

Locke ou Rousseau, fervorosos defensores da democracia:

O direito de natureza [...] é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem. (Hobbes, 1997, p. 113)

Até então não tínhamos uma definição tão completa para a liberdade, havendo-se ainda de

destacar algumas peculiaridades. Primeiramente, retorna a definição negativa de liberdade como

ausência de impedimentos externos, já clara em Aristóteles e subentendida antes dele. Em

segundo lugar, liberdade aparece mais positivamente como um certo poder de fazer o que se quer,

algo que, embora decorra imediatamente da definição negativa, traz como novidade seu vínculo

Page 116: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

116

ao poder e ao querer subjetivos, bem como ao julgamento pessoal, e não necessariamente ao juízo

verdadeiro. Ou seja, ser livre não é apenas querer, mas também poder efetivar este querer, o qual tem

seu lugar em uma subjetividade situada, concepção que vigorará junto ao senso comum até os

dias atuais – a liberdade é medida pelo poder do querer. Com isso fica claro também que a

liberdade está restrita às condições materiais, quaisquer que sejam, que permitem ou obstaculizam

a ação efetiva do sujeito. De acordo com o pessimismo hobbesiano, segundo o qual a natureza e

os outros são potenciais inimigos do indivíduo, a realização dessa liberdade não poderia se dar

mais perfeitamente senão em uma instituição antinatural: o Estado de Direito, ou Leviatã, um deus

(ou anti-Deus) na terra. (Talvez seja de se supor uma certa simpatia entre esta posição e a

doutrina hegeliana do Estado, mas isto não deve nos ocupar aqui.) Uma restrição ainda maior

pode ser encontrada na formulação de Locke (1978, [§6] p. 36), para quem, mesmo no estado de

natureza,

embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; apesar de ter o homem, naquele estado, liberdade de dispor da própria pessoa e posses, não tem a de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando uso mais nobre do que a simples conservação o exija. O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses.

Interessante observar que a deflação do conceito de “liberdade” aumente na proporção do

otimismo. A liberdade (natural), nesse caso, só se estende até o limite da liberdade do outro,

sendo muito menos distinta da liberdade no estado civil graças a um certo otimismo por parte de

Locke em afirmar que a todo homem é dado reconhecer, pela razão natural, a liberdade do

semelhante como um direito natural devido à igualdade, um reconhecimento que, sem dúvida,

encerra uma complexa e longa série de abstrações. A liberdade sob governo é então definida por

Locke (1978, [§22] p. 43; grifo nosso) nos seguintes termos: “seguir a minha própria vontade em tudo

quanto a regra não prescreve, não ficando sujeita à vontade inconstante, incerta e arbitrária de qualquer homem;

como a liberdade de natureza consiste em não estar sob qualquer restrição que não a lei da natureza”. Também

a igualdade natural, isto é, o “igual direito de todos os homens”, refere-se, como em um círculo

vicioso, àquela liberdade natural, não sujeita “à vontade ou à autoridade de outrem” (Locke, [§54]

p. 55-56; ver também [§57] p. 56). O mesmo dirá Montesquieu (2005, [livro XI, cap. IV] p. 200):

“é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de

tal modo que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a

lei permite”. Também em Montesquieu (2005, [livro XI, cap. III] p. 200; grifos nossos) a vontade

Page 117: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

117

aparece subjetivada como poder de ação: “numa sociedade em que há leis, liberdade não pode

consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve

desejar”, devendo-se distinguir liberdade e independência, pois a primeira consiste no “direito de

fazer tudo o que as leis permitem”, enquanto a independência para fazer o que as leis proíbem

eliminaria a liberdade – esta última constatação explica o pessimismo hobbesiano. A vontade,

aqui, como “querer poder” ou “poder querer”, já aparece ligada à noção de “dever” como uma

obrigação limitadora da ação e necessariamente correspondente a um direito – não se deve querer

qualquer coisa, algo a que não se tem direito... Curioso notar, nesse caso, que a liberdade não está

mais apenas restrita às condições impostas pela natureza e pelas circunstâncias objetivas, mas,

diferente do que pensava Hobbes, também a uma certa disposição para a civilidade que nos

proíbe de exercer nosso querer contra todo ser humano naturalmente livre. Embora tal

pensamento seja contemplado no imperativo categórico kantiano, Kant avança na distinção entre

o âmbito da autonomia e o da heteronomia vigente no mundo social e no mundo da natureza, de

modo que o conceito de “dever” receberá tratamento bem mais preciso e rigoroso, além de

desvinculado da doutrina da igualdade natural, biologicamente fundada desde Locke.

Os libertinos, como extravagantes defensores da liberdade como independência, constituem a

mais radical resposta contra a redução da liberdade natural à liberdade civil. Contudo, em sua

mera inversão, podem ser considerados responsáveis pelo total obscurecimento da essência do

ser-livre, pois permanecem pensando-a como ausência de impedimentos, agora absolutizada. A

opção tende a ser paradoxal, mesmo porque tal anseio por independência e descriminalização

radica-se no reconhecimento de uma poderosa e visceral interdependência entre os homens para

a obtenção de prazer. É o caso exemplar de Marquês de Sade em “Franceses, mais um esforço se

quereis ser republicanos” (2001, p. 76):

Ao conceder a liberdade de consciência e a de imprensa, pensai, cidadãos, que isso é quase o mesmo que conceder a liberdade de agir, e que, com exceção do que choca diretamente as bases do governo, restar-vos-á muito menos crimes a punir, pois, de fato, há bem poucas ações criminosas numa sociedade que tem por base a liberdade e a igualdade; e que pensando e examinando bem as coisas, o que há de verdadeiramente criminoso é só aquilo que a lei reprova; pois se a natureza nos dita igualmente vícios e virtudes devido à nossa organização ou, mais filosoficamente ainda, devido à necessidade que ela tem de ambos, o que ela nos inspira torna-se uma medida muito incerta para regrar com precisão o que é bem e o que é mal.

Desconsiderado o caráter bastante controverso do que pode ser tido como ameaçador das

bases do governo – aliás, é indubitavelmente tudo o que à lei civil comum cabe proibir –, o

discurso sadeano significa um manifesto pela ampliação das liberdades individuais fundamentada

Page 118: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

118

na redução da liberdade civil à liberdade natural e na naturalização de virtudes e vícios. Por sua vez,

vê-se com clareza que o discurso liberal constitucionalista é voltado contra si mesmo e conduzido

às suas últimas consequências, para além mesmo do pessimismo hobbesiano. Significa dizer ainda

que, para Sade, conforme se lê mais explicitamente no “Diálogo entre um padre e um

moribundo”, o homem é forçado, por sua própria natureza, a cometer “crimes”, que só podem

ser considerados como tais no caso de haver leis civis que os proíbam:

Qual homem no mundo, vendo o cadafalso ao lado do crime, cometê-lo-ia, se estivesse livre de não cometê-lo? Somos arrastados por uma força irresistível, e jamais, sequer um instante, temos o poder de nos determinar para outra coisa além daquela a que estamos inclinados. Não há uma só virtude que não seja necessária à natureza e, da mesma forma, um só crime de que ela não tenha necessidade. Toda a sua ciência consiste na manutenção de ambos em perfeito equilíbrio. (Sade, 2001, p. 26)

Parece exagero vincular a ideia de “sadismo” à liberdade “criminosa” advogada por Sade,

mesmo porque ele dá vazão a fantasias bastante próprias ao homem comum, mas o que nos

interessa é outra coisa. A obscuridade da essência do ser-livre se manifesta na mesma medida em

que se libera o homem mediante a constatação de que ele é naturalmente sujeito de modo

“irresistível” a atender suas inclinações e satisfazer seus desejos, mesmo que não possua um anel

de Giges que lhe dê invisibilidade e, assim, elimine a possibilidade da censura e do castigo.69 A

vontade se converte em mero instrumento de satisfação de uma necessidade natural contra a

qual, simplesmente, não há poder, e a liberdade para o exercício de tal vontade é por isso algo a ser

concedido como direito. Privado de seu poder de escolha contra o que dita a necessidade natural,

jamais o homem foi de tal modo reduzido à animalidade, ou seja, dito de modo claro, aos

impulsos de uma vontade fisiologizada contra a qual a razão pouco pode fazer senão adequar o

cultural ao natural. As descrições montaigneanas das atrocidades cometidas pelas diferentes

culturas, de instrumentos de luta contra a hipocrisia europeia se convertem em pretensas provas

de sua banalidade. Parece que jamais deixou de prevalecer o “princípio” de conformidade à

natureza, e toda a diversidade teórica que testemunhamos até o momento não se deve senão à

diversidade de interpretações acerca da natureza, ou mesmo do papel do Estado, e não da

moralidade ou da legalidade. Mesmo em Hobbes e seu Estado antinatural visa-se à abnegação da

liberdade individual em função do interesse pessoal na conservação da própria vida, o que,

pragmaticamente, se obtém melhor em grupo do que isoladamente. É necessário considerar,

nesses casos, que a exigência de adequação supõe sempre se tratarem de domínios separados e

69 Como veremos abaixo, é a mesma “maldade” que Schopenhauer considera irrefreável pela moral kantiana.

Page 119: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

119

contrários. Em cada caso, também, e isto é notável, os modernos sempre vinculam a liberdade ao

âmbito das representações subjetivas.

Rousseau, por sua vez, contrapondo-se à noção de “direito do mais forte”, é o primeiro a

chamar a atenção para o fato, muito importante para Kant, de que “força é um poder físico”, não

podendo a moralidade “resultar de seus efeitos”, de modo que se submeter “à força constitui ato

de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência” (Rousseau, 1997a, [livro I, cap.

III] p. 59). A seguir, se pergunta: “Em que sentido [ceder à força] poderá representar um dever?”.

Com isso, certos domínios se tornam melhor delimitados, quase que na contracorrente do

jusnaturalismo: a moralidade, a liberdade e o dever são pertinentes à vontade, ligada

primeiramente à sensibilidade; a necessidade é pertinente à natureza; a prudência e o arbítrio são

pertinentes ao cálculo racional, são pragmáticos. Cedo à força não apenas pela natureza, mas

posso fazê-lo em vista de minha própria conservação, não como ato puramente livre – pois não o

faria se minha vida não estivesse em risco –, ainda menos por dever, mas segundo um arbítrio. É

por esta razão que, distinguindo-se a liberdade propriamente dita do arbítrio ou da coerção das

circunstâncias, todos dispõem “do direito de arriscar sua própria vida para conservá-la”, de modo

que aquele que “deseja conservar sua vida às custas dos outros”, ou seja, pela constituição da

sociedade civil, “também deve dá-la por eles quando necessário”, como é o caso nas guerras

(Rousseau, 1997a, [livro II, cap. V] p. 101). Ora, se Hobbes estivesse certo ao dizer que a lei

natural “proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida” (Hobbes, 1997, [cap.

XIV] p. 113), jamais poderíamos ter Estado algum, a não ser um Estado antinatural ao qual cada

indivíduo aliena todos os seus direitos naturais e justamente em vista de sua autoconservação.

Que quer provar Rousseau? Que o Estado não resulta de forças exteriores que obrigam os

homens à união, tampouco de algum instinto social, mas de um interesse segundo o qual o

indivíduo aliena, pelo arbítrio, sua liberdade (privada) a um poder soberano (público)70. O quanto

dessa liberdade é alienada deverá delimitar as leis, e assim temos o Estado como o âmbito da

heteronomia, claramente distinto do âmbito da autonomia pré-civil e “privada”. Com Rousseau,

finalmente se tem um pensamento que desfisiologiza a vontade, fazendo destacar-se a liberdade

como um traço especial essencial do homem que não pode ser compreendido exclusivamente à

70 A rigor, a despeito de Hobbes ser conhecido como difusor da noção de “direito do mais forte”, isto só se aplica no caso do estado de natureza onde todos têm direito a todas as coisas na medida de seu poder e em razão de, nesse contexto, não haver propriedade, como concordará Rousseau. Para Hobbes (1997, p. 165 [cap. XX]), a vitória somente “confere direito sobre o vencido” não por si mesma, mas pelo “pacto celebrado por este”, exatamente como diz Rousseau. No caso do Estado por aquisição, conforme definido por Hobbes, não há pacto com os cativos que, enquanto escravos, não possuem direitos nem obrigações para com o vitorioso, de modo que o domínio deste sobre aqueles não é, no rigor do termo, um direito. Nesse caso, também concordará Rousseau, considerando-se a próxima citação, aquele que prefere recusar-se ao pacto preferindo a escravidão perde direitos e deveres, como que tendo recusado a própria humanidade.

Page 120: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

120

luz da natureza, da razão e do que ambas têm em comum: a constância. Além disso, o arbítrio

surge, em Rousseau, como cálculo interessado, o qual, nesse caso, pode mesmo tornar-se imoral.

Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem tudo renuncia. Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações. (Rousseau, 1997a, [livro I, cap. IV] p. 62)

Contrapondo-se a Hobbes no que diz respeito aos limites da abnegação da liberdade, ao

menos à primeira vista, e aprofundando seu pensamento no que se refere ao caráter absoluto da

liberdade como tal, Rousseau chega a uma síntese interessante. Quem não é livre, mas age tão-

somente por necessidade, não é responsável por suas ações. Portanto, não se trata apenas de abrir

mão de deveres, mas também de direitos; significa abandonar a própria humanidade. De certo

modo, isso resgata o antigo sentido moral do desprezo pelo escravo, seja no âmbito social, seja

no âmbito espiritual, como é o caso daquele que é escravo dos sentidos, dos preconceitos, da

opinião pública, das superstições. Rousseau, nesse sentido, parece ultrapassar o intento

psicológico e antropológico de seu Contrato social, sendo de grande importância para a filosofia

prática de Kant. Temos, pois, já uma transição da compreensão negativa para uma compreensão

positiva do ser-livre e da vontade. A liberdade precede a humanidade do homem e, assim, a

determina. Com isso, Rousseau nos mostra que a liberdade da vontade, antes de ser um problema

político ou moral, ou mesmo da ciência ou da psicologia, é um problema humano.

Muito diferente é o caso de seu contemporâneo David Hume, para quem, “quando

consideramos quão exatamente se entrelaçam a evidência natural e a evidência moral, formando

uma única corrente de argumentos, não teremos escrúpulos em admitir que ambas são da mesma

natureza e que derivam dos mesmos princípios” (Hume, 1996, [seção VIII, parte 1] p. 96; cf.

2009, [livro 2, parte 3, seção 1, parágrafo 17] p. 442-443), a saber, a representação da relação entre

causa e efeito como daquela entre a ação voluntária e seus motivos, ambas elucidadas pela noção

de necessidade. Entretanto, Hume não pretende dizer com isto que apenas se age por necessidade,

tampouco por uma necessidade física, mas que todo agir humano de fato só pode ser entendido e

vinculado à ideia de responsabilidade quando o submetemos a uma relação causal – ou seja, a

responsabilidade pertence ao âmbito das representações.71 Fora isto, ingressa-se no campo

indecidível da metafísica, o que leva a incontornáveis – na palavra de Kant – antinomias. Hume,

desse modo, nos aponta algo de relevante acerca de nossas representações do ser-livre, sempre

71 A propósito, mesmo Kant, como será visto abaixo, conservará firmemente a ideia de que a liberdade da vontade se exerce e deve ser pensada como causalidade. Sobre este ponto é que se deverá erguer aqui uma longa crítica.

Page 121: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

121

compreendido de modo limitado segundo a ideia de causalidade. Por isso mesmo, em Hume, a

conceituação da vontade chega a seu nível mais baixo, mais precisamente na abertura da terceira

parte do segundo livro do Tratado da natureza humana, inteiramente reduzida à mecânica

psicológica, identificada que é à consciência do desejo: “entendo por vontade simplesmente a

impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente geramos um novo movimento

em nosso corpo ou uma nova percepção em nossa mente” (Hume, 2009, p. 435). No mundo dos fatos, que

é, para Hume, como para Kant, o único ao alcance do entendimento humano, o que prevalece é

nossa crença a respeito das causas, crenças estas que Kant procurará transformar em certezas a

priori. Nesse sentido, Hume (1996, p. 100), a fim de reconciliar liberdade e necessidade e assim

garantir filosoficamente a possibilidade da responsabilidade moral e civil, reformula o conceito de

liberdade como consistindo em “um poder de agir ou de não agir segundo as determinações da vontade”.

Embora tal representação da liberdade da vontade venha a ser contestada por Schopenhauer,

releva-se a vontade como princípio de determinação do agir, o qual se realiza segundo alguma

razão, sendo por esta via que Hume recusa a definição, já apontada, segundo a qual a liberdade

está vinculada a uma ausência de condição necessitante. Fazendo-se abstração de que Hume,

restrito ao âmbito psicológico, ocupa-se mais do juízo de fato do que da vontade ou da liberdade

como tais, e isto justifica suas palavras, verdade é que a vontade é por ele considerada

positivamente determinante, mesmo porque é para ele duvidoso falar em causalidade em si

mesma72. Em nota, Hume (1996, p. 99) acrescenta que:

a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não passar da ideia de um objeto à de outro que o sucede. [...] Sentimos que nossos atos estão sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma imagem de si mesma [...], embora sem decidir para que lado ela se dirige.73

Ou seja, Hume não diz que há liberdade na indiferença, mas que nos pensamos livres quando,

parecendo indiferente escolher isto ou aquilo, pensamo-nos como causa incondicionada. Ora, tal

liberdade é meramente inteligível, não uma liberdade de fato. Tais representações subjetivas do

agente, de fato, como concordarão Kant e Schopenhauer, nada provam a respeito da liberdade

como ausência de impedimentos ou determinações, havendo-se de reconhecer que a redução do

ato de vontade à representação da causalidade pelo entendimento é um grande passo para a

72 Sobre isto, ver especialmente a seção VII da Investigação... de Hume (1996), intitulada “Da ideia de conexão necessária”. 73 Comparar com o que diz o Tratado da natureza humana, livro 2, parte 3, seção 2, parágrafo 2 (Hume, 2009, p. 444).

Page 122: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

122

crítica da vontade e superação da mistura entre mundo físico e mundo moral que dominara a

tradição. Afinal, torna-se claro com Hume, e também com Rousseau, que a liberdade da vontade

não é algo em si mesmo passível de esclarecimento pela razão natural74. O entendimento, quando

não a reduz às condições materiais da ação, a põe em contradição em face da natureza.

4.2. O dualismo kantiano e a crítica schopenhaueriana

Nesta etapa, considerando o dualismo kantiano entre fenômeno e noumeno, sensível e

inteligível, empreende-se uma crítica das bases e pressupostos segundo os quais Kant estabelece

seu conceito de autonomia, ou liberdade da vontade. A crítica, amparada naquela já levantada por

Schopenhauer, dirige-se especialmente ao caráter analógico com que Kant procura pensar a ideia

de liberdade aplicando princípios e regras do conhecimento, atitude que, a nosso ver, não é

bastante à superação dos preconceitos fundamentais já estabelecidos pela tradição, muito embora,

por outro lado, aponte para uma virada radical que não será levada a termo antes de

Schopenhauer. Nesse sentido, mostrar-se-á que a deficiência de fundo do esforço kantiano reside

no fato de haver consolidado a interpretação da liberdade como causalidade da razão. Em nosso

percurso, começamos pela parte negativa da crítica de Kant – que estimamos como via para a

compreensão positiva do ser-livre – onde se lança luz sobre a negatividade com que

ordinariamente se concebe a liberdade, enraizada no amor-de-si. Em seguida, apontaremos as

insuficiências – se não verdadeiros retrocessos – da parte positiva da crítica kantiana,

encaminhando argumentos pela exigência de superação do dualismo e, portanto, pela constatação

da impertinência da analogia entre sensível e inteligível nos moldes de Kant.

4.2.1. A explicitação da negatividade do conceito vulgar de “liberdade”

Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes, já no início de sua terceira seção, reconhece

que a liberdade pode receber uma definição negativa e outra positiva – esta última estimada como

importante tarefa de seu projeto. Contudo, é justamente aí que virá a se encontrar acabada e mais

explicitamente formulada a compreensão do homem como um ser “anfíbio”.

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente,

74 Hume o diz expressamente: é impossível definir a vontade, e também inútil descrevê-la com mais detalhe (Hume, 2009, [livro 2, parte 3, seção 1, parágrafo 2] p. 435).

Page 123: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

123

independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas. (Kant, 2007, [BA 97] p. 93)

Esta é a definição negativa de liberdade, que, como afirma o próprio Kant no parágrafo

seguinte, e grifamos, é “infecunda para conhecer a sua essência”. Percebe-se com clareza que é muito

similar às definições explicitadas ou subentendidas ao longo da tradição. O que a vontade

determina livremente, de modo a ser um princípio de ação ou mudança – uma causalidade –, exclui

todo tipo de determinação externa que a condicione. Não se trata, todavia, de um mero princípio

de movimento da alma, como em Aristóteles ou Descartes, sendo, antes, uma espécie de

causalidade própria ao agir humano. Radicalizando a ideia de que a liberdade independe de

determinações externas, Kant também recusa que a vontade deva se determinar pelo conteúdo

material de representações, sejam elas de fins a se alcançar ou de verdades do juízo, pois toda

intenção é a própria determinação da vontade para agir na produção de meios considerados

necessários para fins determinados. Dado o que desejo, escolho deliberadamente os meios adequados

para a satisfação desse desejo. Nesse caso, “liberdade de agir para...” sempre exige um

complemento objetivo que condiciona a vontade, pelo qual se tem interesse, e a forma do juízo

será a do condicional “Se quero x, então devo agir de modo y”. A ação “y” não é necessária

apoditicamente por si, mas problemática ou assertoricamente em função do desejo de “x”. (Kant,

2007, [BA 39-43] p. 50-52) Este “em função de...” quer dizer que a causa do agir é o objeto do

desejo, que é sempre desejo de algo não-atual e, portanto, ausente, denotando falta no querer. Ora,

onde há falta, não há autossuficiência ou independência, tampouco livre deliberação, uma vez que

o que se delibera deve ser adequado àquilo em vista de que se delibera – trata-se de uma perspectiva

do sujeito empírico. Analisando a forma do juízo hipotético, ou condicional, Kant (2007, [BA 44-

45] p. 53-54) explicita que nesse caso se quer o(s) meio(s) representado(s) como

indispensavelmente necessário(s) para se atingir o fim assumido: o que se quer fazer, se quer

técnica ou pragmaticamente segundo o que se quer obter. Por isso, a deliberação sobre o agir, ou

seja, a escolha dos meios, que Aristóteles estimava como a perfeição da vontade, não pode ser

dita autônoma na medida em que não é a vontade livre a se dar a regra.

Por sua vez, aquilo sobre o que não se pode deliberar, ou seja, os fins a se alcançar, é

comumente estimado como objeto próprio do ser-livre, sobretudo no nível do senso comum.

Significa dizer: ser livre consiste em poder escolher os próprios fins. Querer realizar algo,

independentemente da disposição dos meios necessários para tanto, ou mesmo do conhecimento

dos meios mais adequados, foi crescentemente estimado como aquela liberdade de espírito da

qual absolutamente nenhum humano pode ser privado. Não é à toa que pensadores “engajados”

Page 124: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

124

como Sartre verão na mera “resistência” uma grande liberdade. Com efeito, pode-se ansiar por

qualquer coisa, mesmo a imortalidade, tornar-se Deus, transportar-se para galáxias distantes...

Não há limites para isso, e não é à toa também que tais representações da liberdade, ou fantasias

da imaginação, enquanto anseios de superação de toda e qualquer limitação natural ou situacional,

consistem na expressão máxima da compreensão negativa do ser-livre como independência de impedimentos, e

isso em tal medida que a liberdade é aqui concebida de modo mais negativo do que quando

aparece vinculada a limitações impostas externamente, como nos casos em que se diz “liberdade

é poder fazer”. Também é mais negativa do que quando se pensa simplesmente “querer é poder”

no sentido hipertrofiadamente otimista de que “posso realizar tudo o que realmente quero”, “se

quero, logo posso”, um poderoso ponto de fé e, ao mesmo tempo, um sintoma de quão longe foi

a hipertrofia do individualista subjetivismo moderno que descamba para todo tipo de discurso de

“autoajuda”. Mas como, se, para poder, basta, nesse último caso, querer? Porque é extremamente

forte pensar “posso querer mesmo o que me é impossível” – eis aonde conduz o delírio da

“absoluta liberdade de querer”.

Muitos já afirmaram coisas como, por exemplo, “mesmo em uma cela, não se pode tomar

ao homem sua liberdade”. Tal “liberdade do espírito”, ou “espírito de resistência”, consiste em

uma inalienável liberdade de se “pensar” o impossível. O único limite para a liberdade seria o

limite da faculdade de representação, mas, como já deve estar claro, não é aí que reside seu

caráter negativo. Aristóteles estava muito correto em reconhecer na felicidade um “fim último”,

não desejável em função de nenhum outro, pois tudo aquilo que a imaginação se representa

como fim objetivo, possível ou impossível, material ou ideal, pode ser reduzido ao anseio de

felicidade segundo o modo como se a representa (poder, riqueza, honra, saúde, sabedoria,

tranquilidade, paz etc.). Mesmo o próprio desejo de libertação pode ser reduzido nesses casos ao

anseio de ser feliz – com efeito, raramente se pensa com clareza a respeito do que se fazer dessa

felicidade, talvez mesmo porque não haja o que se fazer dela senão simplesmente fruí-la. Mas,

paradoxalmente, é bem aí que o homem ansioso por libertação se extravia no incansável e

frenético ocupar-se de si cotidiano em meio ao qual não frui de coisa alguma, sequer ou muito

menos de si mesmo.

Abrindo aqui um parêntese, vale observar que todas as noções de liberdade da vontade até

aqui apresentadas, em diferentes graus, estão relacionadas com e podem ser reduzidas à

possibilidade de dizer “não” a algo! Onde esta possibilidade está ausente é precisamente onde cessa a

liberdade, mesmo aquela de apenas pensar. À luz desta constatação, poder-se-ia dizer que ser feliz

consiste em não encontrar na própria vida nada a que se queira negar. Paradoxalmente, isto

coincide com um nada mais a querer, o fim de todo desejo, aspiração ou “vontade”, uma paralisia

Page 125: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

125

da “liberdade” cujo anseio maior parece provir da vontade de recusar. A reversão desse “princípio”

consistiria na conversão da liberdade da vontade em um puro e simples dizer “sim”, mas não

como mera inversão no sentido de uma conformista aceitação de algo, determinado ou

indeterminado, como no dito “Seja o que Deus quiser!”, fazendo de uma vontade alheia a minha

própria vontade. Afinal, é próprio da recusa recusar algo determinado, ou seja, voltar-se para as

“coisas”. Por sua vez, a inversão que aceita passivamente qualquer coisa que advenha, aceita coisa

alguma de fato, e, assim, anula a liberdade esse não-querer niilista, abandonando a outro toda a

responsabilidade; é colocar-se abaixo da animalidade para a qual a responsabilidade jamais se

coloca, sem falar que tal conformismo consiste já em uma decisão, porém não assumida.

Se a felicidade é um fim universal e incondicionado, desejado por si mesmo uma vez que

nada há a se desejar além dele, Kant nos mostra que o problema não reside apenas na falta de

clareza e consenso sobre o que venha a ser “felicidade” – o que já Aristóteles reconhecera em seu

“eudemonismo” –, muito embora tenha relação com isto. A escolha de um fim não garante uma

boa vontade. Afinal, querer a felicidade não é o bastante para que eu aja bem, tampouco para que

eu aja bem desinteressadamente – pelo contrário, pois mesmo o homem em geral age no interesse de

sua própria felicidade; tal interesse é considerado universal e necessário, se não também

instintivo. Dirá ainda Schopenhauer (2001, [§8, p. 165] p. 81):

Interesse e motivo são conceitos intercambiáveis: interesse não quer dizer “quod mea interest”? [qual é o meu motivo?] E isto não é tudo aquilo que estimula e move minha vontade? O que é consequentemente um interesse, a não ser a atuação de um motivo sobre a vontade? Onde portanto um motivo move a vontade, aí ela tem um interesse.

Já foi exposto no capítulo anterior o quão decisivo é o desinteresse pelos objetos da ação,

de modo que fica mais claro por que a escolha dos meios em função dos fins é regida pela

necessidade – i.e. o exigido pelas circunstâncias – e não pela liberdade. A partir da noção de

desinteresse – a esta altura já bem entendido como ausência de motivação externa ou expectativa

de benefício próprio75 que desperte a voracidade da vontade, e não como mera apatia – é possível

também fazer abstração do qualificativo moral dessa vontade, mesmo porque, no presente

momento, não é necessário discutir o conceito de moralidade. Em verdade, o problema moral

haverá de ser redimensionado indiretamente mediante a discussão de que aqui se ocupa mais

propriamente, a saber, a liberdade da vontade, de modo que a superação do conceito kantiano de

moralidade estará aí implicada.

75 Em diversos idiomas, a noção de “interesse” tem a acepção de lucro.

Page 126: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

126

4.2.2. Considerações gerais acerca do amor-de-si

Retomando, então, o que se dizia há pouco, a escolha de um fim, mesmo de um fim

universal e incondicionado como a felicidade76, na medida em que tal escolha se pauta em um

interesse, que, nesse caso, é um interesse próprio, um interesse do agente por si mesmo e não por

algo exterior a ele, tal escolha tem como princípio o amor-de-si. Segundo este princípio, age-se

pragmaticamente segundo uma intenção real, uma espécie de interesse comum a todos por necessidade

natural, um desejo de satisfação interessado no próprio bem-estar que muitos denominam ou

reduzem ao “instinto de conservação” (Kant, 2007, [BA 23/42-44] p. 24/51-53). De todo modo,

a felicidade própria não é sequer um fim escolhido, posto que necessário na medida em que todos

a querem. A ação conforme a fins assumidos no próprio interesse nem sempre degenera no

simples egoísmo, mas é sempre determinada por representações do bem-estar próprio, como no

caso do altruísta que se sente bem fazendo bem ao próximo e toma este bem próprio como

motivação. O caráter hipotético e condicionado desse tipo de ação e do próprio fim assumido

como determinado por representações é bastante claro no que diz respeito à possibilidade de

supressão da própria vida pelo suicídio, já discutido aqui segundo a apreciação schopenhaueriana.

Se, por um lado, o suicídio parece consistir em uma livre ação contra toda determinação natural

que dita a conservação da própria vida, por outro lado, esta ação contrária à natureza é

determinada por um patológico – i.e. passivo – desagrado consigo mesmo. A vida, deixando de ser

um fim em si mesma, mas um meio para realizações, e a felicidade, considerada inatingível nesta

vida em razão de sucessivos fracassos que conduzem finalmente à desesperança, continuam

sendo ou são ainda mais estimadas pelo que não são de fato, mas que poderiam ser na

76 Não se pode, contudo, desconsiderar que a felicidade, conforme representada vulgarmente, é condicionada por tudo aquilo que se representa como suas causas propiciadoras do ponto de vista subjetivo. Por exemplo, “serei feliz se obtiver êxito em...”. Ou seja, embora a felicidade não seja tida como meio para qualquer outro fim, mas seja ela mesma uma causa final última, não é desprezível que, enquanto sentimento, constitua mero produto ou efeito sobre um sujeito dado da posse de algo que se quer. Ora, uma vez que o querer-possuir comumente parece ilimitado – e assim o concebem Schopenhauer e Nietzsche −, a felicidade se converte em uma quimera na medida em que suas “causas suficientes” tendem a nunca se realizar plenamente, independente de nossos esforços. Por isso, o interesse na própria felicidade parece a mais funesta ilusão humana na medida em que, por sua própria natureza voluntariosa, se converte em um bem inatingível. Seria, por sua vez, possível ser feliz independentemente das condições atuais de vida? Nesse sentido, a felicidade se transforma em mera justificativa (vazia) para nossos projetos, pois sequer se sabe o que ela é de fato, senão pela vaga imagem de uma alegria ininterrupta e inabalável. Uma analogia profícua para que se compreenda seu caráter quimérico e vazio pode ser feita comparando-a ao Deus de Anselmo: aquilo acima de que nada se pode pensar – a felicidade seria o bem-estar acima do qual nada se pode pensar. O Deus de Tomás de Aquino parece padecer da mesma insuficiência teórica em cada uma de suas demonstrações existenciais. Em cada caso, o problema deriva do caráter completamente abstrato de noções como “o melhor”, “o maior” etc. Certamente, a felicidade como representação exige cuidadosa análise e desconstrução, mesmo porque pensar-se a felicidade como causa final obscurece em tal medida seu sentido quanto o faz o anseio por um bem absoluto com o qual ela ordinariamente se confunde. Não agir em vista da felicidade, não a tomar como causa final, talvez pudesse abrir a possibilidade de um ser-feliz concretamente incondicionado, e é isto que, dito en passant, encontramos antes de tudo no pensamento nietzscheano do eterno retorno. Acreditamos, portanto, que uma tematização do querer-possuir e da vontade de amar deva ter aí seu ponto de partida.

Page 127: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

127

imaginação. O suicídio, em verdade, consiste, já em Kant, em uma afirmação do amor-de-si. A

máxima do suicida seria, segundo Kant (2007, [BA 53] p. 60): “Por amor de mim mesmo, admito

como princípio que, se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com desgraças do que me

promete alegrias, devo encurtá-la”.

Vê-se que o interesse na própria felicidade como finalidade/motivo do agir e da vida como

um todo pode levar tanto à conservação como à destruição de si mesmo de acordo com as

condições situacionais (materiais e psicológicas) em que se encontra o agente e com as máximas

subjetivas por ele adotadas, de modo que a escolha desse fim universal e incondicional não só

não garante a liberdade do agir como, pelo contrário, submete o agir a condições meramente

circunstanciais e subjetivas. Por este caminho, pode-se ainda propor que a vontade

schopenhaueriana se objetiva fundamentalmente como amor-de-si, consistindo nisto sua

“afirmação”. Nesse caso, a negação da vontade consistiria na negação ou abnegação do amor-de-

si, cujas ambiguidade e contraditoriedade já são reconhecidas por Kant, sendo certamente

apressado dizer, com base na compreensão ordinária do sentido de “compaixão”, que a negação

da vontade se resolve no mero “amor-do-outro”.77 Kant (2007, [BA 67] p. 70) também confirma

77 É bem sabido que Schopenhauer vincula a compaixão, ou com-padecimento (Mit-Leid), à negação da vontade (afirmada no interesse do bem-estar próprio) e a estabelece como fundamento real da moral. Não há aqui espaço para um maior aprofundamento no tema, nem tampouco é nosso intento discutir a Ética como tal ou seus fundamentos, como ficará mais claro no próximo capítulo, mas, antes, buscar nela, como locus privilegiado, elucidação do tema da liberdade da vontade, ordinariamente tratada no âmbito específico das ações. Afinal, como que por um extravio, a liberdade tornou-se tema quase que exclusivo da Ética, bem como da Filosofia Política e do Direito. Nesse caso, a assim dita “liberdade” sempre se referirá a relações e estados de coisas, o que nos remete ao âmbito das normas e deveres, sendo ainda necessário investigarmos sua essência metafisicamente. Por sua vez, uma reflexão aprofundada acerca da limitação própria ao que denominamos “compreensão ordinária” do significado de “amor-do-outro” exigiria um espaço mais apropriado, exigindo ainda uma tematização do amor em geral. Já no que concerne à identificação da afirmação da vontade com a afirmação do amor-de-si, aqui conveniente e metodologicamente útil, devemos observar que Schopenhauer prefere chamar egoísmo (Egoismus): “A motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal, é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência [Drang zum Daseyn, grifo nosso] e o bem-estar. A palavra alemã ‘Selbstsucht’ leva a um falso conceito, próximo de doença” (Schopenhauer, 2001, [§14, p. 196] p. 120). De fato, o termo latino é bastante mais preciso do que seus pretensos correlatos alemães, indicando uma atividade centrada no si-mesmo do agente. A palavra “Selbstsucht”, que a tradução brasileira verte para “amor-próprio”, significa mesmo “egoísmo”, razão pela qual Schopenhauer faz a ressalva: não porque “amor-próprio” (Eigenliebe) ou “amor-de-si” (Selbstliebe) sejam termos inadequados, mas porque, decomposta em seus elementos, a palavra alemã para “egoísmo” significa, literalmente, “enfermidade de si”, “vício de si”, indicando, de fato, uma espécie de patologia psíquica que produz uma fixação do indivíduo em si mesmo – por isso sugeriríamos como tradução mais adequada “egocentrismo”. Esta é uma das ocasiões em que Roger e seu tradutor nos induzem a erro e, além disso, confusos, pois a observação é totalmente desprovida de sentido em nossa língua. Vale então observar que o oposto da compaixão não é o amor-de-si, mas o ódio-do-outro, que Schopenhauer denomina maldade; o egoísmo, por sua vez, é próprio a todos os animais, enquanto a compaixão, e também a maldade, só são encontráveis dentre os humanos (v. Schopenhauer, 2001, [§16, p. 210] p. 137 passim). Vale também observar que, a exemplo de seu mestre Kant, Schopenhauer encontra em Rousseau um predecessor, e isto é explícito no que diz respeito à moralidade fundada no sentimento de compaixão. Nesse sentido, comparemos o que diz Rousseau em uma nota ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: “Não se deve confundir o amor-próprio [amour-propre] com o amor de si mesmo [amour de soi-même]; são duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade [pitié], produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra. / [...] pois cada homem em especial olhando-se a si mesmo como [...] o único ser no universo que toma

Page 128: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

128

o que foi dito acima acerca de o suicida ser aquele para quem a vida é destituída de valor em si

mesma, pois se vive por outra coisa: o êxito nas realizações.

Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio para conservar até ao fim da vida uma situação suportável. Mas o homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo.78

Kant assim esclarece, antes e até melhor do que Schopenhauer, que a supressão da própria

vida não corresponde à negação do amor-de-si, mas, pelo contrário, a uma violenta afirmação do

amor-de-si contra a natureza (na tentativa de agir independentemente dela79) e – o que é pior aos

olhos de Kant – contra a moral.80 Se se entende o amor-de-si como a forma mais fundamental de

interesse por si, [...] torna-se impossível que um sentimento, que vai buscar sua fonte em comparações que ele [o homem natural, como o animal] não tem capacidade para fazer, possa germinar em sua alma.” (Rousseau, 1997b, p. 146-147, n. o; grifo nosso) Fica a dúvida acerca do que leva Rousseau a distinguir o “si mesmo” e o “próprio” – talvez vincule este último à noção de propriedade, inaugurando o estado civil, mas a hipótese de tal licença resta para nós como mera especulação, muito embora o “próprio” deva significar o “meu”, pronome que envolve, certamente, uma relação, muito diverso do que acontece com o “si”, muito mais imbuído de sentido antropológico, se não ontológico-existencial; nele mesmo, o “si” é impessoal. Compare-se ainda a parte final do que diz Rousseau ao que escreve Schopenhauer na seção final de sua monografia (§22, [p. 273] p. 221-222). Sendo assim, em vista de uma certa unidade terminológica, parece-nos legítima a identificação entre egoísmo e amor-de-si mediante as ressalvas cabíveis e aqui expostas. 78 À parte a tese humanista do “homem como fim em si mesmo”, a distinção entre “coisa” e “pessoa”, assim exposta, nos faz recordar a discussão acerca da recusa de Heidegger em admitir que o Dasein possa ser em si mesmo compreendido como objeto de ocupação e como instrumento. Embora não a desenvolvamos aqui, julgamos pertinente questionar em que medida o Dasein é imune à coisificação. Ao menos provisoriamente, pensamos que o desenvolvimento da técnica haja extrapolado a perspectiva de Heidegger sobre o problema, mesmo porque Heidegger, falecendo em 1976, não pôde testemunhar os desenvolvimentos da robótica, da informática, os novos paradigmas industriais pós-fordistas e toda a turbulência cultural dos últimos trinta e cinco anos. 79 Tentativa fadada ao fracasso, deve-se dizer. Curioso notar também que, para que o suicídio se efetive, é necessário destruir o corpo natural seguindo determinações naturais. A vida natural se conserva segundo meios naturais e é pela supressão ou contradição desses meios que tal vida pode ser exterminada, provocando a falência do organismo. É, de fato, uma simplificação grosseira da vida humana pela qual, cotidianamente, a reduzimos a mero fenômeno biológico – eis o que supomos significar a afirmação schopenhaueriana de que, pelo suicídio, suprime-se o fenômeno mantendo-se, todavia, intacta a vontade. Por isso, os meios para a realização do suicídio são predeterminados pela natureza como contrapossibilidades da vida. Poder-se-ia então dizer que, nesse caso, faz-se com que a natureza, não a vontade, seja posta contra si mesma. Quando desplugamos um equipamento da tomada, ele não é desligado imediatamente pela nossa vontade, mas pelo corte no suprimento de energia, sendo a esta altura inútil argumentar que a ação se deu por causa de uma intenção, de uma livre escolha (arbítrio) etc. Trata-se, é verdade, de uma ação controladora, mas, como deveremos ver adiante, a vontade, em si mesma, nada tem a ver com controle dos meios, que sempre e necessariamente envolve domínio das regras de funcionamento dos instrumentos, um conhecimento causal empregado técnica ou pragmaticamente. É por esta razão que apenas a Vontade como tal, e não uma egoidade, pode tanto se instaurar a si mesma como se suprimir, e isto como “obra” ab-surda. 80 Todavia, com relação aos dois trechos citados em que Kant apresenta suas razões contra o suicídio, Schopenhauer ataca: “posso apenas, de modo escrupuloso, intitular de mesquinharias que nem ao menos merecem uma resposta. Temos de rir quando pensamos que tais reflexões teriam de arrancar o punhal das mãos de Catão, de Cleópatra, de Cócio Nerva (Tacitus, Anais 6, 26) ou de Arria de Pætos (Plínio, Epístolas 3, 16). Se houver reais motivos genuínos contra o suicídio, eles jazem, em todo caso, bem no fundo e não podem ser alcançados com a sonda da ética costumeira, mas se referem a um modo de consideração mais alto, como aquele que é apropriado ao ponto de vista da presente dissertação” (Schopenhauer, 2001, [§5, p. 127-128] p. 32; v. tb. [§7, p. 159-160] p. 74). A saber, “razões” ascéticas, uma vez que as razões evocadas por Kant, por mais que relevem o caráter afirmador do amor-de-si no suicídio, como fará Schopenhauer, partem da premissa, recusada por este último, da autoconservação como dever, e

Page 129: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

129

objetivação da Vontade, produtor tanto do egoísmo típico quanto do altruísmo enquanto

preocupação com o bem-estar de outrem em vista do próprio prazer na ação, logo se percebe que

não apenas se trata de um fim dado, não escolhido, mas também que nenhuma ação regida por ele

é puramente livre de representações subjetivas e motivantes a seu respeito, sendo sempre

interessada. É em um interesse patológico que reside a determinação do agir, e aquilo pelo que se

tem interesse é um mero dado da experiência ou produto da imaginação. Essas formas de amor

patológico, seja amor-de-si, seja amor-de-outro, residem, segundo Kant (2007, [BA 13] p. 30), “na

tendência da sensibilidade” e não na vontade (livre), o que faz lembrar a tese de Espinosa de que

a imaginação tem origem sensível, quase como que atribuindo aos sentidos a capacidade de

representar. Na contradição do interesse e das inclinações residiria a liberdade da vontade, e é

neste ponto que Schopenhauer mais se aproximaria de Kant até definitivamente separar-se dele

na medida em que, para este, sendo a vontade um poder de autodeterminação e fonte de

obrigações (Caygill, 2000, p. 318), não apenas é exclusiva do ser racional como também, por isto,

somente da razão pode receber seu objeto. Como já foi exposto acima, é mais livre aquele que

conserva a vida por ela mesma, mas não por indiferença − pois aí não reside nenhum valor, muito

pelo contrário81 − nem por amor-de-si − pois aí aquilo mesmo que se conserva é dotado apenas

de um valor intermediário, relativo a algum outro fim.

Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral. (Kant, 2007, [BA 8-9] p. 27-28)

O mesmo vale para a compaixão e outros sentimentos e ações conformes ao dever, que, em

Schopenhauer, aparecerão ligados à superação do princípio de individuação. Embora seja

pragmaticamente bom agir em conformidade ao dever, não sendo a ação boa por princípio, não

consistirá em ato livre da vontade, mas sim, interessado. Tanto a apatia quanto o interesse são

isto em detrimento do sentido mais profundo da resignação perante a vacuidade de todo querer. Ao contrário de Schopenhauer, Kant, em busca de um sentido aprioristicamente moral para o agir, em lugar de admitir uma vacuidade do querer, dedica-se ao dever-querer. 81 A fim de que não haja confusão, deve-se explicitar que não se trata apenas de dizer que não tem valor a ação indiferente. Mais do que isso, na indiferença, temos justamente uma indiferença de valores, mediante o que uma coisa não pesa mais do que outra e, por isso, não há nada digno de escolha. Assim, na mera indiferença, restamos apáticos. Reiteramos o que foi dito no capítulo precedente, a saber, que isto difere essencialmente de um não-inclinar-se a nada mediante a suspensão do princípio de individuação. Na indiferença, as coisas continuam ali diante de nós, percebidas em suas respectivas individualidades; simplesmente não exercem qualquer atração. No desinteresse, por sua vez, nada há que possa ser atraente ou não. Indiferença e desinteresse, portanto, não se distinguem como afetos, psicologicamente, mas antes de tudo como disposições, ontologicamente.

Page 130: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

130

alheios à liberdade da vontade, que deve se determinar a priori. Reside então a liberdade no princípio,

e não nos meios ou fins do agir. Mas justamente aqui, onde o texto de Kant parece tão próximo

do de Schopenhauer, ocorre a ruptura. Em Kant, parece que a própria vida retira seu valor

intrínseco, do ponto de vista da razão, da representação de sua conservação como um dever.

Conserva-se a vida não porque já sempre se é o fenômeno de querê-la, mas por ser um dever

conservá-la mesmo não a querendo. A diferença é sutil: Kant receberia o apoio de Schopenhauer e

Nietzsche no que diz respeito à análise dos motivos situacionais em que ordinariamente se deixa

de querer viver, mas ele mesmo, recusando a dignidade da vida em si mesma, recusa a

importância de se a amar incondicionalmente ou mesmo o valor em suportar-lhe as adversidades

independentemente de uma obrigação moral posta como uma espécie de finalidade incondicional. Para

Kant, pelo contrário, é justamente por poder agir por obrigação moral, por ser neste sentido livre,

o homem é digno. Contrapondo-se à definição kantiana de “dignidade humana” como valor

absoluto, diz Schopenhauer (2001, [§8, p. 166-167] p. 83):

Todo valor é a apreciação de uma coisa em comparação com uma outra, portanto um conceito comparativo e por isso relativo. É esta relatividade que constitui mesmo a essência do conceito de valor. [...] Um valor absoluto incomparável, incondicionado, tal como deve ser a dignidade, é, por isso, como muitas coisas na filosofia, uma tarefa posta por palavras para um pensamento que não se pode sequer pensar, tão pouco quanto se pode pensar o maior número ou o maior espaço.

Ademais, Schopenhauer e Nietzsche – que fez da crítica aos “valores absolutos”, ou

melhor, da denúncia do caráter relativo de todo valor, o cerne de seu pensamento82 – recusam

qualquer determinação a priori agindo sobre a vontade, sobretudo oriunda da razão, que lhe é

ontologicamente posterior. A noção kantiana de “amor prático” (Kant, 2007, [BA 13] p. 30),

atrelado ao dever, não leva em conta o caráter incondicionado da existência como tal, para o que

seria antes necessário um passo na compreensão do ser-livre que a definição positiva de

82 Sobre Nietzsche, explica Machado (1997, p. 70) que é “a afirmação da relatividade dos valores, ou melhor, das avaliações, que evidencia que os valores são humanos, que é o homem quem dá valor ou sentido às coisas, que os valores – mesmo os valores metafísicos – são criações. Nesse sentido, a filosofia de Nietzsche é mais propriamente uma filosofia da avaliação do que do valor, visto que o valor depende da avaliação, supõe a avaliação, tornando inclusive possível uma transvaloração que põe em questão o valor dos valores metafísico-cristãos e modernos, propondo novos princípios de avaliação”. A nosso ver, isto não faz de Nietzsche, todavia, como pretende Deleuze (1976, p. 1) já na primeira sentença de seu Nietzsche e a filosofia, e reforça Machado (ibid., p. 69), alguém cujo “projeto mais geral” foi “introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor”, nem mesmo, como comprovamos na leitura de Schopenhauer, o conceito de valor absoluto. O comedimento de Heidegger (1996) – ou caráter não tão “incisivo”, no dizer de Machado – parece mais correto ao afirmar que as obras de Nietzsche popularizaram o que já era usual no século XIX: falar de valores e pensar em valores. Nietzsche, a partir daí, introduziria a perspectiva da liberdade como potência de transvaloração.

Page 131: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

131

liberdade, conforme formulada por Kant não chega a realizar, consistindo nesta nova definição o

próximo tema de análise.

4.2.3. O conceito positivo de “liberdade” por Kant

Escreve Kant (2007, [BA 97-98] p. 93-94; grifo nosso), logo após a exposição da definição

negativa, que embora seja esta “infecunda” para o conhecimento da essência da liberdade,

dela decorre um conceito positivo desta mesma liberdade que é tanto mais rico e fecundo. Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo. [...] que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, i.e. a propriedade de ser lei para si mesma? [...] assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa.

Kant, mesmo antes de enunciar esta definição “positiva” – as aspas aqui são exigíveis –, já

tem o grande mérito de tornar explícito e, assim, digno de ser recusado, todo reducionismo

inerente às concepções usuais de liberdade como ausência de impedimentos, denunciando ainda

outros em que nosso pensamento poderia inadvertida e facilmente cair. Leitor de Rousseau e de

Hume, Kant observa, como o primeiro, que a liberdade da vontade, ligada ao âmbito da moral e

em oposição ao da natureza como ao da racionalidade técnico-pragmática, é condição da própria

humanidade, devendo ser, portanto, a priori; além disso, seu exercício, como diz o segundo, nada

tem a ver com representações de possibilidades de agir ou não agir de fato, mas as ações somente

têm sentido quando vinculadas a causas por analogia às relações entre fatos da experiência sensível.

Por esta razão é que pensar a vontade livre de outro modo seria, para Kant, absurdo, ou seja, sem

sentido, o que mais uma vez faz lembrar uma tese de Espinosa, qual seja, a de que ser livre é agir

segundo a necessidade da própria essência. Todavia, terá o próprio Kant superado por completo

essa limitação já tão enraizada, a saber, de uma compreensão negativa do ser-livre? A julgar por

suas próprias palavras, parece que não, mesmo porque diz expressamente e logo de início que a

definição “positiva” decorre da negativa, o que significa que é deduzida, inferida dos mesmos

princípios. Mais do que isso, a sua solução para o tradicional problema da contradição – ou

Page 132: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

132

melhor, da antinomia83 – entre necessidade e liberdade reitera e consolida a ideia de homem como ser

anfíbio. Para Schopenhauer (2001, [§6, “Observação”, p. 151-152] p. 63),

Se quisermos chegar ao fundamento da admissão da razão prática, teremos de explorar ainda mais sua árvore genealógica. Acharemos então que ela procede de uma doutrina que o próprio Kant contradisse profundamente, mas que, no entanto, encontrava-se, mesmo que inconscientemente para ele, como reminiscência de um modo de pensar precedente, no fundamento de sua admissão de uma razão prática com seu imperativo e sua autonomia. É a psicologia racional, de acordo com a qual o homem compõe-se de duas substâncias heterogêneas, o corpo material e a alma imaterial.

O imenso elogio de Schopenhauer à distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si não

implica o dualismo a que conduz a doutrina de Kant, ou mesmo do qual ela parte. Isto se deve ao

pertencimento e adesão de Kant a um projeto que caracterizamos como tipicamente iluminista,

qual seja, o da harmonia (que supõe separação), o que o conduz ao que Loparić (1992) designa

como um “primado da representação”84, de modo que a vontade kantiana é “discursiva” (p. 54).

A ideia de uma ordem arquitetônica entre as diferentes tarefas de determinação e de controle, baseada no fim último da razão, impõe a exigência de uma ordem também sistemática entre as suas soluções, entre os diferentes tipos de proposição legisladora. As diferentes legislações a priori devem ser unificadas, harmonizadas, em um único sistema organizado hierarquicamente. Ou como Kant ainda diz, exige-se que os diferentes poderes do ânimo [Gemüt] estejam em acordo, em proporção entre si. Esta unificação deve assegurar, em particular, que as consequências das proposições sobre a natureza sejam compatíveis com os imperativos da liberdade. (Loparić, 1992, p. 53)

83 Mais do que uma mera contradição, a antinomia consiste na possibilidade de a razão “provar” teses (leis) opostas – neste caso, a da necessidade de admissão da causalidade por uma liberdade transcendental e, pelo contrário, a da inexistência de tal liberdade. (v. Kant, 2001, [A 444-451 / B 472-479] p. 406-411) 84 Loparić reconhece o caráter controverso da tese que sustenta, a qual receberá nosso apoio e em relação à qual encontramos justamente Schopenhauer como ponto de inflexão. Nesse sentido, diz (1992, p. 51-52): “Contra a tese do primado da representação na filosofia de Kant poder-se-ia objetar dizendo que, segundo o próprio Kant, [...] é mais correto dizer que a vontade é o poder supremo no ser humano e que, por conseguinte, a filosofia kantiana não é um logocentrismo representacional. Não é possível desconhecer, entretanto, que, para o filósofo das luzes, a vontade humana não é boa em si e por si mesma, mas tão-somente na medida em que obedece aos interesses da razão prática e que o supremo e último desses interesses é o da determinação completa do homem pela razão, isto é, pelo conceito ou representação do dever. Isto restabelece o primado da representação, contra a presente objeção”. É, pois, pela representação da lei da razão que o homem “se liberta” das leis da natureza, as quais são, no entanto, análogas a ela, pois encontram na própria razão seu fundamento ou origem. Afinal, diz Kant (2001, [B 1] p. 36) na Introdução à Crítica da razão pura: “Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência”. Esta afirmação será transposta para o âmbito das ações humanas conforme se segue, na mesma obra: o sujeito como noumenon (inteligível) “inicia espontaneamente os seus efeitos no mundo dos sentidos, sem que a ação comece nele mesmo” ([A 541 / B 569] p. 468). As representações são, para Kant, incontornáveis. Não se trata, porém, de defendermos que simplesmente nos seja possível eliminar as representações, nem tampouco que o devamos fazer, mas destacar a exigência de uma destruição filosófica do mundo como representação pela Ontologia. É neste sentido que nenhuma Ética ou Teoria do Conhecimento, partindo de seus consolidados pressupostos, é capaz de levar a termo tal projeto.

Page 133: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

133

Analisemos, pois, seu conceito “positivo”. Kant mostrara com mestria que a liberdade da

vontade não reside na escolha dos fins ou dos meios da ação, mas do princípio! O princípio da

ação não pode ser algo de empírico se se pretende que seja um princípio a priori, e deve sê-lo a

fim de que se garanta como não-determinado por circunstâncias particulares dadas. Este

princípio a priori deve, portanto, sem ser “predeterminante” como um instinto, anteceder toda

representação dotada de conteúdo – material ou intuitivo, donde a peculiaridade da noção de

“ideia” em Kant. Com Kant temos que a escolha não se exerce sobre algo dado, nem tem sua

origem em um sujeito empiricamente ou naturalmente determinado. Logo, trata-se de uma

subjetividade pura-transcendental que escolhe universalmente independente do próprio interesse

e sem objeto – embora seja um interesse da razão necessariamente admissível por ela e

convertido em objeto de um querer universal –, mesmo porque não se encontra em relação com

nada além de si mesma. Tal escolha possui tão-somente uma forma, não uma matéria, ou

conteúdo. Tal forma é a de um imperativo, um juízo que obriga necessariamente e cuja validade

não se refere ao que é nele expresso, mas à estrutura segundo a qual se expressa o conteúdo do juízo, i.e. a

de uma proposição não-condicional e apodítica. De todo modo, uma vez que a ação se determina

pela representação de uma lei, o imperativo determinante ganha um conteúdo pelo qual se toma

interesse por corresponder aos fins determinados da razão inerente a todo homem, sendo por

isso adequada a observação de Loparić (1992, p. 58): “Até mesmo a vontade passa a ser vista

como causa, se não mecânica, então pelo menos inteiramente natural, que age coagida pelos

conceitos determinados dos fins. A prática humana fica assim definida pelos conteúdos conceituais

(proposicionais), expressos em juízos determinantes”.

Como foi dito antes, não é pertinente discutir aqui o conceito kantiano de moralidade, mas

antes o que ele significa. Fazendo analogia com a necessidade natural (heterônoma – a legislação

de outro –, pois suas leis são causas estranhas ao agente), Kant defende que a vontade se

determina por uma necessidade moral (autônoma – a própria legislação –, pois sua lei é causa

inerente à razão que é sempre nossa). Ser livre é agir em virtude dos princípios estabelecidos por si

mesmo a priori sem ter em vista o próprio interesse, ou seja, universalmente – afinal, este “si

mesmo” não é um eu empírico, uma personalidade. O primeiro “problema” a se destacar é que a

liberdade da vontade só é compreendida como determinação de uma ação (efeito da escolha) que

necessariamente remete a um princípio (causa da escolha, não a escolha ela mesma). Uma vez que tal

escolha deve ter como princípio algo a priori, e, portanto, universal, não se escolhe livremente

senão um dever.

Não se pode encontrar aí nenhuma arbitrariedade da parte de Kant, mas tão-somente uma

consequência lógica de seus pressupostos, idênticos àqueles aplicados à crítica da razão

Page 134: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

134

especulativa, pressupostos estes que constituem, segundo Schopenhauer (2001, [§4, p. 120] p. 23

passim), uma petição de princípio enraizada na moral teológica, o que leva Nietzsche (2000b,

[“Incursões de um extemporâneo”, §16] p. 76) a se referir ao pensamento de Kant como

“Filosofia das Portas dos Fundos”, em claro assentimento ao parecer de seu “educador”. O

universal é, por definição, único e impessoal. Não há possibilidades dentre as quais se possa escolher

uma ou outra, mas uma única escolha racionalmente possível – aliás, a doutrina leibniziana dos mundos

possíveis, sob o ponto de vista da teodiceia, colocara uma feliz contrariedade a tais

pressupostos85. Havendo uma única escolha possível a priori, é obrigatório escolhê-la; logo, um dever,

85 Leibniz, conforme se pode ler na Teodiceia e no Discurso de metafísica, considera que ao homem, pré-existente à sua efetividade histórica, é dado escolher seu destino mediante a contemplação extratemporal das vidas possíveis. (Lembremos o que foi dito acima acerca da limitação do mito de Er narrado na República de Platão.) Diferente de Deus, cujo intelecto é infinito, o homem falha em escolher o melhor possível, embora isto não afete a harmonia preestabelecida no melhor dos mundos possíveis em que ao homem é possibilitada a escolha. (Há de se considerar que não o seria em todos os mundos possíveis). Deus escolhe o melhor com conhecimento completo e atual de todas as possibilidades, não apenas por ser perfeitamente racional, mas sim por ser dotado de uma vontade perfeita e, portanto, boa – aqui, deve-se tomar cuidado para não reduzir o pensamento leibniziano ao cartesianismo, segundo o qual, como vimos, a vontade é perfeita porque e na medida em que a razão é perfeita, sendo por isso que o vinculamos à tradição escolástica. Embora cada possibilidade seja racional, porque a intelecto algum caberia conceber uma desarmonia com tal, ou seja, um projeto não dotado de sentido (i.e. contraditório) para aquele que o concebe, a teoria dos mundos possíveis nos faz ver que, para Leibniz, não há apenas uma escolha possível à racionalidade pura, mas apenas um melhor dentre os possíveis. Daí emerge o princípio de compossibilidade. A um ser irracional, de início, não se deve colocar o problema da escolha, de modo que isto não chega a ser propriamente uma limitação na liberdade, ao menos na medida em que se considere aí apenas a liberdade do ente, e não a da vontade como tal. Feita esta ressalva, pode-se dizer que uma vontade perfeita não preferiria criar outro mundo, mas se é obrigado a admitir que poderia fazê-lo, e se não o faz é graças a sua bondade. Apesar de toda a gama de abstrações elaboradas a partir da teoria de Leibniz, que mais inspira do que legitima muitas das leituras atuais, o fato é que a escolha deste mundo é tão necessária quanto qualquer outra escolha feita por qualquer vontade. Até então, mesmo este mundo, não era mais do que meramente possível, ou seja, a vontade divina cria apenas por si própria e segundo o que concebe a razão divina infinita. Fazer este mundo depender apenas de uma racionalidade perfeita o tornaria necessário a priori, o que parece contrariar os pressupostos fundamentais de Leibniz: a absoluta liberdade da vontade divina e a responsabilidade de todo homem por ser o que é – tais pressupostos constituiriam a perfeição deste mundo. “Mas”, então, “donde se segue que este homem cometerá seguramente este pecado? A resposta é fácil: doutra maneira não seria este homem”, responde Leibniz (1983b, [GP IV, §30, 455] p. 145). Não é cabível desconsiderar que Leibniz pretendia resolver um problema tão antigo quanto a própria teologia racional. O caráter controverso desta interpretação “voluntarista” da teodiceia leibniziana nos leva ao forçoso comedimento de enunciá-la apenas em nota, uma vez que os estudos sobre Leibniz tendem a desconsiderar o forte teor teológico de suas doutrinas em benefício de uma apreciação mais estritamente analítica, dominantemente atrelada aos domínios da lógica modal. Há mesmo aqueles que consideram a obra “teológica” secundária, voltada para o público geral, por isso mesmo escrita em francês e não em latim, a língua douta. Em verdade, esta apreciação aqui arriscada, como há quase uma década no artigo “Philon de Alexandria e G. W. Leibniz: o primado da vontade na criação do melhor dos mundos possíveis” (Analógos. Vol. II: Anais da III SAF-PUC. Rio de Janeiro, 2003, p. 37-44.), deveria pertencer ao texto principal e na condição de ápice do movimento de transição de uma definição negativa a uma outra positiva da liberdade da vontade, partindo da importantíssima distinção entre certo e necessário (Leibniz, 1983b, [GP IV, §13, 437-438] p. 128-129). Em relação a Leibniz, Kant representaria antes uma retração... Russell (1967), em sua característica independência interpretativa, reconhece a primazia da vontade sobre a razão em Leibniz, dizendo, por exemplo: “O que um ser humano faz tem sempre um motivo mas a razão suficiente de sua ação não tem necessidade lógica.” (p. 111); “As ações de Deus têm a mesma espécie de liberdade. Ele sempre age da melhor maneira, mas não se acha sob nenhuma compulsão lógica para o fazer.” (loc. cit.); Deus “não foi compelido pela lógica a criar o mundo; pelo contrário, essa foi uma livre escolha, motivada, mas não necessitada, pela Sua bondade.” (p. 114); sobre a teoria dos mundos possíveis e sua crítica, v. p. 116; 120-122. Mesmo considerando a exigência lógica de “compossibilidade” (que não deixa de ser também e antes de tudo ontológica), bem como a doutrina da proposição verdadeira e suas implicações sobre a noção de sujeito (determinado), não temos afetada a precedência da vontade segundo o exposto acima. Seria com Leibniz – e nisto reside um imenso mérito – que teríamos a mais bem acabada, até Kant, compatibilização entre liberdade da vontade e determinismo natural, embora separando os âmbitos da alma e do corpo – caráter anfíbio do homem. Por sua vez, a rejeição da

Page 135: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

135

pelo qual Kant reafirma o já referido princípio de constância.86 Uma vez que esse dever constitui

obrigação universal, recebe adequadamente o nome de lei, novamente por analogia às leis

naturais. A analogia entre o moral e o natural já fora preconizada, ainda que por hipótese, na

Crítica da razão pura, em termos de causalidade inteligível e causalidade empírica (Kant, 2001, [A

538 / B 566 et seq.] p. 466 et seq.). Interessante notar que a vontade kantiana nunca é incondicionada,

ou melhor, desobrigada, mas apenas o é a necessidade que a obriga enquanto fim da razão pura prática. Em

outras palavras, somente a lei necessitante/determinante da vontade é incondicionada. Em

primeiro lugar, é segundo o conceito de “mudança” – pois toda ação consiste em mudança de

situação – que Kant afirma a priori a exigência necessária do agir segundo causas, validando a

analogia entre mundo natural e mundo moral. Sendo o entendimento, para Kant, uma faculdade

de regras, a “analogia da experiência será pois apenas uma regra, segundo a qual a unidade da

experiência (não como a própria percepção, enquanto intuição empírica em geral) deverá resultar

das percepções e que, enquanto princípio a aplicar aos objetos (aos fenômenos), terá um valor

meramente regulativo, não constitutivo” (Kant, 2001, [A 180 / B 222] p. 210-211).

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom. (Kant, 2007, [BA 36-37] p. 47)

Kant, então, enclausura a vontade entre a determinação pelo interesse e a determinação

pela razão, após o que faz colapsar a diferença entre vontade e razão identificando a primeira

com a segunda em seu uso prático. Desse ponto de vista, o avanço de Kant com relação a Hume

parece mais modesto do que antes se mostrava... Antes de mais, é necessário esclarecer que não é

a representação das leis que é a priori, mas sua validade, sendo o interesse por essa obrigação algo

substancialidade da extensão por Leibniz, contra Descartes, dando lugar a uma infinidade de almas inextensas na Monadologia [1983a, [§3] p. 105 ], vem abalar as bases da dicotomia. Seu esforço, com relação a isto, receberá crítico desenvolvimento e superação em Schopenhauer, não em Kant, que chega a obstaculizá-lo. Uma última observação é que três passos crescentes foram dados neste sentido, coincidentemente ao se tratar, direta ou indiretamente, do mito bíblico sobre a Queda: o primeiro, bastante indeciso, por Fílon de Alexandria; o segundo, bastante enigmático, por Mestre Eckhart; o terceiro, bastante incompreendido, por Leibniz. Ainda enquanto vivia Schopenhauer, para quem o mito do Pecado Original, pela mesma razão, é uma importante metáfora – o grande ensinamento do Antigo Testamento –, um passo decisivo seria dado por outro leitor do mito da Queda: Kierkegaard; depois dele, ainda encontraremos em Heidegger, como veremos no próximo capítulo, uma remissão ao tratamento kierkegaardiano da angústia, estreitamente vinculada tanto à noção de liberdade quanto à noção de queda no mundo. 86 Sem uma adesão ao princípio da constância se tornaria impossível, conforme já dissemos, uma doutrina política, tampouco o Direito, como é do interesse de Kant, interesse já constatável na Fundamentação... e explicitado em escritos posteriores. A resposta de Kant (1995) a Benjamin Constant no opúsculo “Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade” é emblemático neste sentido.

Page 136: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

136

posterior. Justamente por concordar neste ponto é que Schopenhauer rejeitará tal compreensão da

vontade em si mesma. Uma vez que a ação deve remeter a uma causa, e este é um princípio de

razão, Kant expressamente não admite uma ação sem razão, ou seja, um efeito sem causa, pois isto

consistiria em uma contradição. Portanto, em segundo lugar, é segundo o princípio de razão que

se deve eliminar toda contradição, e isto é válido a priori.

Poder-se-ia questionar se uma ação é um efeito, sendo com base nisto, todavia, que Kant

exige que a vontade aja segundo causas representadas, mesmo porque, seguindo Hume, Kant não

cai na temeridade de tratar de causas em si. A resposta a isto, todavia, exigiria um trabalho à parte,

mas talvez seja bastante sugerir que Kant transpõe para o âmbito prático dois princípios do

entendimento – o de causalidade e o de não-contradição –, de maneira que princípios da experiência

invadem a filosofia prática no intuito de garantir uma doutrina meramente válida da moralidade. Tal

garantia é exigida se se pretende fundar uma Ética em vez de abandonar as ações humanas à

ordem do acaso, do absurdo. Uma vez que o princípio de causalidade, segundo o qual “tudo o que

acontece tem uma causa” (Kant, 2001, [A 9 / B 13] p. 45), é utilizado para uma fundamentação

do agir em geral, torna-se aparentemente justificada a analogia entre a lei natural e a lei moral,

atribuindo à vontade uma causalidade eficiente necessária, regida por um princípio universal,

porém independente da natureza. Em Schopenhauer, tal princípio que orienta o querer em geral

será a vida, ou existência; em Nietzsche, o poder. Como em Kant esse princípio é uma lei única e

imutável, a liberdade consiste em agir sob a lei a que deve obrigar-se o agente. Tal lei não é,

contudo, uma lei apenas divina, mas uma lei da razão (não da espécie humana, mas da razão pura

em geral em seu uso prático); a lei a que se obriga a liberdade seguir é uma lei dada pela própria

razão, e isto significa que a liberdade consiste em (a razão) dar leis a si mesma.

Kant, portanto, ao contrário do que se constatou em Aristóteles, reduz a liberdade à

autonomia, de modo que ser livre consiste em dar para si mesmo as leis que determinam a vontade

como razão prática, ou seja, faculdade para deduzir o princípio da ação da representação de uma

lei. A vontade, ela mesma, “é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em

conformidade com a representação de certas leis”, faculdade esta encontrável apenas em seres racionais

(Kant, 2007, [BA 63] p. 67); “liberdade e própria legislação da vontade são ambas autonomia,

portanto conceitos transmutáveis” (Kant, 2007, [BA 104-105] p. 99). Para dar leis a si mesma, a

razão lança mão do princípio de não-contradição. Sobre isto, basta que se leia cada um dos

exemplos kantianos de ações contrárias e ações conformes ao dever: em cada caso a distinção é

feita segundo este princípio lógico. A lei moral, antes de tudo, não pode implicar contradição, e assim

Kant denuncia o caráter imoral de todo egoísmo, diferente de Schopenhauer, que o liga à

afirmação da vontade segundo o princípio de individuação – logo, a imoralidade do egoísmo, em

Page 137: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

137

Schopenhauer, não remete à Lógica, mas à Ontologia. A este respeito, Schopenhauer critica Kant

por, ao contrário, fundar sua moral justamente no egoísmo!87

O fato de que eu, ao estabelecer uma máxima para ser seguida universalmente, tenha de considerar-me não só como a parte sempre ativa, mas também, às vezes e eventualmente, como a passiva faz com que meu egoísmo decida-se pela justiça e pela caridade, não porque tenha prazer em exercê-los, mas em experimentá-los [...]. [...] o dever moral repousa verdadeiramente sobre a reciprocidade, por isso é que é simplesmente egoísta e que recebe do egoísmo sua interpretação, como sendo aquilo que, sob a condição da reciprocidade, prudentemente se estende como um compromisso. Isto seria apropriado para a fundamentação do princípio de unificação do Estado, mas não para a do princípio moral. [...] assim a verdadeira interpretação da palavra contradição é a de que, se uma vontade tivesse sancionado a máxima da injustiça e da falta de caridade, ela o revogaria, mais tarde, ao tornar-se eventualmente a parte passiva e, com isso, contradir-se-ia. [...] no seu fundamento jaz tacitamente a condição de que a lei que se estabelece para o meu agir, já que eu a elevo a universal, também torna-se lei para o meu padecer, e eu, eventualmente como parte passiva, não posso simplesmente querer injustiça e falta de caridade. Se eu suprimir esta condição e pensar-me, fiando-me talvez nas minhas forças espirituais e corporais superiores, sempre como a parte ativa e nunca como a passiva, poderei então muito bem, ao escolher a máxima de validez universal, pressuposto que não haja nenhum outro fundamento da moral a não ser o kantiano, querer a injustiça e a falta de caridade como máximas universais [...]. (Schopenhauer, 2001, [§7, p. 155-157] p. 69-71)

É certo que esta apreciação, além de soar exagerada, poderia ser facilmente recusada

alegando-se que Schopenhauer desconsidera que a intenção de Kant não é fornecer à consciência

moral um critério – neste caso, a reciprocidade a que toda liberdade deveria estar obrigada, tal como

de fato se dá na esfera das leis civis –, mas antes deduzir um princípio inteligível (pensável) sem

qualquer comprometimento junto ao mundo dos fatos – este último pertinente à Antropologia,

não à Moral. A própria liberdade schopenhaueriana nos é inatingível enquanto indivíduos dado o

caráter inato e imutável de nossa sensibilidade aos motivos.88 No entanto, além de Schopenhauer

87 Comparar com o que diz Nietzsche (2004d, [§335] p. 223-224), que, por considerações diversas, também reconhece aí a expressão do egoísmo. 88 Ver, por exemplo, Sobre o fundamento da moral, §20: “a diferença dos caracteres é inata e indelével” (Schopenhauer, 2001, [p. 249] p. 190); “todas as coisas no mundo agem de acordo com a natureza imutável em que consiste seu ser, sua ‘essentia’, e também o homem. Como alguém é, assim será, assim tem de agir” ([p. 252] p. 195). Aqui, a disputa com Kant não é com relação à liberdade em primeiro lugar, mas ao fundamento da moral, que não deve residir em uma “bolha de sabão apriorística”, mas em um fato, pois se trata do mundo da vida, da con-vivência entre os homens. A seu modo, Schopenhauer admite que agimos conforme “ordena” algo que não é, por sua vez, um “dever”, mas um ser. No querer-ser originário da coisa em si é que reside a liberdade, não no querer-por-dever da razão autônoma, de modo que a liberdade diz respeito mais propriamente à Ontologia, não à Ética. Uma vez que o ente é, comporta-se segundo esta essência, que, embora seja uma e imutável, incognoscível a priori, não se confunde com uma “Ideia de Homem” de tipo platônico, pois cada ente tem sua própria essentia, que consiste na determinação originária e individualizante daquele querer-ser. “Por meio dos motivos pode-se forçar a legalidade, não a moralidade. Pode-se transformar a ação, mas não o próprio querer, ao qual somente pertence o valor moral. Não se pode mudar o alvo para o qual a vontade se esforça, mas apenas o caminho que ela trilha para atingi-lo. O ensinamento pode mudar a escolha

Page 138: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

138

estar perfeitamente correto ao dizer que a adesão ao dever pode se dar de modo egoísta, a

observação final é pertinente e mesmo reconhecível em indivíduos altamente violentos e

belicosos, não podendo “ser isto o que produz em cada homem aquilo que é o chamamento

efetivamente presente para a ação correta e boa” nem tampouco capaz de “deter os fortes

impulsos para a injustiça e manter o rigor do equilíbrio nem estar na base das censuras da

consciência” (Schopenhauer, 2001, [§12, p. 185-186] p. 107-108). Importante ainda notar que o

imperativo categórico, visto deste ângulo, pressupõe relações que deveriam estar ausentes se se

pretende uma fundamentação que nada contenha de empírico. Schopenhauer, ao colocar em seu

lugar o fato da compaixão, leva em conta que a ação moral ou imoral sempre supõe relações dadas

entre um eu e um não-eu. Ademais, a consideração estritamente negativa da liberdade, tal como

vimos, parece ser inerente, sobretudo, à sua restrição ao âmbito da política e da civilidade, pois,

como observa Schopenhauer (2001, [§14, p. 198] p. 123), em tom hobbesiano, “a razão

reflexionante descobre bem depressa a instituição do Estado, que, surgindo do medo recíproco

dos homens diante de suas forças recíprocas, evita tão amplamente as consequências prejudiciais

quanto se pode fazê-lo por vias negativas”.

Assim se mostra que, apesar de sua “positividade” – talvez mais utilitária do que lógica (ver

Kant, 2001, [B XXV] p. 24-25)89 –, a definição de liberdade como autonomia, possibilitada pelo

conceito de uma vontade regida por uma lei universal, permanece dependente de “princípios” da

experiência e do conhecimento, de maneira que, embora a validem, não são por isso mesmo

dos meios, mas não dos últimos fins gerais; cada vontade os põe de acordo com sua natureza originária.” ([p. 255] p. 198) Aí encontramos uma clara distinção entre caráter inteligível e caráter adquirido. Portanto, a determinação dos fins últimos consiste na determinação do ser, do caráter, de suas disposições para a ação segundo motivos, ações estas que exibem o caráter moral ou imoral do agente, a posteriori. Todo dever seria, então, heterônomo, ainda que universal segundo a forma. “Neste aspecto há certamente uma cultura moral e uma ética da melhoria. Mas além daí ela não vale, e é fácil determinar seus limites. A cabeça é aclarada, mas o coração permanece incorrigível. A essência fundamental, o decisivo, tanto no campo moral como no intelectual e no físico é o inato; em toda a parte a arte [i.e. a educação, o exercício] só pode auxiliar.” ([p. 255-256] p. 199) No fim das contas, Schopenhauer concordará com Kant no que concerne à afirmação de que toda ação se dá segundo uma causalidade, discordando, contudo, que a liberdade seja pertinente a este âmbito, afirmando, em lugar disso, que toda ação tem sua causa explicativa na vida, embora remeta ao ser, ou caráter inteligível, que definitivamente não parece ter a mesma acepção dada por Kant. “De acordo com isso, o ‘operari’ é sempre necessário ao sobrevirem os motivos, por isso a liberdade que se anuncia apenas pela responsabilidade só pode estar no ‘esse’ [sobre isto, v. abaixo, cap. 6]. As censuras da consciência dizem respeito, em primeiro lugar e ostensivamente, àquilo que fizemos, mas, propriamente no fundo, àquilo que somos, como apenas aquilo sobre o que nossas ações dão um testemunho plenamente válido, pois elas se relacionam com o nosso caráter, como os sintomas à doença. Portanto, é neste ‘esse’, naquilo que somos, que têm de repousar culpa e mérito.” ([p. 256] p. 200) 89 Bem entendido, este caráter “utilitário” não se confunde necessariamente com o utilitarismo moral. Em vez disso, a positividade significaria, no âmbito do projeto crítico, seu efeito afirmativo, ou seja, o que se torna possível defender ou mesmo postular mediante a limitação dos “sonhos metafísicos”. Segundo este ponto de vista, podemos aceitar que Kant derive sua definição “positiva” de liberdade da negativa, uma vez que isto signifique apenas um modo de dizer afirmativamente o que antes se dizia negativamente: a razão legisla, de modo que não cabe ao homem apenas agir livremente quando não haja lei externa que o impeça.

Page 139: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

139

suficientes para que o ser-livre seja compreendido em si ou por si mesmo e independentemente

das noções de causalidade e necessidade. Na apreciação de Heidegger (2006, p. 110/111),

A metafísica chega mesmo tão longe que ensina, com Kant, que a Necessidade [Notwendigkeit], ou seja, a coação do dever e o coagir vazio da obrigação pela obrigação, seria a verdadeira liberdade. A essência metafísica da liberdade se cumpre no fato de que a liberdade se torna a “expressão” da Necessidade, a partir da qual a vontade de poder se quer ela mesma como a única efetividade e como a própria vida.

4.2.4. O dualismo kantiano e a perspectiva de sua superação

Em Kant permanece, pois, o velho pressuposto de que conhecer é conhecer pelas causas e

de que tal conhecimento é tão mais seguro na medida de sua universalidade e de sua necessidade.

Por sua vez, se a liberdade da vontade deve ser desvinculada de uma faculdade de arbítrio, como

escolha racional, não se trata mais de um deliberar com conhecimento. Deixando à parte o

sentido moral do agir, o qual exige escolhas e implica responsabilidades de fato, abre-se a

possibilidade de uma nova compreensão acerca da liberdade da vontade posta pelo próprio Kant

alhures. Desse modo, como foi visto no capítulo anterior, a liberdade é maior no juízo estético do

que no juízo moral, mas não apenas pela ausência de obrigação, uma vez que tal ausência se

explica pelo próprio caráter peculiar daquele juízo, que consiste em uma perspectiva, um ponto de

vista com pretensões à universalidade. Com isso, a liberdade se liga antes ao possível que ao

necessário. Nesse sentido, diz Beaumler (apud Rohden, 1992, p. 131; grifos nossos):

O ponto de vista universal é um substituto da estrita necessidade e universalidade no teórico. Ele possibilita a crítica. Pois que é a crítica senão um ajuizar de um ponto de vista universal, que é o ponto de vista de uma conformidade a leis, mas não o da lei? Toda crítica assenta sobre a possibilidade de assumir um ponto de vista que possa ser comum a todos os que julgam, sem ser ele contudo estabelecido conceitualmente. Kant expressa o inconcebível pela palavra sentiment. O sentiment é o Gefühl (sentimento) individual que sabe encontrar o universal sem agir segundo leis universais...

Assim, pode-se considerar tal juízo como fictício, como afirma Marques (1992, p. 33):

Ajuizar as formas como se em si fossem belas ou possuíssem uma finalidade natural nelas mesmas, mas com a consciência de que afinal somos nós que assim julgamos. Poderá dizer-se que toda a obra [Crítica da faculdade do juízo] está montada numa ambiguidade fundamental que intencionalmente é explorada por uma racionalidade crítica. Por um lado, a natureza exibe formas que apelam

Page 140: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

140

para um realismo nítido, por outro lado, esse realismo serve para darmos uma força racional àquilo que se sabe ser da ordem da ficção [...].

Em nota [28], o comentador acrescenta que não se trata de estarmos perante um

pensamento ele mesmo fictício, mas sim, “um pensamento que reconhece a natureza fictícia dos

seus próprios juízos”, embora racional.

Pode-se concluir que Kant refina a já muito antiga noção de que ser livre consiste em seguir

uma lei universal. De que modo? Separando o natural sensível do moral inteligível mantendo, no

entanto, a analogia entre eles segundo as condições da experiência possível. Não se trata mais de

separar a alma do corpo como entidades, atributos ou substâncias de naturezas distintas, mas de

afirmar que o homem, como um anfíbio, como que “habita” necessária e indissoluvelmente os

âmbitos sensível e inteligível. Mais do que isso, Kant apresenta esta tese como necessária à

superação da contradição e da antinomia, sendo esta superação, porém, uma exigência

meramente lógica.90 Por sua vez, é notável que a liberdade somente ganhe maior positividade

precisamente quando, na Crítica da faculdade do juízo, Kant a libera das representações – por isso não se

trata apenas de desobrigação, mas de uma exigência existencial – e busca uma síntese, não a mera

analogia entre o natural e o moral, o teórico e o prático, o universal e o particular. Ademais, a

fundamentação kantiana da moral, como resposta à antinomia, peca pela mesma razão de que tira

sua importância inquestionável. Se, por um lado, Kant negligencia a consideração existencial da

liberdade, focada inicialmente por Schopenhauer, ou seja, tratando da tese de que somos segundo a

liberdade, e não apenas da possibilidade de agirmos livremente, por outro lado, é nesta tarefa

estrita e propriamente dita crítica que Kant põe sob intensa luminosidade os mais corriqueiros e

enraizados equívocos.

Kant removeu uma carga de peso infinito, a saber, a pressuposição da liberdade da vontade. Apesar da sua convicção expressa repetidamente de que a liberdade não pode ter simplesmente lugar nas ações humanas, pois ela não pode ser vista teoricamente, nem sequer de acordo com sua possibilidade (Crítica da razão prática, p. 168 [quarta edição]) – e de que, se fosse obtido um conhecimento preciso do caráter de um homem e de todos os motivos que agem sobre ele, a sua ação seria previsível, de modo tão seguro e preciso, como um eclipse da lua (i[bi]dem, p. 177)91 –, a liberdade, contudo, só seria admitida meramente a crédito

90 No esclarecimento inicial aos “Postulados do pensamento empírico em geral”, mais precisamente com relação ao postulado da possibilidade, qual seja, que é possível o que concorda com as condições formais da experiência, diz Kant (2001, [A 220 / B 267-268] p. 239): “É certo que é condição lógica necessária” de um conceito puro que o mesmo “não encerre contradição; mas não suficiente, longe disso, para constituir a realidade objetiva do conceito, isto é, a possibilidade de um objeto tal qual é pensado pelo conceito”. Fora dessas condições, o conceito de liberdade seria, para Kant, meramente imaginário, uma quimera, não podendo receber a priori caráter de possibilidade. 91 A suposição aí expressa nos remete tanto a Hume como a Espinosa, exprimindo de modo irrecusável que para toda ação há uma causa que a condiciona necessariamente.

Page 141: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

141

daquele fundamento da moral que paira no ar e, ainda assim, apenas “idealiter” e como um postulado [...]. (Schopenhauer, 2001, [§6, p. 143-144] p. 52-53)

Desse modo, não se trata de dizermos, com Schopenhauer, que Kant errou no que disse,

mas sim que, primeiro, deixou o serviço pelo meio92, e, segundo, pela magnitude de seu feito,

arriscou comprometer a retomada da questão. A analogia entre sensível e inteligível se apresenta,

pois, como noção crucial no sentido de estabelecer um nexo sistemático entre a primeira e a

segunda Crítica da razão, cuja separação metodológico-temática é antes reflexo da distinção entre

intuição e ideia do que seu princípio. Sobre as raízes desta analogia, mais relevante para a

compreensão da obra crítica kantiana do que a distinção que a enseja, cabe fazer menção à

elucidativa conferência de Hamm (2001), intitulada “Sobre a necessidade e o limite da razão”, que

se encerra com as seguintes palavras:

[...] a discussão das possibilidades e necessidades da razão prática representa, antes de mais nada, uma discussão crítica dos seus limites e do seu uso legítimo. O fato de a razão prática não precisar, para a fundamentação e a instauração dos seus próprios princípios, do apoio pela razão teórico-especulativa não significa que ela possa fazer esse trabalho independentemente ou até contra ela. É, bem pelo contrário, só o reconhecimento do seu limite comum, pelo qual a razão se sente obrigada a “percorrer”, “examinar” e “determinar” [...] o seu mundo da experiência possível e, uma vez consciente da sua limitação “natural”, a certificar-se da sua possibilidade, da necessidade e, nomeadamente naquele “incomensurável espaço escuro” fora desse mundo, do direito dessa sua necessidade, enquanto “fundamento subjetivo, para supor e admitir aquilo que ela com fundamento objetivo não pode pretender saber”.

Uma atenta compreensão do propósito da filosofia crítica faz ver que a moral kantiana não

se prestava então ao oferecimento de uma solução última ao problema da liberdade da vontade, que deveria

incluir, pensamos, seu aspecto existencial, mas antes e talvez exclusivamente à possibilitação de

sua inteligibilidade segundo as diretrizes permitidas pela crítica da razão especulativa, de maneira que,

como vimos repetidamente indicando, a liberdade jamais chega a ser pensada para além das

representações causais senão na terceira crítica.93 É este “pensar para além das representações

92 V. Schopenhauer, 2004, p. 631, no Apêndice: “Kant não levou seu pensamento até o fim; eu simplesmente continuei sua obra”. 93 V. o Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura: “uma crítica que limita a razão especulativa [...] é de fato de uma utilidade positiva e altamente importante, logo que nos persuadirmos de que há um uso prático absolutamente necessário da razão pura (o uso moral), no qual esta inevitavelmente se estende para além [über] dos limites da sensibilidade”; “devemos, pelo menos, poder pensar esses objetos como coisas em si embora os não possamos conhecer” [em nota: “posso pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo”]; “posso, não obstante, pensar a liberdade; isto é, a representação desta não contém em si, pelo menos, nenhuma contradição, se admitirmos a nossa distinção crítica dos dois modos de representação (o modo sensível e o modo intelectual)” (Kant, 2001, [B XXV-XXVI/XXVIII] p. 24-26). Kant ainda diz explicitamente não ser sua pretensão “expor a realidade da liberdade”, admitindo que, se ocupando de conceitos, não “pode concluir da experiência algo que não deve ser pensado por leis da experiência” (grifo nosso). Diz também que sequer pretende “demonstrar a possibilidade da liberdade [ela

Page 142: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

142

causais” que será primeiramente tentado por Schopenhauer (2004, [“Apêndice”] p. 632/636-637;

grifos nossos), impedindo a hipóstase do conceito de liberdade:

Sem dúvida, é completamente a priori e antes de toda experiência que nós aplicamos a lei da causalidade às modificações experimentadas por nossos órgãos dos sentidos; mas é justamente por isso que esta lei [...] não conduz à coisa em si. A verdade é que seguindo a via da representação não se poderá jamais ultrapassar a representação [...]. Se fôssemos somente entes capazes de representações, o caminho da coisa em si nos seria para sempre fechado. [...] [...] [...] a solução da terceira antinomia, de modo algum é atingida por esta afirmação, que as duas partes têm razão, cada qual sob um ponto de vista diferente. Pois nem a tese nem a antítese falam da coisa em si, elas se ocupam pura e simplesmente da fenomenalidade, do mundo objetivo, do mundo como representação. [...] Pois a liberdade transcendental em questão não é de modo algum a causalidade incondicional de uma causa, como afirma a tese, já que uma causa é por sua essência mesma um fenômeno [...]. Não é tratando da causa e do efeito que se precisa estudar, como faz Kant, a relação da vontade com sua manifestação fenomenal (ou seja, do caráter inteligível com o caráter empírico); pois esta relação é absolutamente distinta da relação causal. [...] A liberdade, portanto, não tem causalidade [...].

Kant (2007, [BA 104] p. 98-99), na Fundamentação..., buscava uma solução para o seguinte

círculo vicioso: “Consideramo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos

pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensamo-nos como submetidos

a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da vontade”, sendo que, “pela ideia da liberdade,

nos separamos de todo interesse empírico”. Não há, contudo, uma intuição dessa ideia uma vez

que não se trata de um fenômeno da experiência. A liberdade pela qual se pode entrar no mundo

dos fins é concebida apenas de modo negativo, ou seja, como independente de todo fim a

alcançar que seja de nosso interesse, possível apenas “por analogia com um reino da natureza [...]

segundo máximas, quer dizer regras que se impõem a si mesmo” (Kant, 2007, [BA 82; 84] p. 81-

82), e por isto já é concebida em oposição à necessidade. Então, ressignificando a distinção

“platônica” entre um mundo sensível e um mundo inteligível – este último não mais como uma

realidade hiperurânea, “acima do(s) céu(s)”, i.e. superior ao mundo natural, mas como o próprio

âmbito das ideias da razão –, Kant (2007, [BA 110] p. 103) afirma que:

quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com sua consequência – a moralidade; mas quando nos pensamos como obrigados,

mesma]”, admitindo que tal seria impossível a partir de meros conceitos. (cf. id., ibid., [A 557-558 / B 585-586] p. 478). Daí nosso problema: se, conforme o parágrafo final da Introdução ([A 15 / B 29] p. 56), é segundo o entendimento que os objetos são pensados, e pensar significa representar sem contradição, toda a fundamentação da moral tem como solo representações do entendimento, sendo justamente a concepção de “pensar a liberdade” que há de ser revista. Isto parece bastante para amparar a tese de Loparić acerca do logocentrismo kantiano.

Page 143: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

143

consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e contudo ao mesmo tempo também ao mundo inteligível.

Tal “transposição” é evidentemente um efeito da reflexão, um fato psicológico mediado por

representações, não um “conhecimento imediato da própria vontade que resulta, na consciência

humana, o conceito de liberdade”, como sustenta Schopenhauer (2004, [“Apêndice”] p. 633; grifos

nossos)94. O homem é anfíbio porque vive em dois meios distinguíveis pelo pensamento.

Interessante notar que, impedido pelos limites de sua própria filosofia especulativa, Kant não

pode demonstrar a substancialidade ou efetividade do mundo inteligível, supondo a cognoscibilidade da

coisa em si, mas pode simplesmente pensá-lo, e é no pensar-se como membro de dois mundos antagônicos que

vem se legitimar sua filosofia moral, não pautada na crítica das intuições empíricas, mas na crítica

das ideias da razão. É apenas segundo a inteligibilidade da liberdade da vontade, e dentro desta

limitação, que o ser racional, no pensamento representacional, um comportamento psicológico a

posteriori, se reconhece analogicamente como autônomo, enquanto que sua obrigação pelo dever,

fundada nessa inteligibilidade, remete forçosamente à ação no mundo da experiência.

Numa palavra, a sua causalidade, na medida em que é intelectual, não se incluiria na série das condições empíricas que tornam necessário o acontecimento no mundo sensível. Este caráter inteligível, é certo que não se poderia nunca conhecer imediatamente, porque só podemos perceber uma coisa na medida em que aparece; teria, porém, que se conceber de acordo com o caráter empírico, da mesma maneira que, em geral, temos sempre que dar no pensamento um objeto transcendental por fundamento aos fenômenos, embora nada saibamos daquilo que ele é em si. (Kant, 2001, [A 540 / B 568] p. 467)

94 V. tb. Schopenhauer (2001, [§10, p. 177-178] p. 97): “Pois a consciência é propriamente a familiaridade com o próprio si mesmo que surge do próprio modo de agir e que cada vez se torna mais íntima. [...] Só somos pois conscientes da liberdade mediante a responsabilidade: onde esta se encontra aquela também tem de se encontrar, a saber, no ‘esse’. A necessidade recai no ‘operari’”. Fica claro que o conceito schopenhaueriano de “consciência” difere radicalmente daquele de “consciência moral” na tradição como no senso comum, redutível a uma atividade reflexiva a posteriori (comparar, no próximo capítulo, à análise de Heidegger acerca deste assunto). De todo modo, Schopenhauer também lança mão da noção de consciência moral como algo a posteriori na medida em que ela nos chama para a proximidade de nosso “próprio si-mesmo”. Nesta acepção, essa consciência imprópria como que nos desvela nosso próprio ser, consistindo no “conhecimento de nós mesmos que se torna cada vez mais completo, o protocolo das ações que cada vez mais se preenche” (Schopenhauer, 2001, [§20, p. 256] p. 200). Sob este ponto de vista, a saber, da experiência, ela “é condicionada pela razão, porque só em virtude dela é que é possível uma reminiscência clara e coesa. Está na natureza das coisas que a consciência só fale depois. Por isso é que ela também se chama consciência julgadora. Ela só pode falar antes, em sentido impróprio, a saber, indireto, pois que a reflexão conclui da memória de casos semelhantes a desaprovação futura de uma ação apenas projetada. Tão longe vai o fato ético da consciência; ela mesma permanece como um problema metafísico [...]. Com o reconhecimento de que a consciência é apenas o tomar conhecimento que surge por meio das ações do próprio caráter imutável”, ainda assim, “não é algo que possa ser explicado a partir de outra coisa nem conseguido por aprendizado [...], mas é algo inato, imutável, que não dá para explicar” (id., ibid., [p. 257-258] p. 201-202; grifos nossos). Logo, além de uma compreensão diferenciada de consciência como “familiaridade com o próprio si mesmo”, no último trecho citado, Schopenhauer nos oferece uma crítica da boa e da má consciência a ser retomada em aprofundada por Heidegger em Ser e tempo. Nos Suplementos a sua obra capital, escreve Schopenhauer (2004, [cap. XIV] p. 823) que a consciência é “apenas a superfície de nosso espírito; assim como a terra, só conhecemos deste a exterioridade, não o interior”, sendo notável aqui que o que ordinariamente se estima como o íntimo, o interior, não passe de uma casca.

Page 144: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

144

Em suma, partindo do pressuposto de que toda ação humana no mundo dos sentidos deve

remeter a causas eficientes (Kant, 2001, [A 538-539 / B 566-567] p. 466-467) – o mesmo que

exige para todo movimento natural uma causa primeira –, se se pretende afirmar que a razão é

autônoma, pois que o mundo da liberdade – de acordo com a tradição – e das leis é o mundo da

razão, deve-se necessariamente admitir esse duplo pertencimento do ser racional. Com isso, Kant

também pretende legitimar a analogia entre o mundo dos fins e o mundo da natureza e a

transposição dos princípios do conhecimento acerca deste para o pensamento daquele, pois, caso

contrário, deveria admitir que a razão, que representa leis a priori, é ela mesma contrária a si, ou

seja, capaz de representar a priori (e não por mera abstração) a ausência de leis, o que não seria

admissível senão por loucos. Tal pressuposto acerca da razão é, portanto, definitivo.

[...] um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão. (Kant, 2007, [BA 108-109] p. 102)

Fica claro o porquê da invasão dos princípios da razão especulativa no âmbito da razão

prática, bem como da afirmação do pertencimento da própria vontade ao mundo inteligível

(Kant, 2007, [BA 110-111] p. 103-104). Se a razão representa segundo determinados princípios

que lhe são próprios, a vontade, a liberdade, a moral, já sempre se lhe apresentam como ligadas a

uma legislação, com a diferença que, nesse caso, a legislação se funda na própria razão de modo

“independente” de toda experiência, ou seja, sem passar pelo entendimento, como dirá Kant mais

à frente. Todavia, pensar tal independência, ou seja, transcendentalmente, exige e implica que nossa

representação reintroduza no pensamento as condições do entendimento e, portanto, da

cognoscibilidade em geral – eis porque Nietzsche fala em “filosofia da porta dos fundos”. Ora, já

foi dito aqui que é digno de suspeita aplicar regras ou princípios do conhecimento de fenômenos

àquilo que de forma alguma o é, crítica repetida à exaustão por Schopenhauer! Não é à toa que,

mesmo após enunciar a definição positiva de liberdade, Kant insiste no emprego da definição

negativa por ela pressuposta, pois a ela, em última instância, tudo se reduz e dela decorre. De

todo modo, a limitação da apreciação kantiana advém do fato de que ele não abandona a perspectiva

do mundo como representação, mas, com o fim de eliminar a contradição inevitável de se considerar

uma mesma ação como decorrendo da necessidade natural e da necessidade moral (Kant, 2007,

[BA 115] p. 107), tão-somente separa duas espécies de autorrepresentação (como ser sensitivo e

Page 145: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

145

como ser inteligente) para dar conta de sua tese do duplo pertencimento, fundada, em última

análise, na oposição entre coisa em si e fenômeno.

Pois que uma coisa na ordem dos fenômenos (como pertencente ao mundo sensível) esteja submetida a certas leis, de que essa mesma coisa, como coisa ou ser em si, é independente, isso não contém a menor contradição; mas que o homem tenha que representar-se e pensar-se a si mesmo desta maneira dupla, isso funda-se, para o primeiro caso, na consciência de si mesmo como objeto afetado pelos sentidos, para o segundo na consciência de si mesmo como inteligência, quer dizer como ser independente, no uso da razão, de impressões sensíveis (portanto como pertencente ao mundo inteligível). (Kant, 2007, [BA 117] p. 109)

Kant, pois, não se desembaraça do pensamento metafísico enquanto pensamento

dicotomizante. Tampouco supera o âmbito das representações. O colapso da oposição entre a

representação imediata da Ideia (objeto imediato da inteligência, não abstraído da sensibilidade) e

a Vontade como coisa em si, operada por Schopenhauer conforme passagem citada no capítulo

anterior, consistirá em uma marcante revisão da doutrina kantiana, sendo digno de nota que, para

tanto, faz-se necessário superar toda a perspectiva do mundo como representação se se pretende pensar a

Vontade em si mesma e, assim, a liberdade que a caracteriza. Se Kant (2007, [BA 120-121] p. 111)

admitira que a liberdade é inconcebível e incognoscível justamente porque, alheia ao âmbito da

natureza, da sensibilidade e da experiência, não se constitui como objeto do entendimento, mas

como mera ideia, não podendo tampouco ser explicada segundo causas, não restando nada mais

que a defesa de seu conceito, deve ser reconhecida a insuficiência desta apreciação na mesma medida

em que foram insuficientes todas aquelas que a precederam pautadas em representações

dualísticas. Com isso permanece não resolvido e “nas trevas” o “mistério da liberdade”,

conforme a conclusão de Safranski (1991, p. 426).

A dupla perspectiva do mundo em Schopenhauer e sua solução na unidade da Vontade

deve então apontar o começo do “fim da metafísica” na medida em que, reconhecendo que toda

oposição só se apresenta segundo o ponto de vista do mundo como representação de um sujeito,

em o superando, deve-se abrir espaço para a compreensão da existência como prescindindo de toda

natureza. Antes dele, Espinosa (2000, [II, prop. VII, esc.] p. 228), corrigindo Descartes, já dissera

que “a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância [Deus],

compreendida ora sob um atributo, ora sob outro” da mesma maneira que “um modo da

extensão e a ideia desse modo são uma e mesma coisa, mas expressa de duas maneiras

diferentes”, mas incorrera no extravio de permanecer firme às noções de substância, causalidade

Page 146: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

146

e necessidade, encontrando no panteísmo a única via possível de conciliação.95 Não se trata,

portanto, de conciliar moral e natureza, alma e corpo, pensamento e sensibilidade, de submetê-los

a uma “síntese”, apartando-se, como Hegel, da ditadura do princípio de não-contradição, mas de,

pela compreensão da natureza como representação, lançar o olhar para seu próprio fundo – no

dizer de Mestre Eckhart – em busca daquilo segundo o que natureza é natureza: natureza em e

para nossas representações. A sentença inicial de O mundo como vontade e representação, a saber, “O

mundo é minha representação”, não há de propor uma visão solipsista96 da realidade, mas uma

advertência segundo a qual, para qualquer consideração acerca deste mundo transcendentalmente

determinado por uma subjetividade, e de nossa presença nele como efetividade, deve-se, antes,

dar um passo atrás, o passo fenomenológico, conforme se descobrirá futuramente.97 Conforme

declara Schopenhauer (2004, [§7] p. 52-53), seu ponto de partida nessa etapa de sua exposição é a

95 Observemos que a doutrina schopenhaueriana da representação apresenta imensa afinidade com a doutrina espinosana da imaginação, descontada, todavia, a contrapartida desta última, qual seja, um austero realismo no que concerne à possibilidade de “ideias adequadas” e “definições reais”. Similarmente, sua “Vontade” não deixa de apresentar algum remoto parentesco com o que antes se denominava “conatus”, sobretudo em Espinosa, que o entende como ímpeto para a existência e por sua conservação. Além disso, vale notar que embora Espinosa, um filósofo de transição no pensamento da liberdade, recuse as doutrinas do livre-arbítrio que definiam a liberdade como escolha deliberada − crítica também levantada por Schopenhauer −, incorra no desvio fundamental também reconhecido em Kant, qual seja, conceber a liberdade como uma causalidade eficiente. O mérito inegável de Kant, entretanto, mesmo em comparação a Espinosa nesse ínterim, é ter pensado a liberdade transcendentalmente, atitude proibida pelos pressupostos espinosanos e sua defesa da liberdade como causalidade imanente. 96 De acordo com Craig (1998), o solipsismo se apresenta sob três formas: 1) a tese de que há um único centro de consciência, ou eu, para tudo que se conhece; 2) a de que nada existe separadamente da própria mente ou dos próprios estados mentais; e, mais recentemente, 3) a de que todo o conteúdo dos pensamentos de alguém é independente da exterioridade, sendo determinado de maneira intrínseca e não-relacional. Uma vez que Schopenhauer não admite a cognoscibilidade do sujeito na mesma medida em que não admite a do objeto ou matéria fora de qualquer relação entre si, seu pensamento não se adéqua a nenhuma das três teses, especialmente à terceira. Pode-se, contudo, questionar sua não adesão à primeira ou à segunda. Ainda que Schopenhauer afirme, como base de toda sua doutrina, que todo conhecimento se dá segundo representações e que toda representação é um produto intelectual, portanto, subjetivo, pretende dizer com isto que, por um lado, todo objeto supõe um sujeito, mas, por sua vez, todo sujeito de conhecimento o é enquanto tem a percepção de alguma matéria. Se a consciência é o centro do mundo ou se o mundo só existe nela e para ela, tal consciência é ela mesma um fenômeno derivado de uma relação já posta no próprio dar-se do fenômeno, recusando-se toda forma de realismo. Mesmo a intuição “imediata” do próprio corpo se dá segundo a sensibilidade afetada pela matéria que o constitui. Desse modo, não há em Schopenhauer um sujeito absoluto e isolado que independa da realidade exterior, mesmo porque só a realidade material pode ser conhecida propriamente, e segundo este conhecimento é que o conhecedor se constitui como sujeito. Embora a matéria, em certa medida, dependa do sujeito, não é por ele causada; enquanto objeto conhecido, a matéria é dependente uma vez que supõe um conhecedor, apenas isto. Para Schopenhauer é tão falso afirmar a existência do sujeito na ausência de qualquer objeto quanto a existência do objeto na ausência de algum sujeito, não se podendo afirmar que o mundo se origine de um ou de outro – intelecto e matéria são correlatos. Elementos bastantes para a refutação da interpretação solipsista sobre o pensamento de Schopenhauer podem ser encontrados no primeiro capítulo dos Suplementos a O mundo..., com destaque para o diálogo final (cf. Schopenhauer, 2004, p. 683-689), muito embora o termo “solipsismo” sequer apareça nessa obra. Por fim, Cartwright (2005, p. L) constata que “Schopenhauer nunca tomou muito seriamente qualquer forma de ceticismo, e enquanto admitia que o egoísmo ou o solipsismo teoréticos não poderiam ser refutados por provas, via como uma doutrina que ninguém fora de um hospício poderia levar a sério”. 97 V. Heidegger (2007f, p. 159): “O primeiro passo na direção desta vigília [do ser] é o passo atrás, o passo que passa de um pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo, para o pensamento meditativo, que pensa o sentido. / Esta passagem de um pensamento para outro não está, sem dúvida, apenas em simples troca de posição. Algo assim já não pode acontecer nunca porque as posições, junto com seus modos de troca, já estão presas ao pensamento representativo. O passo atrás abandona todo nível de um simples posicionar-se.”

Page 147: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

147

representação, não o sujeito, tampouco o objeto, termos já “contidos e implicados” no fenômeno

representado, que tem naquela duplicação sua “forma primitiva e comum”, a saber, a do princípio

de razão. É desta forma (ser-objeto-para-um-sujeito) que dependem as demais (tempo, espaço e

causalidade), as quais, pertinentes ao objeto enquanto tal, podem ser derivadas do sujeito uma vez

que se encontra também inerente a todo objeto, representando o limite comum entre um polo e

outro. Nesse sentido, a relação já sempre em jogo em toda e qualquer representação se opõe a

qualquer teoria acerca do Absoluto ou doutrina identitária.

Se lemos em Schopenhauer (2004, [§2] p. 27-28) que o sujeito é o substratum do mundo, no

sentido de que é subentendido em todo fenômeno, em todo objeto, aquilo que conhece sem ser

conhecido, deve-se tratar de investigar os modos segundo os quais se estrutura a experiência

ordinária de mundo.

O mundo, de que a morte me separa, não é primeiramente senão minha representação. O centro de gravidade da existência recai no sujeito. Isto não consiste de modo algum, como no espiritualismo, na independência do sujeito cognoscente com relação à matéria, mas a dependência da matéria relativamente ao sujeito, o que se demonstra. (Schopenhauer, 2004, [cap. I] p. 683)

A perspectiva do mundo considerado tão-somente como representação, por sua vez, não

nega a existência da matéria, mas sim, pelo contrário, serve como ponto de partida para a

investigação da possibilidade de o mundo ser pensado! (Schopenhauer, 2004, [§1] p. 26-27) A

matéria é tudo que pode ser pensado a priori (cf. Schopenhauer, 2004, [cap. IV; quadro, 11] p.

725).

Daqui por diante, a questão deverá ser: Se, na origem, a natureza não era, como não era eu

mesmo ou qualquer coisa de individual, ainda no dizer de Mestre Eckhart, e, portanto, não era

nada com relação a que ser independente, nem o que se tornar independente, pergunta-se segundo o

que cada coisa veio a ser senão por si mesma e de modo não-causado? Se a razão só pode ser

pensada segundo seus próprios princípios e, portanto, como representação, ela mesma deve ser

posta à parte, de modo a liberarmos o pensamento para uma perspectiva que prescinda de toda lei, de toda

“lógica”. Não se trata de advogar a irracionalidade (caso isto seja possível), negar a lógica, mas de

deixá-la à parte no que concerne àquilo de que ela não pode dar conta. Trata-se de uma nova

experiência, não-kantiana, de pensamento. Se, como reconhece Kant, a liberdade da vontade não é

intuível nem explicável, que se supere também o “princípio filosófico de explicação” pelo qual

não se atinge senão representações relativas a nós mesmos por analogias sem solo, as “bolhas de

sabão” a que se refere sarcasticamente Schopenhauer. Como conclui Loparić (1992, p. 63),

Page 148: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

148

A razão humana é finita, em primeiro lugar, porque o seu uso legítimo é restrito ao território da experiência possível. Ela é finita, em segundo lugar, porque é discursiva, temporalizada, porque não pode abraçar o seu território todo num único gesto. Ela é finita, ainda, porque, para controlar a experiência precisa lançar-se em busca do universal contando apenas com regras heurísticas. E, em quarto lugar, a razão kantiana é finita porque não pode nem achar nem inventar conceitos determinados para caracterizar certos traços de formas intuitivas, de seres organizados e da natureza no seu todo. Nesses casos, ela esbarra no indizível. Para ficar às claras consigo mesma, tem que reconhecer um substrato além do alcance do seu poder, um outro que a razão representacional.

Em síntese, a dupla perspectiva do mundo como representação e do mundo como

Vontade, em vez de considerar o homem como anfíbio, atribui ao próprio homem o considerar-

se anfíbio, apontando uma direção alternativa para que se o pense como unidade, como coisa em

si una àquilo que denomina “mundo”, sem o entrave do panteísmo. “Não há lugar para a ideia de

Deus em semelhante concepção de ser, e Schopenhauer assim como Nietzsche a excluíram

cuidadosamente. Em oposição a todo sistema dualista, sua concepção do universo é

expressamente monista” (Gaultier apud Brum, 1998, p. 56, n. 5). Se a perspectiva representacional

é posta à parte, não é apenas por constituir a via do engano, ou da ilusão, como diria Parmênides,

autor da designação do homem como monstruosamente dotado de “duas cabeças”, mas, antes

disso, por ser um subproduto de uma perspectiva já determinada de uma vontade situada, individual

e, portanto, enclausurada no mundo a que chama “natureza”. Para Schopenhauer (2004, [§1] p. 26-

27; ver [§7] p. 59), a perspectiva do mundo como representação concerne apenas à superfície das

coisas, e “resulta de uma abstração voluntariamente [willkürliche Abstraktion] operada pelo

espírito”. O caráter em certo sentido proposital desta abstração se evidencia pela “repugnância

natural dos homens em admitir que o mundo seja somente representação”, contrastando com a

austera verdade expressa por “O mundo é minha vontade”, capaz mesmo, segundo ele, de fazer

o homem tremer! Em todo caso, porém, não há dualismo: o mundo só existe sob um ou outro

aspecto – daí considerá-lo segundo cada uma dessas perspectivas em separado, muito embora se

trate do que “em si é essencialmente unido” (Schopenhauer, 2004, [§6] p. 44). Schopenhauer crê

constatar esta unidade, e não impô-la de fora por uma síntese da razão discursiva. Schopenhauer

chega mesmo a se perguntar: “Não é surpreendente, até maravilhoso, ver o homem viver uma

segunda vida in abstracto ao lado de sua vida in concreto?” (2004, [§16] p. 124). A crítica filosófica do

conhecimento do mundo como representação “demonstra a necessidade de procurar em outro

lugar que não o universo ele mesmo e em algo muito diferente da representação a essência íntima

do mundo” (Schopenhauer, 2004, [§7] p. 64).

Por fim, recordemos duas importantes passagens do Crepúsculo dos ídolos, de Nietzsche

(2000b, p. 30 e 32, respectivamente). “Cindir o mundo em um ‘verdadeiro’ e um ‘aparente’, seja

Page 149: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

149

do modo cristão, seja do modo kantiano (um cristão pérfido no fim das contas) é apenas uma

sugestão da décadence: um sintoma da vida que decai...” (“A ‘razão’ na filosofia”, §6). A isto seguir-

se-á sua resposta a toda ambivalência metafísica: “Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo

nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o

aparente!” (“Como o ‘mundo verdadeiro’ acabou por se tornar fábula”, §6).

Page 150: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

5. A angústia do ser-livre

O esforço de pensar o ser-livre humano a partir de uma condição mais originária, à parte a

temporalidade, a multiplicidade e a corporeidade, como foi dito, tivera início com Mestre

Eckhart, chegando assim a uma positiva consideração da liberdade da vontade. Neste aspecto,

Mestre Eckhart supera Parmênides, Platão e seus respectivos seguidores, que sequer se ocuparam

tematicamente da questão. Desde então, contudo, encontramos uma longa lacuna, como se

evidenciou no capítulo precedente, uma vez que os modernos, ao menos até Kant, mantiveram-

se no tradicional racionalismo, termo pelo qual, seguindo Schopenhauer, pretendemos indicar um

otimismo que advoga a dignidade humana à luz do princípio de razão. Como também pudemos

observar, os avanços de Kant neste sentido são bem mais expressivos no âmbito da Estética do

que no da Ética, onde o princípio racional de causalidade e a determinidade conceitual têm a

primazia. Na linha desse mesmo racionalismo, o próprio Hegel busca uma síntese na tematização

do problema do saber sobre o fenômeno, onde temporalidade, multiplicidade e corporeidade são

categorias discutidas segundo a distinção entre verdades aparentes e Saber absoluto. Em

Schopenhauer, ainda seguindo Kant, temporalidade, multiplicidade e corporeidade correspondem

a cada um dos elementos formais a priori de toda representação empírica: o tempo, ou sucessão; o

espaço, ou contiguidade; e a matéria, ou união das formas precedentes sob o princípio de

causalidade (significando que o que denominamos “matéria” ou “corpo” não é uma entidade física

em sentido estrito, palpável ou ponderável em si mesma, nem estritamente matemática, mas antes

a representação temporalizada de um espaço dado, que existe primeiramente para nós e então,

submetida a categorias racionais, adquire um “antes e depois”, quantificabilidade, durabilidade,

impenetrabilidade etc.98). Nesse sentido, a abstração (retirada) do tempo, do espaço e da

98 A concepção schopenhaueriana é completamente herdeira da de Kant, de modo que seu conceito de “matéria”, que se refere a uma representação intuitiva em sua forma mais completa, remete ao que denomina “objeto real”. Como explica Caygill (2000, p. 273), citando Kant (2001, [A 143-144/B 182-183] p. 184-185), a categoria “realidade é [...] aquilo que corresponde a uma sensação em geral” e, em sua passagem à negação, “toda realidade é suscetível de representação como quantum”, como “substrato que persiste enquanto tudo o mais muda”, de modo que o “esquema da causa e da causalidade de uma coisa em geral é o real, que [...] sempre é seguido de outra coisa”. Em vista disto, Schopenhauer reduzirá as categorias a uma única: a causalidade, princípio segundo o qual a matéria nos é dada no entendimento como intuição real onde se unem as formas de tempo e espaço. Ainda assim, o estatuto da matéria/corporeidade no pensamento de Schopenhauer é alvo de duras controvérsias na medida em que implica uma aparente antinomia onde se considera o mundo ora como representação de um sujeito ora como fenômeno/objetivação da Vontade, como explica Roger (Schopenhauer, 2001, p. XLVII), citando Guéroult em seu “Schopenhauer et Fichte”: “O cérebro é, ao mesmo tempo, causa (metafísica) e efeito (físico) da natureza, ‘antinomia’ que Schopenhauer sem dúvida teria economizado não materializando o transcendental e que pode justificar a severidade de Guéroult para com ‘essa mistura de atitudes dificilmente conciliáveis (que) é a característica própria de Schopenhauer, a saber, a justaposição de doutrinas díspares’”. De todo modo, vale ainda observar que a concepção antiga (notadamente aristotélica) de “matéria” pretendia responder a uma das acepções de aitia (causa, por

Page 151: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

151

causalidade não deve conduzir, segundo Schopenhauer, a noções abstratas (racionais) que se lhes

oponham tais como as de eternidade, infinitude e incorporeidade, noções não-empíricas e simples

privações das primeiras. (Este é um dos pontos em que Schopenhauer se mantém fiel à escola

britânica que muito admirava.) Tais noções são meros conceitos vazios, representações da razão

retiradas – eis o sentido próprio de “abstrato”, do latim abs trahere, “tirar (fora) de” – de intuições,

representações empíricas da sensibilidade ou lógicas (i.e. racionais) do entendimento, mas que no

entanto não correspondem a nenhum objeto empírico (real). Como meros conceitos, a ocupação

da metafísica tradicional com tais noções é, de fato, um desperdício de energia ou pelo menos um

desvio autoenganador. É abstrato tudo que nos chega à razão ou à percepção consciente

submetida a conceitos, todo interpretar e exprimir (trahere). Desse modo, a superação da

temporalidade, da multiplicidade, da corporeidade e dos conceitos corresponde à superação do

princípio de razão em sua quádrupla raiz e, portanto, a uma consideração do mundo em sua

concretude, ou seja, segundo seu aspecto não-abstrato, mais originário99. Isto é o que permite a

Schopenhauer como que “continuar” o pensamento de Mestre Eckhart, liberando a vontade das

privações (em sentido lógico) do mundo como representação, e não apenas de “impedimentos”

fatuais como queiram voluntarismos ingênuos.

Todavia, no que tange ao problema do ser-livre como tal, explicitamente tematizado, o

primeiro grande passo adiante é dado por um contemporâneo de Schopenhauer: Søren

Kierkegaard. Sua original abordagem da dicotomia entre liberdade e necessidade, que muito deve

à sua crítica aos românticos como a Hegel, se insere precisamente em sua também original

que), qual seja, de que algo é produzido, feito, de que se constitui, a que se aplica uma determinada forma, em que se dá uma modificação. Esta acepção de “matéria”, mais geral, ainda persiste na linguagem atual – por exemplo, como sinônimo de disciplina, tópico de estudo, ou mesmo na etimologia de palavras como o inglês “matter”, questão, problema, assunto – muito embora seja obinubilada pela compreensão corriqueira herdada da física. Ademais, as “propriedades (físicas) da matéria” é que são sensíveis, não ela mesma; submetida no mundo físico ao tempo e ao espaço, a matéria pura (eterna e amorfa) fora motivo de espanto para Platão que, inspirado no pitagorismo, reconhecendo-a como princípio de mudança, via em sua indeterminância uma pura negatividade. A análise mais profunda de Platão a respeito da matéria prima encontra-se no Timeu enquanto trata do receptáculo, apresentado positivamente como “uma certa espécie invisível e sem forma, que recebe tudo e participa do inteligível de uma maneira muito embaraçosa e difícil de se entender” (Platão, 1949, 51 a). 99 Toda diferença entre os entes, representada segundo as formas da intuição sensível, faz de cada ente determinado algo individual. Por sua vez, toda multiplicidade supõe uma coleção de indivíduos dados. Desse modo, não se trata de abstrair indivíduos como na imaginação de um espaço absolutamente vazio ou na representação conceitual de um continuum, mas de um conhecimento não pautado em relações de tempo e espaço. “Em que repousa toda a multiplicidade e diferença numérica dos seres? No espaço e no tempo. Só por meio destes é que ela é possível. Pois o múltiplo só se deixa pensar e representar ou como coexistente ou como sucessivo [i.e. espacial ou temporalmente]. É porque o múltiplo de tal espécie são os indivíduos que eu chamo espaço e tempo de ‘principium individuationis’, porque eles tornam possível a multiplicidade, sem importar-me se este é exatamente o sentido em que os escolásticos tomaram esta expressão. [...] aquilo que se apresenta como aquele múltiplo e, assim, no tempo e no espaço, não pode ser a coisa-em-si, mas apenas fenômeno. Este porém só está presente para nossa consciência, que é delimitada por múltiplas condições e que, até mesmo, repousa sobre uma função orgânica; fora dela, nada é.” (Schopenhauer, 2001, [§22, p. 267-268] p. 213-214) Nestas palavras percebe-se já uma diferença ontológica segundo a qual “o que é” consiste no ente dado na representação, não o ser em-si do ente (a Vontade), o qual, não passível de representação, é como um nada.

Page 152: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

152

tematização da angústia, que pode ser entendida como o ponto de partida de uma filosofia

existencial propriamente dita100. Partindo deste ponto, o presente capítulo concentra-se nas

propostas das chamadas filosofias existenciais, selecionando, por questões de economia, mas

também de afinidade e, especialmente, em vista de um mais claro e promissor contraste, os

pensamentos de Kierkegaard e Heidegger. Começamos pela inaugural tematização da angústia

por Kierkegaard que, inspirada no mito judaico-cristão do Pecado Original, relaciona liberdade e

culpabilidade. Seguindo este fio condutor, procederemos à revisão feita por Heidegger da

interpretação ordinária do conceito de “culpa” rumo ao sentido originário do “ser e estar em

dívida”, caracterizando existencialmente esta condição e, finalmente, analisando o sentido da

“singularização do si-mesmo” como “que-se-quis” segundo uma decisão para-ser. Disto se tirarão

ainda algumas consequências de caráter antropológico e teológico.

5.1. Kierkegaard e a angústia do possível da liberdade

Segundo Kierkegaard (1962, p. 64), “a angústia é a realidade da liberdade como puro

possível”, ou seja, a pura possibilidade (sem mistura de quaisquer determinações) de qualquer

efetivação da liberdade.101 Significa dizer: não é a liberdade efetiva o que angustia, como o estar

100 Faça-se, contudo, a seguinte reserva: Kierkegaard não atribui a si mesmo este título. O que encontramos em sua obra filosófica é uma tematização muito clara do dilema do Indivíduo em face das discussões acerca do Eu nas escolas alemãs em que se formou e que lhe eram contemporâneas. Com este interesse, Kierkegaard leva à profundidade temas como o da solidão, da angústia, do desespero, sempre seguindo o fio condutor dos paradoxos inerentes à relação entre esse Indivíduo e o Absoluto. Desse modo, uma problematização bastante inovadora da Ética e da Teologia, bem como da Estética, virá também a constituir uma grande afinidade com o que chamamos “filosofias da existência”. Heidegger faz menções elogiosas ao pensador dinamarquês a este respeito, mas será Sartre a elegê-lo precursor do existencialismo. Aqui, no entanto, tomamos o cuidado de não vinculá-lo a uma corrente filosófica qualquer, apenas indicando esta afinidade e rendendo-lhe o devido mérito. 101 A tradução pode levar a uma leitura equívoca. “Realidade”, aqui, como no restante da obra, deve ser entendida como categoria modal ao lado de “possibilidade” e “necessidade” – tal como a “existência” em Kant –, e não como uma qualidade essencial da liberdade denominada “angústia” no sentido analítico de “o conceito de liberdade inclui o de angústia”. Corresponde ao alemão Wirklichkeit, não ao latim realitas – neste último caso, liberdade seria, essencialmente, angústia. Como se verá a seguir, a angústia precede todo exercício do arbítrio (em que a liberdade já subsiste) como sua condição. “Condição” já não é um bom termo, pois significa que, (1) ao se dizer “liberdade”, implicitamente se diz “angústia”, o que remete à análise conceitual; (2) em outra acepção, remete à noção de “causa necessária”, o que dá no mesmo, pois causas necessárias são inerentes a seus efeitos. Quando então se diz aqui “condição”, se pretende indicar uma precedência ontológica, não uma temporalidade, tampouco uma relação lógica. Por esta razão, “possível”, aqui, se refere à “realidade da liberdade”, e não apenas à liberdade em sentido genérico. “Liberdade é pura possibilidade” e nada tem a ver com arbítrio que dela tira sua possibilidade. Antes de se arbitrar sobre alternativas possíveis (representações), porém já determinadas como alternativas, o próprio arbitrar em geral precisa ser antecipadamente possível, e é isto que caracteriza o ser-livre do homem: a liberdade lhe é possível antes mesmo de se lhe dar qualquer alternativa ou de que o homem se saiba livre, pois, caso contrário, sequer reconheceria alternativas como tais, como objetos de uma decisão possível. Isto quer dizer que a liberdade é, no homem, concreta, e não uma mera abstração do raciocínio calculante. A tradição parece dizer o contrário, pois, para ela, ser livre, como vimos, geralmente está ligado à faculdade de decidir racionalmente dentre possibilidades dadas. Com efeito, é o descobrir-se livre que engendra a angústia; não é o poder escolher que o faz – pelo contrário. Nesse sentido, na importante versão em francês de Ferlov e Gateau, encontramos um pequeno acréscimo aparentemente elucidativo:

Page 153: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

153

diante de dois caminhos possíveis a se escolher para se chegar a um certo destino, mas sua

possibilidade – ou melhor, o possível como tal, a inexistência de caminhos ou destinos

previamente dados, caminhos estes que devem antes ser abertos pela liberdade ela mesma. Como

diz Le Blanc (2003, p. 48-49):

O “possível” de Kierkegaard não remete a um juízo sobre o advir das coisas ou o sobrevir de um estado de coisas, mas caracteriza o existir do homem. [...] O existir é contingência absoluta: o existir não conhece outra necessidade a não ser a das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação. [...] Para o homem, existir é encontrar-se sempre confrontado à multiplicidade de possibilidades.

“Liberdade”, antes de referir-se ao princípio de uma ação qualquer, é aqui entendida como

condição existencial; ser-livre é a marca do próprio existir, condição sine qua non para que qualquer

possibilidade fatual se possa abrir ao homem; por ser livre é que o homem pode se ver em meio a

possibilidades de fato, e não o contrário, que consistiria em mera abstração da experiência. Se a

liberdade não se coloca originariamente, qualquer possibilidade é desde sempre fechada. Se, ainda,

o próprio existir é “livre sem determinação”, se há uma abertura absoluta de possibilidades e todo

advir lhe é originariamente indefinido, tal liberdade deve ser em si mesma sem limites, infinita, não

havendo para ela outro entrave senão ela mesma em sua possibilidade de decidir-se e cair. A

liberdade como possibilidade infinita é, por isso, algo de irredutível à tradicional oposição entre

liberdade e necessidade, ou seja, liberdade de escolha (que tem implícitos um sujeito dado e

objetos dados à deliberação) e predeterminação102:

A possibilidade da liberdade não coincide, todavia, com o poder de escolher entre o bem e o mal. [...] A possibilidade consiste em poder-se. [...] A angústia, se não é uma categoria da necessidade, também não o é da liberdade; corresponde a uma liberdade entravada, em que a liberdade não é livre em si mesma mas

“a angústia é a realidade da liberdade porque ela é seu possível” (1979a, p. 46). No entanto, o “porque” explicativo, em verdade, deturpa a passagem, e isto fica claro na medida em que se compreende que, nesse caso, a angústia parece ser uma realidade que possibilita a liberdade. Uma boa alternativa seria ler: “a angústia é a possibilidade de a liberdade realizar-se/efetivar-se”, ou ainda “a angústia é a possibilidade de liberdade real”. 102 É importantíssimo observar que todo dado, todo determinado, todo real no sentido do atual, é também considerado necessário. Daí o reducionismo a que nos referimos no capítulo precedente. Compreender a liberdade como ausência de necessidade significa dizer que é livre aquele que não é obrigado a agir deste modo ou daquele, podendo optar por um ou outro. Tem origem aí a defesa da liberdade como efetiva no estado de indiferença, na ausência de inclinações ou preferências que tornem a escolha psicologicamente “previsível”. Contudo, Kierkegaard mostra que, se o atual, ou real, efetivo, pertence à liberdade de arbítrio, esta está mais próxima da necessidade do que da liberdade entendida como estar diante do puro possível, situação em que nada é real. Nesse sentido, há tão-somente nada, coisa alguma podendo ser aí discernida, definida, individualizada. Diz então Kierkegaard (1962, p. 75) que de modo algum haveria angústia se o pecado houvesse entrado no mundo por necessidade ou por um “abstrato liberum arbitrium”, cuja realidade, aliás, como Schopenhauer, ele rejeita. Eis porque Kierkegaard, como fará Heidegger, bem como Schopenhauer e Mestre Eckhart antes deles, procura situar a liberdade originária aquém de todo dualismo modal.

Page 154: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

154

cujo entrave se insere nela própria e não na necessidade. (Kierkegaard, 1962, p. 74-75)

Portanto, a exigência da decisão não é posta pela necessidade – isto seria um contrassenso,

pois o necessário nada deixa a decidir –, mas pela liberdade possível, sendo deste possível que

emerge a angústia, que não é angústia pela liberdade, mas pela possível exigência de decisão que ela

supõe, decisão que em nada se funda e é, por isso mesmo, fundante. Por carecer de apoio,

fundamento e razão, a livre decisão, em sua possibilidade, é paralisante. O possível é o nada-de-

fundamento, a possibilidade última de todo fundamento. Esta solução para o conflito entre

liberdade e necessidade, ao dizer que a liberdade é seu próprio entrave, tem aparentemente como

uma espécie de precedente o pensamento de Schelling, para quem, de acordo com Szondi (2004,

p. 31-32), tal conflito “só existe verdadeiramente onde a necessidade mina a própria vontade e a

liberdade é combatida em seu próprio terreno”, de tal modo que “a arena desta luta não é um

campo intermediário, exterior ao sujeito em conflito”, mas “a própria liberdade, que se torna

assim, como que em desacordo consigo mesma, sua própria adversária”. No entanto, Schelling

parte da identidade de liberdade e necessidade, concluindo que a indiferença entre uma e outra

“só é possível pagando-se o preço de o vencedor ser ao mesmo tempo o vencido, e vice-versa”.

Por sua vez, na formulação de Kierkegaard (1962; 1979a; 1979b; 1979d), a raiz desta condição

humana se prende à sua “natureza”: o homem é uma síntese de corpo e alma posta pelo espírito.

“O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de

necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de

vista, o eu não existe ainda.” (Kierkegaard, 1979d, p. 195) Segundo esta síntese, o homem existe

no paradoxo – é finito e infinito; é temporal e eternal; é determinado e indeterminado. Neste

paradoxo, o homem se faz indivíduo.

A angústia é consubstancial ao homem e define-o como participando do espírito; logo, ele não pode dela se libertar. Com efeito, se o homem não tivesse consciência da possibilidade, se não tivesse espírito, inteligência, ele não conheceria a angústia, de onde se conclui que a angústia está ligada à espiritualidade do homem. Em consequência disto, é tão impossível libertar-se da angústia quanto de si mesmo.103 (Le Blanc, 2003, p. 82-83)

Que significa “participar do espírito”, ser espírito? Ser indivíduo, isto é, um eu. Mas que é o

eu? Não uma mera autoimagem ou uma interioridade em si mesma, tampouco uma substantia. “O

103 V. Kierkegaard (1979d, p. 201): “o homem sempre deseja libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria invenção. Ser este ‘eu’ que ele quer faria a sua delícia – se bem que em outro sentido o seu caso não seria menos desesperado – mas o constrangimento de ser este eu que não quer ser, é o seu suplício: não pode libertar-se de si próprio”. O sofrimento por não-querer-a-si, já tematizado por Schopenhauer, será ainda um dos grandes temas de Nietzsche.

Page 155: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

155

eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria.

Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para

a própria interioridade.” Entre a interioridade e a exterioridade, o “alheio”, a relação entra como

um terceiro termo, “como unidade negativa, e cada um daqueles termos se relaciona com a

relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-se com a relação”. Caso a relação,

posta pelo eu, graças a ele, conheça a si própria, “esta última relação que se estabelece é um

terceiro termo positivo, e temos então um eu”. Portanto, esse eu “não é a relação em si, mas sim o

seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida”, o

conhecimento da relação corpo-alma por ela mesma. (Kierkegaard, 1979d, p. 195)

Paralelamente ao Indivíduo kierkegaardiano, em Ser e tempo, Heidegger tratará de considerar

o homem em sua singularidade, muito embora o “espírito” kierkegaardiano – conceito herdado do

mito judaico-cristão da Criação, onde aparece como “sopro divino” (le-ruach, em hebraico) –

passe a ser mais adequadamente pensado como Dasein – será própria a este a possibilidade de

compreender-se como ser-corpo e ser-alma em um horizonte de determinações ônticas.

Enquanto que as oposições ônticas (como, por exemplo, corpo e alma) se determinam segundo

categorias (predicações reguladas por “leis” da lógica), razão pela qual Schopenhauer ainda as

pensava apenas como representações, os modos de ser do homem se determinam segundo ele

mesmo, constitutivamente, sendo designados por Heidegger “existenciais”. Por isso Heidegger diz

que os entes são, ou seja, enquanto determináveis, têm uma essência, mas apenas o homem existe no

sentido de ser-para-si-mesmo como ente singular, uma vez que lhe é possível transcender e, na

transcendência, colocar-se em perspectiva, fora de si, ex-sistere.104 Desse modo é que Heidegger,

como Kierkegaard, pensou a “autoconsciência do existir” independentemente da racionalidade,

sendo então ambos qualificados, à sua revelia, como “existencialistas”. A singularidade do existir

é o que denominava Kierkegaard, ainda inadequadamente, “ser indivíduo”, característica

existencial distintiva do ser humano, ausente nos demais entes considerados apenas do ponto de

vista categorial que, ao mesmo tempo, generaliza e contra-põe.105 Ao contrário do que defendem

104 Ver “O retorno ao fundamento da metafísica”, introdução de 1949 ao texto da preleção “Que é metafísica?”: “A frase: ‘Somente o homem existe’ de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou uma representação do homem. A frase: ‘O homem existe’ significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A essência existencial do homem é a razão pela qual o homem representa o ente enquanto tal e pode ter consciência do que é representado.” (Heidegger, 2000d, p. 83). 105 Tematizando o indivíduo, Kierkegaard evita a redução das questões existenciais às categorias genéricas que regem todo pensamento como representação – nesse sentido, a qualificação de sua filosofia como “existencialista” lhe faz justiça. Interessante observar que Nietzsche insistirá na defesa do “indivíduo” – “a mais jovem criação”, segundo as palavras de Zaratustra em “De mil e um fitos” (Nietzsche, 2000a, p. 86). Muito embora o significado desta palavra em muito se confunda com o de “singular”, o que é compreensível, tal defesa alimentará o fogo de sua crítica à ética schopenhaueriana que, advogando a compaixão como superação do princípio de individuação, é reduzida pelo Nietzsche da maturidade à tese de que a espécie precede o indivíduo, quando não se trata tanto da “espécie” quanto da Vontade como tal. Apesar da imensa controvérsia em torno desta ruptura, preferimos entender que o jovem

Page 156: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

156

os filósofos que “não fazem outra coisa senão universalizar imaginariamente os indivíduos na

espécie” (Kierkegaard, 1979d, p. 244), o homem não é uma “generalidade” nem tampouco um

ente à parte do mundo em que já sempre se encontra, mas uma singularidade já sempre remetida

ao mundo segundo a responsabilidade de seu próprio ser, e cuja compreensão de si mesma como

generalidade e como especificidade é cada qual uma de suas possibilidades existenciárias próprias.

O existir do homem é possibilidade. Entre os animais, a espécie é mais importante que o indivíduo. Sua relação com o mundo não se efetua sob o aspecto da escolha, mas da submissão às regras da espécie que, de certa maneira, escolhe por eles. Para o ser humano é diferente. Entre os homens, prevalece o indivíduo: a espécie não decide por ele, o indivíduo deve decidir por sua conta, sem escapatória. O homem não tem portanto uma existência especulativa, mas concreta, e é no confronto com os “possíveis” que ele dá forma à sua singularidade. [...] [...] Se a existência é possibilidade, a existência individual é angústia. Se a individualidade é o modo de ser fundamental do homem diante da existência, sua dimensão principal é portanto a angústia. (Le Blanc, 2003, p. 50-51)

Inspirado nestas ideias, mais do que nas de Heidegger, Sartre viria a formular a célebre

sentença “o homem é condenado a ser livre”, bem como, e principalmente, “a existência precede

a essência”, no que leituras de Nietzsche também parecem influir bastante. Tal angústia em face

do possível da liberdade – ausente no animal também porque a este, não sendo indivíduo para si

mesmo, as alternativas particulares são dadas no exato momento em que a ação é exigida – nada

tem a ver com qualquer ansiedade face à faculdade do “livre arbítrio” – é ainda de se notar que

esta inquietação ansiosa pode, sim, ser reconhecida nos animais, mesmo que destituídos de

qualquer faculdade de arbítrio –, e isto por duas razões. Em primeiro lugar, porque a angústia é

engendrada por nada, não por alguma coisa, de modo que não se trata de uma afecção que incite

uma resposta patológica a uma circunstância dada, mas sim, de uma disposição. Sendo engendrada

Nietzsche tinha uma leitura mais adequada de seu “educador”: “Quando vemos porém como [...] a potência dionisíaca se manifestou, reconhecemos agora nas orgias dionisíacas dos gregos [...] o significado das festas de redenção universal e dos dias de transfiguração. Só com elas alcança a natureza o júbilo artístico, só com elas torna-se o rompimento do principium individuationis um fenômeno artístico. [...] No ditirambo dionisíaco o homem é incitado à máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas; algo jamais experimentado empenha-se em exteriorizar-se, a destruição do véu de Maia, o ser uno enquanto gênio da espécie, sim, da natureza.” (Nietzsche, 1996a, [§2] p. 34-35) Que o uso do vocabulário de Schopenhauer fale por si... Sobre isto, ver Szondi (2004, p. 67-69). Machado (1997, p. 88-91), sem fazer qualquer menção a Schopenhauer, assim explica esta compreensão dos ritos dionisíacos pelo “primeiro Nietzsche”: “Em vez de um processo de individuação, é uma experiência de reconciliação do homem com os outros homens e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade [...]. A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão,” – que aqui não significa tornar-se in-divíduo, mas, pelo contrário, não mais se representar como separado do mundo, individual – “da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade. [...] / [...] No júbilo místico, portanto, as fronteiras da individuação desaparecem. [...] / Do mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o culto dionisíaco produz uma desintegração do eu, uma abolição da subjetividade até o total esquecimento de si: um desprendimento de si próprio, a dissolução do eu no mundo”.

Page 157: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

157

por nada, em segundo lugar, não se encontra objeto para nenhum arbitrar, independendo de

causas, meios ou fins; o objeto é antes disposto em uma disposição, que é a angústia.

Todo arbítrio deve se dar segundo alternativas determinadas a serem tomadas como objetos

de uma escolha refletida, de uma deliberação sobre abstrações de fatos em vista de um futuro

previsível. Tais determinações são reais em algum sentido; trata-se de algo que é ou se toma como

sendo bom ou mau segundo algum critério – delibera-se sempre sobre alguma coisa e em vista, em

função de alguma outra. Não importa aqui a “objetividade” ou a validade de tal critério, mas seu

papel determinante da escolha, seu objeto e seu objetivo, ou finalidade, ainda que meramente

fantasiosos. Para tanto, é necessário que o sujeito da escolha se lance para além de si, para junto

das possibilidades que efetivamente se lhe dão como tais – ou seja, tais “possibilidades” devem já

ser previamente dadas como tais, e por isso toda “decisão” de fato tende a receber uma explicação

psicológica que vincula a ação a causas, mas aqui estamos limitados às considerações humeanas

vistas no capítulo anterior. Os problemas do conhecimento e do valor, portanto, devem ser

postos à parte. Não há angústia perante o determinado, o dado, o alguma coisa, seja sua

determinação subjetiva ou objetiva, ilusória ou efetiva; tem-se aí tão-somente alguma ansiedade ou

inquietação – um sentimento ou afecção que remetem a um desejar ou não-desejar. Eis a distinção –

com que concordará Heidegger (2007h, [§40, p. 186-187] p. 252-253) – entre angústia e temor, ou

medo, e outros sentimentos similares que, nas palavras de Kierkegaard (1962, p. 64), “sempre

reenviam para algo de preciso”, ou seja, determinado. Temo por algo, tenho medo ou, pelo

contrário, estou ansioso para que “x” aconteça ou não. A angústia encontra-se às antípodas disto;

apesar de “inquietante”, uma calmaria também lhe deverá ser peculiar, conforme veremos em

momento próprio. “O que alimenta a angústia é o fato de o objeto não ser determinado, não se

poder identificá-lo, ele nada ser. Para Kierkegaard, a angústia é um estado que manifesta a relação

do Indivíduo com o mundo, relação determinada pela liberdade”; “a angústia é a condição fundamental

do homem diante do mundo, diante do possível, fruto de sua liberdade” (Le Blanc, 2003, p. 81/83). Sendo o

que não é objeto o que se põe em face dela, mas o puro e simples poder..., angustia-se com e por

nada. Portanto, não há um que escolher, um que em relação ao qual exercer um arbítrio, e isto em

nada se confunde com o estado psicológico de indiferença, no qual há o que, muito embora não

nos atraia em particular. Por esta razão não há angústia quando há algo determinado em relação

ao qual atualmente se pode de fato exercer uma escolha, tanto menos quando as predeterminações

não deixam espaço para qualquer escolha, como em uma “realidade dada”, uma “natureza”.

Eis o que coloca o problema da angústia fora das categorias da liberdade e da necessidade

e, por conseguinte, a limitação de toda a Ética. Dito brevemente, nossa inquietação cotidiana para

tomarmos decisões, pressionados pelo relógio quando nos inclinamos a mais de uma alternativa,

Page 158: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

158

embora maior do que quando somos indiferentes ao que está em jogo, não é angústia. “A angústia

não faz sinal a uma liberdade abstrata que se identificaria ao livre-arbítrio e sim a uma liberdade

concreta e finita.” (Le Blanc, 2003, p. 81) Desse modo, a própria liberdade nada tem a ver com o

arbítrio como tal, abstrato, mas, antes, com sua possibilidade existencialmente concreta e imediata.

Na angústia, não há um conhecimento da liberdade como tal que possa alimentar o desejo de

servir-se dela através do arbítrio (Kierkegaard, 1962, p. 67); todo arbítrio faz supor um saber,

enquanto que a angústia se vincula ao não saber (e por esta razão, antes que se discuta

experiências afetivas, deve-se abordar nossa relação com o saber que ordinária e impropriamente

a determina, tarefas que devemos deixar a estudos posteriores). Todo real, enquanto factum,

atualidade, é necessário. Assim como a liberdade tem a ver com a possibilidade do arbítrio, não

podendo coincidir nem ser reduzida ao próprio arbítrio ou à faculdade de arbitrar, a possibilidade

da liberdade é como saber-se detentor do poder de arbitrar – ou mesmo estar sob sua exigência –

sem sequer saber o que está aí implicado ou mesmo o que significa. É como estar à deriva,

suspenso no nada, entregue a si mesmo, sem origem ou destino, diante da necessidade de se

decidir sobre um não-sei-quê, a completa indeterminância, o que não deixa de carregar consigo o

sentimento de impotência como o de um náufrago em mar aberto na plena escuridão da noite

sem lua nem estrelas. Tal impotência inerente ao poder de que aqui se trata é ditada pelo entrave

do poder quando da ausência de algo sobre que se exercer. Este “não-sei-quê” remete à originária

ignorância, e tal ignorância é, segundo Kierkegaard (1962, p. 63), a inocência do espírito que

apenas sonha enquanto não determina o ser do homem.

Neste estado, há calma e há repouso; mas há, ao mesmo tempo, outra coisa que, contudo, não é perturbação nem luta, pois nada existe contra que lutar. O que há então? Nada. Mas que efeito produz este nada? Este nada engendra a angústia. Eis o mistério profundo da inocência: ao mesmo tempo é angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade que é um nada, e a inocência vê continuamente diante de si este nada.

Inocente, o homem habita a ignorância; ele mesmo ainda não é, e o que o distingue do

animal não é nada mais do que estar na presença de seu próprio poder lançado do nada. O angustia

o poder de ser. Nas palavras de Heidegger (2007h, [§40, p. 187] p. 254), a angústia remete o ser-aí

“para o seu próprio poder-ser-no-mundo”, aquilo pelo que ela se angustia singularizando o ser-aí

“que, na compreensão, se projeta essencialmente para possibilidades”, não sendo tal

“compreensão” em nada similar a um saber.

Em vista de salientar o caráter originário dessa ignorante inocência e da angústia que

encerra, Kierkegaard reflete sobre o tema do Pecado Original, e então diz (1962, p. 67-68):

Page 159: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

159

Quando, no Gênesis, Deus diz a Adão: “mas os frutos da árvore do bem e do mal não comerás”, é evidente que, no fundo, Adão não compreendia esta frase; pois como poderia compreender a diferença entre o bem e o mal se a distinção só se estabeleceu depois de saboreado o fruto? [...] A proibição inquieta Adão, ao despertar nele a possibilidade da liberdade. O que se oferecia à inocência como nada da angústia penetrou-o e permanece ainda aqui um nada: a angustiante possibilidade de poder. Quanto ao que pode, não tem ideia alguma; de outro modo, estaríamos – o que acontece habitualmente – a pressupor já a consequência, isto é, a diferença entre o bem e o mal. Em Adão existe apenas a possibilidade de poder, como uma forma superior da ignorância, como uma expressão superior da angústia, porquanto, a este nível mais elevado, a angústia é e não é, Adão ama-a e foge-lhe.

Fica claro o sentido do caráter peculiar da inocência adâmica e, desse modo, de sua

angústia. Subitamente a proibição colocava Adão diante de sua liberdade,

que é precisamente essa possibilidade de poder. A angústia foi responsável por sua queda por estabelecer uma relação entre a inocência de Adão e a coisa proibida e o castigo. “A angústia é a vertigem da liberdade” [cf. Kierkegaard, 1962, p. 93; v. p. 69] e dessa vertigem vem a queda. A angústia é definida a partir de então como a experiência vivida da possibilidade. (Le Blanc, 2003, p. 81)

À medida que vivemos, experimentamos a realidade e encontramo-nos em meio aos entes,

a angústia não se mostra qualitativamente a mesma. Para Adão, que nada conhecia, o mundo e ele

mesmo eram como um nada. A proibição não pode inspirar-lhe temor da transgressão na medida

em que não sabe o que é transgredir – o que é o mal –, não há certo ou errado, e o próprio ato da

transgressão é algo destituído de sentido. “Não há aqui conhecimento do bem e do mal, etc., toda

a realidade do saber projeta-se na angústia como o imenso nada da ignorância” (Kierkegaard,

1962, p. 67).

Toda a inocência, não obstante a sua paz e segurança ilusórias, é angústia, e jamais a inocência sente maior temor do que quando a sua angústia carece de objeto; a pior descrição duma coisa horrível, jamais aterrorizará tanto a inocência como a reflexão o pode fazer com uma palavra hábil, lançada como que distraidamente, mas contudo calculada sobre qualquer vago perigo; sim, o maior pavor que se possa dar à inocência, é insinuar-lhe, sem falar nisso, que ela sabe muito bem de que se trata. E é bem certo que ela o ignora, mas nunca a reflexão tem armadilhas mais sutis e mais seguras do que aquelas que forma com nada, e nunca ela é mais real do que quando não é senão... nada. (Kierkegaard, 1979d, p. 205) Imaginar que foi a própria proibição que nos tentou ou que o sedutor nos iludiu, é uma interpretação cuja duplicidade apenas satisfaz a observação superficial; com efeito, não só falseia a Ética e produz uma determinação meramente quantitativa como, graças à Psicologia, dirige cumprimentos ao homem à custa da Ética, delicadeza que todos quantos tenham suficiente

Page 160: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

160

educação moral saberão declinar como uma nova sedução ainda mais matreira. (Kierkegaard, 1962, p. 66)

Afinal, considerar que a ação é determinada por algo de exterior falseia a Ética na medida

em que o caráter ético só se pode fundar no indivíduo. “O ético é aquele que quer livremente o

que quer”, de modo que “não se decide entre diversas possibilidades, não decide cumprir uma

série de deveres: essencialmente opta por si mesmo”, pois ser ético significa “compreender o valor

eterno de sua personalidade”, não consistindo na realização de tarefas que fariam do homem

“somente um escravo, o escravo do dever” (Le Blanc, 2003, p.63-64). Por sua vez, os

“cumprimentos ao homem” consistiriam na suposição de que a escolha do bem com

conhecimento é mais espontânea e autêntica do que a escolha do mal por ignorância, um

sedimentado preconceito dos moralistas que estende suas raízes até Sócrates. É deste paradoxo

que se tratará em Temor e tremor (Kierkegaard, 1979c). No entanto, diz Kierkegaard (1962, p. 68-

69) mais adiante, uma vez que nada disso implica que a proibição não surta algum efeito:

[...] se da proibição se fez nascer o desejo, será preciso que a expressão do castigo faça nascer uma ideia de terror. Mas eis onde reside o erro. O pavor só pode derivar aqui da angústia, pois aquilo que foi dito não o compreendeu Adão e a situação põe-nos de novo perante a ambiguidade da angústia. A possibilidade infinita de poder, despertada pela proibição, cresceu devido ao fato desta possibilidade evocar uma outra como sua consequência. Assim, a inocência é empurrada até a última extremidade. A angústia em que se afunda põe-na em relação com a coisa proibida e com o castigo. Não é culpada e, no entanto, a angústia existe como se já estivesse [a inocência] perdida.

Afinal, Adão não sabe de modo algum o que quer dizer “morrer” em consequência da

transgressão, porém, como crianças ou mesmo animais, teria sido, segundo Kierkegaard, capaz de

sentir o horror das palavras que lhe foram dirigidas. Horroroso é o paradoxo: perante a

possibilidade infinita, a liberdade só se efetiva no modo finito na medida em que é finitizante e

individualizante. Sua condição é, ao mesmo tempo, paralisante e motivante; paralisante e motivante

é a exigência. Parafraseando Sartre, ele é obrigado a decidir. Contudo, não será culpado até que

decida, tampouco perderá a inocência até que conheça. Na medida em que sabe, a culpabilidade

penetra no homem e, na medida em que decide, como diz Kierkegaard, o pecado penetra no

mundo. “A liberdade (como possível) anuncia-se em plena angústia; neste momento, qualquer

admoestação poderá fazer soçobrar o indivíduo na angústia” (Kierkegaard, 1962, p. 113).

Do mesmo modo que a possibilidade de poder o atrai, o mistério que envolve esse poder é

algo de opressivo ao mesmo tempo em que pode fascinar. Tal “opressão” é o sentido próprio da

angústia. Em latim, o termo evoca a ideia de estreitamento (angustus, “estreito”, “apertado”),

Page 161: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

161

donde temos ainda a imagem do abismo (angustiæ, “desfiladeiro”, estreita passagem entre

montanhas) a ser evocada por Kierkegaard, bem como por Schopenhauer e Heidegger – o

abismo do nada.

Para que Adão conhecesse o sentido do transgredir, seria necessário saber distinguir o bem

e o mal, mas, para tanto, seria necessário transgredir para conhecer. Ele é informado de que pode

transgredir ou não; porém, não sabe o que é a transgressão, nem que pode vir a saber

transgredindo. Imaginemos ao menos duas árvores dentre as quais uma não pode ser tocada,

porém não se sabe distinguir entre elas (tal distinção exige um espírito classificatório de que se

estaria privado no estado de inocência, bem como um critério – neste caso, o conhecimento de

bem e mal). Caso o soubesse, tal saber determinaria a decisão que, nesse caso, não seria livre.

Adão é informado de que as árvores não são o mesmo, e que não deve agir indiferentemente com

relação a uma e outra – de fato, isto pode se dar com qualquer homem em sua vida diária desde

que seja ignorante com relação ao que se oferta à sua liberdade, o que é o bom e o que é o mau.

Se for o caso de estarmos nós em uma infeliz situação como esta, a princípio, podemos decidir

não decidir e agir “indiferentemente”. Contudo, trata-se já de uma decisão ignorar

voluntariamente a diferença que nos foi avisada, e aí já não há mais inocência, pelo contrário.

A partir do salto, a angústia deveria, parece, ser abolida, uma vez que a definimos como a aparição da liberdade a si própria na esfera do possível. Posto que o salto qualitativo é bem real, o possível e a angústia deveriam portanto desaparecer. Mas não é assim. Com efeito, por um lado, a realidade não se reduz a um momento único e, por outro, a realidade que foi instituída é uma realidade abusiva. Logo, a angústia reaparece em relação ao real já instituído e ao porvir. No entanto, o objeto da angústia é agora uma coisa determinada, o seu nada tornou-se realmente qualquer coisa, por isso que a diferença entre o Bem e o Mal está posta in concreto, o que priva a angústia da sua ambiguidade dialética. [...] Com o pecado, o salto qualitativo instaura no indivíduo a diferença do Bem e do Mal. (Kierkegaard, 1962, p. 167-168) A história da vida individual progride por movimentos de estado a estado e cada estado é estabelecido por um salto. Se o não detêm, o pecado continuará a entrar no mundo tal como aí entrou um dia. No entanto, cada uma das suas repetições não é uma simples consequência, mas um salto novo. [...] Em cada estado há uma esfera de possibilidades e, na mesma medida, a angústia. Assim é desde que foi instituído o pecado, pois só o Bem [i.e. a liberdade]106 pode unir o estado e a passagem. (Kierkegaard, 1962, p. 170)

Em que consiste este “salto”? Nas palavras de Le Blanc (2003, p. 76), o salto é a “categoria

da decisão”, cujo motor é, segundo ele, a vontade. Uma vez decidida, a vontade sairia da incerteza,

106 V. p. 168, nota: “o Bem não suporta definições; é a liberdade. Só para a liberdade ou na liberdade existirá a diferença entre o Bem e o Mal e esta diferença nunca sobrevém in abstracto mas tão-só in concreto.”

Page 162: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

162

da indeterminação, superando assim a angústia. Tal decisão, que não é movida, como em uma

deliberação, por um cálculo de probabilidades quando se é inocente, ignorante, tem seu lugar

próprio em uma instantaneidade. Decorrendo de nada, não é um efeito, mas um salto. No

entanto, conforme diz Heidegger (2007h, [§68a, p. 338] p. 424), “o fenômeno do instante não

pode ser esclarecido pelo agora. [...] o agora ‘em que’ algo nasce, perece ou simplesmente se dá”,

de modo que nada pode aí ocorrer.107 Assim, a ausência de um encadeamento atual que ligue o

antes e o depois de uma decisão faz desse movimento não algo de contínuo, mas de abrupto, um

salto, pois o instante (øjeblik, o “piscar de olhos”, como o alemão Augenblick) é um acontecimento.

O instante é ambíguo por natureza: por um lado, está no tempo (humano) enquanto divisão do passado e do futuro e início da história; por outro, é aquele ponto a partir do qual algo se fixa para sempre. Nesse sentido, o instante está fora do tempo, ele é da eternidade. Será portanto o ponto de encontro privilegiado entre o tempo e a eternidade, entre o homem e Deus: assinalando uma ruptura temporal (entre o passado e o futuro), só poderá exprimir-se concretamente por um salto, onde uma situação A torna-se situação B, heterogênea a A e sem possibilidade de retorno. (Le Blanc, 2003, p. 75-76)108

No salto, tem início a queda; seu instante é cada vez presente. Com a queda, advém a perda

da inocência e ganha-se a consciência da culpa. Acontece que a informação de que para toda

decisão há consequências vem pressionar ainda mais, como que nos exigindo uma saída da

indiferença e colocando a exigência de nos servirmos da liberdade na mesma medida em que esta

se encontra crescentemente obstaculizada pela culpa. Eis por que animais não se angustiam: sua

ignorância, por eles mesmos, em sua natureza, é conservada. Eis também por que a angústia,

segundo Kierkegaard (1962, p. 64-65), não age nas crianças, em sua inconsequência e curiosa

criatividade, de modo tão opressivo ou como consciência culpada:

A angústia instituída na inocência não é, portanto, primeiramente uma culpa e em seguida um fardo que nos pese, nem um sofrimento contraposto à beatitude da inocência. Observai a infância: encontrareis aí esta angústia mais precisamente desenhada como uma busca de aventura, do monstruoso, do mistério. Que haja crianças em que não existe tal angústia, nada prova, pois também não existe no animal; aliás, quanto menos espírito haja, menos angústia haverá. A angústia é tão essencial à criança que ela não quer dispensá-la; mesmo quando inquietada pela angústia, a criança encanta-se com esta doce inquietude.

107 Para Heidegger, contudo, de acordo com o que acrescenta em nota, a análise kierkegaardiana tem seu mérito no que diz respeito ao fenômeno existenciário, intratemporal, do instante, sendo por sua vez insuficiente no que concerne ao fenômeno existencial de uma temporalidade originária. 108 Comparar com o que diz Heidegger (2007h, [§68b, p. 344] p. 430): “A angústia só conduz para o humor de uma decisão possível. Sua atualidade mantém o instante, em que ela mesma e somente ela é possível, num salto.”.

Page 163: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

163

Mais adiante, acrescenta Kierkegaard (1962, p. 104-105):

Na criança, há uma ignorância, mas ignorância de algo que não existe. A inocência é um saber que significa ignorância. A diferença que a separará da ignorância moral aparece facilmente, pois que se orienta para um saber. Com a inocência começa um saber cuja primeira determinação é ignorar. Este, o conceito de pudor. [...] Entretanto, o pudor, embora consubstancie um saber acerca desta diferença [dos sexos], não é uma relação com ela; por outras palavras: o apetite sexual propriamente dito não está presente. [...] Por isso, é tão monstruosamente equívoca a angústia do pudor. Sem que se verifique o menor desejo sexual, há, no entanto, um susto, e de quê? De nada. Contudo, pode morrer-se de vergonha e um pudor ferido é a mais profunda das dores, pois que surge, entre todas, como a mais inexplicável. Assim, a angústia do pudor pode despertar por si só. [...] Com o pudor, fica instituída a diferença dos sexos, embora sem a orientação de um para o outro, o que só acontece no movimento sexual. Contudo, posto que este movimento não é instinto ou apenas instinto, há ipso facto um telos: a propagação, ao passo que o estado de repouso corresponde ao amor, ao erotismo puro. Até este momento, o espírito ainda não foi instaurado.

Portanto, a obstaculização da liberdade pela culpa é também um acontecimento,

acontecimento este que se dá mediante a plena instauração da síntese segundo a qual o homem é

em relação com os contrários e sua angústia se converte em angústia por algo. A angústia do

pudor é angústia pela ignorância que encobre seu objeto, e assim se orienta para um saber. De

ignorante, o homem converte-se em um ser que se sabe ignorante e constrangido a se decidir na

mesma medida e no mesmo instante em que sua culpabilidade refreia e adia a decisão. Se, de um

lado, temos aí que o movimento sexual não pode ser adequadamente explicado pelo impulso

biológico (como não o será também por Schopenhauer)109, mas por uma busca de enfrentamento

desvelador e, mais do que isso, desafiador do objeto do pudor, por sua vez, compreende-se o

caráter irretornável da relação estabelecida com a diferença sabida, de modo que, mesmo

“refreado o instinto”, mesmo recusado o apetite desafiador (como lemos na próxima citação), a

relação é presente e, por isso, culpada. Afinal, o recalque da culpa, a recusa de sua existência ou a

busca por sua remissão no ascetismo, em suas respectivas negações – ver acima, capítulo 2 –, não

apagam o fato de já sermos homens ou mulheres, termos da relação, sujeitos de uma vontade

enclausurada na diferença individualizante.110 A angústia de que se foge no desafio ou no não-

desafio remete irremediavelmente ao que nós mesmos somos, de maneira que este algo por que e

109 Dentre os modernos, antes de Kierkegaard e Schopenhauer, Rousseau, no Emílio, já recusara a existência de um instinto sexual natural. V. Lancelin; Lemonnier (2009, p. 59). 110 Schopenhauer, conforme já visto acima, também reconhecia na negação da vontade a indistinção entre os gêneros, tratando então do ascetismo como seu fenômeno. Por sua vez, o amor aqui contraposto, como repouso, ao movimento sexual, deveria superar esta diferenciação... Trata-se já da possibilidade de uma angústia do amor...

Page 164: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

164

com que se angustia é nosso próprio ser, ou melhor, a própria possibilidade de ser deste ente que,

agora, está entregue a si mesmo.

[...] o oposto da liberdade é a culpa [não a necessidade] e a sua suprema grandeza está em nunca ter de ver senão consigo mesma; no seu campo de possíveis, projeta-se sempre a culpa [apenas esta se receia, pois somente a culpa pode privar da liberdade], instaurada assim pela própria liberdade, o que aliás também acontece quando realmente sobrevém a culpa. Não atender a este fato, será, devido a uma ligeireza de espírito, confundir a liberdade com algo de muito diferente, a força. [...] Só por si mesma sabe a liberdade se é liberdade ou se sobreveio a culpa. [...] A relação entre a liberdade e a culpa coincide com a angústia, posto que a liberdade e a culpa permanecem ainda no domínio da possibilidade. No momento, porém, em que a liberdade se fixa a si própria e quer conservar a culpa tão afastada que desta não subsista em si nem a mais pequena parcela, não pode, todavia, impedir-se de fixar a culpa e é esta fixação que vem constituir a ambiguidade da angústia, tal como perante um possível a renúncia implica sempre uma espécie de apetência. (Kierkegaard, 1962, p. 164-165)

Kierkegaard, aqui, avança consideravelmente. Vimos que já em Rousseau aparece uma

explícita distinção categorial entre o âmbito da liberdade e o da força, que, assim como a

necessidade, pertence à natureza, quanro não ao arbítrio. Uma vez que a liberdade, como pura

possibilidade, só deve estar relacionada consigo mesma, seu único impedimento não pode provir

senão da culpabilidade implicada em toda decisão. A culpa pertence ao âmbito do possível pois,

assumindo a responsabilidade por algo, sempre diz para si mesma “poderia ter sido de outro

modo” – ressente-se portanto possibilidades passadas, bem como teme-se possibilidades futuras.

Contudo, não se trata desde sempre de uma “má consciência”, mas, antes, de uma ameaça em que

se funda o temor do castigo ou simples desventura, consequências pelas quais respondemos

solitariamente. O castigo só é temível, entretanto, à luz de um saber sobre a culpabilidade, e tal

culpabilidade, antes de remeter à transgressão de alguma convenção moral ou lei divina, dirige o

espírito para a exigência de decidir-se por si mesmo em meio à absoluta indeterminação do que

fazer. Neste sentido, todo código moral vem antes como ponto de apoio cujo sentido é, de algum

modo, condicionar e predeterminar nossas escolhas, assegurando-as pretensamente por meio de

advertências ou recomendações. A posteriori, princípios morais visam “explicar” retroativamente o

sentido de uma falta, fornecendo-lhe assim um “fundamento” ou explicação de que, em verdade,

sempre carece.

Não é, portanto, sob este ponto de vista, a moral a “inventar” a culpa como afirma

Nietzsche muito embora esteja certo ao reconhecer nela um amparo buscado segundo uma

vontade de verdade própria ao espírito fraco. Pelo contrário, a moral, em seu sentido positivo, vem

em seu socorro quando nossa decadência existencial, tendo nos atirado, em nossa fuga da angústia,

Page 165: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

165

para debaixo das asas de um “superego”, nos bloqueia o caminho da decisão, única via

possibilitadora da singularização do ente que somos. A essência da moral, diferente de sua gênese,

se enraíza na culpa, que não deve ser, todavia, entendida como decorrência de um ato “ilegal”. O

termo “superego” é adequado, pois diz, precisamente, da projeção de um “eu” impessoal que não

é ninguém, mas, uma vez estabelecido acima do que nós somos, atribuímos-lhe pretensamente a

prerrogativa de ser, legislar, julgar e mesmo decidir em nosso lugar.111 Salva-se, entretanto, o

ponto crucial da genealogia nietzscheana da moral, qual seja, a constatação do fato de que a

moralidade culpabilizadora vem tolher-nos a liberdade e, ao mesmo tempo, oferecer-se como

remédio para toda culpa desde sua origem silenciosa, isto sempre a partir de uma vontade niilista

que se afirma e se impõe como força no empobrecimento, difamação e negação da vida da

singularidade que somos.112 A moral, assim pensada, será tão “necessária” quanto for o estágio

em que se encontra nosso desenraizamento da liberdade e fuga da angústia de decidir, o que, por

sua vez, torna convincente e digno de meditação o caráter “historiográfico” da genealogia de

Nietzsche. Tal constatação nos faz recordar ainda o importante trecho da carta de Heidegger a

Jean Beaufret, Sobre o humanismo, publicada em 1947:

A exigência de uma ética tanto mais se impõe quanto mais cresce desmedidamente a desorientação do homem, tanto a oculta como a manifesta. Uma vez que só se pode confiar numa estabilidade do homem da técnica, entregue à massificação, planejando e organizando em conjunto seus planos e suas atividades, por isso se devem dedicar todos os cuidados e esforços à obrigatoriedade ética. (Heidegger, 1967, p. 83)

Duas décadas antes, o caráter instrumental dessa exigência ética já era constatado em Ser e

tempo:

111 V. Heidegger: “O impessoal encontra-se em toda parte, mas no modo de sempre ter escapulido quando a presença exige uma decisão. Porque prescreve todo julgamento e decisão, o impessoal retira a responsabilidade de cada presença. O impessoal pode, por assim dizer, permitir que se apoie impessoalmente nele. Pode assumir tudo com a maior facilidade e responder por tudo, já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma coisa. O impessoal sempre ‘foi’ quem... e, no entanto, pode-se dizer que não foi ‘ninguém’. Na cotidianidade da presença, a maioria das coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém.” (2007h, [§27, p. 127] p. 185) Esse impessoal, como se vê, não corresponde apenas a um “deus”. “No momento em que a presença se perde no impessoal, já se decidiu sobre o poder-ser mais próximo e fático da presença, ou seja, sobre as tarefas, regras, parâmetros, a premência e a envergadura do ser-no-mundo da ocupação e preocupação. O impessoal já sempre impediu para a presença a apreensão dessas possibilidades ontológicas. [Das Ergreifen dieser Seinsmöglichkeiten hat das Man dem Dasein immer schon abgenommen.] O impessoal encobre até mesmo o ter-se dispensado do encargo de escolher explicitamente tais possibilidades. Fica indeterminado quem ‘propriamente’ escolhe. Essa escolha feita por ninguém, através da qual a presença se enreda na impropriedade, só pode refazer-se quando a própria presença passa da perdição do impessoal para si mesma. Essa passagem, no entanto, deve possuir o modo de ser por cuja negligência a presença se perde na impropriedade” (2007h, [§54, p. 268] p. 346). V. tb. [§55, p. 270] p. 349: “Por isso a presença ‘sabe’ a quantas ela mesma anda na medida em que se projetou em possibilidades de si mesma ou, afundando-se no impessoal, recebeu da interpretação pública do impessoal as suas possibilidades”. 112 Não seria fazer justiça à sagacidade de Nietzsche omitir que, na terceira dissertação de sua Genealogia da moral, §13, é reconhecido no ideal ascético o caráter afirmador da vida como vontade de poder. Cf. Nietzsche, 1999, p. 109-111.

Page 166: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

166

É a partir da expectativa de uma indicação útil das possibilidades de “ação” seguras, disponíveis e calculáveis que se sente a falta de um conteúdo “positivo” no que se apela. Essa expectativa funda-se no horizonte da ocupação que compreende e força a existência da presença à ideia de um todo negociável segundo regras. [...] Com as máximas esperadas e precisamente calculadas [de uma ética material dos valores], a consciência negaria à existência nada menos do que a possibilidade de agir. (Heidegger, 2007h, [§59, p. 294] p. 375)

Antes mesmo de que possamos estar prontos para nos dedicarmos à questão acerca do

“homem da técnica”, vê-se já que não apenas a vontade de saber provém da angústia como

também pesa a responsabilidade pela liberdade que se determina segundo esse saber controlador

e assegurador pela via do cálculo. Deve-se observar, evitando-se desse modo um fácil desvio do

significado destas palavras de Heidegger, que a “negação da possibilidade de agir à existência”

não quer dizer que o homem deixaria de “agir”, que a “ação” seria impossível ou, em sentido

moral mais “elevado”, kantiano, que ação e prática estariam desconexas a ponto de ser negada ao

homem toda liberdade e toda responsabilidade em sentido vulgar. Pelo contrário, o homem

poderia até mesmo “agir” como nunca, ser moral como nunca! Para Heidegger, contudo – e isto

é crucial –, à existência seria negada a possibilidade de agir, e isto em prol de um dever. O homem

que foge da angústia procurando abrigo no saber determinado (prático ou teórico) é

paradoxalmente aquele que se entrega e sucumbe à angústia da possibilidade de saber, sendo-lhe

impossível aquietar-se em se mantendo no estado kierkegaardiano de ignorante inocência. Desse

modo, a inquietude é mais própria à dinâmica frenética do asseguramento do que à suspensão no

nada. Como vimos, segundo Kierkegaard, a essa inocência há de suceder uma culpa da qual se

foge e por cujo castigo se teme.

5.2. Heidegger e a tese da dívida originária

Sem prejuízo da aprofundada elucidação da culpa feita por Kierkegaard, pode-se considerar

que o passo decisivo será empreendido por Heidegger em Ser e tempo, mesmo porque, para o

primeiro, essa culpa é ainda e em grande medida “provocada” por outro, levando-nos a

questionar o que de pertinente a nós mesmos se encontra aberto à culpabilidade e, em segundo

lugar, se é mesmo decisivo para isto uma relação efetiva com Deus. Nesse sentido, a relação

originária entre angústia e liberdade, caso haja, não parece discutida a contento.

O conceito de culpa moral acha-se também tão pouco esclarecido, ontologicamente, que puderam impor-se e prevalecer interpretações desse fenômeno cujo conceito inclui ou até se deriva das ideias de punição e do ter

Page 167: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

167

dívidas junto a... Com isso, a dívida [Schuld] retorna forçosamente ao âmbito das ocupações no sentido de uma prestação de contas. (Heidegger, 2007h, [§58, p. 282-283] p. 362; grifo nosso)

Esse retorno ao âmbito das ocupações, como reducionismo encobridor do fenômeno,

remete àquela mesma “organização de atividades” que, pelo cálculo da razão, rege e assegura o

“homem da técnica”. “A cotidianidade toma a presença como algo à mão de que se ocupa, ou

seja, que pode ser gerenciado e calculado. A ‘vida’ é um ‘negócio’, independentemente se ela

cobre ou não os seus custos.” Por isso mesmo, a “experiência vem ao encontro da consciência

como um juiz e admoestador com o qual a presença negocia os seus cálculos”. (Heidegger,

2007h, [§59, p. 289/293] p. 370/374) Ou seja, é com o impessoal que a “consciência” estabelece

as regras do utilitário “negócio” moral. Similarmente, a genealogia nietzscheana da má

consciência apresenta limitações ontológicas, conforme já apontado:

A interpretação cotidiana mantém-se na dimensão do cálculo e compreensão de “culpa” e “não culpa” das ocupações. É nesse horizonte que se “vivencia” a voz da consciência. Com a caracterização da originariedade das ideias de uma “má” e “boa” consciência já se decidiu também acerca da distinção entre uma consciência que censura retroativamente e adverte previamente. Na verdade, a ideia da consciência que adverte parece ser a que mais se aproxima do fenômeno do fazer apelo [Aufruf]... Com esta, ela tem em comum o caráter de referência prévia. No entanto, essa concordância não passa de aparência. A experiência de uma consciência que adverte só vê a voz orientada para o ato da vontade, frente ao qual deve resguardar-se. Enquanto interdição do que se quer, a advertência só é possível porque o apelo [Ruf] “que adverte” almeja o poder-ser da presença, ou seja, a compreensão do ser e estar em dívida aonde “o que se quer” pode romper-se. A consciência que adverte tem a função de regulamentar, momentaneamente, o ficar livre de culpabilizações. A experiência de uma consciência “que adverte” apenas revê a tendência de apelo da consciência, quando ela permanece nos limites da compreensibilidade do impessoal. (Heidegger, 2007h, [§59, p. 292] p. 373)

Como mostra Heidegger (2007h, [§59, p. 290-292] p. 371-373), a má consciência que se

afirma como faltosa não esclarece nem testemunha qualquer vivência da consciência anterior à

ação realizada ou omitida, sendo por isso mesmo inadequada à consideração do fenômeno da

consciência bem como da própria falta em seu sentido mais originário. “Somente partindo-se

imediatamente da suposição de que a presença é uma sequência de nexos de vivências é que se

pode considerar a voz [da consciência] como algo que vem depois” como se se tratasse de uma

coisa simplesmente dada em meio a outras no mundo, de um comportamento psicológico

suscitado por um fato ou pensamento, “como alguma coisa posterior e, assim, necessariamente o

que remonta para trás”. Isso mesmo já nos indica o caráter não-originário da má consciência,

Page 168: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

168

bem como a insuficiência de sua consideração do ponto de vista de uma “genealogia”. Assim, o

que mostra a má consciência é que sua voz “reclama o ser e estar em dívida [Schuldigsein] que,

lançado, é ‘anterior’ a toda e qualquer culpabilização”, devendo “ser assumido na própria

existência de tal modo que o ser-culpado propriamente existenciário”, ou seja, na cotidianidade,

“‘segue’ o apelo e não o contrário”. Não será por outra razão, segundo Heidegger, que a má

consciência, em sua censura, retroage “numa referência antecipadora ao estar-lançado”, como

que em busca da relação entre a culpa e o próprio estar-lançado, tal como encontramos no mito

judaico-cristão da Queda. Uma vez que a liberdade é inadequadamente entendida sob a forma

negativa da ausência de impedimentos, mediante a abstração reflexiva e retroativa inerente à

suposição de que “poderia ter sido de outro modo”, ao mesmo tempo em que se recusa o fato de

ser o que se é, pois que aparece sempre contraposto a um dever-ser, por outro lado, compreende-

se a consciência como dotada de uma “voz” que nos chama de volta ao modo próprio de ser.

Porém, ao invés de este “modo próprio” ser propriamente compreendido como si-mesmo (o

próprio projeto lançado a partir de seu próprio nada), se o compreende como adequação a

alguma espécie de dever. Ou seja, no mesmo instante em que o fenômeno da consciência se

mostra, se oculta, e isto se deve, em última instância, à interpretação cotidiana da liberdade que

vimos criticando até aqui pela qual a consciência mesma é interpretada como faculdade moral

valorativa e calculante que assume “responsabilidades”, não em seu próprio nome, mas em nome

de uma “retidão moral”. Por tudo isso, como já observara Schopenhauer (2001, [§17, p. 220-221]

p. 151-153), deve-se reconhecer a “extensão demasiada” conferida ao conceito de dever, antes de

tudo indicativo de obrigações contraídas bilateralmente, o que por sua vez vem denunciar o

modo inadequado de ordinariamente se interpretar os fenômenos da responsabilidade e da

própria “culpa da existência”. Curiosamente, mesmo a tese schopenhaueriana acerca da “culpa

pela própria existência” é ordinariamente interpretada segundo a regra que ele repeliu...

Também a boa consciência termina por ser compreendida como privação de culpa, sendo

insuficiente na medida em que corresponde a uma experiência negativa, o “não aparecimento do

apelo”, segundo diz Heidegger no mesmo lugar. Portanto, a ausência de falta, afirmada pela boa

consciência, consistirá em “um asseguramento de que um ato atribuído à presença não foi por ela

cometido”, cujo significado traz consigo a “repressão tranquilizadora do querer-ter-consciência,

ou seja, do compreender do ser e estar, constante e propriamente, em dívida”. Tal repressão faz

com que a boa consciência sequer possa ser tida como fenômeno da consciência; pelo contrário,

trata-se de seu esquecimento. É antes pela falta que aparece a voz da consciência, permitindo o

retorno ao ser-próprio. Afinal, é próprio da consciência, segundo Heidegger, o apelo, o qual

remete à irrecusável dívida da existência, qual seja, a de já ser-lançado em função de si mesmo.

Page 169: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

169

Ao contrário, o “estado de consciência limpa” seria antes um ato de “má fé” – para usarmos a

linguagem de Sartre – que obscurece ainda mais o fato de já sempre sermos o que somos por

uma escolha de si em face de possibilidades, bem como de que o ser e estar em dívida originário

não se pauta em noções de certo e errado, bem e mal, que não lhe podem ser senão posteriores,

derivadas. É por esta razão que ações em conformidade ao dever, ou mesmo por dever, são

sempre insuficientes no que diz respeito ao “estar absolutamente livre de dívidas” e, sobretudo,

com relação ao assumir-se como projeto lançado segundo o próprio “querer”. A consciência,

portanto, sequer é experienciada em sua propriedade uma vez que o homem, nesse caso, não se

reconhece chamado para um ser-si-mesmo mais próprio na medida em que crê já ser na

propriedade uma vez agindo “apropriadamente”, isto é, “retamente”, adequado à lei – lembremos

que toda adequação é, por definição, passiva, ou ao menos supõe uma externalidade orientadora.

Que é, então, esse apelo, se não se trata de um juízo “interior” e “pessoal” baseado em

“normas práticas” acerca de fatos dados e possibilidades de fato sobre que se lançam censuras e

advertências? Em que, então, consiste essa dívida originária, se não se trata de uma dívida

contraída, uma falta cometida, um pecado original e muito menos uma omissão do agir de fato?

Que pode acrescentar Heidegger à interpretação kierkegaardiana sobre a culpabilidade e

pecabilidade de toda existência? É no §58 de Ser e tempo que encontramos o ponto de partida para

o esclarecimento destas questões.

A compreensão do apelo depende do “sentido existencial de ser e estar em dívida, em lugar

de supor o conceito derivado de culpa, no sentido de uma dívida ‘nascida’ de um ato ou omissão”

(Heidegger, 2007h, [§58, p. 287] p. 367; grifos nossos). Trata-se de um apelo para que se assuma

o próprio poder-ser “enquanto ser-no-mundo das ocupações e ser-com os outros”, isto é,

enquanto ser-no-mundo como cura, modo de ser que constitui, em sua originariedade, a “condição

existencial de possibilidade do poder-ser fático e existenciário” ([p. 280] p. 359). Esta condição existencial

remete-nos a um nada, mesmo porque, essencialmente, “a cura está totalmente impregnada de nada”

([p. 285] p. 365) e se constitui pelo “ser e estar em dívida” ([p. 286] p. 367). Uma vez que,

portanto, é a esse nada (que não é uma “falta” ou ausência) e não a algo determinado (mesmo

que se trate negativamente de uma falta ou ausência) que deve mais propriamente remeter o apelo

da consciência para que se assuma o próprio nada existencial, ao contrário de advertir,

recomendar ou censurar,

o apelo não “diz” nada que se pudesse discutir. Não oferece nenhum conhecimento a respeito de dados. O apelo coloca a presença diante de seu poder-ser e isso enquanto apelo proveniente da estranheza. É indeterminado quem apela – mas o lugar de onde ele apela não é indiferente para o apelo. No

Page 170: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

170

apelo, esse lugar de onde – a estranheza da singularidade lançada – é convocado, ou seja, abre-se conjuntamente. ([p. 280] p. 360) Na estranheza, a presença se encontra originariamente reunida consigo mesma. A estranheza coloca esse ente diante de seu nada inconfundível, o qual pertence à possibilidade de seu poder-ser mais próprio. Na medida em que, para a presença enquanto cura, o que está em jogo é o seu ser, a partir da estranheza, ela faz apelo a si mesma, enquanto faticamente decadente no impessoal, para assumir o seu poder-ser. ([p. 286-287] p. 367)

A presença (Dasein), no apelo, é como que chamada “a se compreender como fundamento

do nada a ser assumido na existência” e, assim, “recuperar-se para si mesma da perdição no

impessoal, ou seja, de que ela é e está em dívida” ([p. 287] p. 367). É no estranhamento, como

veremos, que o Dasein se singulariza em meio à angústia. “Por meio do colapso de todo

significado, o Dasein se libertará de sua dependência de meros seres” (Svendsen, 2006, p. 142). O

“retorno” da estranheza, como que fazendo emergir o sentido da fuga no impessoal como fuga

da angústia por ser-no-mundo, proporciona a experiência existencial do ser-em-face-de-nada, o

nada de si mesmo, a indeterminância como possibilidade sempre aberta de e para todo poder-ser de

fato. Nesse sentido, fica claro, o nada de “ser em função de si mesmo”, por não ser dado outro

ente, regra ou dever em que se apoiar, se mostra na dívida compreendida não como uma falta

com relação ao que eu mesmo não sou, mas, pelo contrário, com relação àquilo que eu mesmo

sou e decaiu na aderência aos entes de que me ocupo segundo os modos da cura (ocupação e

preocupação). Em outras palavras, e dito brevemente, a dívida é referida a uma liberdade que se

encontra, na cotidianidade, perdida; trata-se de uma dívida para com o si-mesmo do ente que

somos, nada tendo a ver, todavia, com compromissos ou “planos de vida” que elaboremos no

mundo das ocupações com vistas a um “futuro melhor”, atraídos por alguma promessa impessoal

de felicidade pessoal – não há para o si-mesmo nada como uma “redenção”, nenhuma “ascese”

posto que, uma vez lançado, não se pode libertar-se de si mesmo. Por isso mesmo, contrariando

nossas “exigências” de asseguramento,

O apelo da consciência não propicia tais indicações “práticas” unicamente porque ele faz apelo [aufruft] à presença para a existência, para o poder-ser mais próprio de si mesma. [...] O apelo não entreabre nada que, enquanto algo passível de ocupação, pudesse ser positivo ou negativo [recomendável ou censurável], porque ele diz respeito a um ser ontologicamente diverso, qual seja, à existência. Em contrapartida, no sentido existencial, o apelo, compreendido corretamente no sentido existencial, propicia o que há “de mais positivo”, ou seja, a possibilidade mais própria que se pode dar à presença enquanto reclamação apeladora [vorrufender Rückruf] do poder-ser faticamente a cada vez si-mesma. Ouvir com propriedade o apelo significa colocar-se na ação fática. (Heidegger, 2007h, [§59, p. 294] p. 375)

Page 171: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

171

“Ouvir com propriedade o apelo” é, pois, ouvir um silêncio! Silêncio pois “o apelo provém

da mudez da estranheza e reclama a presença apelada para aquietar-se na quietude de si mesma”,

pois “só na silenciosidade [...] essa fala silenciosa” pode ser compreendida pelo querer-ter-

consciência (Gewissen-haben-wollen), ao passo que a falação (das Geredete) pertence, ao contrário, ao

impessoal cotidiano onde toda estranheza se encontra velada (Heidegger, 2007h, [§60, p. 296] p.

377-378). Eis o sentido da “quietude”, como uma serenidade (Gelassenheit) apenas possível se

permitida, ou seja, enquanto se dá a liberação113 do ente e de si mesmo com relação aos entes de

que cotidianamente cada um de nós sempre se ocupa e com os quais, cotidianamente, cada um de

nós sempre se preocupa na cura. Tal silêncio e tal estranhamento, que são a silenciosidade e a

estranheza da própria singularidade só, remetem-nos à angústia, que é a disposição que lhe

pertence (Heidegger, 2007h, [§40, p. 188-189/§60, p. 296] p. 255-256/377).114 A compreensão

mesma dessa interpelação (Anruf) é o que significa o “querer-ter-consciência” enquanto dar

ouvidos à sua voz silenciosa, e permiti-la “implica o tornar-se livre da presença para o apelo”, uma

vez que a possibilidade aí compreendida diz: “Ela”, a presença, “escolheu a si mesma”. Não

querer-ter-consciência significa, pois, “não escolher”, mas antes deixar-se conduzir pelo

impessoal em que a presença se perdera. Em síntese, em vez de um entendimento de regras

dadas,

A compreensão do apelo é a escolha – não da consciência que, como tal, não pode ser escolhida. Escolhido é o ter consciência enquanto ser-livre para o ser e estar em dívida mais próprio. Compreender a interpelação significa: querer-ter-consciência. [...] O querer-ter-consciência dista tanto da busca de culpabilizações fáticas quanto da tendência de livrar-se da “dívida” em seu sentido essencial. (Heidegger, 2007h, [§58, p. 288] p. 368)

A consideração da dívida em seu sentido mais originário, essencial, revela-a como condição

ontológica de todo dever moral na medida em que é “condição existencial da possibilidade do

bem e do mal ‘morais’” (Heidegger, 2007h, [§58, p. 286] p. 366), estando já pressuposta em toda

113 As noções de “liberação”, “permissão”, bem como de “admitir” e mesmo “dar ouvidos”, em alemão, podem ser expressas com recurso ao verbo “lassen”. 114 Vale comparar com o que diz Kierkegaard (1979c, p. 157-158) em sua crítica aos cultos protestantes: “Uma dezena de sectários dão-se as mãos; não compreendem absolutamente nada acerca das crises de solitude que esperam o cavaleiro da fé e às quais não pode subtrair-se porque seria ainda mais terrível abrir caminho com demasiada audácia. Os sectários ensurdecem-se uns aos outros fazendo grande algazarra, mantêm afastada a angústia graças aos seus gritos, e este conjunto de gente ululante de medo supõe poder assaltar o céu e trilhar o caminho do cavaleiro da fé; mas este, na solidão do universo, jamais ouve uma voz humana; avança sozinho com sua terrível responsabilidade. / O cavaleiro da fé não encontra outro apoio senão em si próprio; sofre por não poder fazer-se compreender, mas não sente nenhuma vã necessidade de guiar os outros. [...] sem ter, por consequência, necessidade de diretivas de ninguém, e, sobretudo, de quem as pretenda impor. [...] O verdadeiro cavaleiro da fé é uma testemunha, nunca um mestre”.

Page 172: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

172

moralidade tal como já indicou a análise da boa consciência e da má consciência, sem mencionar

o fato de que as interpretações comuns sobre a oposição entre bem e mal se pautam nas

categorias ônticas do ente simplesmente dado. Colocar uma boa vontade como princípio da

moralidade, como pretendeu Kant, não responde, portanto, a questão existencial sobre a culpa,

tampouco a da dívida em sua originariedade, não podendo chegar, desse modo, à essência do ser-

livre como possibilidade de escolher a si mesmo. Kant, desse modo, não fizera mais do que nos

mostrar que a ação livre só pode ser aquela determinada segundo seu princípio, não segundo seus

meios ou fins. No entanto, Heidegger, como Kierkegaard ou mais do que ele, tem interesse na

elucidação da liberdade ela mesma, não de uma de suas “possibilidades” (ação ou omissão)

mediante uma tematização do ponto de vista da faticidade.

5.3. O querer a si-mesmo assumido pela singularização na angústia

A liberdade, pois, indica uma condição prévia a toda e qualquer faticidade, a toda e qualquer

subjetividade, remetendo a algo que sou, mas, ao mesmo tempo e por isso mesmo, não me

pertence, está fora do meu poder, na medida em que “pertencer” ou “possuir” supõem algo de

não-eu quando, em verdade, nada “mais” há para além desta angústia de si mesmo, angústia sem-

eu (e) por nada.115 Graças a esta antecipação de si mesmo, enquanto projeto, o Dasein já sempre

transcendeu antecipando as possibilidades de ser pelas quais se há de decidir e assumir como si

mesmo, como seu “que-é”. Tal ausência-de-eu consistirá não apenas na solidão existencial

originária como também na possibilidade originária de singularização mediante o estar-liberado

de si mesmo como ente dado no sentido de, nesta liberação de todo ente, assumir o ser-si-mesmo

mais próprio.

Naquilo por que se angustia, a angústia abre a presença como ser-possível e, na verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na singularidade. Na presença, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de escolher e acolher a si mesmo [Sich-selbst-wählens und

115 Heidegger (2007h, [§46, p. 236] p. 309) denominará essa condição prévia “anteceder-a-si-mesmo” (Sichvorweg), “momento primordial da cura” (Sorge) que “significa que a presença [Dasein] existe, cada vez, em virtude de si mesma”. Ser em virtude de si mesmo é ter suas possibilidades remetidas ao que já se é, não a qualquer “fundamento” ou “causa”. Mais adiante, diz Heidegger ([§58, p. 284] p. 364): “enquanto é, e como cura, a presença é constantemente

o seu ‘que é’ [sondern das Dasein ist ständig – solange es ist – als Sorge sein “Da”]. Existindo, a presença é o fundamento de seu poder-ser porque só pode existir como o ente que está entregue à responsabilidade de ser o ente que ela é. Embora não tendo ela mesma colocado o fundamento, a presença repousa em sua gravidade que, no humor, se revela como peso. / E, como é esse fundamento lançado? Ele só é projetando-se em possibilidades nas quais está lançado. O si-mesmo, que, como tal, tem de colocar o fundamento de si-mesmo, nunca dele pode-se apoderar, embora, ao existir, tenha de assumir ser-fundamento. Ser o próprio fundamento lançado é o poder-ser em jogo na cura.”

Page 173: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

173

-ergreifens]. A angústia arrasta a presença para o ser-livre para... (propensio in...), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é. A presença como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser. (Heidegger, 2007h, [§40, p. 187-188] p. 254)

Liberdade nada tem a ver, pois, com poder no sentido do apoderar-se das circunstâncias.116

Vinculando o ser-livre ao ser-em-face-do-possível, Kierkegaard já deslocara a discussão para

aquém de toda determinidade, de toda necessidade, de toda arbitrariedade, e pusera fim ao

tradicional e já sedimentado reducionismo lógico-categorial, fruto mesmo, muitas vezes, como

vimos, de uma compreensão deficiente e confusões categoriais. “Fazer começar a liberdade por

um livre arbítrio (o que é sempre falso, cf. Leibniz) que possa escolher indiferentemente o Bem

ou o Mal, é reduzir à finitude quer a liberdade, quer os conceitos de Bem e de Mal. A liberdade é

infinita e nasce do nada” (Kierkegaard, 1962, p. 169). Resta ao ser-livre o ser-em-face-de-nada, de

modo que, com grande originalidade, ocorre a Kierkegaard que o obstáculo, ou limite do ser-

livre, não consiste no natural, no necessário, ou na inclinação subjetiva, mas na própria exigência

de decisão que inadvertidamente acomete o ser-livre do homem desde sua origem mais profunda

e, assim, o angustia... por nada. “Por nada” porque nada há que se lhe ofereça como objeto, como

matéria, como princípio, como fim ou como meio, como critério para o decidir-se e assim tornar

necessária/determinada/causada a ação. O homem se encontra originariamente entregue a si

mesmo e mais nada, em virtude de si mesmo e mais nada. Tal desamparo angustiante, inerente à

solidão essencial do Indivíduo kierkegaardiano, é que nos põe a cada vez em fuga da estranheza e

em direção à confortável e assegurada familiaridade das regras dadas na convivência pública e

impessoal. Tal des-amparo consiste na retirada do apoio, do amparo; é o estar suspenso... no nada.

Ou seja, toda escolha, entendida como determinação de fato, é necessariamente precedida por

uma indeterminação de possibilidades abertas no “fato” de já estarmos aí como entes lançados

em virtude de nós-mesmos, e tal estar-lançado de fato é existencialmente o decisivo para toda

possibilidade de ser. “Decisão”, diz Heidegger (2007h, [§60, p. 298] p. 380), “só ‘existe’ enquanto

a decisão que se projeta num compreender”, sendo o projeto “a constituição ontológico-

existencial do espaço de articulação do poder-ser fático” (Heidegger, 2007h, [§31, p. 145] p. 205).

Prossegue Heidegger (p. 205-206):

O projetar-se nada tem a ver com um possível relacionamento frente a um plano previamente concebido, segundo o qual a presença instalaria o seu ser. Ao contrário, como presença, ela já sempre se projetou e só é em se

116 V. tb. Heidegger, 2007h, [§60, p. 298] p. 380: “Seria uma total incompreensão do fenômeno da decisão pretender que ele seja meramente um apoderar-se das possibilidades apresentadas e recomendadas. [...] A indeterminação que caracteriza cada poder-ser faticamente lançado da presença pertence necessariamente à decisão”. A este assunto deveremos dar o devido aprofundamento mais adiante.

Page 174: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

174

projetando. Na medida em que é, a presença já se compreendeu e sempre se compreenderá a partir de possibilidades. O caráter projetivo do compreender diz, ademais, que a perspectiva em virtude da qual ele se projeta apreende as possibilidades mesmo que não o faça tematicamente. Essa apreensão retira do que é projetado justamente o seu caráter de possibilidade, arrastando-o para um teor dado e referido, ao passo que, no projetar, o projeto lança previamente para si mesmo a possibilidade como possibilidade e assim a deixa ser. Enquanto projeto, compreender é o modo de ser da presença em que a presença é as suas possibilidades enquanto possibilidades.

Logo, a angústia remete o ente que somos ao poder-ser de cada possibilidade sua projetada

no originário compreender. Fica claro que esse compreender não se confunde de modo algum

com um “entendimento acerca de circunstâncias” dadas ou estimadas. As várias circunstâncias

que cotidianamente “compreendemos” – melhor dito, entendemos ou apreendemos – são,

necessariamente, determinações, o contrário do que temos aqui: possibilidades enquanto

possibilidades, ao invés de possibilidades enquanto mera contrapartida de obrigações, ou seja,

mera ausência de condicionamentos quaisquer. Por isso o compreender de que se trata aqui em

nada se relaciona com a “compreensão” tal como ordinariamente interpretada, como uma

“conquista do espírito” em sua cognição das coisas. Não se trata de um saber sobre relações, uma

atividade psicológica positiva da faculdade de conhecer que apenas funciona mediante

determinações dadas no entendimento como representações. A possibilidade não é aqui uma

representação passível de integrar um cálculo de probabilidades como possibilidade disto ou

daquilo, como uma “modalidade” do ente lógico. A possibilidade, enquanto possibilidade, não é

uma representação da contingência, uma categoria modal, uma condicionalidade. A possibilidade,

ou poder-ser da “possibilidade” lógica ou psicológica, encontra-se no “fundo originário” de toda

decisão em lugar de qualquer código de conduta, explícito ou implícito, elaborado segundo uma

dinâmica histórico-social de uma cultura determinada. Conforme já dito acima, esta “dinâmica” é

antes posta em movimento em socorro do homem fático que, em face de um não-compreendido

apelo silencioso da consciência, põe-se em fuga da angústia latente para junto do ente – aqui, um

código de conduta que tem por função preencher aquele silêncio – que lhe garanta alguma “paz de

espírito”. “Compreender” adequadamente um código de conduta assegura ao ente o agir correto que

o mantenha afastado da “falta”, ou ao menos abrigado do castigo; enfim, uma necessidade da vida

civil. Por isso, pode-se dizer que Nietzsche é relativamente preciso ao considerar a exigência de

uma moral como sintoma de uma patologia da vontade, um pretenso remédio para o sofrimento.

Compreendemos as possibilidades abertas no projeto que cada um de nós é e que, como poder-

ser-no-mundo, angustia. Foge-se então deste estar-lançado a sós na liberdade, segundo Heidegger

(2007h, [§57, p. 276] p. 355), para aquela “liberdade” mais fácil “pretendida pelo impessoalmente-

si-mesmo [das Man-selbst]”. Heidegger, mais adiante, considerará um “equívoco ontológico da

Page 175: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

175

presença” a interpretação da decisão apenas como “um comportamento especial da faculdade

prática enquanto distinta e oposta à teórica”, pois a cura, “no sentido de preocupação em

ocupações, abrange o ser da presença de modo tão originário e total que já se deve pressupor

como o todo, em qualquer distinção entre atitude prática e teórica” (Heidegger, 2007h, [§60, p.

300] p. 382; ver [§41, p. 193-194] p. 260-261). A esta altura, já se faz claro também o que lemos

antes no mesmo §60 de Ser e tempo ([p. 296-297] p. 378):

A abertura da presença subsistente no querer-ter-consciência é constituída, portanto, pela disposição da angústia, pela compreensão enquanto projetar-se para o ser e estar em dívida mais próprio e pela fala enquanto silenciosidade. Chamamos de decisão essa abertura privilegiada e própria, testemunhada pela consciência na própria presença, ou seja, o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio.

Até o momento, pode-se perceber em que medida a culpabilidade kierkegaardiana ainda

deixa a desejar no sentido de que, para que se a compreenda ontologicamente pertinente a nosso

próprio modo de ser, deve-se ultrapassar o limite imposto pela interpretação comum da culpa

como “sentimento” remissivo a uma falta avisada por Deus e, sobretudo, não “compreendida”

por Adão. Se, por um lado, a culpa kierkegaardiana garante uma liberdade originária à sombra de

uma ignorância também originária, por outro, uma vez desconsiderando a impertinência da

interdição divina no que toca ao fato de já sempre sermos o projeto lançado em virtude do que

nós mesmos somos mediante a decisão, o próprio ser-livre volta a se obscurecer em sua essência

na medida em que a decisão originária fora provocada – não importa aqui se tal provocação seria

ou não exigível. Afinal, como dirá Heidegger (2007h, [§57, p. 278] p. 357), remeter o apelo da

consciência a “poderes desprovidos do caráter de presença [...] aniquila a estranheza do apelo ao

invés de esclarecê-la”. Para Kierkegaard, de fato, as “alternativas” são indeterminadas do “ponto

de vista” da inocência, mas não em si mesmas na medida em que não o são para Deus, que,

portanto, não haverá de conhecer a angústia. Falta-lhe, portanto, uma compreensão adequada do

nada que se encontra no fundo da existência, provindo dele a dívida com relação à existência, não

da falta. Não é necessário negar Deus, mas urge colocá-lo à parte na medida em que, “enquanto

questão filosófica”, diz Heidegger (2007h, [§62, p. 306, nota] p. 389, n. 165), a ontologia

fundamental “nada ‘sabe’ a respeito do pecado”. A própria dívida não é nem pode ser

adequadamente compreendida à luz de uma ideia como a de falta, e isto por duas razões: 1) a

primeira, já indicada, quando “falta” é entendida “como violação de alguma coisa que deveria e

poderia ser”, supõe-se não apenas “o âmbito das ocupações em seu prestar contas como também

[...] qualquer referência ao dever e à lei”, ou seja, os âmbitos simplesmente dados do moral ou do

legal, e mesmo o ente “credor”, desse modo aniquilando a estranheza; 2) a segunda, de caráter

Page 176: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

176

mais estritamente ontológico, quando “falta” significa “não ser simplesmente dado”, “estar

ausente”, “não ser”, supõe-se a existência como algo simplesmente dado, imperfeito ou

inacabado, algo de produzido a que alguma propriedade pode eventualmente “faltar”, quando,

em verdade, seu modo de ser é inteiramente diverso (Heidegger, 2007h, [§58, p. 283] p. 363).

Dessa maneira, por desconhecidos que sejam perfeição e essência divinas, tal indeterminância

meramente negativa não produz estranheza, mas tão-somente incerteza.

Como mostra Heidegger, a dívida também precede ontologicamente toda culpa, pois toda

culpa, em vez de remeter a alguma coisa, remete a coisa alguma, e por isso já pressupõe um “não”

mais originário que a tem como possibilidade (em sentido mais radical do que o da kierkegaardiana

possibilidade da culpa). É a partir de um nada que qualquer alternativa pode ser, antes de tudo,

possibilitada, não por uma “interdição não-compreendida”. Que são, pois, “esse nada”, “esse não”

e a dívida é o que agora deve ser melhor esclarecido mediante o §58 de Ser e tempo.

Existindo, a presença é seu fundamento, ou seja, é de tal modo que ela se compreende a partir de possibilidades e, assim se compreendendo, é o ente lançado. Isso implica, no entanto, que: podendo-ser, ela está sempre numa ou noutra possibilidade, ela constantemente não é uma ou outra e, no projeto existenciário, recusa uma ou outra. Enquanto lançado, o projeto não se determina apenas pelo nada de ser-fundamento. Enquanto projeto, ele é em si mesmo essencialmente um nada. Todavia, essa determinação não significa, de modo algum, a qualidade ôntica do que não tem “sucesso” ou “valor”, mas um constitutivo existencial da estrutura ontológica do projetar-se. O nada mencionado pertence à presença enquanto o ser-livre para suas possibilidades existenciárias. A liberdade, porém, apenas se dá na escolha de uma possibilidade, ou seja, implica suportar não ter escolhido e não poder escolher outras. (Heidegger, 2007h, [§58, p. 285] p. 365)

Sendo assim, não há nada segundo o que nosso ser se determine senão uma escolha que,

sendo escolha de si mesmo, não é escolha disto ou daquilo, mas a própria singularização do ente

que se é e, como tal, uma escolha irrecorrível. É-se o que se é por nada, por coisa alguma que não

si mesmo. Daí a afirmação de que o Dasein é o “ente lançado”, já projetado em possibilidades que

são suas, pois não há qualquer fundamento que lhe sirva de solo, de apoio, razão pela qual é

precisamente o ser-si-mesmo que angustia. Não há nada de dado, de modo que “falta” nada tem

a ver com a existência (Heidegger, 2007h, [§58, p. 283] p. 363). Toda escolha traz consigo o

“peso” inalienável de jamais poder ser revogada a recusa de toda outra possibilidade; assim

também a decisão: é impossível não ser si mesmo.117 Por isso mesmo a dívida existencial inerente

117 Em nossa leitura do célebre §341 de A gaia ciência, de Nietzsche (2004d, p. 230), intitulado “O maior dos pesos”, reconhecemos uma privilegiada abordagem deste peso que representa a admissão incondicional e absoluta do ser si-mesmo por meio do “assim eu quis!” que retornará no discurso de Zaratustra. Sobre esta interpretação, ver Moraes (2008).

Page 177: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

177

à decisão é constante, não podendo ser aumentada ou diminuída – ela também é o que é

(Heidegger, 2007h, [§62, p. 305] p. 388). A fuga para as “possibilidades mais fáceis” do cotidiano

“servirá” como “alívio” para esse peso, uma vez que, no mundo das ocupações, as possibilidades

são restritas e, em grande parte, pré-decididas, permitindo à consciência comum atribuir a

qualquer outro fator que não a ela mesma o fato dado de sua condição ser esta ou aquela, de suas

possibilidades de fato serem estas ou aquelas, “asseguradamente” claras e definidas – é claro que

o mesmo vale para as “impossibilidades” fáticas. “O impessoal tira o encargo de cada presença em

sua cotidianidade. E não apenas isso; com esse desencargo, o impessoal vem ao encontro da

presença na tendência de superficialidade e facilitação. Uma vez que sempre vem ao encontro de

cada presença dispensando-a de ser, o impessoal conserva e solidifica seu domínio teimoso.”

(Heidegger, 2007h, [§27, p. 127-128] p. 185) Portanto, todo otimismo, pessimismo ou casualismo

fatalista não partem de nada além dos pressupostos da interpretação cotidiana... Ultrapassada tal

interpretação impessoal, reconhece-se que é por aquele “peso”, por aquele “não” de que se

origina, que somos e estamos sempre em dívida, não pela transgressão de qualquer dever para

com Deus ou para com os homens, de qualquer lei divina ou “moral”.

Se a ideia do não, constante do conceito de dívida compreendido existencialmente, exclui a referência a um ser simplesmente dado possível ou exigido e se, com isso, a presença não pode, em absoluto, ser medida por um ser simplesmente dado ou por um valor que ela mesma não é ou não é segundo seu modo de ser, isto é, que não existe [não é um Dasein], nesse caso cai por terra toda possibilidade de se avaliar como “faltoso” aquilo que é fundamento de uma falta. [...] Isso significa: o ser e estar em dívida não resulta primordialmente de uma causa [Verschuldung]118, ao contrário, a causa só é possível “fundamentada” num ser e estar em dívida originário. [...] O ser da presença é a cura. Ela compreende em si faticidade (estar-lançado), existência (projeto) e decadência. Sendo, a presença é lançada, mas não foi levada por si mesma para o seu pre [Da, o lugar de onde vem o apelo]. Ela é em se determinando como poder-ser que pertence a si mesma, mas não no sentido de ter dado a si mesma o que tem de próprio. [...] O estar-lançado não se encontra aquém dela como um acontecimento que de fato ocorreu e que se teria desprendido da presença e com ela acontecido. (Heidegger, 2007h, [§58, p. 283-284] p. 363-364)

Significa dizer: não se esclarece adequadamente o ser e estar em dívida originário por meio

de uma teodiceia segundo a qual o homem é lançado no mundo por um outro, nem tampouco se

118 A nova tradução de “Verschuldung” por “causa”, embora não expresse imediatamente o sentido de “culpa”, “dívida” – termo que proposto na tradução mais antiga –, vem, por isso mesmo, colocar em relevo o caráter determinante da dívida com relação ao endividado, conforme a compreensão usual aqui problematizada. Não se trata, afinal, de uma ordem de causas, mas de dizer que a dívida tem como condição ontológica de possibilidade o já sempre ser e estar em dívida. Enfim, esta responsabilidade não pode preceder a possibilidade de todo e qualquer responsabilizar-se, mas o contrário, conduzindo ao ser e estar em dívida originário. A propósito, o étimo alemão evoca o verbo “verschulden”, que exprime o ser-causa de um desastre, ou seja, ser responsável por um grande mal.

Page 178: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

178

faz homem mediante uma “queda pelo pecado”. Não sendo a falta relativa a algo que precede o

ser-no-mundo como decadência, nem sendo ele mesmo constitutivamente carente de algo,

conforme dito mais acima, tal como uma obra inacabada, somente por ele, em sua liberdade, a

própria possibilidade de qualquer dívida pode se dar. Sendo o Dasein seu próprio projetar-se para

possibilidades, não lhe é dado estar presente a um “momento anterior” do mesmo modo que não

lhe é dado estar presente a si mesmo quando de seu fim ou depois dele. Assim, não é uma

possibilidade do ser-aí escolher não-ser-no-mundo, pois já sempre o é, ou seja, o ente lançado em

virtude de si mesmo. O “não” constitutivo de seu estar-lançado é seu nada (Heidegger, 2007h,

[§58, p. 284] p. 364), como um não ser proveniente de lugar algum. Eis de que modo angústia e

liberdade são “deslocadas” para um âmbito prévio a toda existência de fato, “histórica”.

Longe de um amálgama simplesmente dado de circunstâncias e acasos, a situação é somente pela e na decisão. Somente decidida para o pre [Da] em que ela mesma tem de ser em existindo é que se lhe abre, cada vez, o caráter faticamente conjuntural das circunstâncias. [...] [...] Não é tomando conhecimento que a decisão representa para si uma situação. Ela já se acha em uma situação. (Heidegger, 2007h, [§60, 299-300] p. 381-382) A situação não pode ser antecipadamente calculada ou prevista como algo simplesmente dado, que espera por sua apreensão. Ela só se abre numa decisão livre, previamente indeterminada mas aberta a determinações. O que significa a certeza inerente a tal decisão? [...] enquanto manter-se livre na decisão para reassumir, este ter-por-verdadeiro é decidir com propriedade pela retomada de si mesmo. Com isso, enterra-se justamente a perdição existenciária na indecisão. (Heidegger, 2007h, [§62, p. 307-308] p. 390-391)

Decidindo-se pelo si-mesmo mais próprio, o ser-aí re-assume-se como o ente que sempre

é, sendo e estando em dívida no modo em que já sempre foi desde seu ser-lançado em virtude de

nada. Trata-se, pois, de uma volta a si, retomada de si em sua singularidade própria. (Heidegger,

2007h, [§§65/68a, p. 325-326/339] p. 410/424-425) “Só o apelo sintonizado pela angústia [die

Angst gestimmte Ruf] possibilita que a presença se projete para o seu poder-ser mais próprio.”

(Heidegger, 2007h, [§57, p. 277] p. 356) Tal “sintonia” é o que pretende significar o termo

“humor” (Stimmung), ou “afinidade”, “tonalidade afetiva”... Trata-se justamente do que abre

mundo ao ser-no-mundo, possibilitando assim a decisão antecipadora das possibilidades como

tais. Somente após este re-pensar do ser-livre, bem como de sua impertinência a toda e qualquer

representabilidade, “subjetiva” ou “objetiva”, é que se pode adequadamente tematizar o modo de

ser da abertura possibilitadora sintonizada pela angústia em face do nada.

Page 179: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

179

O humor é a condição para todo pensamento e ação, e o ambiente para eles. Ele põe o pensamento em ação, como uma condição estabelecida pelo ser. O Dasein sempre vê seu próprio projeto através de humores. É o humor que o põe “em contato” com o mundo, quando a “pura” percepção o manteria à distância. Estar sintonizado é ver o mundo sob um aspecto, e o mundo não pode ser visto senão sob um aspecto específico. O humor fundamental é mais básico que a sua ideia. Não já totalidade discursiva, mas sim o que deixa o mundo aparecer como totalidade. (Svendsen, 2006, p. 127)

Essa totalidade do mundo não pode aparecer senão no humor que deve preceder toda

percepção na medida em que esta, enquanto representação, sempre é percepção de algo por

alguém. Toda representação é necessariamente relativa e parcial; o humor, por sua vez, dispõe e

possibilita a conjuntura de onde podem se relevar sujeitos e objetos. Por isso mesmo Heidegger

repete que “a angustia se angustia”, “o tédio se entedia” e assim por diante, precisamente porque

não se trata de um sentimento, de uma emoção subjetiva de “alguém” já situado. O humor não é

algo de localizado, situando-se aqui ou ali, neste ou naquele momento; é a própria situação e,

também, o que situa e dispõe. Como diz Svendsen (2006, p. 121-122):

O humor é sempre geral, afetando o mundo como um todo. As emoções e os sentimentos, por outro lado, não são necessariamente gerais. [...] Uma emoção pode ainda muitas vezes estar relacionada a uma parte específica do corpo, enquanto o humor não. [...] Se a emoção não estiver ligada a uma parte do corpo, seremos capazes de relacioná-la a um objeto em particular. [...] Em termos gerais, podemos dizer que uma emoção normalmente tem um objeto intencional, enquanto o humor não.

O humor, desse modo, faz emergir uma ambiência, e podemos compreendê-lo como

próprio não a determinações ambientais, sempre derivadas, em verdade, dos humores, mas antes

e mais originariamente a possibilidades de ambientação. Pelo humor se revelam conjunturas, o

mundo se abre como “um” mundo. Sendo assim, também pelo humor se estabelecem relações de

interesse que, como vimos, estão na raiz do mundo como representação. O mundo não “existe”

como objeto em si e independente; também não como mera produção de uma subjetividade – o

mundo é como é mediante a abertura do humor; é o que é em conformidade ao disposto no humor.

É certamente indiscutível que toda cognição é condicionada por seu contexto ou situação, mas, para ser compreendida, uma situação requer também um tipo de humor. Uma situação só pode se revelar perigosa se o observador estiver predisposto ao perigo que possa surgir. Sob toda cognição há interesses, e estes devem, em última análise, ser compreendidos à luz de humores. Talvez seja mais correto dizer que temos uma cognição de uma situação em virtude do humor através do qual ela nos é dada. Um humor não é apenas uma determinação estritamente subjetiva, nem estritamente objetiva. Ele está na polaridade real que existe entre o homem e seu ambiente. É basicamente

Page 180: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

180

através do humor que nos relacionamos com o ambiente. (Svendsen, 2006, p. 122)

Em nota ao texto da preleção Os conceitos fundamentais da metafísica, de Heidegger, Casanova

esclarece: “Stimmung possui uma relação direta com o vocábulo Stimme, que pode ser traduzido

sem mais por ‘voz’, e com o verbo stimmen, que é utilizado corriqueiramente em linguagem

musical para descrever o processo de afinação de um instrumento” (Heidegger, 2003, [§2b] p. 6,

n. 2). Com isso, de um lado, a tradução evita o caráter psicologizante (e ontologicamente

derivado) de termos como “afeto”, “sentimento” ou mesmo “disposição” (no sentido de se

estar/sentir emocionalmente bem ou mal “disposto”, aqui empregado no sentido passivo, não no

substantivo), indicando, por sua vez, que, quando Heidegger se refere ao “chamado”, à “voz” do

Ser, tem em mente aquilo pelo que se está afinado, situado em afinidade com aquilo que nos é

essencialmente mais próprio.119 Schuback complementa, em sua nova versão para Sein und Zeit

(Heidegger, 2007h, p. 573), explicando não ter se valido “de tom nem de tonância, pois ambos

referem-se ao resultado da afinação ao passo que, em Ser e tempo, trata-se do movimento verbal

mesmo de afinar-se, sintonizar-se enquanto estrutura do ‘humor’”. Por esta razão se investiga um

humor capaz de dispor o ser-no-mundo na abertura decisiva pela qual se singulariza como ente

situado, em-um-mundo. Neste sentido, prossegue Casanova esclarecendo que “ser afinado

(Gestimmtwerden) é alcançar uma tonalidade afetiva [Stimmung] que não se encontra apenas em

nossa interioridade, mas que descreve, sim, o modo de constituição da totalidade”. Afinal, uma

totalidade se constitui na medida em que o que constitui é uma unidade significativa, unívoca, uma

totalidade “afinada” como um acorde, não sendo a falta uma imperfeição do ser-aí. À luz desta

totalidade originária a que se chama mundo, toda suposta “harmonia” – também um termo

utilizado pelos gregos na música, derivado da marcenaria onde significava “encaixe”, ou

“conexão” – no mundo ôntico não passa de justaposição de entes particulares, de modo que um

conjunto de entes dados não é apenas produto de nossa representação e por esta razão secundário,

mas, antes disso, supõe sempre individualidades, partes integrantes, não podendo predeterminar ou

servir de parâmetro ao ser-no-mundo aí já pressuposto. “O acoplamento da totalidade referencial,

das múltiplas remissões do ‘para-quê’ ao que está em jogo na presença não significa a fusão de

um ‘mundo’ simplesmente dado de objetos com um sujeito.” (Heidegger, 2007h, [§41, p. 192] p.

259) Não se trata de uma totalidade forjada sob a égide de um princípio de individuação.

Por isso, o si-mesmo de que trata Heidegger “não é o si-mesmo que se pode tornar ‘objeto’

de avaliação, nem o si-mesmo que se empenha com curiosidade e sem descanso no exame de sua

‘vida interior’ e nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez ‘analítica’ de olhar os estados da alma

119 Ver também nota de Stein à conferência “Que é isto – a filosofia?” (Heidegger, 2000c, p. 36-37, nota).

Page 181: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

181

e suas profundezas” (Heidegger, 2007h, [§56, p. 273] p. 351; ver [§61, p. 303] p. 386). O si-

mesmo (Selbst), não sendo uma subjetividade psicológica interlocutora de uma egoidade empírica,

“é apelado [aufgerufen] para si mesmo, ou seja, para assumir o seu poder-ser mais próprio”, de

modo que “o apelo não coloca o si-mesmo interpelado [angerufene] numa ‘negociação’ consigo

mesmo mas, enquanto um fazer apelo [Aufruf] para o seu poder-ser mais próprio [Selbstseinkönnen],

o apelo é uma ‘a’-pelação (para ‘adiante’) [Vor-(nach-‘vorne’-)Rufen] da presença para suas

possibilidades mais próprias” (Heidegger, 2007h, [§56, p. 273] p. 352). Em sua impertinência com

relação ao âmbito das representações determinadas, ao si-mesmo mais próprio pertence a

estranheza, bem entendida ontologicamente como aquela aberta no fenômeno da angústia.

Na angústia, se está “estranho” [“unheimlich”]. Com isso se exprime, antes de qualquer coisa, a indeterminação [Unbestimmtheit] característica em que se encontra a presença na angústia: o nada e o “em lugar nenhum”. Estranheza significa, porém, igualmente “não se sentir em casa” [Nicht-zuhause-sein]. Na primeira indicação fenomenal da constituição fundamental da presença e no esclarecimento do sentido existencial do ser-em, por oposição ao significado categorial da “interioridade”, determinou-se o ser-em [wurde das In-Sein bestimmt] como habitar-em..., “estar familiarizado com...” [§12]. Esse caráter do ser-em tornou-se a seguir visível, de modo ainda mais concreto, através do público na sua impessoalidade cotidiana, que instala na cotidianidade mediana da presença a certeza tranquila de si mesma e o “sentir-se em casa” [§27]. (Heidegger, 2007h, [§40, p. 188-189] p. 255)

Como se vê, os termos utilizados por Heidegger para se referir a

determinação/indeterminação derivam do verbo bestimmen, provavelmente aqui no sentido de

anordnen, “ordenar”, “dispor”, como em Stimmung, “disposição”, “humor”, um jogo semântico

bastante próprio ao vocabulário heideggeriano. A disposição, embora modo de ser da abertura do

ser-aí – donde temos que ele já se tem diante de si, sendo-no-mundo, nisto consistindo seu ex-

sistir –, tem também o sentido de “ordenação”, “classificação”. Sendo assim, pode-se dizer que a

angústia remete ao âmbito de um mundo constituído. A própria palavra “mundo” pode remeter

ao grego kosmos, “ordem”. A curiosidade que se pretende apontar se refere justamente ao fato de

o sentido mais próprio de bestimmen ser “determinar”, como que “dispor em (seus) lugares de

significação”, de modo que as conotações musicais que conduzem às noções de “afinação” e

“voz” vêm enriquecer e complementar outra expressão importante: “habitar a morada do Ser”. A

“casa do Ser”, em que o ser-aí já sempre habita, seu mundo, é o nada aberto na angústia. Esse lar

originário é o Heim no qual, do ponto de vista da cotidianidade impessoal em que nos

encontramos desviados de nós mesmos, sentimo-nos estranhos – o mundo se torna inóspito.

Mas, se isto significa que à luz da cotidianidade sentimo-nos estranhos na morada do ser, não

Page 182: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

182

significaria também a precedência do impessoal? Em certo sentido, sim, mesmo porque,

enquanto existencial, o impessoal é um fenômeno originário, constitutivo do ser-no-mundo.

Que a presença esteja familiarizada consigo enquanto o impessoalmente-si-mesmo, isso também significa que o impessoal prelineia a primeira interpretação do mundo e do ser-no-mundo. O impessoalmente-si-mesmo, em virtude de que a presença é cotidianamente, articula o contexto referencial da significância. O mundo da presença libera o ente que vem ao encontro numa totalidade conjuntural, familiar ao impessoal e nos limites estabelecidos pela medianidade. Numa primeira aproximação, a presença fática está no mundo comum, descoberto pela medianidade. Numa primeira aproximação, “eu” não “sou” no sentido do propriamente si mesmo e sim os outros nos moldes do impessoal. É a partir deste e como este que, numa primeira aproximação, eu “sou dado” a mim mesmo. Numa primeira aproximação, a presença é impessoal, assim permanecendo na maior parte das vezes. (Heidegger, 2007h, [§27, p. 129] p. 187)

Por sua vez, sentimo-nos estranhos por sermos existencialmente constituídos pelo “sentir-

se em casa”, que, em sentido próprio, não significa pertencermos primeiramente ao mundo das

ocupações, mas, pelo contrário, habitarmos a proximidade do ser, não como um ente dentre

outros, dados como uma subjetividade, mas cada um como ser-livre singular disposto para suas

próprias possibilidades em aberto. O peso desta responsabilidade é onde se radica o desvio para a

decadência, para junto das coisas em meio às quais buscamos uma familiaridade que, na verdade,

é imprópria, ou seja, não consiste naquilo que originariamente somos. Logo, o que diz a

familiaridade cotidiana é: “O impessoal é um existencial e, enquanto fenômeno originário, pertence à

constituição positiva da presença” (p. 186). Portanto, o que é trazido com a angústia é o chamado para

o ser si mesmo livre em nos retirando da familiaridade cotidiana que, todavia, é também uma

autêntica possibilidade existencial nossa. Diz Heidegger na sequência do trecho supracitado do

§40: “A angústia, ao contrário, retira a presença de seu empenho decadente no ‘mundo’. Rompe-

se a familiaridade cotidiana. A presença se singulariza, mas como ser-no-mundo. O ser-em aparece

no ‘modo’ existencial de não sentir-se em casa. É isso o que diz a fala sobre a ‘estranheza’”. Lemos

ainda, também na sequência do §27: “Quando a presença descobre o mundo e o aproxima de si,

quando abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de ‘mundo’ e esta abertura da

presença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos,

obscurecimentos, como um romper das distorções em que a presença se tranca contra si mesma”.

É, pois, pela angústia que o ser-no-mundo pode se abrir diante de si mesmo tal como é:

como cura [Sorge], que se angustia na perda daquilo a que de determinado dirige-se sua cura, não

do mundo – tal significaria não-mais ser-no-mundo –, mesmo porque mundo não é aqui alguma

coisa simplesmente dada que se pode conquistar ou perder. O indeterminado lhe aparece como

Page 183: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

183

um nada, mas esse “nada”, o originário “não” do ente (Heidegger, 2000e, p. 111), é, antes de uma

ausência, uma presença total do mundo como tal, bem como de si mesmo em suas próprias

possibilidades não há determinação, nem sentido, nem “mundo” em que se empenhar; há um

des-empenho justamente porque não há nada que se dê à ocupação. São estas possibilidades a

revelarem o ser-livre essencial, mas é a angústia mesma a “oportunizar” ao ser-no-mundo seu

próprio “determinar-se” no sentido de se lançar disposto-para suas próprias possibilidades de ser.

Em seu ser, a presença já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma. É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio e, com isso, para a possibilidade de propriedade e impropriedade mostra-se numa concreção originária e elementar. Do ponto de vista ontológico, porém, ser para o poder-ser mais próprio significa: em seu ser, a presença já sempre antecedeu a si mesma. A presença já está sempre “além de si mesma”, não como atitude frente aos outros entes que ela mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela mesma é. [...] [...] Esse anteceder-a-si-mesma não significa uma espécie de tendência isolada num “sujeito” sem mundo, mas caracteriza o ser-no-mundo. Pertence a esse ser-no-mundo, contudo, que, entregando-se à responsabilidade de si mesmo, já se tenha lançado em um mundo. É na angústia que o abandono da presença a si mesma se mostra em sua concreção originária. Apreendido em sua plenitude, o anteceder-a-si-mesma da presença diz: anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-um-mundo. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 191-192] p. 258-259)

É esta antecedência-no-já-ser-em... a exprimir, de maneira não solipsista, a constituição do

ser-no-mundo em seu todo originário como transcendência, o que significa dizer que o existir

determina-se por já sempre ser-no-mundo como ente lançado a partir de si mesmo – isto é o que

se pretendeu dizer acima afirmando que não pertence ao ser-aí a escolha de ser ou não ser-no-

mundo ou a possibilidade de situar-se aquém ou além de seu estar-lançado, de seu projetar-se.

É no anteceder-a-si-mesma, enquanto ser para o poder-ser mais próprio, que subsiste a condição ontológico-existencial de possibilidade de ser livre para as possibilidades propriamente existenciárias. O poder-ser é aquilo em virtude de que a presença é sempre tal como ela é faticamente. Na medida, porém, em que este ser para o próprio poder-ser acha-se determinado pela liberdade, a presença também pode relacionar-se involuntariamente com as suas possibilidades, ela pode ser imprópria. Faticamente, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, é nessa modalidade que ela se encontra. O próprio em virtude de não é apreendido, e o projeto de poder-ser ela mesma fica entregue ao talante do impessoal. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 193] p. 260)

Portanto, não se trata de “salvar a dignidade humana” pela preservação forçada do ser-livre

como algo de “essencial”, ainda menos pela urgência de novas bases para uma ordem social mais

justa; em outras palavras, à luz de toda insuficiência aqui apontada no que concerne à defesa da

liberdade ao longo da tradição filosófica (capítulo 4), não é nossa intenção mantê-la a todo custo.

Page 184: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

184

Em vez disso, a liberdade é encontrada como condição ontológica exigida mesmo para que o ser-

livre se tenha apresentado e continue mais e mais se apresentando como questão para as

especulações acerca da prática humana, ou ainda para que se encubra sob a suposta evidência

cotidiana de que somos livres em algum sentido, mesmo que apenas em pensamento – tudo isto

significa sempre uma compreensão da possibilidade mesmo no ocultamento de sua essência à

sombra do dualismo lógico que opõe o possível ao necessário. É por ser livre segundo seu modo

de ser essencial que o homem pode representar-se como agindo contra sua vontade ou sujeitar-se

pragmaticamente a regras estabelecidas, sofrer coerções de qualquer espécie etc. É por ser livre que

o homem pode tanto se reconhecer como indivíduo como também, ao contrário, reduzir-se a

mero exemplar de uma espécie ou membro de uma comunidade. É por ser livre que a exigência

de decisão o oprime na ausência de critérios em que se apoiar do mesmo modo que tanto o

perturba todo tipo de inevitabilidade. A liberdade também encurrala o homem em um canto, como

em um beco, e nesta imagem recordamos a proximidade entre os termos latinos angustia, angustus

e angulus, estes dois últimos significando, respectivamente, “apertado” e “ângulo”, carregando a

idéia de estreitamento. Outro termo latino correlato é também interessante: angularis, que também

pode ser traduzido por “serpente”, o animal mitológico representativo da sabedoria que, no mito

judaico, oferece ao primeiro homem a alternativa, a possibilidade da escolha.

5.4. Observações adicionais acerca da tematização existencial do ser-livre

Se se pode levantar o argumento histórico de que a liberdade, como questão, é algo de

tematização por demais recente na história da humanidade, deve-se, por sua vez, considerar que

condições históricas fizeram da liberdade algo digno de ser pensado explicitamente. Afinal, coisa

semelhante ocorre até com o tão “evidente” princípio de razão... Não terá sido precisamente pelo

fato de o homem jamais ter se confrontado tão profundamente com sua própria solidão

existencial? Vimos que a liberdade não é tematizada nem se lhe buscara um conceito rigoroso e

explícito até o desenvolvimento do “individualismo” renascentista e seu antropocentrismo.

Enquanto o sentido do homem grego residia na polis, o do homem cosmopolita residia na pax e o

do cristão na ecclesia. O homem moderno, por sua vez, é levado por si mesmo ao confronto com

a exigência de fazer face ao desafio de encontrar seu próprio sentido, como individualidade,

interpretada inicialmente como “eu”. No entanto, o sentido “próprio” ainda se encontrava

encoberto, graças à metafísica substancialista, por um “subjectum”, mero suporte de propriedades

dentre as quais a “racionalidade” ocupava o primeiro plano, ainda em função dos pressupostos

Page 185: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

185

daquela mesma metafísica. Ser-livre era então, de Descartes a Hegel, sinônimo de ser-consciente-

de-si-mesmo. Heidegger dedicou muito de seu pensamento a isto...

Vê-se que, no século XIX, a questão toma outra direção. A razão lógica descobrira-se a si

mesma como faculdade construtora de categorias, sendo incapaz retroceder para aquém de si

mesma segundo seus pressupostos. O âmbito da liberdade, pela primeira vez, salvo exceções,

deixa de pertencer à esfera da razão natural. A decisão não mais pode ser reduzida ao cálculo, não

mais dizendo respeito, originariamente, à eleição dentre possibilidades de fato. O problema

moral, até então tão intimamente vinculado ao problema gnosiológico, deve ser com este último

posto à parte, tarefa que se consolidará em Nietzsche na última quinta parte do século. Em vez

de uma multiplicidade de alternativas dadas, o que se encontra perante a liberdade é o nada

essencial ao ser-livre, a pura possibilidade que traz consigo a angústia de já sempre estarmos

entregues à responsabilidade de ser o que (já) somos. Como escreve Nietzsche (2004d, [§343] p.

234), no profundo aforismo acerca da ambiguidade do niilismo, “provavelmente nunca houve

tanto ‘mar aberto’”. É por esta falta de solo própria ao des-amparo que caracteriza a angústia do

ser-livre que Heidegger emprega a expressão: “estar suspenso no nada”.

Ser-aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada. Suspendendo-se dentro do nada o ser-aí já sempre está além do ente em sua totalidade. Este estar além do ente designamos a transcendência. Se o ser-aí, nas raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e isso expressamos agora dizendo: se o ser-aí não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto, também não consigo mesmo. Sem a originária revelação do nada não há ser-si-mesmo, nem liberdade. (Heidegger, 2000d, p. 58)

Desse modo, quando Heidegger, como também fará Sartre, desconsidera em sua analítica

existencial a determinação do homem como ser natural ou como ser criado, inscrevendo em sua

origem um nada, tem em vista não aquela preservação de seu ser-livre a todo custo, simplesmente

fazendo uma grosseira abstração de qualquer impedimento de fato, socioantropológico ou

teológico, mas sim, mostrar que ser-homem não é apenas isto. Seu esforço é pensar o ser do

homem à parte daquilo que lhe teriam conferido a natureza ou um artífice; é pensar o seu ser

segundo aquilo que cabe a nada senão a ele mesmo fazer de si mesmo, segundo aquilo que faz

dele um produtor, não um produto da cultura. Se, por exemplo, o homem é racional por natureza e

tal determinação faz dele necessariamente isto ou aquilo, se lhe confere “liberdade” para inventar

isto ou aquilo, não é do que se ocuparão primariamente os “filósofos da existência”, mas, ao

contrário, pensarão a respeito do que o homem só pode ser a partir de si mesmo. Não

encontramos aí o abstrato formalismo tomado da física moderna e suas “condições ideais” para o

Page 186: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

186

cálculo do movimento, da gravitação, tais como ausência de atrito, inércia, vácuo, meros

conceitos desprovidos de qualquer realidade intuitiva. Neste sentido, pode-se arriscar a tese de

que Heidegger talvez tenha sido o primeiro pensador a dedicar toda uma obra à liberdade

humana em seu sentido mais próprio, amplo e radical. Todo o seu pensamento, mais do que o de

Nietzsche, pensa o homem apenas naquilo em que está irremediavelmente entregue a si mesmo,

pois sua essência é existir. Não é à toa que escreve a Beaufret estas palavras tão polêmicas e de

que tanto se ocuparia Derrida (1991):

Com essa determinação da Essência do homem não se declaram falsas nem se rejeitam as interpretações humanistas do homem, como animal rationale, como “pessoa”, como ser dotado de alma, espírito e corpo. Ao contrário, o único pensamento a se exprimir é que as determinações humanistas da Essência do homem, ainda mesmo as mais elevadas, não chegam a fazer a experiência do que é propriamente a dignidade do homem. Nesse sentido o pensamento de Ser e tempo é contra o humanismo. Essa oposição, todavia, não significa que um tal pensamento bandeie para o lado oposto do humano e preconize o inumano, defenda a desumanidade e degrade a dignidade do homem. Ao contrário. Pensa-se contra o humanismo porque o humanismo não coloca bastante alto a humanitas do homem. [...] A Essência do homem, no entanto, consiste em ser ele mais do que homem só, no sentido em que se concebe o homem, a saber, como ser vivo racional.120 Esse “mais” não se deve entender aditivamente, como se a definição tradicional do homem devesse ficar a determinação fundamental, para, a seguir, ser completada pela adição do existentivo. “Mais” significa: mais originário e, por isso, em sua Essência, mais Essencial. (Heidegger, 1967, p. 50/67)

O sentido ontológico desse “apequenamento” do homem em sua essência não é ainda

nosso tema, bastando-nos, no presente momento, pôr em relevo este que nos parece ser o

sentido geral não apenas da analítica existencial como do pensamento heideggeriano como um

todo. Afinal, o modo metafísico de pensar que caracteriza o humanismo é precisamente aquele

que levará Heidegger às questões acerca da linguagem como liberdade na clareira do ser e da

técnica como modo de ser de nosso empenho escravo na disponibilização absoluta do ente,

ambas condutoras ao tema da poesia como forma superior da techne e do logos, ou seja, aquela em

que se lhes desvela a essência.

120 Necessário enfatizar que a tematização da morte por Heidegger se insere em um amplo espectro de pensamento, que não pode ser de modo algum subestimado, desenvolvendo-se ao longo de toda sua obra desde Ser e tempo, onde lemos: “Para a ontologia da presença, ‘partir’ de um eu, destituído de mundo [i.e. simplesmente dado], para torná-lo objeto e estabelecer uma relação ontologicamente infundada com ele, não é ‘pressupor’ demais, mas de menos. Uma visão demasiado curta foi a que faz da ‘vida’ um problema e considera a morte apenas ocasionalmente. Talha-se de forma dogmática e artificial o objeto temático quando, ‘numa primeira aproximação’, este é restrito a um ‘sujeito teórico’ para então, ‘de acordo com o lado prático’, complementá-lo, acrescentando-lhe uma ‘ética’.” (2007h, [§63, p. 315-316] p. 399-400) Este trecho parece-nos, ainda, particularmente próximo ao pensamento da carta Sobre o humanismo.

Page 187: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

187

Retomando então a problemática específica do presente capítulo, há de se considerar

rapidamente, antes de prosseguir, o papel de Sartre neste movimento. As críticas de Heidegger ao

existencialismo, compreendido por ele como inversão da metafísica pela afirmação de que “a

existência precede a essência”, é bastante direta e explícita em sua carta Sobre o humanismo.

Independente do que se lê na carta (Heidegger, 1967, p. 47 et seq.) e à parte toda semelhança

encontrável na obra de Sartre ao que é dito por Heidegger e Kierkegaard – e também por

Nietzsche –, é claro que, para Heidegger, a existência não é uma fatalidade absurda a que sucede

o determinar-se livremente ao longo da vida como um quem que é. Para Heidegger, já sempre se é,

e segundo a essência de já sempre ser e ter sido, não tendo sido portanto criado ou produzido

por outro, o que se é não é senão aquilo pelo que se decidiu ser, para o que importa ser existente,

ou seja, ser para si mesmo, transcender. Em Heidegger, a essência não precede a existência, mas

também não é tampouco precedida por ela; no que diz respeito ao homem, a essência consiste

em ex-sistir. Sartre, por sua vez, em um discurso que antes lembra Nietzsche, afirmará que a

essência do homem é o que ele mesmo faz de si mesmo, como que colocando um tal poder ao

alcance do homem fático. Mais que isso, sua perspectiva acerca da transcendência da

subjetividade permite-lhe afirmar que a escolha de um homem se estende a toda humanidade – o

homem a cada instante cria todo homem; uma forma bastante refinada de superação do solipsismo

e crítica do egoísmo que, no fundo, remete à moral kantiana. Surpreende nisto não estar ao

alcance do homem não ser coisa alguma... Naturalmente, Sartre escapa desta estranha

consequência afirmando que o homem é condenado a ser livre, mas sem observar, contudo, que

tal ser-livre não seria outra coisa senão a essência do homem, condição ontológica de seu existir.

Isto não faz menos do que dar relevo ao conveniente pressuposto de que “essência” não diria

mais do que “determinação”, ou seja, o conceito de “essência” é previamente desinflado por

Sartre de maneira que ele possa afirmar categoricamente: o homem primeiro existe, e então se

determina (dá-se essência). Algo de similarmente nefasto parece se dar na Antropologia enquanto

“Ciência Social da Cultura” quando defende que não há uma essência/natureza humana

universal, mas apenas, de início, determinações culturais, cabendo à disputa o como dessas

determinações mediante o consenso moderno de que não são extrínsecas.

Por tudo isso, à parte o valor irrecusável do pensamento sartreano, especialmente no que se

refere à noção de “má-fé”, seu discurso, profundamente movido pelo espírito ideológico-

conjuntural de sua época, um horizonte hermenêutico antes de tudo político, é inegavelmente

marcado por um ímpeto que não poderia deixar de conduzir a inconsistências – na medida em

que, em vários momentos, faz parecer que podemos tomar decisões revolucionárias a cada

instante – e, sobretudo, ser apropriado como um paradoxal consolo para tempos sombrios. Seu

Page 188: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

188

comprometimento com uma nova ética humanista, se assim é lícito denominá-la, poderia ser a

raiz de sua equivocidade paradoxal, se não pouco honesta, visto que não é nada ingênua.

Barata, em seus cinco ensaios sobre o que denomina “filosofias da angústia”, comete

inegáveis injustiças contra Kierkegaard, mas especialmente contra Nietzsche e Heidegger. A

explicação disso se torna clara quando discorre tão elogiosamente sobre Marcel: sua orientação

católica evidentemente o impede de penetrar as filosofias existenciais não-religiosas em sentido

estrito – Kierkegaard é uma personalidade bastante peculiar neste ínterim121. No entanto,

apresenta, mediante a reprodução de algumas das mais célebres sentenças de Sartre, críticas com

as quais se deve forçosamente concordar sem tantas reservas e que, ao mesmo tempo, justificam

o fato de, neste momento, não nos aprofundarmos na perspectiva sartreana:

“O homem deve criar sua própria essência”. “A essência do ser humano está em suspenso na sua liberdade”. “O homem deve fazer-se e não ser senão aquilo que ele se faz”. “O homem, sem apoio nem socorro algum, é condenado, a cada instante, a inventar o homem.” “O homem é condenado a ser livre”. Quem não vê nestas frases de Sartre uma mensagem própria das ansiedades e das aspirações de nossa época? A liberdade aparece, na tela de sua filosofia, como causa e como remédio da angústia. Causa da angústia, porque a liberdade é o dom de escolher, a obrigação de tomar um rumo. E a escolha gera a angústia. O homem é um projeto permanente disto ou daquilo. Quando se decide, afinal, a realizar o projeto, sua liberdade o redime da primitiva angústia, que surgirá, contudo, sempre que o dilema da opção se reproduzir, sempre que ele – como já o dissera Heidegger – tiver de orientar-se pela existência autêntica ou pela existência inautêntica, sempre que ele enfrentar a encruzilhada trágica em que vemos, de um lado, o ser e, de outro, o nada. Ouçamos um trecho de Jean-Paul Sartre, em que ele próprio pretende mostrar o ponto de partida do existencialismo: “Tudo é permitido, se Deus não existe. O homem, por conseguinte, está abandonado, porque não depara nem em si mesmo nem fora de si mesmo uma possibilidade, a que se possa agarrar. Nem encontra desculpas para sua conduta. Com efeito, se a existência precede a essência, não será jamais possível explicar o homem por meio de uma referência a uma natureza humana determinada; em outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Como, por outro lado, Deus não existe, não vemos diante de nós valores ou mandamentos que nos legitimem a conduta” [cf. Sartre, 1978, p. 9]. Resumida assim em suas grandes linhas e em suas definições marcantes, a filosofia de Jean-Paul Sartre para logo se nos evidencia como um reflexo ou repetição de outras filosofias. Kierkegaard e Heidegger se infiltram em Jean-Paul Sartre. A originalidade do filósofo francês consiste no emprego da literatura de ficção como veículo de suas teorias e, ainda, na amplitude que deu à noção de liberdade para dela extrair uma moral nova, se é que merece o nome de moral uma doutrina que suprime todos os fundamentos racionais da ética e

121 Chega a ser curioso observar que Sartre, em sua conferência “O existencialismo é um humanismo”, distinga o existencialismo cristão do existencialismo ateu sem enquadrar explicitamente Kierkegaard em nenhum dos dois grupos, tampouco justificar sua impertinência a qualquer deles. Isto parece um tanto mal intencionado, pois o existencialismo cristão é recusado em bloco ao mesmo tempo em que temos uma evidente adesão de Sartre a Kierkegaard em vários aspectos.

Page 189: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

189

se é que se pode chamar de original uma tendência, que em Nietzsche já se afirmava. (Barata, 1961, p. 43-44)

Em primeiro lugar, eis uma equivocidade fatal no discurso de Sartre sobre a liberdade: a

inexistência de Deus não é algo que se possa afirmar categoricamente. O ponto de partida do que

é aí dito consiste em palavras de Dostoiévski, onde é importante notar o condicional “se”, que em

verdade se repete na última sentença citada, não apenas na tradução consultada por nós, diferente

da utilizada por Barata, mas no original francês – um pequeno detalhe de grandes consequências.

De todo modo, porém, a equivocidade não se dilui... A não-existência de Deus é “ponto de

partida do existencialismo” adotado por Sartre. Uma vez que tal existencialismo se proclama ateu

(sem-Deus) e que por “ateísmo” se costuma entender uma oposição às teses que afirmam a

existência de Deus, perde-se de vista aquilo que o próprio Sartre defende: que não importa ao

existencialista se há ou não há de fato um Deus criador e juiz. Pode-se até defender a impertinência

dos deuses à tarefa da filosofia.122 A existência de um bom Deus, senhor da moral, princípio da

vida e da ordem cósmica, se converte em apoio cujo efeito não é outro senão o de mascarar o

desamparo existencial, reduzir ou mesmo aniquilar a liberdade e, por conseguinte, a

responsabilidade, além de, sobretudo, promover a má-fé: “Sou o que sou e faço o que faço e o

mundo é de tal modo e não outro porque assim o quis Deus; logo, não respondo por mim nem

por ninguém”. Que a afirmação categórica sobre a não existência de Deus não faz parte do

discurso de Sartre, só verificamos no último parágrafo de sua célebre conferência:

O existencialismo não é de modo algum um ateísmo no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele declara antes: ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão; esse [é] o nosso ponto de vista. Não que acreditemos que Deus exista; pensamos antes que o problema não está aí [...]: é necessário que o homem se reencontre a si próprio e se persuada de que nada pode salvá-lo de si mesmo, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. [...] é somente por má-fé que, confundindo o seu próprio desespero com o nosso, os cristãos podem apelidar-nos de desesperados. (Sartre, 1978, p. 22; grifos nossos)

Com efeito, esta ponderação não é bastante para que deixemos de reconhecer em Barata a

interpretação corriqueira, e por isso mesmo perigosa, sobre Sartre. O próprio Sartre diz: “é

necessário que o homem [...] se persuada [se persuade]”. É, pois, um moralista. Falta-lhe ainda

perceber o que talvez lhe tenha escapado em suas leituras de Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger,

bem como de Husserl, Hegel ou Kant: que não é necessário fazer a existência preceder a essência

122 Já escreve, por exemplo, Schopenhauer (2004, [cap. XVII] p. 884): “Primeiramente, a filosofia é essencialmente a ciência do mundo; seu problema é o mundo; é com o mundo apenas que ela tem ocupação; ela deixa os deuses em paz, mas espera, em troca, que os deuses a deixem em paz.”

Page 190: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

190

para concluir que a hipótese determinista em nada afeta a tese da determinação do homem a

partir de sua liberdade, desde que pensado a partir de si mesmo e não dos pressupostos

naturalistas do psicologismo racional. Desde que Kant mostrara que a representação de causas,

enquanto condição do conhecimento empírico, nada nos diz acerca das coisas em si mesmas, e

desde que encontramos em todo conceito de “liberdade” uma dependência de tal representação,

a tarefa se mostra como sendo a de pensar a liberdade como tal, em sua essência, não sendo de

modo algum necessário fazer de toda essência um mero produto do fazer humano, que se

configura como infeliz retorno ao mais rústico antropocentrismo. A nietzscheana vontade

criadora é de tal modo hipertrofiada por Sartre (e talvez por Foucault, em certa medida, com sua

tese sobre as “técnicas de si”) que, desse ponto de vista, o pensamento termina por se fazer

“Senhor do Ser” como que em um golpe de Estado, mas é justamente isto que Nietzsche buscava

destruir ao criticar os “Senhores da Verdade”, os espíritos escravos que inventaram para si um

mundo aniquilador de toda nobreza, despotencializador de toda força – eis a ambiguidade

fundamental da vontade de poder. Contra isto, Heidegger já dissera, na mesma carta Sobre o

humanismo: “O homem não é amo e senhor do ente. O homem é o pastor do Ser. Nesse ‘menos’

o homem não perde nada. Ele ganha por chegar à Verdade do Ser. Ganha a pobreza Essencial do

pastor, cuja dignidade consiste em ser convocado pelo próprio Ser para a guarda e proteção de

sua Verdade” (Heidegger, 1967, p. 68). Antes disso (p. 60) já dissera que o Ser não é um produto

do homem, nem o Dasein é o ente por meio do qual o Ser é criado. O pensamento contrário, que

Heidegger vinculará à vontade de poder, é o oposto de toda pobreza, é o pensamento da técnica

que visa ao controle, à exploração, ao aprovisionamento e disponibilização; é o pretenso

pensamento que, em verdade, nos escraviza mais e mais. Contra a hipertrofia da liberdade

humana, já lemos em Ser e tempo:

Com a existência fática da presença, também já vêm ao encontro entes intramundanos. Que estes entes se descobrem junto com o próprio pre da existência, isto não está à mercê da presença. Somente o que, cada vez, se descobre e se abre, em que direção se faz, até onde e como se faz é que são tarefas de sua liberdade, embora sempre nos limites de seu estar-lançado. (Heidegger, 2007h, [§69, p. 366] p. 455)

Que a existência de um Deus bom, justo, onipotente e onisciente faria da vida algo

revoltante, exceto aos olhos de um Leibniz, Voltaire e Schopenhauer já o disseram, e bem

melhor, estabelecendo aí seu ateísmo. No entanto, para superarmos o Deus-criador cuja

inexistência nos tornaria mais licenciosos do que qualquer an-archeia (falta de governo, ausência de

princípio), entregues à má-fé de proclamarmos que “tudo é permitido” e nada nos compromete,

basta superarmos a crença em um Deus a que se deva nosso ser-aí, nosso estar-lançado no

Page 191: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

191

mundo, nossa responsabilidade por sermos o que somos, a crença em um Deus eterno que,

contraposto ao temporal, é o “Deus” da metafísica, já recusado por Mestre Eckhart e por

Nietzsche, que escreverá em Crepúsculo dos ídolos:

Qual pode ser nossa única doutrina? – Que ninguém dá ao homem suas propriedades; nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais ancestrais, nem ele mesmo ( – o contrassenso da representação, aqui por fim recusada, é ensinado por Kant, e talvez mesmo já por Platão, como “liberdade inteligível”). Ninguém é responsável em geral por ele existir, por ele ser constituído de tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias, nesta ambiência. A fatalidade de sua existência não pode ser separada da fatalidade de tudo o que foi e de tudo que será. O homem não é a consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita a tentativa de alcançar um “ideal de homem” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade”. – É absurdo querer fazer rolar sua existência em direção a uma finalidade qualquer. Nós inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade falta a finalidade... É-se necessariamente, se é um pedaço de fatalidade, se pertence ao todo, se está no todo. Não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo! Que ninguém mais seja responsável, que o modo de ser não possa ser reconduzido a uma causa prima, que o mundo não seja uma unidade nem enquanto mundo sensível, nem enquanto “espírito”: só isso é a grande libertação. – Com isso a inocência do vir-a-ser é restabelecida... O conceito de “Deus” foi até aqui a maior objeção contra a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em Deus: somente com isso redimimos o mundo. (Nietzsche, 2000b, [“Os quatro grandes erros”, §8; ver também §7] p. 49-50)

Poderia surpreender muitos leitores de Nietzsche a amadurecida afirmação de que nem o

próprio homem dá a si mesmo suas propriedades, sua essência, como quer Sartre, mas isto é em

verdade muito consistente em relação à proposta geral do pensamento nietzscheano, a saber, que

somos o que somos e cabe-nos apenas assumi-lo. No entanto, merece aprofundamento a ideia de

que o homem não é “consequência de uma intenção própria, de uma vontade”, o que, enquanto

recusa do livre arbítrio e da autonomia, também já fora dito por Schopenhauer. Há aqui, antes de

tudo, uma “crítica do sujeito”, bem como da vontade como faculdade espiritual, e as diferenças

entre Nietzsche e Schopenhauer a este respeito deverão nos ocupar no próximo capítulo. Por

agora, basta termos em conta que o “todo” é vontade, e subjetividade alguma tem a seu alcance

querer uma vontade, cabendo-lhe simplesmente sê-la, assumindo-a ao assumir-se como sendo o

que se é. Eis o desmascaramento operado por Nietzsche da ilusão da liberdade da vontade. A esta

ilusão pertence o Deus-morto.

Melhor “pensar-se” Deus como Kierkegaard: como detentor daquela liberdade absoluta e

infinita de poder que, como tal, nos esmaga, cabendo apenas ao crente abandonar-se – Deus:

“Aquele para quem tudo é possível”. Tal teria sido, para Kierkegaard, o incompreendido e

desconcertante abandonar-se de Abraão.

Page 192: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

192

Com efeito diz [o cavaleiro da fé]: Eu creio, sem reserva, que obterei o que amo em virtude do absurdo, em virtude da minha fé de que tudo é possível a Deus. O absurdo não pertence às distinções compreendidas no quadro próprio da razão. Não se pode identificar com o inverossímil, o inesperado, o imprevisto [categorias meramente negativas de seus contrários]. No momento em que o cavaleiro se resigna, convence-se segundo o humano alcance, da impossibilidade. Tal é o resultado do exame racional que tem a energia de fazer. Porém, pelo contrário, do ponto de vista do infinito, subsiste a possibilidade no seio da resignação; mas esta posse é, também, uma renúncia sem ser entretanto por isso um absurdo para a razão, visto que esta conserva o direito de sustentar que, no mundo finito onde ela é soberana, a coisa é e continua a ser uma impossibilidade. O cavaleiro da fé tem também lúcida consciência desta impossibilidade; só o que o pode salvar é o absurdo, o que concebe pela fé. Reconhece, pois, a impossibilidade e, ao mesmo tempo, crê no absurdo; porque, se alguém imagina ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de todo o coração e com toda a paixão da sua alma, engana-se a si próprio e o seu testemunho é absolutamente inaceitável, pois que nem sequer alcançou a resignação infinita. (Kierkegaard, 1979c, p. 136)

Um “novo Deus” seria aquele a que se resguarda o mistério próprio a um ente que nós

mesmos não somos e cuja compreensibilidade nos é, sempre e essencialmente, algo fechado. O

modo de ser de um deus é tão velado quanto o de uma pedra ou um animal, e nisto não se deve

encontrar nenhuma esperança para o “cientista”, pois o modo de ser da pedra não é de modo

algum passível de apreensão nem mesmo sob os mais rigorosos experimentos, tanto quanto não

o é qualquer modo de ser. Uma vez que Deus seja reduzido ao Juiz, como vimos, é convertido na

personificação do impessoal, um quem que não é ninguém, um “superego” ou algo que o valha. Sua

“transcendência”, tal como pensada ordinariamente, encobre a ausência própria que caracteriza o

sentido do divino. Sobre um tal deus, não há outras palavras a não ser as de um mistério para

sempre essencialmente velado, pertinente a uma temporalidade própria e una que repele toda

representação ordinária do tempo. Em um texto tardio, Heidegger retoma o pensamento

essencial de Ser e tempo acerca da temporalidade junto a uma consideração sobre o divino:

O erro de Deus e do Divino é a ausência. Mas ausência não é um nada. Ausência é precisamente a vigência apropriadora da plenitude velada do ter-sido e assim do que, reunido no modo do ter-sido, vige e é. Ausência é a vigência do divino para os gregos, para os judeus profetas, para a pregação de Jesus. Esse não-mais é, em si, um ainda-não do advento velado de seu vigor inesgotável. (Heidegger, 2007f, p. 162)

Page 193: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

6. A fuga para o ente e para as representações do ente: queda do ser-no-mundo e vontade de existir

Propositadamente, foi deixado à parte o pensamento de Schopenhauer no capítulo

anterior. Entretanto, agora sua retomada se faz pertinente e mesmo necessária à continuidade de

nosso estudo a fim de questionarmos mais a fundo o sentido de nossa adesão ao “mundo da vida”,

às ocupações do ente, bem como o caráter existencial de nossa finitização. Uma vez que

encontramos na tematização da angústia uma via privilegiada, comecemos pela busca de algo

correlato em Schopenhauer. Em seguida, aprofundaremos a concepção schopenhaueriana de

Vontade como ímpeto para a existência, querer-ser originário independente de todo querer como

princípio do agir, desenvolvendo-a em contraste à vontade de tipo nietzscheano, dirigida ao

poder, e atentando para controvérsia estabelecida entre vontade-de-viver e vontade-de-poder.

Nesse ínterim, passaremos ao sentido do vazio da existência e à questão do nada e sua

nadificação como possibilidade da liberdade ao mesmo tempo em que originariamente põe em

movimento a fuga para a decaída existencial. Por fim, deverá ser desenvolvido o sentido

ontológico desta fuga como empenho junto aos entes dados no mundo e da morte como destino

elucidativo da existência como querer ser-no-mundo livre para-a-morte.

6.1. A angústia em O mundo como vontade e representação

Schopenhauer não tematizara a angústia, tampouco a liberdade como essencial ao ente

determinado que somos, mas somente aquela liberdade própria à Vontade como coisa-em-si – a

Vontade que somos, não apenas nós homens, mas todo ente –, pois, afinal, cada homem

individual não é menos determinado do que qualquer outro ente na natureza. Encontramos

algumas dezenas de ocorrências de “Angst” e seus derivados em todo O mundo como vontade e

representação (inclusos os Suplementos), muitas vezes ao lado de “Leiden”, “dor”, “padecimento”,

“sofrimento”. As ocorrências se dão crescentemente e, como se esperaria, de modo mais

expressivo no livro IV.

Em princípio, a palavra “Angst” indica sempre aí um sentimento, sobretudo de inquietação,

ansiedade, agitação ou mesmo algo mais intenso como aflição ou tormento, acepções que

merecem especial destaque. Como exemplo, tomemos a referência de Brum (1998, p. 30), cuja

citação de Schopenhauer, extraída do capítulo XXVIII dos Suplementos, é por nós adequada: “A

Page 194: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

194

natureza é uma ‘agitação sem trégua’, um ‘impulso impetuoso em direção à existência’

[Schopenhauer, 2004, p. 1078]. [...] Enquanto indivíduo, ele [o homem] não vê o caráter

monótono e opressivo da vida das espécies – modelo exemplar da vida da Vontade em geral.”

No original, lemos “diesem rastlosen Treiben, diesem ungestümen Drängen ins Daseyn, dieser ängstlichen

Sorgfalt für die Erhaltung der Gattungen”, onde o complemento diz respeito ao “inquieto zelo [Sorge]

pela conservação das espécies”. A angústia é, portanto, em geral, um mau sentimento entre

outros, sem nada de muito peculiar que de fato mereça tematização específica. Sequer é algo

especificamente humano, chegando a se falar de uma angústia da natureza no capítulo XXXII

dos Suplementos, como um temor ou terror instintivo, qual aquele que se tem mediante a

representação de um perigo ou perante a morte (capítulos XIX, XXVII e XXVIII dos

Suplementos e, antes, no §54). De todo modo, vale destacar algumas acepções derivadas que são

de maior interesse.

Comecemos por esse “temor da morte”. No §54, Schopenhauer (2004, p. 358) introduz o

tema observando a curiosa raridade deste sentimento que, como veremos mais adiante, é de suma

relevância existencial. De fato, não se pensa a morte tanto quanto dela cotidianamente nos

esquivamos. Embora continue pertencendo a Heidegger o mérito e a originalidade da

tematização do ser-para-a-morte e da angústia que o caracteriza – isto ao menos para além da

escatologia cristã –, pode surpreender lermos em Schopenhauer a palavra “Todesangst”, que diz,

literalmente, “angústia da morte”. A expressão retorna no Suplemento correlato, o capítulo XLI,

onde a Todesangst é caracterizada como o pior dos males, um temor a priori e o avesso (Kehrseite) da

vontade de viver (p. 1205-1206). Mais interessante notar que há uma ênfase expressa no fato de

“Todesangst” ser imediatamente precedida por “Angst”: Angst Todesangst, como que indicando se

tratar de uma angústia/inquietação da angústia-da-morte. É evidente, contudo, que aí prevalece a

acepção de Angst como temor, mesmo porque se relaciona à ilusão do princípio de individuação,

ou seja, o indivíduo teme sua própria aniquilação (p. 1249-1250). Afinal, ser-indivíduo é o único modo

de ser que lhe é concebível; perdê-lo significa nada ser. Isto certamente nada tem a ver com a

angústia heideggeriana que se angustia com o ser-para-a-morte, não com a morte como um ente ou

“fatalidade da vida natural”. Por sua vez, esta constatação carrega ainda certa ligeireza... Angst

Todesangst é dita a priori e avesso da vontade de viver! Trata-se de um mal constitutivo; enquanto tal,

independe daquela representação subjetiva a posteriori do indivíduo temeroso da própria

aniquilação, de que já tratamos acima. Isto deve nos indicar que não podemos reduzir esse mal ao

simples temor ou precipitadamente aos instintos, muito embora se o represente como tal.

A morte, para o entendimento e para a razão abstrata, é totalmente desprovida de sentido;

a morte é o pior dos males não porque subjetivamente sofremos por ela mais intensamente e

Page 195: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

195

continuamente – pelo contrário: pouco se sofre por ela a não ser quando iminente, quando se

converte em possibilidade de fato em nossas representações incapazes de “ver” além dela, e

mesmo assim sofre-se antes pela “perda”, pela ausência do que morre, ou do que não mais estará

disponível, que se torna iminentemente indisponível, não pela morte como morte. Logo, é o pior

dos males pelo angustiante mistério e pela absurdidade que o caracterizam. “A priori”, embora

signifique necessário, nada tem a ver com “o mais segura e universalmente conhecido”, mas sim:

o insondável pelas representações por lhes anteceder. Como dirá Heidegger (2007h, [§50, p. 251] p.

326-327),

De início e na maior parte das vezes, a presença não possui nenhum saber explícito ou mesmo teórico de que ela se ache entregue à sua morte e que a morte pertença ao ser-no-mundo. É na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desvela para a presença de modo mais originário e penetrante. A angústia com a morte é angústia “com” o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. O próprio ser-no-mundo é aquilo com que ela se angustia. O porquê dessa angústia é o puro e simples poder-ser da presença.123 Não se deve confundir a angústia com a morte com o medo de deixar de viver. Enquanto disposição fundamental da presença, a angústia não é um humor “fraco”, arbitrário e casual de um indivíduo singular e sim a abertura de que, como ser-lançado, a presença existe para seu fim.

Analisemos, pois, a outra caracterização: Como afirmar que essa angústia da morte seja o

avesso da vontade de viver se, de fato, é enquanto manifestações da vontade de viver que nos

prevenimos contra a morte e somos capazes de qualquer coisa para escaparmos dela e, muitas

vezes, evitarmos qualquer contato com seu fato? Dito de outro modo: Não seria a angústia da

morte a mais remota manifestação da vontade de viver, como “angústia da natureza”, anterior até

mesmo à vontade de procriar, dando-se em unidade com o próprio instinto de conservação mais

rudimentar? Não, mesmo porque, sendo a vontade-de-viver ela mesma indestrutível e atemporal, de modo

algum a angústia da morte pode lhe ser pertinente, de maneira que falar de um “temor instintivo da

morte” parece um tanto inconsistente quando se trata de uma vontade em si mesma puramente

afirmativa. Mas de que modo será pertinente à existência se sequer ocupa nossas representações

na maior parte do tempo? Justamente porque se evita mesmo o pensar a morte em sua faticidade

nos empenhamos na vida sem jamais pensarmos o sentido desse empenho, sendo nisto que

devemos concentrar nossas atenções. Como mostrará Heidegger, tal sentido se nos mostra

adequadamente na medida em que se nos abre o ser-para-a-morte como possibilidade (poder ser-

para), não como um mero fato (poder simplesmente dar-se ou não). Nossa ocupação ansiosa no mundo

da vida, que ordinariamente nos coloca a cada vez na perspectiva de um futuro sem-fim, se radica

123 Esta sentença não se encontrava traduzida em edições anteriores, mas omitida.

Page 196: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

196

na fuga originária da morte incontornável como o fim, não no temor apaziguável por uma crença

ou boa consciência à maneira do que diz Sócrates no Fédon de Platão.

No dizer de Schopenhauer (2004, p. 1206), chega a parecer insensato fazer provir do

conhecimento ou da reflexão o apego irrestrito à vida. Não se trata, por sua vez, de mero

pessimismo querer mostrar que não há justificativa para tal apego... Com efeito, de tão irrefletido,

tendemos a relegar este comportamento “tão natural” ao âmbito dos instintos, mas isto,

negativamente, por mera falta de resposta (racional) satisfatória... Pensar a morte é comumente

tido como um comportamento sombrio, melancólico, e até mesmo quase tão impertinente e

incômodo como a própria morte – uma doença que exige psicoterapia, senão fármacos! É sabido

o menosprezo com que tais acusações foram sempre dirigidas a pensadores como Schopenhauer

e também aos existencialistas, tematizadores da angústia, da morte, do desespero, da solidão, do

tédio, do desamparo, da ausência de justificativa para a existência – enfim, de tudo aquilo que

aponta o vazio dos empenhos cotidianos. A dor da morte, porém, acomete a quase todos que se

veem diante dela, importando pouco para nós, aqui, se essa dor se deve a esperanças frustradas,

arrependimentos não expressos, negócios inacabados, medo da aniquilação ou, pelo contrário, do

que se haverá de viver no além etc. – enfim, a representações quaisquer. Por mais inverificável

que seja a famosa premissa de que “todos os homens são mortais”, o fato é que não se a

questiona em sua totalidade – haver ou não uma “vida eterna” não exclui a “certeza” de que a

vida do indivíduo na terra tem um fim bastante próximo, mas não imediato.124 Não é à toa que

uma das maiores e mais recorrentes bênçãos divinas no Antigo Testamento é o “aumento de

dias”, o prolongamento da vida, ao lado da “geração de muitos povos”, uma vida prolongada por

uma vasta descendência, a sempiterna honra do nome – tais bênçãos implicam uma “certeza” da

mortalidade, é certo! No entanto, a conclusão “Se sou homem, então morrerei” é como que

extraída imediatamente sem ser adequadamente pensada. O ponto relevante, por sua vez, é que a

razão, como insistia Schopenhauer, se mostra completamente escrava da vontade de viver neste

assunto, produzindo todo tipo de representações que possam de algum modo remediar esse mal,

não apenas no sentido de prover ao homem crenças na imortalidade da alma – que Schopenhauer

apenas admite como alegoria para a indestrutibilidade da coisa-em-si –, mas, em especial,

justificativas para a mortalidade, tarefa assumida decididamente pelas ciências nos últimos tempos.

124 Para uma análise mais profunda acerca do modo cotidiano e impessoal como se “pensa” a morte, bem como do ocultamento de seu caráter ameaçador e, portanto, da angústia que lhe é peculiar, ver o primoroso §51 de Ser e tempo. Ali se explicita todo o empenho decadente de tranquilização consoladora e preocupada a respeito da morte. Extraímos apenas o seguinte trecho: “O impessoal ocupa-se em reverter essa angústia num medo frente a um acontecimento que advém. Ademais, considera-se a angústia, que no medo se torna ambígua, uma fraqueza que a presença segura de si mesma deve desconhecer.” (Heidegger, 2007h, [p. 254] p. 330) Sobre a suposta certeza “meramente empírica” sobre a morte, bem como seu modo de encobrimento do “ser possível a todo instante”, ver também o §52.

Page 197: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

197

Já vimos antes que a vida ordinária não suporta a ausência de sentido, o absurdo, o nada, o

mistério, e aproximamo-nos agora da tematização preliminar dos modos de fuga para o abrigo

dos pretensos “sentidos” para a existência. Se as doutrinas da imortalidade da alma, ou mais

ainda, da ressurreição, vêm satisfazer o interesse mais imediato da vontade de viver e remediar seu

sofrimento perante a perspectiva da aniquilação do indivíduo, as doutrinas da culpa originária, ou

mesmo aquelas que fazem da Criação um erro de falsos deuses, deuses inferiores ou demônios,

em cada caso, vêm satisfazer o interesse mediato do entendimento, qual seja, o de encontrar para

tudo isso uma causa. A cada qual desses interesses a razão abstrata oferece seus serviços e, em cada

caso, a morte se encontra convertida em mero objeto do entendimento. Mesmo os pensadores

orientais que apontam como beatitude o fim do círculo de nascimentos e mortes (sansara) se

inserem decididamente na mesma “lógica” do encobrimento.

Não faz parte de nosso propósito tecer comentários antropológicos sobre a diversidade

com que as diferentes culturas lidam com isto, lidaram ou haverão de lidar futuramente.125 Por

isso mesmo não devemos nos ater a considerações dialéticas do tipo: “O homem odeia a morte

por amor à vida” ou “O homem ama a vida por ódio à morte”. Isto nos parece por demais

variável, incerto e, sobretudo, insuficiente na medida em que diz respeito às experiências que se

tem ou se pode ter dos respectivos fenômenos. Basta que observemos o maior alcance desta fuga

comparada à já indicada mera culpabilização da existência pela moralidade cristã, um

desenvolvimento posterior e certamente mais sofisticado, nascido quando já se tem a experiência

desenraizada da exigibilidade de uma Ética. Em síntese – isto podemos concluir, por enquanto –,

a absurdidade própria à fatalidade da morte “exige” o movimento incessante da autoafirmadora

vontade de viver no sentido de fazer da razão o instrumento pelo qual se produz (representa) para

a vida um sentido sem o qual o homem não suportaria sua existência, e se isto acomete o homem

como a nenhum outro ser vivo deverá ter um sentido existencial com o qual deverá concorrer a

natureza de suas representações. Não se admite facilmente que a vida tenha como ponto de chegada

125 Encontrando-se o saber-a-morte, segundo Schopenhauer, na raiz da necessidade metafísica do homem, tal necessidade se pretende suprir segundo duas vias: a da religião e a da metafísica propriamente dita, isto é, da filosofia. Como no caso da filosofia, Schopenhauer divide as religiões em dois grupos: otimistas e pessimistas. “Umas consideram a existência deste mundo como tendo sua razão de ser nela mesma, a louvam e celebram. As outras a consideram como alguma coisa que só poderia ser concebida a título de consequência de nossos pecados e que, por conseguinte, não deveria ser.” (Schopenhauer, 2004, [cap. XVII] p. 863) Partindo do pressuposto de que nada vem do nada, concluiu-se que “a dor e o mal moral devem ter sua razão na origem, na essência do próprio mundo”, tendo sido para desembaraçar-se desse mal que se inventou o livre-arbítrio, “uma criação ex nihilo dissimulada, já que supõe um ‘operari’ que não provém de nenhum ‘Esse’” (id., ibid., p. 865). Ora, como mostra Schopenhauer na monografia Sobre a liberdade da vontade, isto supõe, por sua vez, “uma existentia sem essentia; o que quer dizer que algo é mas ao mesmo tempo não é nada” (Schopenhauer, 2002, [p. 58] p. 89). Para Nietzsche (1999, [III, §28] p. 148-149), o problema da falta de sentido para a existência precede o do sofrimento, e mesmo o determina desde a raiz, encontrando-se na origem da vontade de nada. O melhor argumento a favor da qualificação de Schopenhauer como pessimista parte do fato de, tendo dividido o pensamento em apenas duas espécies, adotar para si a tese do segundo grupo. Contudo, mais adiante, relativizaremos o sentido que lhe confere Schopenhauer.

Page 198: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

198

(ou de partida) o abismo do nada, o absurdo. Se, por um lado, é inconveniente e até ultrapassada

esta aparente personificação da vontade de viver e essa instrumentalização da razão submetida a

tal “entidade” – i.e. a Vontade schopenhaueriana –, por outro, abre-se-nos uma via de

compreensão acerca do encobrimento da angústia da morte como fenômeno existencial

originário. Ademais, já questionamos suficientemente a entificação da Vontade, e mais adiante

procuraremos aprofundar isto de maneira definitiva.

Nesses termos se esclarece que a angústia da morte – irredutível ao sentimento adquirido com

a experiência, de que se deve distingui-la muito embora Schopenhauer o ponha em grande

evidência – não é mera expressão da vontade de viver, mas, ao contrário, “aquilo” que a coloca

em fuga. Não uma fuga de querer-viver, mas seu aguçamento; uma fuga encobridora da própria

essência da Vontade – o sentido do empenho interessado na vida – e da morte como morte – o

sentido da finitude humana. A fuga mesma é o indício da impertinência da morte à vida.126 A

angústia da morte difere muito do temor patológico suscitado excepcionalmente pelo perigo de vida

efetivo ou possível, mas sempre já determinado, i.e., representado.

Ninguém duvida de que se morre. Esse “não duvidar”, porém, já não precisa incluir em si o estar-certo, que corresponde àquilo que a morte introduz na presença enquanto possibilidade privilegiada [...]. A cotidianidade para no momento em que admite ambiguamente a “certeza” da morte a fim de enfraquecê-la e aliviar o estar-lançado na morte, encobrindo ainda mais o morrer. [...] [...] A certeza inadequada mantém encoberto aquilo de que está certa. Se a compreensão “impessoal” da morte é a de um acontecimento que vem ao encontro dentro do mundo, então a certeza a ela relacionada não diz respeito ao ser-para-o-fim. (Heidegger, 2007h, [§52, p. 255-257] p. 332-333)

Sob a perspectiva da vontade de viver individualizada, que encontra nas representações da

razão seu suporte, a morte é cotidianamente medida em conformidade à vida, recebendo então

explicação e justificativa. A morte é cada vez mais afastada do âmbito da Metafísica na medida em

126 A essencialização do homem como mortal, portanto, exigirá o contrário da fuga – a demora. O demorar-se é mais próprio não apenas porque significa o comportamento essencial e próprio do pensamento, a serenidade, mas porque também exprime outro aspecto essencial do ser-no-mundo: o habitar (de-morar). No texto da conferência “... poeticamente o homem habita...”, lê-se: “O homem se essencializa como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser capaz da morte como morte. Somente o homem morre – e, na verdade, continuamente, enquanto se demora sobre esta terra, enquanto habita.” (Heidegger, 2007g, p. 173) Não se trata de dizer, como afirma o senso comum, que estamos fisiologicamente degenerando continuamente até uma falência total do organismo, tampouco de um recordar-se casual e esporádico de que um dia morreremos, mas sim, que nessa demora pensante, abre-se a cada vez nosso ser-para-a-morte como possibilidade extrema, a possibilidade da impossibilidade de estar-aí. Sobre o sentido do habitar, ver o texto da conferência “Construir, habitar, pensar”, de Heidegger (2007e).

Page 199: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

199

que é a cada vez aproximada da Biologia e por ela apropriada.127 A impertinência essencial da morte

às representações do mundo da vida é cada vez mais abafada pelo domínio quantificador das

ciências naturais e das artes médicas que se nutrem de estatísticas e manipulações laboratoriais

sobre materiais disponíveis. No entanto, isto não quer dizer que angústia da morte e vontade de

viver sejam contrapostas numa dualidade. Ao invés disso, reconhecemos uma unidade

constitutiva, explicitada por Schopenhauer através do termo “Kehrseite”, “avesso”, que nomeia

esta relação liberando-a de toda mera oposição de contrários imposta pela lógica.

O “temor” a priori da morte é o avesso da vontade de viver, diz ele. Avesso não significa

um polo oposto, a outra extremidade do mesmo; não qualquer lado, mas aquele ocultado que, no

entanto, é alteridade inerente e sobre a qual se estende por completo todo “lado direito”, como a

sombra no verso de toda superfície iluminada. Trata-se da relação verso-anverso; o verso é o lado

voltado para o ocultamento – Kehre, volta; Seite, lado. Verso e anverso, um de costas para o outro,

são duas superfícies de um só plano sem jamais se poderem vislumbrar uma a outra; uma unidade

absolutamente inconciliável, mas necessária. A propósito, a acepção “reverso”, explicitada de

modo muito feliz pela tradução francesa, onde a palavra alemã é vertida para “revers”, não diz

apenas o movimento de conversão, de pôr-se de volta, mas também traduz o caráter de revés,

infortúnio e desgraça que tanto inspiram o sentimento negativo de Schopenhauer com relação ao

mundo da vida e tão gravemente se exprime na doutrina do Pecado Original – à vontade de viver

é inerente um revés, uma dívida impossível de se liquidar, uma espécie de maldição. Voltar-se

para a Kehrseite é realizar um movimento de conversão (o virar-se em sua totalidade) pelo qual se

re-verte a afirmação da vontade mediante a qual tudo parece dotado de sentido, é lançar o olhar

para o absurdo essencial da existência possibilitando uma compreensão mais originária acerca da

127 A origem disto, no âmbito do pensamento ocidental, remonta a Aristóteles. Como nos mostra Aubenque (1997, p. 470-472), a morte é tratada por Aristóteles como reveladora da essência do vivente, sobretudo do homem. Não havendo diferença aparente entre um corpo vivo e um corpo morto, a morte revela negativamente que a essência do ser vivo não reside em seu corpo, mas na alma, e também que ao cadáver, faltando-lhe a essência do ser-homem como ser-vivo, não é um homem propriamente dito. O homem é sua vida, ou sua alma; suprimindo-a, deixa de sê-lo. A morte é então compreendida por Aristóteles, ainda no âmbito da Metafísica, como fenômeno que mostra a diferença específica entre os gêneros dos seres animados e inanimados. É porque o homem morre que se reconhece sua determinação como ser vivo (zoon), e é enquanto ser vivo que ele secundariamente se diferencia dos demais animais enquanto dotado de razão (logon echon). Conforme diz Heidegger (2007f, p. 156): “A metafísica [...] apresenta o homem, representando-o, como animal, como ser vivo. Mesmo com a animalitas atravessada e regida pela ratio, o ser homem se determina pela vida, seu viver e suas vivências. É da e pela vida racional que os mortais devem, então, vir a ser mortais”. Seguindo-se esta orientação, a própria racionalidade se verá reduzida às funções fisiológicas e todo fenômeno humano será subsumido à apropriação das ciências da natureza a partir do momento em que a racionalidade é uma possibilidade da vida. Vale lembrar as palavras de Safranski (1991, p. 291): “quando um biologismo materialista empobrecido, com pretensões metafísicas, define a vontade como força capaz de extrair da matéria toda a plenitude de formas dos seres vivos; quando se reduz o vivo a química, mecânica e física, apelando à batida e jactanciosa fórmula ‘não é nada mais que’, abusivamente aplicada. Se trata, em tal caso, dessa imanência evidente, e portanto trivial, da ciência da natureza, que muito pouco tem a ver com a imanência de Arthur Schopenhauer. A imanência de Schopenhauer responde a uma questão metafísica (que é a ‘coisa em si’?); a imanência da ciência da natureza exclui desde o princípio qualquer problemática desta índole.”

Page 200: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

200

mesma. Heidegger (1993) dará ainda um sentido muito peculiar à palavra “Kehre”, tematizando-a

em escrito homônimo onde podemos ler, abrindo um parêntese:

Enquanto perigo o Ser se volta ao esquecimento de sua essência, a grande distância desta essência e, assim, se volta, ao mesmo tempo, contra a verdade de sua essência. No perigo impera esse voltar-se, todavia não meditado. Por isso, na essência do perigo se oculta a possibilidade de uma volta, na qual o esquecimento da essência do Ser se volte de tal maneira que com esta volta, a verdade da essência do Ser ingresse propriamente no ente.128 [...] A volta do perigo acontece-apropria repentinamente. Na volta se ilumina repentinamente o luzir da essência do Ser. O repentino luzir-se é o relampejar [blitzen, repentino como o piscar de olhos, Augenblick]. Trai-se a si mesmo na própria claridade, levada e trazida consigo. Quando relampeja na volta do perigo da verdade do Ser, se ilumina a essência do Ser. Então ingressa a verdade da essência do Ser. [...] [...] O acontecimento-apropriador do esquecimento se deixa decair não apenas no ocultamento, mas este decair mesmo é co-decaído no ocultamento, e este mesmo é omitido nesta queda.

Naturalmente, o perigo não consiste no “perigo de vida ou morte”, mas no esquecimento

do Ser. Assim também se dá com a liberdade da vontade, decaída e ocultada de si mesma, em

cuja queda, encoberta para si mesma, a mortalidade aí mesmo fixada se vela no “mundo da vida”,

que não deixa de ser o “mundo” do esquecimento do Ser. Fechando este breve parêntese,

tornemos a Schopenhauer.

No §39 de O mundo..., Schopenhauer (2004, p. 263) emprega o termo “beängstigt” justamente

para indicar a “inquietação” da vontade perante a impertinência do ente no estado de desinteresse

– vimos já a centralidade desta noção no sentido da elucidação da negação da vontade de viver.

Mas não é só isso. Vem corroborar as presentes considerações um outro termo derivado que se

vincula precisamente à mais elevada forma de superação do princípio de individuação: o

sentimento de compaixão. Trata-se da Gewissenangst, que aparece pela primeira vez no §55,

retornando nos §§62 e 65, especialmente neste último. Ordinariamente traduzida como “remorso

da consciência”, ou simplesmente “remorso”, a expressão diz, literalmente, “angústia da

consciência”, distinguida enfaticamente por Schopenhauer (2004, p. 377) do mero

arrependimento – em alemão, Reue.129

128 V. tb. Heidegger, 2007b, p. 30-31. 129 Deve-se observar que a tradução por “remorso” não é boa, senão muito equivocada, não apenas porque nosso idioma não o distingue claramente de “arrependimento”. Com correção, Nietzsche tematizará o remorso, que significa “morder de novo”, como a atitude de adiar a “digestão”, o processamento de algo que deveria ser definitivamente “engolido”. Ter remorso significa remoer, ruminar, que nos remete ao latim “ruma” (“esôfago”, “estômago”) e “rumen” (“o mesmo que o anterior”), ou seja, “ruminar” é mastigar (mais uma vez) o que vem de dentro, do estômago, o que já fora mastigado. A metáfora é muito rica e, no contexto do pensamento nietzscheano,

Page 201: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

201

Com relação à Gewissenangst, nosso caminho interpretativo há de ser bem menos tortuoso

do que com relação à Todesangst, porém não menos significativo. No §65, Schopenhauer (2004, p.

459-462) denomina “angústia da consciência” o sentimento de ligação entre toda vontade e toda

dor na célebre imagem da identificação entre o carrasco e sua vítima. Esta identificação não

consiste em uma “má consciência”, um arrependimento por um ato que, a partir de reflexões

(representações) ulteriores, preferir-se-ia não ter cometido. Pelo contrário, o remorso, desatrelado

da representação egoica, faz emergir o reconhecimento da imutabilidade do caráter empírico, ou

seja, da impotência do eu sobre a vontade que já sempre manifesta: cada um de nós já sempre foi e

é a vontade escolhida, determinada como indivíduo, e sempre a será. Não se escolhe a vontade,

tampouco o indivíduo que já se é em sua determinidade; é a vontade a escolher – o que uma vez

somos, sempre seremos, não passando de ilusão a representação de que podemos vir a ser

diferentes de nós mesmos. Nesse sentido, “tornar-se o que se é” nada tem a ver com um

autoconhecimento do sujeito, mas com uma autoadmissão da vontade. Quando se dá a misteriosa

identificação, iluminada pelo reconhecimento da unidade da Vontade, há uma inconformidade

com a individualidade determinada que se é à luz da infinitude do possível, sem qualquer

esperança de mudança. Encontramos aí mais uma vez em Schopenhauer, portanto, a angústia

vinculada a “uma visão clara” de que a vontade que somos jamais “deixou de ser essa mesma

vontade”, um conhecimento possível, segundo escreve Schopenhauer no §55, apenas do ponto de

vista do mundo como vontade. Como foi dito, no simples arrependimento não há essa consciência,

mas apenas uma modificação nas representações, representações inevitavelmente temporais no sentido

mais corriqueiro do termo – isto mesmo indica o caráter a posteriori de toda má consciência que

toma o próprio eu como seu objeto.

Mais adiante, ainda no §55, o remorso também é designado Seelenangst, “angústia da alma”,

indicando desta vez um sentimento negativo com relação ao fato de apenas mediante nossos atos

tomarmos conhecimento do caráter de nossa própria vontade individual, nosso caráter empírico,

determinado. Nesses termos, Schopenhauer (2004, p. 383) parece tratar do angustiante tormento

de não se saber quem se é, ou seja, não termos conhecimento a priori do caráter inteligível que nos

constitui essencialmente e fenomenalmente manifestamos – o sujeito conhecedor, a que não se

que apela repetidas vezes à imagem da digestão, se aplica ao homem do ressentimento. Mais do que o arrependimento, pelo qual o homem se sente meramente culpado por algo, o ressentimento consiste em um impedimento, em um não deixar as coisas passarem, mas, ao contrário, mantê-las sempre presentes. A descarga para fora é inibida produzindo uma “interioridade” (Nietzsche, 1999, [II, §16] p. 73). Enquanto a deglutição definitiva permitiria a continuidade do processo digestivo que terminaria por expelir aquilo de que a vida não necessita, o homem do ressentimento o mantém em sua boca até que perca todo o gosto, sem jamais pô-lo para fora de si. O homem do ressentimento é ruminante, guarda em si o que não tem valor nutritivo ou sabor até torná-lo prejudicial. “Ruminar um pensamento” tem o mesmo caráter para Nietzsche. No entanto, não é exatamente disto que trata Schopenhauer, mas de algo de que não se pode escapar, nem alienar, pois diz respeito ao que nós somos em particular.

Page 202: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

202

aplica o princípio de razão, não é conhecido. De tal tormento também fugimos cotidianamente

na medida em que acreditamos no “autoconhecimento”, ou seja, no suposto fato de termos uma

personalidade coesa, previsível para nós mesmos e para os outros – aí se pretende fundar

confiança, respeito e, com relação aos outros, uma certa exigência de tratarmos e sermos tratados

de modo “apropriado”. Autoconhecimento, ao invés de um estado positivo, ordinariamente

significa buscar familiaridade consigo mesmo, identificação com o próprio eu – em uma palavra,

autoencobrimento. Trata-se aí da tomada de um objeto (o eu) no lugar do sujeito incognoscível a

fim submetê-lo a representações tranquilizadoras, asseguradoras.

Portanto, apesar do emprego em geral tão inadequado do termo “angústia” por

Schopenhauer em comparação às filosofias da existência, percebe-se, por meio de uma

consideração ao mesmo tempo mais pontual e abrangente de expressões como “Todesangst”,

“Gewissenangst” e “Seelenangst”, o quão profícua pode ser sua contribuição para nosso tema, o que

não deixou de exigir um longo trabalho de preparação. O que já se pode concluir daí é que o

advento da existência individual se liga essencialmente à mortalidade, e isto de um modo muito

distinto daquele tradicionalmente tematizado pela metafísica, a saber, apelando a razões. Não

apenas a morte é absurda, inescapável, misteriosa; assim também é a vida e o que nós mesmos

somos de fato – vida e morte são faces de uma só fatalidade. Os fenômenos envolvidos se

encobrem ou desencobrem uns aos outros como em um jogo de véus – o jogo do “véu de

Maya”, como prefere Schopenhauer em suas alusões à sabedoria hindu. Diante disto,

reconhecemos nos escritos de Schopenhauer algo que pensamos certamente ganhar novo

contorno à luz da filosofia existencial em sua tematização da liberdade originária. Não se trata de

aplicar arbitrária e anacronicamente a Schopenhauer um pensamento que não lhe diz respeito,

mas, pelo contrário, de lançar luz sobre a questão por ele já lançada. A propósito, o significado da

afirmação de que tudo que nos rodeia é vontade não é de modo algum esclarecido.

Tomando em especial as considerações acerca da Kehrseite, onde encobrimento da morte e

culpabilidade da vontade de viver vêm à luz conjuntamente, partamos agora da consideração

schopenhaueriana acerca do Pecado Original, também estudado por Kierkegaard e, como vimos

há pouco, pertinente ao diálogo com a analítica existencial de Heidegger. Em síntese, trata-se da

questão da queda do homem no mundo na condição de ser-mortal por sua própria decisão originária. Em que

consiste esta queda, a que se deve e o que se dá por ela? Eis nosso fio condutor no presente

momento.

Page 203: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

203

6.2. A vontade de existir como livre querer originário

Segundo as palavras do próprio Schopenhauer ([2003b], [§156] p. 394), somente o que o

“concilia com o Antigo Testamento é a história do pecado original” enquanto “única verdade

metafísica que ali se encontra”, embora alegoricamente, sob a roupagem do mito. Tal verdade

consiste na concepção de que “o mundo é obra de nossa culpa, e portanto como algo que seria

melhor não ser”, significando uma “acusação de nosso próprio ser e nossa própria vontade”. A

mesma tese aparece no capítulo XLVIII dos Suplementos a O mundo como vontade e representação:

“somos o que não deveríamos ser, somos obrigados a fazer o que não deveríamos fazer”

(Schopenhauer, 2004, p. 1371). Nesse sentido estaria correto o Cristianismo ao conceber “a nossa

existência como consequência de uma culpa” ([2003b], p. 396).

Como recorda Schopenhauer ([2003b], p. 394), o criador leibniziano “não criara

simplesmente o mundo, mas também a possibilidade”130. Muito embora Schopenhauer evoque o

mito do Pecado Original no contexto de uma “explicação” para os sofrimentos e misérias da vida

humana, é legítimo que não o tomemos por tão pouco – seja o que o mito representa para

Schopenhauer, seja o propósito da própria tese schopenhaueriana em seu todo. Afinal, como

vimos, “explicações” pertencem ao âmbito das representações e vêm atender ao que

Schopenhauer denomina “necessidade metafísica do homem” – “necessidade” (Bedürfniβ) no

sentido de pobreza, carência (Bedürftigkeit), deve-se ressaltar, uma pobreza ou carência de

significância para si mesmo, de explicações para vida e morte. Penetrando um pouco mais em seu

pensamento, salta aos olhos o sentido mais preciso de “somos o que não deveríamos ser” e

“como consequência de uma culpa”... Não somos obra de um criador – daí seu ateísmo –, mas

nossa própria obra – daí nossa culpa inalienável e originária, que, na ausência de um criador, não

remete a alguma ação executada por nós quando já éramos. Seria certamente fazer muito pouco

caso de um pensador tão ousado e competente em suas críticas interpretá-lo como buscando

encontrar nas inumeráveis dores do mundo justificativas para o ateísmo ou se contentando com

130 Sobre este ponto, pelo qual Schopenhauer passa tão depressa, redigimos uma longa nota em nosso quarto capítulo. Observe-se que a formulação encontrada nos Parerga e paralipomena ([2003b]) não é a mesma de O mundo... (2004). No primeiro caso, temos a ênfase na possibilidade: o mundo poderia não ser, e isto seria melhor. Aqui, Schopenhauer polemiza contra a tese leibniziana de que este é o “melhor dos mundos possíveis”, um mundo onde há livre arbítrio e que daí tira sua existência, uma tese em resposta ao determinismo espinosano. Por sua vez, Schopenhauer, que recusa a tese do livre arbítrio, afirma uma culpa de nossa vontade, mas oriunda não de nosso agir, mas de nosso ser, aproximando-se assim de Espinosa. Que se trata não de uma liberdade de arbítrio, mas de uma livre determinação da essência, fica claro na segunda formulação, que, por sua vez, afirma a impossibilidade de sermos de outro modo, muito embora o “devêssemos”. O primeiro ponto de vista contempla a existência do mundo com um todo, o mundo como Vontade e considerando sua liberdade; o segundo, a predeterminação do caráter, o mundo como representação e considerando sua necessidade. A unidade destes dois pontos de vista é o que ora deve nos ocupar.

Page 204: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

204

elas; Schopenhauer procura antes nos apontar aí uma “evidência” – melhor dito: a manifestação de

uma ausência... de sentido.

Em verdade, ao invés de um banal blasfemo, pode-se reconhecer em Schopenhauer alguém

para quem um Deus, digno deste nome, deve ser verdadeiramente bom e justo. Dizemos isto

pois, caso contrário, por que não admitir o criador como causa eficiente de todo mal? Não seria

isto mais fácil (sob pena de desresponsabilizar o homem e, depois disso, nada mais poder fazer

senão insultar a vida e seu criador levianamente)? Por que mais preferir antes denominá-lo, acaso

existisse, “Demônio”? Não há aqui, portanto, um lamento por não sermos o que deveríamos,

atalho que a maioria dos bons crentes se viram obrigados a tomar, enfatizando para tanto nossa

suposta “natureza corrompida”; pelo contrário, somos por querer, nada tendo a ver com isso

qualquer dever. Não deveríamos ser segundo uma necessidade, predeterminados segundo uma

vontade alheia; somos em virtude de nós mesmos, o que também quer dizer: de nada, pois nada somos

senão pela existência, para ela e, especialmente, nela. Desse modo, a culpa é sempre nossa, e com

relação a nós mesmos, não a outrem.

Para Schopenhauer (2004, [cap. IV] p. 717), o equívoco usual reside em se pensar a

existência em geral como efeito de uma causa, quando, em verdade, a mera ocorrência de algo

como primeiramente dado jamais o autoriza senão como “fundamento a posteriori”, fatalmente

conduzindo a um regresso ao infinito e, pois, à suposta exigência de uma causa-primeira.

“Suposta” por ser uma exigência da razão, não do ser. Se há um criador a nos pôr frente a

possibilidades de ser – assim nos diz a teodiceia leibniziana –, é nossa vontade a escolher, ou

melhor, a querer viver; vivemos por nossa própria vontade, por nossa própria “culpa”. Eis a dívida

que pagamos com os sofrimentos na vida e com a própria vida, morrendo: “Expiamos o nosso

nascimento primeiro com a vida, depois com a morte” (Schopenhauer, [2003b], p. 396, nota).

Assim a tese schopenhaueriana, a exemplo da mitologia religiosa, nos serve como explicação, ou

ao menos pleiteia esta “função”, mas não se reduz a isto – afinal, a “serventia” de uma filosofia

não pode ser senão algo derivado. O equívoco do Cristianismo residiria em, sob a forma do mito,

situar o pecado posteriormente à existência do homem como uma falta cometida por uma

vontade ainda livre, segundo o livre-arbítrio. Então, Schopenhauer (2004, [cap. XLVIII] p. 1371)

lhe dirige a seguinte crítica, perfeitamente aplicável também a Leibniz:

Uma tal concepção só seria possível sob a ficção de um liberum arbitrium indiferentiæ e necessária pelo dogma judaico fundamental, no qual esta doutrina devia se inserir. Em realidade, o nascimento do homem é o ato de sua livre vontade, e consiste no mesmo que a queda pelo pecado; assim o pecado original, de que derivam todos os outros, se produziu ao mesmo tempo que a essentia e a existentia do homem [...].

Page 205: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

205

Deve-se observar que o liberum arbitrium indiferentiæ termina sendo atribuível também à

concepção kierkegaardiana uma vez que a inocência e a ignorância são elementos que fariam da

escolha adâmica uma escolha em certo sentido indiferente, permitindo-nos encontrar aí uma

limitação crucial em sua análise “psicológica”. A crítica de Schopenhauer, por sua vez, é bastante

afim daquela a ser elaborada por Heidegger, muito embora expressa em termos muito diversos.

Tal afinidade se radica na rejeição da ideia de “culpa” como mero fenômeno psicológico

(representação) de uma consciência moral (racional) a posteriori, enquanto tal decorrente de uma

transgressão que poderia não ter se dado. Do mesmo modo, o caráter não-originário de bem e

mal – valores mensuráveis no arbítrio – aponta para esta afinidade. É notável que, nesta

passagem, Schopenhauer conduza tão claramente a vontade para fora do âmbito das

representações, dos objetos, da temporalidade e da própria individualidade fenomenal, pessoal,

fazendo coincidirem a existência e a determinação da essência, muito diferente do que se fizera na

tradição e no que ainda insistiria a inversão sartreana (aparentemente, muito inspirada em

Nietzsche). A essência do homem – o que o homem é –, segundo Schopenhauer, não precede sua

existência – determinando-a –, embora esta a suponha, nem dela procede – como produto

livremente determinado por uma subjetividade ou alma pré-existente.131

É certo que Schopenhauer ainda emprega o termo “existentia” no sentido tradicional de

“subsistência”, “substância”, “suporte de propriedades” – “ser simplesmente dado”, no dizer

heideggeriano. Existentia é o mesmo que “realidade das coisas”, sua materialidade, ou atividade,

causalidade, cujas propriedades se radicam na essentia (ver Schopenhauer, 2004, [cap. IV] p. 720).

Trata-se de “existência” no sentido objetivo, isto é, fenômeno representado como matéria ou, em

uma palavra, realidade, muito embora Schopenhauer não admita nem que o existente exista em si

e por si, independente de um mundo como ente isolado, como uma coisa-sujeito cartesiana, nem

tampouco que seja causado pelo sujeito – aí residindo a refutação do solipsismo –, tratando-se,

131 V. Schopenhauer (2002, [p. 57] p. 88-89): “toda existentia supõe uma essentia: isto é, todo existente tem que ser também algo, ter uma determinada essência. Não pode existir e, por outro lado, não ser nada, algo como o ens metaphysicum, ou seja, uma coisa que é e simplesmente é, sem determinações nem propriedades de nenhum tipo e, por conseguinte, sem a determinada forma de ação que delas dimana: se uma essentia sem existentia não pode proporcionar uma realidade [...], tampouco pode fazê-lo uma existentia sem essentia.” A realidade do ente, pois, exige essência e existência, as quais só podem ser separadas segundo abstrações do intelecto; nesta mesma abstração, tornam-se conceitos vazios. Deve-se notar, contudo, que isto não tem nem pode ter as mesmas consequências do espinosismo. Espinosa, ao identificar essência e existência, em vez apontar para a vontade (ou conatus, seguindo sua terminologia), parte do conceito de substância e inclui um terceiro termo, a potência, que garante à substância existir em si e por si mesma como causa sui (v. Chauí, 2006, p. 43). Desse modo, o espinosismo, passando pela doutrina dos modos, leva necessariamente ao panteísmo, pois a radicalidade com que é tratado o conceito de substância, à luz da longa história dos problemas teológico-cosmológicos, como que já predetermina a demonstração de que apenas pode haver uma substância e que esta é eterna. Mesmo a refutação do livre-arbítrio por Espinosa se apresenta como consequência necessária disto. A sabida saída de Leibniz para o problema do panteísmo consistiria na doutrina das mônadas, que garantiria a unidade radical de uma multiplicidade de substâncias. Schopenhauer, por sua vez, rejeita a existência de substâncias em si, separando-se, como por um abismo, tanto de Espinosa quanto de Leibniz.

Page 206: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

206

antes, de fenômeno produzido no sujeito mediante o jogo das representações.132 Por outro lado,

merece relevo a quase imperceptível novidade no que diz respeito à noção de “essentia”. Sempre

que lemos as afirmações de que o mundo e tudo que nele há é vontade, ou seja, que vontade é a

essência de todas as coisas, tendemos a interpretar, sob influência da tradição metafísica, que

Schopenhauer esteja apontando a Vontade como uma propriedade universal dada pertinente a

todos os entes; em uma palavra, como o Ser, o mesmo ocorrendo até em interpretações do

pensamento nietzscheano acerca da vontade de poder. Percebe-se, no entanto, que outra coisa

bem diferente está sendo dita: que o mundo, em sua totalidade, é segundo uma vontade, um querer.

Que a Vontade é a coisa em si significa, então: o que representamos (o ente, o fenômeno) não é

nada mais do que aquilo que se mostra em relação à vontade que nós mesmos somos, ou seja, é a

vontade que se encontra no fundo de toda representação de fenômenos – a esta relação demos o

nome geral de interesse. Em outros termos: a Vontade é o fundo do ente segundo o qual o

fenômeno sempre se mostra como existente, isto é, como representação (objeto) para um sujeito.

O mundo é “minha representação” na medida em que o mundo é mundo para mim e em mim, como

objeto para um sujeito e não em si mesmo. Como representação, só há mundo mediante o entendimento.

É para e em meu intelecto – e isto não contradiz Kant – que o mundo se constitui como tal, como

kosmos, ordem, referência de/para todo querer-viver. “Schopenhauer, radicalizando o idealismo

transcendental kantiano, concebe o mundo fenomênico como um sonho do intelecto humano.”

(Brum, 1998, p. 34) Desse modo, não encontramos em Schopenhauer nada do tradicional

132 Conforme diz Schopenhauer no §4 de O mundo..., a matéria tem como essência a causalidade, entendida como interação ou ação recíproca das formas do tempo e do espaço, não apenas como sucessão de estados no tempo. Por esta razão, o ser da matéria também pode ser igualmente dito atividade (Wirken), mediante o que o autor defende a perfeita adequação do termo alemão “Wirklichkeit”, preferido em relação a “Realität” (v. tb. capítulo IV dos Suplementos, p. 723). Assim, é na atividade da matéria que reside sua realidade intuitiva, objetiva, como representação causal, espacio-temporal. Enquanto atividade, ou causalidade, uma vez que a matéria já sempre supõe o jogo entre sucessão e permanência (esta última atribuída por Schopenhauer ao espaço, não ao tempo, como defendera Kant), somente a partir disto sendo possível qualquer percepção de mudança, Schopenhauer ainda identifica matéria e substância: a matéria “é a possibilidade da existência simultânea; a duração também deriva dela, e torna possível por sua vez a permanência da substância sob a mudança dos estados” – a matéria é a síntese de tempo e espaço. Por conseguinte, causalidade, atividade, matéria, realidade, existentia, só existem para o entendimento e por ele, cuja primeira manifestação é a intuição do mundo real, ato de pensamento que consiste unicamente no conhecimento do efeito pela causa, concluindo-se disto que toda intuição é intelectual – esta não deve ser confundida com intuição da razão, coisa que Schopenhauer, conforme o §7 (p. 53) não admite por se tratar a razão de uma faculdade de abstrações, objetos mediatos de segunda ordem, não de intuições. Se apenas pelo entendimento, enquanto faculdade intelectual, o mundo aparece e existe como representação, considerando que a matéria só age sobre a matéria, conclui-se também que a percepção do mundo como representação deve ser engendrada pela ação da matéria “exterior” (objeto mediato) sobre o objeto imediato (o corpo, também material) – mais abaixo, retomaremos a questão de que apenas as representações afetam umas as outras. Graças a esta percepção, há matéria (cf. Schopenhauer, 2004, [§4] p. 31-36). A circularidade aí reconhecível facilmente se soluciona mediante o assentimento à tese de que todo ente representado já se encontra sempre em relação de reciprocidade, determinando-se uns aos outros de modo que toda realidade é necessariamente relativa. Como já foi dito acima, toda representação empírica se funda em referenciais dados no entendimento, uma faculdade subjetiva. Se representação é o mesmo que objeto, conforme lemos no §5 de O mundo..., e objeto também tem sua realidade na atividade, possuindo a mesma essência da matéria, pode-se ainda afirmar mais uma vez que só há matéria como representação do entendimento, bem como que só há representação empírica e consciente como objeto do entendimento. V. tb. §6 (p. 45).

Page 207: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

207

dualismo. Eis o significado do duplo caráter do mundo: como vontade – fenômeno objetivo e

imediato do querer-viver que é dado na representação, cujo em-si só pode ser adequadamente

“conhecido” quando superado o princípio de individuação – e como representação – objeto, ou

fenômeno subjetivo de um intelecto que representa segundo as relações postas por sua própria

vontade à luz do princípio de razão.

O homem mesmo é homem na medida em que existe, em que é um ente determinado para

si mesmo, e o mundo que se lhe mostra aos olhos consiste naquilo que interessa (i.e. aparece em

relação com) a vontade que o indivíduo manifesta. A perda de tais determinações seria como uma

queda na não-existência, assim como a ruptura com o que propriamente somos há de suscitar um

sentimento de dúvida com relação a tudo e a nós mesmos. A aparente dicotomia vontade-

representação se soluciona no interesse, que podemos então apontar como o conceito definitivo e

central da filosofia schopenhaueriana. Não cabe bem a acusação de solipsismo na medida em que

Schopenhauer não afirma – nem pode fazê-lo – que inexiste a exterioridade, mas sim que tal

exterioridade só é o que é mediante sua relação intrínseca e originária com aquilo que nós

mesmos já sempre somos e vice-versa. Desse modo, “sujeito” e “mundo” são congêneres, mas não

como substâncias distintas simplesmente dadas em conjunto, justapostas, e sim por já sempre se

refletirem reciprocamente.133

Nesse caso, a “culpa” schopenhaueriana e sua remissão ao mito do Pecado Original

aparecem como explicação alegórica para a dor de viver, servindo como alerta para a verdade mais

profunda que aponta para o caminho da negação do querer-viver como via de resgate de uma

condição originária, qual seja, a de não ser determinado, não ser indivíduo, não “existir”. Eis o

fundamento, por assim dizer, da compaixão (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1374), do

abandono do “eu” mediante o reconhecimento de que somos todos uma vontade. “Ele propõe,

como fundamento de sua ética, a superação da visão do homem como indivíduo e o

desaparecimento do ser individual nessa vida universal anônima” (Brum, 1998, p. 35; grifo nosso).

Vê-se, então, a precipitação de Russell ao se referir a esta negação como uma (efetiva) queda na

não-existência, uma supressão em vez de uma superação, pois que não se trata de um deixar de

existir de fato – a Vontade é indestrutível por ser extratemporal, consequência de se considerar o tempo

como forma da representação –, mas apenas para si mesmo, um não mais representar a si mesmo

133 Paralelamente, diz Heidegger (2007h, [§69, p. 364-365] p. 454-455) que o Dasein é seu mundo e, portanto, não haveria mundo na ausência do ser-no-mundo. Ver também sua caracterização do solipsismo próprio ao ser-no-mundo no §40 ([p. 188] p. 189). Todavia, é necessário pesar que Schopenhauer não considera o mundo em sua originariedade última, mas tão-somente seu caráter a priori do ponto de vista do conhecimento (idealidade transcendental), ou seja, como representação – o “mundo como Vontade” não é um mundo propriamente dito. Desse modo, não se pretende dizer que ambos os pensadores estejam se referindo ao mesmo nível ontológico. Aquilo em que se pode reconhecer alguma afinidade consiste na tese de uma co-pertinência constitutiva entre existir e ser-em um mundo, a qual somente se “perde” mediante modos impróprios de consideração do ser dos entes.

Page 208: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

208

como um “eu” espacio-temporal. O “sermos um”, para além de toda mística pitagórica, não tem

aqui outro sentido senão o seguinte: somos todos o fenômeno do querer existir, pois apenas a

isto se deve o fato de sermos, não importando a infinita multiplicidade de aspectos que tal querer

possa manifestar. Afinal, o que nos distingue uns dos outros (tempo, espaço,

corpo/matéria/causalidade) não passa de produto e ao mesmo tempo forma de nossa própria

representação, sendo tal separação suspensa pela contemplação estética, bem como, mais

intensamente, pela compaixão (ver Schopenhauer, 2001, [§22, p. 265 et seq.] p. 211 et seq.). Esta é a

ambiguidade do mundo como representação, apenas paradoxal ou contraditória se não

distinguirmos adequadamente a dupla perspectiva acerca do mesmo.

Tais aspectos distintivos dos fenômenos da vontade devem, contudo, ter raiz nela mesma,

de modo que, de acordo com Piclin, citado por Roger, “a individuação tem sua fonte no tempo, no

espaço, na causalidade e na representabilidade [abstrata] (os véus de Maia); mas a individualidade,

ao contrário, está fundada na coisa-em-si” (Schopenhauer, 2001, p. LXXI, n. 90) enquanto

caráter essencial daquilo que se faz indivíduo e se representa como tal à luz do princípio de razão.

“Em relação à vontade, [...] o indivíduo é um ‘fenômeno’, uma aparição do intelecto sob a forma

da individuação. [...] No ‘fluxo perpétuo da matéria’ que constitui a vida, o indivíduo é alguma coisa

de irreal.” (Brum, 1998, p. 34) Ou seja, a individuação é regida por um princípio subjetivo do

conhecimento (intuitivo) ao passo que a individualidade remete às possibilidades existenciais de

fenomenização da Vontade que livremente se afirma (ver Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p.

1377). A Vontade ela mesma é indivisível, porém não-individual (no sentido de uma coisa

determinada) tal como os neoplatônicos concebiam o Um: círculo cujo centro se encontra em

toda parte e a circunferência em parte alguma – cada um de nós é essencialmente este centro,

cabendo-nos a identificação com todo outro; afirmar um Eu absoluto, um solus ipse, está às

antípodas disto, tirando toda sua realidade da perspectiva das representações.

Cabe aqui um oportuno esclarecimento. Se tudo que existe é fenômeno do querer-viver, e

isto seja aceitável no que se diz respeito aos seres vivos, que dizer, por exemplo, da pedra,

existente em si mesma como fenômeno individual? Que também o mineral é vivo como afirmam

correntes místicas?! Que dizer, ainda, e em especial, de toda a classe de entes não-corpóreos (que

são) tais como entidades matemáticas, o pensamento, o sentimento, o sonho, a relação, o tempo e

demais categorias? Fenômenos, ou objetivações da vontade de viver?! Quem jamais atribuiria vida

ou, sobretudo, vontade de vida a entes (coisas que são) deste gênero? Seriam fantasmas “soltos

no ar” sem nenhuma positividade ontológica, negligenciados precisamente pelo filósofo que

combatia “bolhas de sabão”?

Page 209: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

209

O que poderia ser tomado como inconsistência, ponto cego da doutrina ou servir à

qualificação depreciativa de Schopenhauer como um radicalíssimo místico vitalista, para não dizer

errático, em verdade, sinaliza o que estimamos ser o ponto central de seu pensamento. A resposta

às questões acima, a esta altura, é surpreendentemente simples: todo ente é o que é recebendo sua

duração, seu lugar, sua realidade e seu conceito segundo o interesse de uma vontade, segundo a

afetação exercida sobre o corpo que a expressa. É fácil observar, desde que nos detenhamos na

questão, que aquilo que não suscita qualquer interesse, que não desperta a mais ínfima atenção,

passa totalmente despercebido como se, simplesmente, não existisse.134 É como ler um livro cujas

passagens que não nos prendem a atenção não se fixam na memória, ou ouvirmos uma canção

repetidas vezes sem termos a menor ideia do que está sendo dito. Fácil também entender, desse

modo, por que se costuma afirmar que o animal não existe para si mesmo, ainda menos a planta,

a pedra; sem um “eu”, uma consciência relativa em oposição ao mundo circundante, seríamos

incapazes de nos reconhecermos a nós mesmos como indivíduos e não estabeleceríamos

qualquer relação “consciente” com o que quer que fosse.

Pois tudo o que é objetivo existe apenas mediatamente, como mera representação do sujeito, de modo que tudo depende sempre da autoconsciência. Cada um traz em si o único mundo que conhece e de que sabe como sua representação, e por isso esse mundo é o seu centro. Por isso mesmo cada um é para si tudo no todo, encontra-se como possuidor de toda a realidade, e nada pode ser mais importante para ele do que ele próprio.135 (Schopenhauer, 2001, [§14, p. 197] p. 122)

134 Uma explicação para isto pode ser encontrada no fato de a forma mais fundamental de nossa percepção ser o tempo, de modo que tudo que conhecemos, conhecemos sucessivamente. Em cada momento, temos consciência de uma só coisa, deixando provisoriamente de existir para nós todo o resto. Sobre isto, ver Schopenhauer (2004, [cap. XV] p. 824). Segundo a pura forma do tempo, a própria consciência é em um fluxo contínuo, e tudo que é percebido existe em uma unidade contínua. Se estendermos isto à experiência da contemplação estética, devemos concluir que o percebido aparece de tal modo que a própria subjetividade nele se perde, caindo em uma espécie de inexistência ou, melhor dito, na inconsciência de si mesma, levada que é pelo fluxo do simples contemplar. Quando desprendidos, “o tempo passa” e nós com ele, esquecidos de nós mesmos, como se o próprio tempo deixasse de “existir” até que nos encontrássemos em um “tempo posterior”, tal como após o sono em que vivemos nossos sonhos como se fossem nossa própria “vida real”. Em meio ao fluxo, é impossível reter, prestar atenção etc. É pela intervenção da forma do espaço que os objetos podem se fixar, assim como, pela interação tempo-espaço, temos a percepção de coisas que mudam e passam enquanto outras se mantêm, e então podemos ter consciência de nós mesmos como sujeitos espectadores de coisas que se movem em relação a nós, ou de nos movermos em relação a elas. Desse modo, a suspensão contemplativa recebe fundamento epistêmico em vez de mera explicação mística. 135 Não é à toa que Metafísica, Teoria do Conhecimento e Ética encontram-se em profunda afinidade no pensamento de Schopenhauer, chegando mesmo a uma espécie de síntese na Estética – pode-se dizer que a cada área se dedica um livro de O mundo como vontade e representação. Por isso mesmo, sua doutrina da compaixão vem responder ao problema do egoísmo no sentido mais amplo desse fenômeno fundamental da existência: “O egoísmo é a primeira e a mais importante potência, embora não seja a única, que a motivação moral” – isto é, a compaixão – “tem de combater. Já se vê por isto que o motivo moral, para apresentar-se contra tal opositor, tem de ser algo real, ao invés de uma sutileza aguda ou uma bolha de sabão apriorística” (Schopenhauer, 2001, [§14, p. 198-199] p. 124). Tal “realidade” deve se fundar na intuição, não em conceitos abstratos da razão. A compaixão, como “fenômeno ético originário”, é, contudo, um “enigma” que, como tal, exige elucidação metafísica (id., ibid., [§21, p. 260-261] p. 205-206). Aproveitamos para reiterar que não há aí solipsismo, pois o mundo, que existe apenas na representação, trata-se de uma entidade intelectual que, por sua vez, constitui o centro em torno do qual gravita a subjetividade, havendo pois, entre eu e o mundo uma interdependência. O autoprivilégio do eu se deve antes ao egoísmo.

Page 210: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

210

Em suma, não entraríamos em relação com ente algum senão por representações subjetivas;

toda remissão a outrem supõe uma intrínseca remissão a si próprio não importando no presente

momento, a querela136 acerca da precedência de uma ou outra parte, caso haja. Trata-se de dizer

que todo objeto – i.e. toda representação, toda matéria – já sempre supõe um sujeito de

conhecimento. Por sua vez, como só “existe” o que se encontra em relação conosco, uma vez que

não nos relacionamos com algo que mereça o nome de egoidade animal ou vegetal, para nós, tal

egoidade é ordinariamente representada como exclusiva dos humanos, o mesmo valendo para a

racionalidade e a linguagem. Desse modo, como observa Brum (1998, p. 23; ver também

Safranski, 1991, p. 295), a interpretação do mundo como vontade (de viver) obedeceria a uma

espécie de analogia – muito diferente da de Kant, que aplica ao meramente inteligível categorias

do experienciável no intuito mesmo de sua inteligibilidade – com nosso próprio modo de ser, isto

é, ser-vivo:

O movimento schopenhaueriano obedecerá ao esquema analógico: a Vontade, essência do Mundo, será atingida por meio de uma analogia com o ser humano. O homem, submetido como tudo o que vive ao império da Vontade, é o lugar em que a [V]ontade se objetiva e se revela. O homem descobre, em seu corpo, a imagem de uma vontade cega que compartilha com os outros seres vivos. Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode ser reduzido à representação, é o mundo enquanto coisa-em-si, o mundo enquanto vontade.

Trata-se, segundo as palavras de Safranski (1991, p. 298), da “experiência de que em todo

existente vive a mesma vida”. Em seguida, Brum (1998, p. 23-25/31) ressalta que não se trata de

um antropomorfismo, pois não temos aí uma abstração generalizante, mas uma “verdade

independente da representação”, uma imediata – portanto concreta – “experiência da vontade

vivida”, o próprio “mundo vivido” que, embora tendo seu lugar no corpo humano, “onde se

mostra como força ‘sem razão’, sem ‘explicação causal’”, consiste na “experiência de uma força

que lhe é estranha, de uma força que o domina e a qual ele obedece maquinalmente” em “um

mundo absurdo que não é regido nem por ordem nem por finalidade”. Assim, não temos uma

mera projeção de nosso ser no ser dos outros entes, mas, pelo contrário, a tese de que nosso ser

nos determina de modo tão inexorável e fatal que dele temos tão pouco controle quanto de todo

o resto, e a isto que se “experimenta” se dá o nome de “Vontade”. Daí se mostra “como essa

força obscura revelada no corpo e através do corpo pertence ao grande conjunto hierárquico da vida”

136 Referimo-nos às disputas entre defensores da ipseidade ou da alteridade – por exemplo, levinasianos contra cartesianos. O problema não pode mais residir aí desde o momento em que ambas as correntes pressupõem, antes do “eu” e do “tu”, a individualidade, a diferença. “Só pode haver alteridade na medida em que pode haver uma identidade em si mesmo e vice-versa. Se a polaridade entre os dois é perdida, tudo se torna idêntico, indiferente e imanente.” (Svendsen, 2006, p. 94)

Page 211: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

211

entendido como “o caminho percorrido pela Vontade em direção a uma forma superior”, que

será a da máxima afirmação de si como “individualidade perfeita”. “A escala dos seres vivos segue

um movimento em direção ao indivíduo. E é apenas o homem que é indivíduo”, a “maior

individualidade”. Assim, deve-se esclarecer, a individualidade não é perfeita per si, mas como

individualidade na medida em que se apresenta como tal na autoconsciência. Quanto mais

individualizado, mais completamente determinado é o ente e, portanto, mais amplamente se

estende o domínio do querer que manifesta, ou seja, maior é a diferença entre os indivíduos de

uma mesma espécie. É para o indivíduo autoconsciente que o mundo pode aparecer como

multiplicidade e fenômeno da Vontade, e por isso mesmo, conhecendo-lhe a liberdade, torna-se

possível, no homem, a negação da vontade. Essa unidade de essência traz consigo uma espécie de

harmonia análoga à musical: as espécies podem ser chamadas “o eco do homem”, dizendo-se que

“o animal e a planta são a quinta e a terça menores do homem; o reino inorgânico é sua oitava

inferior” (Schopenhauer, 2004, [§28] p. 203). A perfeição da individualidade humana é, pois, além

de análoga, por isso mesmo, relativa. Contudo, acertada é a ressalva de Cresson (1948, p. 27) no

que diz respeito à compreensão da Vontade como “força”:

Não definamos primeiramente a Vontade como uma força. É graças ao conhecimento que temos de nossa vontade que podemos dar um sentido à palavra “força”. Não é, pois, reduzindo-a a uma força que compreenderemos a Vontade. A Vontade é uma tendência, um esforço permanente e contínuo que sentimos em nós. Essa tendência nos conduz irresistivelmente ao “querer viver”.

Ao invés de considerar o homem como um ser à parte, Schopenhauer o reduz a fenômeno

dentre outros da mesma Vontade, estendendo a tese kantiana a toda a natureza na medida em

que considera “a impossibilidade de admitir que o homem seja distinto especificamente, toto genere,

e radicalmente de todos os outros entes”, não podendo “haver entre eles senão uma diferença de

grau” (Schopenhauer, 2004, [cap. XVII] p. 868). Que é então a Vontade, em poucas palavras,

acaso seja possível uma definição para “algo” que, não passando pelos sentidos, não pode receber

um conceito dotado de conteúdo real? Diríamos, a título de tentativa: O ímpeto para a existência e

sua conservação que, reconhecido analogamente como modo de ser de todo ente dado como representação, se mostra a

si mesmo a partir de si mesmo como o mesmo, apenas se diferenciando segundo as formas de apreensibilidade de seu

dar-se como fenômeno. Com isto, pois, se afirma antes a unidade da Vontade e, por conseguinte, o

reconhecimento de que uma diferença das espécies só faz sentido do ponto de vista do

conhecimento, por ele e para ele.

Page 212: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

212

6.3. Sobre o mesmo assunto: Nietzsche contra Schopenhauer

É bem claro que a interpretação que acabamos de levantar quanto à aparente identidade ou

equivalência entre “vontade” e “vontade-de-viver” (Wille zum Leben) no pensamento de

Schopenhauer vai de encontro àquela mais corriqueira – se não ortodoxa ou mesmo quase

hegemônica – adotada por Alain Roger em seu prefácio a Sobre o fundamento da moral

(Schopenhauer, 2001, p. XIV). É relevante notar que Roger esteja defendendo Schopenhauer do

que diz Nietzsche em “Do superar a si mesmo”, na segunda parte de seu Assim falou Zaratustra.

Ao recusar aquela equivalência como errônea, opondo-lhe uma outra, a saber, “vontade” como

“vontade de poder” (Wille zur Macht), Nietzsche estaria, segundo Roger, tomando “a espécie pelo

gênero, ou, mais exatamente, uma de suas manifestações pela essência da vontade”. Em seu

movimento ousado – embora legítimo137 – de fazer recorrer a Wille zur Macht nietzscheana à Wille

zum Leben schopenhaueriana, nesse breve comentário, Roger comete três faltas: 1) parte do pré-

conceito (de que certamente compartilhará Heidegger e, por vezes, o próprio Nietzsche) segundo

o qual a Vontade é uma entidade que “também rege o mundo inorgânico” (grifo nosso), ou seja,

como o Ser no sentido tradicional, um substitutivo para o Deus do panteísmo que Schopenhauer

tanto rechaça – este pré-conceito, que se expressa de variadas maneiras aqui grosseiramente

unificadas, deságua em toda forma de desatenção ao caráter inovador do pensamento

schopenhaueriano que se arma ferozmente também contra a noção de “vontade”, presente ainda

em Kant, como princípio diretor138; 2) apoia-se na má tradução de Nietzsche por Geneviève

Bianquis nesse passo, que, ao aparentemente reconhecer a alusão à Vontade schopenhaueriana,

força a expressão “querer viver” quando, em verdade, o que se lê em Nietzsche é “Willen zum

Dasein”, “querer existir”(!); 3) conclui, em uma síntese do que precede, que Nietzsche recusa a

interpretação schopenhaueriana da Vontade não apenas por se tratar de uma inútil tautologia – o

137 Para Brum (1998, p. 65): “As concepções schopenhaueriana e nietzschiana de vontade de viver e de vontade de potência devem ser compreendidas a partir do termo vontade. Quando Schopenhauer chegou à vontade, buscava uma resposta para a questão do verdadeiro sentido das representações. A vontade, alcançada por um conhecimento imediato (unmittelbar), aparece como a chave do enigma do mundo. A via schopenhaueriana encontra a vontade através da descoberta, por uma intuição irracional: o mundo enquanto não é representado, é vivido no corpo que é, em si, vontade”. 138 V. p. ex. o §4 da monografia Sobre o fundamento da moral (Schopenhauer, 2001, [p. 120 et seq.] p. 23 et seq.), intitulado “Sobre a forma imperativa da ética de Kant”. Há de se notar que, embora a vontade em algum sentido “dirija” um ente a outro no sentido de pô-los em relação, não se trata de um “reger”, um “regular”, mesmo porque, para tanto, exigir-se-ia algo segundo o que exercer tal influência, que nada mais seria do que uma causação. Estando ausente um fim último da vontade – como o respeito ao dever pelo dever no caso da vontade boa kantiana –, posto que é cega, seu “dirigir” é antes um pôr-em-direção-de... indeterminado. Até Kant, a vontade quer segundo algum critério, sendo, portanto, racional, o que significa dizer que ou está submetida à razão ou coincide com ela, tornando-se impossível afirmar, como fazem Schopenhauer e Nietzsche, que tudo é Vontade; pelo contrário, a consequência necessária é de que apenas os entes dotados de razão detêm o privilégio da vontade. A Vontade, para Schopenhauer como para Nietzsche, não é um terceiro termo a mediar a relação entre o agente e seu fim ou o meio para atingi-lo, entre um sujeito e seu objeto, único caso em que a Vontade poderia ser concebida como causalidade.

Page 213: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

213

que é correto, porém insuficiente uma vez que não se trata de algo “evidente” –, mas por supor –

temerariamente! – que Nietzsche compartilhava da mesma (má) leitura que ele mesmo, Roger,

adota para si, qual seja, confundindo os graus ou níveis de objetivação/manifestação da Vontade com

múltiplas espécies (vivas e não-vivas) da Vontade ela mesma (um gênero abstrato?!), que é, na

verdade, una, indivisível. Todavia, não há gêneros na natureza ou fora dela, exceto no intelecto

humano... Ora, com isso, Roger, ainda que não o queira, faz entrar o panteísmo no ponto central

da filosofia de Schopenhauer, diante do que não é tarefa difícil acusar este último de

inconsistência ou algo mais grave... Afinal, se a Vontade é uma entidade regulativa universal que

se manifesta segundo espécies, como distingui-la do Deus espinosano e seus modos?

Não apenas Roger se engana como, neste ponto específico, Nietzsche está certíssimo ao

enfatizar que toda vida quer poder – este, sim, admite graus, sem deixar de ser sempre (vontade de)

poder, e isto porque “poder” é, por definição, relacional, não havendo poder puro, mas relações de

poder139. Poder supõe atividade, esta implica materialidade/objetalidade, e matéria/objeto supõe

o princípio de razão, bem como a subjetividade. Portanto, o que Nietzsche faz é parafrasear

Schopenhauer de uma maneira muito feliz que, a nosso ver, mais o favorece do que o contrário

pretendido, pois a única saída para o dilema posto pelo antigo “educando” é admitir um querer

originário – querer ser – que em nada se confunde com nenhuma espécie de desejo particular –

querer algo. Aliás, o próprio Schopenhauer, referindo-se ao sentimento mais original de homens

e animais, chega a empregar a expressão “Drang zum Daseyn” (Schopenhauer, 2001, [§14, p. 196]

p. 120), ou ainda, referindo-se à Vontade ela mesma, utiliza-se da expressão “Drängen ins Daseyn”

(Schopenhauer, 2004, [cap. XXVIII] p. 1078). Não se deve contudo concluir apressadamente que

tal pretenso aprimoramento da ontologia schopenhaueriana vem apagar por inteiro, ou mesmo

no essencial, a “experiência intelectual” que deixou em Nietzsche “traços permanentes” desde

que este encontrara na obra de Schopenhauer aquela “visão da realidade como absolutamente

alógica, absolutamente irracional” (Janz apud Brum, 1998, p. 55), visão que excluía “toda

representação dualista” (Gaultier apud Brum, 1998, p. 56) imposta pela razão abstrata.140 A fim de

139 Ainda que se possa argumentar que toda vontade é vontade de..., tal verdade não faz da vontade algo em si mesmo relacional, sendo uma novidade schopenhaueriana a noção de uma vontade intransitiva, sem objeto, puro ímpeto cego, não uma adesão. O mundo, por sua vez, é constituído de objetos e, desse modo, constitutivamente relacional. 140 Nem sempre a crítica de Nietzsche deixa de testemunhar a respeitabilidade do questionamento schopenhaueriano acerca da existência, tal como podemos ler no §357 de A gaia ciência. O mundo “desdivinizado, que se tornara estúpido, cego, louco, questionável”, conforme apresentado pelo antigo “educador”, tendo-lhe causado um “honesto horror”, faz com que nos apareça “de forma terrível a questão de Schopenhauer: então a existência tem algum sentido?”. Se a resposta de Schopenhauer fora “um tanto precipitada, juvenil”, ao menos “ele colocou a questão”; de modo pessimista, sim, afirma Nietzsche, mas sempre “como bom europeu e não como alemão” (Nietzsche, 2004d, p. 256-257). Tome-se em conta que, para Nietzsche, (1) o discípulo honra o mestre na medida em que o supera, e (2) “alemão” é sinônimo de decadente! Sobre isto, cf. p. ex.: Nietzsche, 2004a (especialmente a “Quinta Conferência”); 2005b, [§10] p. 171-172; 2004b, [§6] p. 194; 2004c, [§447: “Faz parte da humanidade de um mestre advertir seus alunos contra ele mesmo.”] p. 231; 2004d, [§32, Discípulos indesejados] p. 80; 2000a, [§3 de “Da virtude dadivosa”] p. 105. Sobre tal caracterização do mundo e da vida, conforme as palavras de Brum (1998, p. 58), “Nietzsche elaborou

Page 214: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

214

corroborar a afirmação de que Nietzsche, embora discorde, compreende Schopenhauer,

comparemos o que cada um diz:

Por isso, para um indivíduo dado, em cada caso individual dado, é possível simplesmente só uma ação: “operari sequitur esse” [“o que se faz segue-se do que se é” (Pomponatius, De animi imortalitate, p. 76)141]. A liberdade não pertence ao caráter empírico, mas tão-só ao inteligível. O “operari” [fazer] de um homem dado é determinado, necessariamente, a partir do exterior pelos motivos e a partir do interior pelo seu caráter. Por isso, tudo o que ele faz acontece necessariamente. Mas no seu “esse” [ser], aí está a liberdade. Ele poderia ter sido outro: e naquilo que ele é estão culpa e mérito [liberdade objetiva]. Pois tudo o que ele faz segue-se daí como um mero corolário. Por meio da teoria de Kant somos retirados propriamente do erro fundamental que deslocava a necessidade para o “esse” e a liberdade para o “operari” e somos levados ao conhecimento de que elas se relacionam inversamente. Por isso, a responsabilidade moral do homem refere-se, em primeiro lugar e ostensivamente, àquilo que ele faz, mas, no fundamento, àquilo que ele é. (Schopenhauer, 2001, [§10, p. 177] p. 96-97) [...] Schopenhauer acredita poder demonstrar uma liberdade que o homem deve ter tido de algum modo, não no que toca às ações, é certo, mas no que toca ao ser: liberdade, portanto, de ser desse ou daquele modo, não de agir dessa ou daquela maneira. Do esse, da esfera da liberdade e da responsabilidade decorre, segundo ele, o operari, a esfera da estrita causalidade, necessidade e irresponsabilidade142. É certo que aparentemente o mal-estar [a “consciência de culpa”] diz respeito ao operari – na medida em que assim faz é errôneo –, mas na verdade se refere ao esse, que é o ato de uma vontade livre, a causa fundamental da existência de um indivíduo; o homem se torna o que ele quer ser, seu querer precede sua existência. (Nietzsche, 2006, [§39] p. 46)

O engano de Nietzsche está em fazer deste querer-ser uma escolha do homem, pois

Schopenhauer deixa claro como nunca que, enquanto indivíduos, somos fenômenos lançados no

sua própria filosofia: uma resposta trágica às consolações morais de seu educador pessimista”. Seu caráter, segundo suas próprias palavras em inúmeros lugares, exigia adversários dignos, à altura, tendo sabido render homenagens ou elogios a cada um deles, se não efetivas apropriações livres. 141 Observamos que a tese remonta, pelo menos, a Fílon de Alexandria. Trata-se de uma inversão no cerne da moralidade clássica pela qual a sabedoria, como revelação divina, se segue do bom caráter mediante seu reconhecimento por Deus, como graça, não o contrário. Desse modo, o estudo tem antes uma utilidade, mas não constitui condição suficiente para a aquisição da sabedoria propriamente dita, tampouco da virtude. Aplicada a este caso, significa já dizer que a ação decorre do que o agente é. Note-se, a fim de que não se o tome por uma inovação judaico-cristã, o quanto isto diverge do que se lê nos Atos dos Apóstolos, onde Paulo de Tarso cessa a perseguição aos cristãos após a revelação de Cristo, de maneira que, como o fabuloso Jonas, ele é como que forçado a assumir a missão de que deveria se incumbir. A Paulo, como a Jonas, a intervenção divina precedeu a conversão do caráter, muito diferente do que se dá nos casos de Abraão, Moisés e outros profetas do Antigo Testamento (que inspiram Fílon de Alexandria), ou mesmo heróis da fé como Daniel. 142 Nietzsche quase comete aqui um deslize. É óbvio que não somos responsáveis pelo que fazemos seguindo a necessidade de nosso ser, ao contrário do que, por falta de alternativa, pensava Espinosa ser a liberdade. No entanto, como lemos em Schopenhauer, é ao agir que se refere a responsabilidade. Como? Por seu fundamento – o ser que foi livremente querido. É nosso ser, e não nosso ato, aquilo que lamentamos no “mal-estar” mediante a falta moral, como vimos no caso do remorso – já vimos também que uma das críticas decisivas de Schopenhauer a Kant é de que a moralidade se refere ao mundo das ações, da vida, não a algo a priori como um imperativo categórico. Logo a seguir, Nietzsche mostra reconhecê-lo. Contudo, vale ainda observar que o fato de o querer preceder a existência não contradiz a ideia de que a essência coincide com esta última; afinal, em determinando-a, o querer também precede a essência do indivíduo em questão. Nesse caso, trata-se de essência e existência particulares, não de coisas em si.

Page 215: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

215

mundo segundo uma decisão para-ser, e esta é a condição de nossa existência. Nesse sentido, o

“caráter inteligível” schopenhaueriano não consiste na mera possibilidade abstrata de pensar-se

como autônomo, tese defendida por Kant, nem tampouco uma alteridade contraposta ao que

somos de fato, tese dualista adotada pelo Cristianismo agostiniano. Trata-se, como diz Brum

(1998, p. 36), de “uma espécie de fatalidade, um destino interior que nos constitui” desde nossa

determinação essencial. Todas as nossas ações, nossos modos de estabelecer relações com os

demais fenômenos em geral e, por conseguinte, nossa suscetibilidade de afetação por motivos

externos, de “mudarmos de ideia” – uma modificação nas representações –, têm sua raiz última

nesse querer que nós já sempre somos e segundo o qual existimos. É para este âmbito que se devem

dirigir nossas investigações acerca da essência da liberdade, não para os fatos da vida pelos quais

ela se expressa deterministicamente, que não nos proporcionaram mais do que uma Ética útil, se

não meramente intelectual. É por isso mesmo que ainda dirá Schopenhauer (2004, [§12] p. 92-93;

grifo nosso) que de modo algum virtude ou santidade hão de derivar da reflexão, “mas das

profundezas da vontade e de suas relações com o conhecimento”, o que talvez faça de Fílon de

Alexandria seu mais antigo predecessor quando trata da virtude dos profetas hebreus. A razão,

portanto – complementa ele –, não apenas não é fonte da virtude como chega mesmo a ser inútil

para o virtuoso, assim como para o gênio, agindo apenas secundariamente no sentido de “manter

as resoluções uma vez tomadas, evocar as regras de conduta, pôr em vigilância o espírito contra

as fraquezas do momento, e dar mais unidade à vida” – que dizer, pois, dos produtos da razão, os

conceitos? O próprio Nietzsche haverá de reconhecer o caráter decisivo da vontade que somos

mais fundamentalmente, sendo este o significado da máxima inspirada em Píndaro (“Torna-te o

que és”) tantas vezes repetida em diversas formulações até servir como subtítulo ao Ecce Homo,

retornando aqui o tema do resgate do próprio si-mesmo – não como sujeito, mas como

singularidade.143 Daí também a distinção entre os tipos “forte” e “escravo” como modos de ser da

143 Não se trata, todavia, de um resgate no sentido de um apolíneo autoconhecimento, mas de expressar a espécie de vontade que nos anima: forte ou fraca, afirmativa ou negativa. Trata-se de deixar o rebanho em virtude de si mesmo. Sobre isto, ver Machado (1997, p. 140-141). De certo modo, encontramos uma definição disto pelo próprio Nietzsche (2004d, [§335] p. 224): “Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, os únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!”. O contexto da passagem deixa ainda mais claro o quanto a singularidade se opõe ao formalismo (kantiano) bem como à máxima (délfico-socrática) “Conhece-te a ti mesmo”. Trata-se, sem dúvida, de uma concepção bastante problemática de liberdade, de todo alheia às representações do senso comum e, como vimos, de quase toda a filosofia ocidental. Conforme comenta Le Blanc (2003, p. 130-131), a ponte entre a concepção nietzscheana – acrescentamos aqui: schopenhaueriana – e a de Kierkegaard é feita por Jaspers justamente graças a esse caráter excepcional e único do “eu”. Diz Le Blanc na referida passagem: “O aspecto excepcional do ‘eu’ constitui também sua fragilidade, seu caráter possível, sua contingência, ou melhor, sua possibilidade de ser, de não ser ou de ser diferente do que é. Portanto, existir tornar-se-á, de certa forma, a aceitação de um risco, o risco de sua possibilidade, logo, de sua liberdade de escolher e de querer coisas. Todavia, para Jaspers, essa possibilidade é realmente uma impossibilidade, porque ‘eu’ já sou escolhido, limitado, pela situação histórica e de fato na qual ‘eu’ me encontro. A liberdade é, no fundo, aceitação de ‘meu’ próprio destino: realizar a injunção de Nietzsche ‘torna-te o que és’. A verdade aparece então vinculada ao esclarecimento de ‘minha’ situação na existência.” A respeito da “possibilidade de ser, de não ser ou de ser diferente do que é”, ver O desespero humano, de

Page 216: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

216

vontade de poder, bem como a impossibilidade de um se converter no outro e assim por diante,

tese já encontrável em Aristóteles, ou mesmo em Platão144.

Por seu lado, Nietzsche assume a tarefa de conclamar os fortes a se erguerem contra o

niilismo e o espírito burguês de rebanho – a tolerante convivência no contexto de uma

democrática “normalidade” social, um rebaixamento imposto pelo homem medíocre a tudo que é

elevado (aristos). Nesse plano, Nietzsche enfatiza uma leitura demasiado platônica e menos

kantiana da palavra “inteligível”, quando, em verdade, Schopenhauer não está se referindo a um

caráter existente em outro mundo, uma alma racional que escolhe unir-se à matéria, mas, antes, à

liberdade que pode ser apenas representada subjetivamente, pertencendo sua efetividade objetiva

exclusivamente à Vontade, não ao indivíduo em que se objetiva, ou seja, em que aparece como

caráter determinado. Contudo, Nietzsche não está disposto a admitir esse “querer ser” originário,

nem pode fazê-lo se considera como existente apenas o que é já dado – o que resta da exclusão

da coisa em si –; o que é dado, enquanto quer, quer poder, e mais do que a própria vida (por)que (já

a) possui, pedra fundamental na polêmica de Nietzsche contra o niilismo e aquilo que

compreende como negação da vontade de viver...145 Acontece ainda que o schopenhaueriano

querer-viver, tratando-se de um querer originário, não se confunde com qualquer afetação de um

sujeito por motivos do desejo – muito pelo contrário!146 Isto é facilmente constatável no §54 de O

Kierkegaard (1979d). Deixando de lado a questão posta por Jaspers acerca da limitação “pela situação histórica e de fato”, que ao menos a Schopenhauer é inaplicável, mas já antes enfatizada por Maquiavel, a tese da singularidade da existência parece remontar especialmente à monadologia leibniziana (Leibniz, 1983a, [§9] p. 105), onde cada coisa existente é absolutamente única no universo. Parece, outrossim, que Nietzsche confunde Leibniz e Schopenhauer. 144 É claro que, a este respeito, trata-se de qualidades do caráter, nem sempre acompanhadas pelas condições fatuais de vida. Um espírito escravo poderia viver como senhor e vice-versa, mas sem potencial para a excelência nessa posição, no primeiro caso, ou com potencial para superá-la, no caso inverso, pois senhor e escravo antes são traços de caráter, não casualidades (v. Aristóteles, 2001b [1254 a 22-1255 b 22], p. 1132-1135). Assim já pensava Platão, de maneira que, em A república, oferecera métodos para, ao longo do processo educativo, reconhecer cada tipo de alma – o que deve servir e o que deve governar –, garantindo assim o equilíbrio com o concurso de uma política eugênica. No Mênon, ademais, apresenta-se a possibilidade de um escravo de fato ter caráter mais elevado que seu senhor. 145 V. Nietzsche (2000b, [“Os quatro grandes erros”, §2] p. 43) sobre a perda da “segurança instintiva”: “Todo e qualquer erro, de toda e qualquer espécie, é a consequência de uma degradação do instinto, da desagregação da vontade: quase se define com isso o que é ruim. Tudo o que é bom é instintivo”. Mais adiante, apresenta o erro do conceito de “vontade livre” ([“Os quatro grandes erros”, §7] p. 49): “Despiu-se o vir-a-ser de sua inocência, quando se reconduziram os diversos modos de ser à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade”. Fica claro que a noção de “vontade” aqui refutada é aquela de “vontade” como faculdade do espírito, tal como a criticaram, em especial, Schopenhauer e Heidegger. 146 Mesmo porque, segundo Schopenhauer, não sendo o sujeito passível de determinação causal, conforme já dito acima, seu caráter inteligível, expressão do querer originário, é imutável. É pela mesma razão que o sujeito não causa a si mesmo, não é ele a escolher-se – apenas a Vontade ela mesma se autodetermina. Nietzsche, recusando o querer-ser, e também a liberdade de arbítrio, concorda com Schopenhauer no que concerne à tese de que o sujeito não é causa de efeito algum nem efeito de alguma causa. Como também Nietzsche recusa um determinismo da natureza em si, a existência é uma fatalidade em sentido muito mais forte – trata-se de uma fatalidade trágica, onde o fortuito e o gratuito deixam à liberdade espaço apenas para a afirmação do singular dado que se é. Se for possível formular em poucas palavras o que é ser livre para Nietzsche, pode-se dizer: ser livre é ser o que se é, irredutível a qualquer outro ente, e seu grau é aquele mesmo em que se afirma a vontade de poder, de modo que a vontade nada tem a ver com escolhas de qualquer espécie. O gênio criador, seja nas artes, na política ou no pensamento, é o mais livre, e isto enquanto cria. “Criar” significa dar a si mesmo valores, não leis; significa distinguir-se dos demais, destacar-se, elevar-se, manifestar sua singularidade constitutiva, a única coisa que pode ser admitida como sendo o seu ser.

Page 217: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

217

mundo como vontade e representação, logo de início, mediante uma bastante completa caracterização da

Vontade. Em adição, a mesma passagem nos ajuda a esclarecer em que sentido Vontade e

vontade-de-viver são o mesmo, pois a própria noção de “vida” é muito distinta daquela de

Nietzsche ou da Biologia – a vida, do ponto de vista da Vontade, é idêntica ao mundo, ou seja, sua

manifestação no nível máximo de objetivação:

E como aquilo que a vontade quer é sempre a vida, ou seja, a pura manifestação dessa vontade, nas condições próprias para ser representada [und da was der Wille will immer das Leben ist, eben weil dasselbe nicht weiter, als die Darstellung jenes Wollens für die Vorstellung ist], assim é cometer um pleonasmo dizer: “a vontade de viver”, e não simplesmente “a vontade”, pois é tudo uma coisa só. [...] enquanto a vida, o mundo visível, o fenômeno, é somente o espelho da Vontade, a vida deve ser como a companheira inseparável da Vontade: a sombra não segue o corpo de modo mais necessário; e em toda parte onde há vontade, haverá também vida, um mundo enfim [und wenn Wille daist, wird auch Leben, Welt daseyn]. O querer viver é por isso estar seguro de viver, e, enquanto a vontade de viver nos anima, não temos de nos inquietar por nossa existência, mesmo à hora da morte. [...] mas o indivíduo é apenas aparência [...] e para ele a morte é a perda desse dom [a vida]. (Schopenhauer, 2004, p. 350; grifos nossos)

Desse modo, em síntese, enquanto individual, porém não do ponto de vista subjetivo, a vida

inteligente, capaz de prover um número infinito de motivos para a vontade, encerra um mundo

cuja essência é a Vontade mesma. Tudo que há no mundo há pela Vontade e para ela por

intermédio do intelecto, no qual se manifesta como mundo da vida. A possibilidade de uma

Biologia não provém do mundo, mas do homem, não por ser racional e capaz de conhecer, mas

por apenas para ele dar-se a vida. Não é à toa que apenas o homem possa morrer... Assim sendo, a

possibilidade do conhecimento biológico, do empenho da razão em uma ciência da vida, tem

como condição que a vida antes seja para o homem, não necessariamente como uma realidade

exterior. Por trivial que isto soe à primeira vista, não o é: significa que a vida não é reconhecida

como natureza senão uma vez que a Vontade assim se mostra a partir de si mesma, e não do

fenômeno, como Vida. Por isso Schopenhauer pode dizer, enfim, que onde há Vontade, há vida

– i.e. onde a Vontade se reconhece, vê a Vida; sua perfeita manifestação é Vida, é Mundo. Dizer

“mundo da vida” é, pois, também um pleonasmo. Contudo, isto que ela vê, enquanto visto, já é

seu fenômeno. Portanto, negar a vontade, negar a “vida”, é negar o mundo como fenômeno mediante o

conhecimento do que é em si mesmo, não havendo aí, entretanto, qualquer intervenção de abstrações

subjetivas, como bem mostra o contraste entre o que é a morte para a vontade-de-viver e para

seu fenômeno individual – apenas este último não tem sua existência assegurada. Retorna assim a

ideia de que a angústia da morte é o avesso da vontade de viver. Nietzsche comete o engano de,

partindo do fato dado de viver, replicar que nesse contexto não há mais que se querer a vida, o

Page 218: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

218

que já se tem, quando, em verdade, Schopenhauer diz outra coisa: que o querer-viver se expressa

justamente neste asseguramento de si, no saber-se vivente. Enquanto “afirmador da vontade”,

Nietzsche adota precisamente a postura indicada por Schopenhauer: encara a vida como o que

está desde sempre já assegurado, razão mesma pela qual não se permite pensar adequadamente seu

sentido essencial e radicaliza o que já fora reconhecido por Schopenhauer: que individualmente

viver nada acrescenta à Vontade. Por isso mesmo nos importa mais a acepção dessa Vontade

como querer-ser, que, a esta altura, já pode ser identificado como querer-existir, querer ser-em-um-

mundo, onde “ser” e “em-um-mundo” são constitutivamente unos e inseparáveis.

Confira-se, enfim, a referida fala de Zaratustra, fio condutor da presente discussão:

Certamente não encontrou a verdade aquele que lhe desfechou a expressão “vontade de existência”: essa vontade – não existe [giebt es nicht, “não se dá”]! Porque: o que não existe [was nicht ist, “o que não é”] não pode querer; mas, o que é existente [was aber im Dasein ist], como poderia ainda querer existência! Onde há vida [e aí já temos o dado na natureza como espécie de existência] também há vontade [não significando necessariamente que onde há vontade também haja vida147]: mas não vontade de vida, senão – é o que te ensino – vontade de poder! Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto do que a própria vida [i.e., a moral; em última análise, a verdade – trata-se aqui do homem: o que avalia, mede, pesa148];

147 Em passos decisivos como este, problemas de tradução tornam-se fatais. A clássica tradução de Mário Ferreira dos Santos, que remonta ao final da década de 1950 e foi recentemente reeditada (Petrópolis: Vozes, 2007), apresenta aqui afinidade com trabalho de Bianquis, não apenas no que se refere ao título do discurso (onde se traduz “Von der Selbst-Überwindung” por “Do domínio de si”), mas também na adoção da expressão “querer viver” em lugar de “querer existir”. Logo abaixo, traduz “Nur, wo Leben ist, da ist auch Wille” por “Não há vontade senão na vida”, ou seja, que só há vontade naquilo que vive, que é dado na natureza como ser vivo. Embora Schopenhauer afirme “onde há vontade, há vida”, vimos que o faz em outro sentido, e não constitui prejuízo à crítica que agora apresentamos. Como se vê, Nietzsche não diz isto, de modo que a interpretação do tradutor o conduz a um grosseiro erro lógico ao confundir ou tomar como equivalentes as seguintes proposições: “Em toda vida há vontade” e “Em toda vontade há vida”. Nietzsche sequer emprega uma obscura dupla negação “não há... senão”. O estilo pessoal do tradutor, muito comum dentre os franceses (il n’y a... que), lhe permitiria apenas dizer o contrário: “Não há vida senão na vontade”. Em Schopenhauer, pelo que constatamos, isto não seria grave, mas em Nietzsche, sim, posto que “vida” não tem em ambos o mesmo sentido! Desse modo, e além disso, “aber nicht Wille zum Leben” não pode de maneira alguma significar uma conclusão, uma inferência da interpretação de que todo querer já é viver, mas tão-somente uma substituição válida inclusive para aquilo que já vive segundo o querer-viver. Não se pode negligenciar o “da ist auch”, que diz haver essa vontade ensinada por Zaratustra também onde há vida. A nosso ver, isto significa que “vontade de poder” não é apenas algo mais geral do que “vontade de viver”, mas seu substituto, mesmo porque, como lemos a seguir, a própria vida é desvalorizada em nome do poder. Portanto, devemos entender que auch e aber indicam que o próprio fato de haver vontade de poder (também) naquilo que não vive legitima a ampliação da noção de vontade como vontade de poder, considerando o sentido mais estrito de “vida” em Nietzsche. Em síntese, para Schopenhauer, os fenômenos da Vontade se desdobram ao longo das formas inanimadas de ser e prosseguem no tempo ao longo das formas de vida até o ápice em que sua existência se torne objeto de representação e apropriação. Para Nietzsche, então, que se há de querer uma vez que se vive, e mesmo antes? Poder – eis o que os vivos testemunham a Zaratustra, segundo o contexto da passagem citada. A luta vital é o que há de crucial na natureza como um todo segundo ambos os pensadores – daí Schopenhauer encontrar no “instinto sexual” a vontade de imortalização – e é pela compreensão desta luta como embate de forças (poderes) que Roger tem razão em remeter a Schopenhauer a noção de vontade de poder. Dirá Nietzsche (2000b, [“Incursões de um extemporâneo”, §14] p. 75), contudo, que a “luta pela vida” lhe “parece a princípio mais afirmada do que provada”, substituindo esta tese pela de que “onde há luta, luta-se por potência...”. Em vista de tudo isto é que, a despeito de seus méritos, não optamos pela tradução de Mário dos Santos. 148 Cf. o segundo volume de Humano, demasiado humano, “O andarilho e sua sombra”, §21 (Nietzsche, 2008, p. 176). Machado (1997, p. 69) apenas aponta esta etimologia em um texto posterior, “De mil e de um alvos”, no próprio

Page 219: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

219

mas, através mesmo da avaliação, o que fala é – a vontade de poder!149 (Nietzsche, 2000a, p. 146)

6.4. Retomando a questão em torno “do” nada

A Vontade como querer-ser, expressa fenomenalmente como a vida segura-de-si-mesma, se

reconhece no ser-indivíduo humano que, autoconsciente e capaz de representar o ser-livre, tem a

possibilidade de encontrar em seu próprio fundo um nada de fundamento. Analogamente, o

“mundo” se lhe apresenta como resultado de nada, e mesmo sua realidade é remetida à

representação do querer-viver. É sempre do ponto de vista da representação de uma vontade

objetivada como um “eu” que se dá “mundo”, que se dá “vida”. Em vista disto, devemos

considerar que a expressão heideggeriana “o ente é, mas apenas o homem existe” é compatível,

pois, com o que diz Schopenhauer: apenas enquanto indivíduo, objetivação do querer-viver, pode

o homem estabelecer relação com o ser do ente, incluso aí seu próprio ser; apenas para o homem,

pela via de suas representações, há mundo ou, dito negativamente, nada.150 “Nada” em que somos

Assim falou Zaratustra, como significado do termo alemão “Mensch” (Nietzsche, 2000a, p. 86), desconsiderando, porém, a possibilidade de jogos fonéticos com o latim e o grego, ou mesmo recorrências etimológicas a estas línguas clássicas, o que seria de se esperar de um filólogo como Nietzsche. 149 Sobre a tese de que a vida como vontade de poder está na base de toda avaliação, ver Machado (1997, p. 71, 73). Contudo, o comentador parece personificar a vida sem mencionar, como defendemos ser o caso, que Nietzsche esteja ainda, e como sempre, se referindo implícita e especificamente ao homem, e não à “própria vida”, senão metafórica ou metonimicamente, exatamente como fazia Schopenhauer (por analogia) conforme viemos de mostrar. Ademais, a “superação da vida por ela mesma”, fórmula encontrada em diversos lugares, remete também a Schopenhauer, porém não mais em um tom tão metafísico quanto metafórico ou metonímico, tomando o “humano” pelo “ser vivo”, pelo que reiteramos que “o poder” vem substituir “o viver” como “alvo” da vontade em geral no plano da imanência. Ver também seu comentário dedicado a este discurso de Zaratustra (ibid., p. 100-104), o qual surpreende por ignorar ou pelo menos omitir a evidente alusão ao pensamento de Schopenhauer, deslocando-se para o problema da vontade de verdade (um modo da vontade de poder). De todo modo, deve-se admitir que “vida”, sem autorizar sua personificação, vem substituir na obra posterior de Nietzsche a refutada noção de “sujeito voluntário”, como, por exemplo, em Além do bem e do mal, §13 (“a própria vida é vontade de poder”) e, especialmente, em Crepúsculo dos ídolos, “Moral como contranatureza”, §5, (“a vida mesma valora através de nós”) e também “Os quatro grandes erros”, §8 (“Ninguém é responsável em geral por ele [o homem] existir [...]. O homem não é a consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade.”). (Cf. Nietzsche, 1996c, p. 20; 2000b, p. 37 e 50.) 150 Fica, contudo, indecidido se para os animais há alguma espécie de mundo, conforme já apontado. Sua eventual “abertura” é totalmente velada para nós. Ainda que Schopenhauer reconheça neles representações intuitivas (“inconscientes”, não-reflexivas) de causa e efeito, nega-lhes a faculdade das representações abstratas e, por conseguinte, o conhecimento de conceitos. Talvez, se a possuíssem, fossem capazes de ter uma autoimagem mediante a representação de um “eu”, pois poderiam ter consciência da alteridade. Como, aparentemente, não a possuem, podemos afirmar que são destituídos de egoidade e de mundo, mas não sem reservas, pois, para afirmarmos isto, estamos tomando como pressuposto a experiência de racionalidade e a concepção de existência que representamos para nós mesmos, as mesmas que nos fazem projetar em crianças muito pequenas uma capacidade de relacionamento com o mundo a seu redor de que são completamente incapazes. Ademais, sabemos que a noção de “racionalidade” é bastante discutível e sequer se encontra em todas as culturas tal como elaborada pela tradição filosófico-científica ocidental. Para Schopenhauer, contudo, admitindo que os animais conheçam a causalidade intuitivamente, não de modo abstrato, e assim imediatamente o próprio corpo, é-lhes possível uma rudimentar egoidade mediante as relações diretas e presentes que são capazes de estabelecer com o mundo circundante. No

Page 220: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

220

quando não referidos ao ente, não se tratando, porém, como já exposto no segundo capítulo, de

um abstrato “nada absoluto”, mas apenas relativo ao mundo como representação, ao “alguma

coisa”.

[...] minha doutrina, chegada a seu ponto culminante, toma um caráter negativo e termina em uma negação. Pois então ela não pode mais falar senão do que se nega e do que se abandona; quanto às vantagens obtidas e conquistadas em contrapartida, ela é obrigada (na conclusão do quarto livro [cf. §71, p. 512-513]) a designá-las pelo nome de nada, sendo-lhe permitido acrescentar como consolação que esse nada é apenas relativo, e não absoluto. Pois, se algo não é nada daquilo que conhecemos, não poderia ser nada para nós em geral. Não se segue portanto que seja um nada absoluto, que deva ser um nada segundo todos os pontos de vista e em todos os sentidos possíveis; mas simplesmente que nos encontramos circunscritos a um conhecimento totalmente negativo da coisa, o que pode muito bem manter-se com a estreiteza de nosso ponto de vista. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1380-1381; grifos nossos)

A dificuldade em “darmos conta” do nada é precisamente no que consiste a peculiaridade

daquilo que não é, de modo algum, um ente, ou uma representação do ente, exigindo-se então o

reconhecimento da “estreiteza de nosso ponto de vista”. Nesse sentido, também dirá Heidegger

(2000d, p. 60): “Tão finitos somos nós que precisamente não somos capazes de nos colocarmos

originariamente diante do nada por decisão e vontade próprias. Tão insondavelmente a

finitização escava as raízes do ser-aí que a mais genuína e profunda finitude escapa à nossa

liberdade”. É por sermos finitos na medida em que somos determinados que, até mesmo, não

conseguimos ordinariamente nos pensarmos a nós mesmos senão como “indivíduos”, não o

quinto capítulo dos Suplementos a O mundo..., Schopenhauer (2004, p. 735) diz nada haver entre os animais e o mundo exterior, justamente por suas representações serem imediatas, diferentemente dos humanos, que estabelecem suas relações com o mundo mediatamente. De fato, é possível testemunhar em muitos animais a curiosidade e a surpresa, o que denota que reconhecem alterações abruptas no ambiente e o fenômeno de quebra de sentido aí implicado. Considerando isto, se deixarmos de lado a racionalidade e o que a linguagem tem de abstrato, uma vez regida por representações conceituais, devemos ao menos aceitar como questão que a diferenciação a priori, essencial, entre nós e eles se torna grandemente irrelevante e, ao mesmo tempo, problemática. Não temos a intenção de aprofundar tal problema, mas, uma vez vinculada a experiência negativa da angústia – i.e., como “perda de solo” – à capacidade humana de representar abstrações, a observação se faz pertinente em algum sentido que não poderá ser explorado neste estudo, caso haja meios para tanto. Em sua monografia Sobre o fundamento da moral, §19, item 7, em meio a um sucinto, porém inflamado manifesto em defesa dos animais, diz Schopenhauer (2001, [p. 239] p. 176), referindo-se ao preconceito em questão: “Por isso os animais não deveriam, por fim, saber distinguir-se do mundo exterior e não deveriam ter nenhuma consciência de si mesmos, nenhum eu! Contra tais afirmações sem gosto pode-se apontar para o egoísmo sem limites que habita todo animal, até mesmo o último e o menor, que atesta suficientemente como os animais são bem conscientes do seu eu, do mundo e do não-eu”. De fato, claro é que os animais reconhecem os “seus”, muito embora costumemos relegar este fato às forças instintivas (de resto, muito contestáveis). Considerado o já referido conceito schopenhaueriano de “consciência” e o fato de não se tratar aí de um “eu” reflexivo – afinal, o “eu” que ordinariamente representamos é algo abstrato e mediato –, mas meramente intuitivo, sem conceito ou julgamento, isto significa que, o que tomamos por incapacidade para estabelecimento de relações conscientes com o mundo não indicaria ausência de egoidade em sentido lato, mas, em vez disso, expressão do egoísmo em estado puro, não mascarado por refinamentos do pensamento e autoimagens construídas empiricamente graças à razão. Seria ainda dizer que os animais, não sendo a expressão mais perfeita, são a mais clara manifestação da voracidade da vontade-de-viver. Por conseguinte, se tal voracidade não é propriamente má, posto que não visa ao dano, não apenas a compaixão, mas também a maldade, seu oposto, pertencem ao ser racional, conclusão já atingida antes.

Page 221: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

221

contrário, ou seja, não é por sermos substancialmente indivíduos isolados que reconhecemos

nossos limites finitizantes. Finitos, somos sempre no mundo, ou no nada. A finitização de sermos

o ente que somos bloqueia-nos o caminho a cada vez, sendo claro que também Schopenhauer

reconhece a impossibilidade de uma negação da vontade pela via de uma “livre escolha”, por um

livre arbítrio. Trata-se, antes, de um acontecimento, tema da próxima seção deste capítulo. O

nada não se dá, não aparece; o nada – dito abusivamente – é e, inadvertidamente, somos “ali”. Não

é à toa que o ascetismo não é em si mesmo um fim, mas um exercício, um meio que nunca atinge

seu fim por si só, assim como o suicídio é a própria antítese da negação de que se trata aqui.

Perguntando-se sobre o nada, Heidegger dará passos decisivos, tornando explícito que a

própria pergunta, feita como se se tratasse de um ente, erra seu alvo, fazendo do nada seu

contrário – “alguma coisa”. (A propósito, conforme já indicado acima – nota 21 –, fazer preceder

o artigo “o” à palavra “nada” é antes uma exigência quase incontornável de uma língua que

sequer dispõe de artigos neutros; escrevê-lo, porém, sempre entre aspas confere um aspecto

enfadonho ao texto sem sequer eliminar o inconveniente e mesmo o contrassenso de fazermos

tal palavra – um substantivo (!) – ser precedida por um artigo definido singular.) “Tanto a pergunta

como a resposta são, no que diz respeito ao nada, igualmente contraditórias em si mesmas”

(Heidegger, 2000d, p. 53). Do mesmo modo, o nada não pode ser tomado como a mera “negação

da totalidade do ente”, mas como mais originário do que todo “não”, pois, caso contrário,

pressupomos o ente dado cuja ausência denominamos “nada” (Heidegger, 2000d, p. 54-55), e

nisto poderíamos reconhecer um erro grave em Schopenhauer se não tivesse sido sua intenção

apontar-lhe o caráter originário com relação a toda representação, todo fenômeno, todo ente –

basta admitirmos que a coisa-em-si não é nada disso. Conceber o “nada” a partir da derivada

noção de “ausência” consiste em confundi-lo com (espaço) vazio.151 A essência do nada, ao invés

151 A própria questão do vazio não fora adequadamente formulada, como nos mostra Schuback (2007). Segundo ela, “a filosofia [...] não pode não se confrontar com a experiência pensante do vazio” muito embora se nos mostre como problema “como pensar o vazio se pensar é pensar alguma coisa” (p. 81), ou seja, representar. Trata-se aqui do fato de uma tal experiência pensante exigir um pensar que não seja pautado em representações e condicionado por sua estrutura formal, mas enfrente “a possibilidade de se pensar o impensável, isto é, o nada” (loc. cit.), justamente aquele pensamento novo que vimos faltar em Kant. Em seminário de 6 de julho de 1964, um participante define para Heidegger o vazio como “nada conter”. Heidegger, por sua vez, indica o livre como mais originário que o vazio. Está em jogo nossa usual representação negativa de “livre” como des-impedido, de espaço livre como aquele já dado e que nada contém, que se encontra disponível, vacante. Para Heidegger (2001, p. 43), contudo, “vazio é fundamento de [re]conhecimento para a liberdade; mas liberdade é ratio essendi para o vazio. É uma razão de ser, mas não uma causa” – esta última sempre exigível pelo conhecimento. A liberdade, portanto, supõe uma abertura que precede toda ocupação e desocupação possíveis; a experiência pensante da liberdade deve ser uma experiência do nada originário. Seria esse o nada próprio da negação schopenhaueriana da Vontade; o nada do livre e da liberdade; o nada de que sempre foge a Vontade quando e enquanto se afirma. Como vimos também em Schopenhauer, ser não envolve causas; apenas o conhecer e o agir o exigem. “Nada” não quer dizer o outro do ente, mas o que não é representação de ente ou não-ente. Chega a ser, nesse caso, digno de nota que a Teologia tenha reconhecido como expressão suprema do poder divino algo como uma creatio ex nihilo, seguramente mediante uma pobre analogia ao artífice humano que, diferente do divino, depende de matéria preexistente para produzir, assim diferenciando o criador do mero transformador. Notável é que, de nossa finitude, provenha o rebaixamento do divino.

Page 222: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

222

de indicar uma propriedade determinada – neste caso, negativa –, é ela mesma a própria

nadificação, a qual “não se deixa compensar com a destruição e a negação”, “não é nem uma

destruição do ente, nem se origina de uma negação”, pelo que diz Heidegger (2000d, p. 58) que o

“nada nadifica”, exprimindo assim a originária, por assim dizer, positividade de sua essência. “O

nada é a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um

conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente

acontece o nadificar do nada”, de modo que “o nada é a origem da negação e não vice-versa, a

negação a origem do nada” (Heidegger, 2000d, p. 59). É pelo nada que o livre permite o dar-se do

ente, e não o contrário, ou seja, a ausência do ente dado a deixar o espaço livre, vazio, “sem

nada”, disponível para a ocupação pelo ente – muito longe há de chegar em nosso tempo a

representação da liberdade como disponibilidade...

Em consonância a isto, o nada schopenhaueriano não é decidido por uma recusa negativa do

indivíduo voltada contra todo ente em sua positividade fenomenal; é, ao invés, como um retorno

a uma condição originária e irrepresentável simplesmente por sua impertinência ao mundo como

representação, ao mundo da causalidade, da objetalidade, não havendo, pois, categorias que

permitam ao intelecto traçar-lhe um perfil. Não se postula aqui um ceticismo – o foco é

inteiramente outro, embora inclua a impossibilidade do entendimento, que é aqui algo derivado de

uma questão ontológica. Esse nada pertence à nossa própria essência enquanto vontade

absolutamente livre, prévia a toda individualidade, personalidade e subjetividade. É nesta

liberdade do nada que o ente como tal é “conhecido” como Vontade, muito embora esta não seja

o ente, mas o ser, aquilo que todo ente em seu fundo sempre é, não como a possibilidade já

fechada e determinada que se manifesta no “mundo”, mas como possibilidade aberta de seu

próprio acontecer em um mundo. É, antes, “porque” somos essencialmente nada (liberdade) que

a negação pode acontecer como via de retorno ao que somos verdadeira e originariamente, nada

tendo isto a ver, também conforme visto acima no capítulo 2, com uma supressão do ente de fato.

O indivíduo não é indivíduo até a “queda”; até então, “cada um” é nada, é coisa alguma.

“Cair” significa vir à existência, nascer como homem, passar a ser algo, “ganhar essência”, um

modo inalguralmente fundamental do existir. A “culpa” por esta queda não é mais uma “má

consciência” adquirida mediante uma transgressão ou uma omissão, mas um dever-a-si-mesmo

ser o que-é, ter nascido, existir deste modo determinado e não de outro. Todavia, isto não

significa que a culpa seja própria a tudo que existe ou é. A culpa, enquanto fenômeno psicológico,

é encontrável apenas no “querer acompanhado de conhecimento” (Schopenhauer, 2004, [§28] p.

206). No entanto, não se trata, definitiva e originariamente, de uma culpa moral, mas de uma

responsabilidade existencial segundo a qual cada um sempre responde por ser irreversivelmente si

Page 223: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

223

mesmo e que, para que seja assumida, exige-se uma consciência, de modo que o conhecimento

não causa a culpa, apenas lança luz sobre ela. Não é à toa que a culpabilidade “cresce” e se torna

consciente de si mesma na medida da perfeição da individuação, trazendo consigo o

conhecimento acerca da mortalidade e o aumento dos sofrimentos físicos e psíquicos. A vontade-

de-viver determina-se para a vida, não por desígnio de um criador, mas por si mesma, e todo

“pecado”, toda “falta”, nada mais são do que o reflexo de uma vontade que, originariamente, se

afirmou como indivíduo – daí o mais fundamental e grave de todos os “pecados” ser, segundo

Schopenhauer, o egoísmo, justamente pelo que exprime: a adesão vigorosa à própria individualidade, à

insubstancial representação de si mesmo como existência indubitável, vida assegurada de si mesma, a exemplo do

ego cogito sum cartesiano, que “deixa indeterminado”, nas palavras de Heidegger (2007h, [§6, p. 24]

p. 63), “o modo de ser da res cogitans ou, mais precisamente, o sentido do ser do ‘sum’”. Quão longe

está a imediaticidade já sempre compreendida e certa do sum daquela perniciosa “evidência”

reificada do ego! Em que medida a inquestionável genialidade da intuição cartesiana não viera

sedimentar o mais rudimentar e fatal pré-juízo do senso comum? Afinal, todo mal do mundo se

funda na adesão ao princípio de individuação, na representação de um “eu” como “ipsum”, na

própria essência do que Schopenhauer entende por “afirmação da vontade de viver”, princípio de

toda crueldade contra os outros e contra o próprio fenômeno de si mesmo no caso do suicídio,

ato pelo qual se pretende o desaparecimento do que insatisfaz, donde a crítica do solipsismo.

Aquele para quem todos os outros seriam sempre não-eu, aquele que no fundo só tomasse sua própria pessoa como verdadeiramente real e visse, do contrário, os outros só como fantasmas aos quais atribuiria uma existência meramente relativa [a si mesmo], enquanto meio para seus fins, ou pudesse opor-se a estes, de modo que permanecesse uma diferença incomensurável, um abismo profundo entre a sua pessoa e todo aquele não-eu, veria perecer com a sua morte toda a realidade e todo o mundo. (Schopenhauer, 2001, [§22, p. 273] p. 221-222)

Apenas do ponto de vista da afirmação da vontade de viver a morte pode ser representada

como nada absoluto – terrificante para uns, redentor para outros. Trata-se da armadilha de todo

solipsismo, que Schopenhauer antes constata como uma doença do conhecimento do que defende como tese sua.

Vê-se o modo renovado com que Kant é aí repensado e, com clareza, que não é neste sentido

que Schopenhauer declara “o mundo é minha representação”, a saber, do ponto de vista do

egoísmo, que é o verdadeiro sentido e expressão do solipsismo. Trata-se de uma sentença, antes

de tudo, negativa: o mundo, tal como me aparece pelo conhecimento, é apenas representação; em si

mesmo, não há nele um eu – o próprio mundo é como nada; neste sentido, a vida é nada, e

somente pode ser investida de valor enquanto alguma coisa. Todo não-eu é tão fantasmagórico

Page 224: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

224

quanto o meu próprio eu, sendo dito “pecado” aquilo segundo o que o abismo entre um e outro

originariamente se abrira como a própria condição para o nascimento de um e outro, para que

alguma coisa confira ou não valor a alguma outra no esforço de construção de uma ponte tornada

impossível concomitantemente à sua própria “exigibilidade”. “Este mesmo pecado [original] é,

em realidade, a afirmação do querer-viver; a negação do querer-viver, ao contrário, em seguida ao

desabrochar de um conhecimento mais esclarecido, é a redenção” (Schopenhauer, 2004, [cap.

XLVIII] p. 1376). É, pois, na afirmação da vontade de viver que a vontade ao mesmo tempo: (1)

se individualiza, determinando-se; (2) peca, adquirindo responsabilidade como sendo em função

de si mesma; e (3) decai, vindo a nascer como fenômeno de seu próprio querer-existir.

O homem recebeu a existência e o ser ou por sua vontade, ou seja, com seu consentimento, ou contra seu agrado: neste último caso, uma tal existência, exasperada por múltiplas e inevitáveis dores, seria uma atroz injustiça. [...] No fundo, a razão das tentativas desses filósofos [estoicos, peripatéticos e acadêmicos], ainda que não por uma consciência expressa, era a hipótese que tinham para si da justiça [...] mas a grande falta do homem é haver nascido. Esta culpabilidade que o homem traz ao mundo desde seu nascimento não pode parecer absurda senão àquele que o considera saído instantaneamente do nada e criado por mão estranha. A partir desta falta, que deve proceder da vontade, o homem permanece [...], malgrado todas as virtudes que tenha praticado, vítima das dores físicas e morais, ele não é, pois, feliz. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1370-1371)

Interessante observar, mais uma vez, que a desconsideração do Deus-criador, por

Schopenhauer, não se pauta em um “pessimismo” que diz: não há Deus porque a vida é má.

Antes, pretende mostrar que a concepção de um mundo de sofrimento haver sido criado por um

“Ser” bom e inteligente é mais absurda (Schopenhauer, [2003b], [§69] p. 132-133) do que o

concebermos como um simples fenômeno do egoísmo (afirmação do amor-de-si) em que se vê

enredada a vontade alienada segundo sua própria decisão de existir individualmente – tout court,

segundo a ilusão do “eu”. Que a vida seja má para nós talvez seja um indicativo de que não há

Deus, não há uma criadora “mão estranha” a se culpabilizar, pois do contrário nossa dor seria

injusta. A culpa não é do mundo, não é de um deus ou demônio, mas sempre nossa e, acima de tudo,

trata-se de uma dívida impagável, não por seu montante, mas por sua natureza, “malgrado

qualquer virtude que se pratique”. Mas admiti-lo implicaria uma dificuldade para os moralistas: de

que vale então a virtude? O erro reside na própria pergunta, pois a virtude nada tem a ver com a

felicidade, senão acidentalmente, mediante alguma outra coisa que talvez o virtuoso e o feliz

tenham em comum. Apesar disso, segundo uma certa concepção de justiça, como aquela de

Kant, a prática da virtude pode suscitar o sentimento de que se “merece” a felicidade, ou mesmo de

que se a possui, mas o mesmo Kant argumentara que tal merecimento não justifica mais do que

Page 225: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

225

uma crença na salvação – conceito em que se resolve a beatitas cristã. Não é a promessa de

felicidade, enfim, que deve motivar como um fim a vida virtuosa, exceto do ponto de vista dos

negócios cotidianos. Devemos até nos questionar se Aristóteles teria sido tão ingênuo em ensinar

o que se diz que ensinava em sua Ética, bem como se a interpretação usual teria sido possível sem

uma tão longa tradição cristã. Ainda que “eudaimonia” possa ser legitimamente traduzido como

“felicidade”, que será que pensavam os gregos a respeito, uma vez que a palavra não diz mais do

que a qualidade de um “bom espírito”, indicando tão-somente o bem-estar interior, ou seja, o

sentimento de um estado? Uma tarefa para a Filologia, é certo, como certo é que não se trata do

mesmo que os romanos e, por extensão, os cristãos, concebiam como “beatitas”...152

O que ordinariamente se considera em Schopenhauer “pessimismo” consiste na apreciação

de fenômenos segundo os quais ele encontra uma ratio cognoscendi da responsabilidade de nossa

existência, i.e. diante de um mundo somente dotado de sentido em nossas representações,

frequentemente insuficientes, a inteligência deve mostrar que não há princípio e não há finalidade

fora de nós mesmos – a gratuidade impera ao lado do desgoverno e da impotência. Olhando de

perto, o diagnóstico somente é pessimista à luz de nossa subterrânea necessidade de controle, posto que lhe

tira as esperanças, aponta-lhe o dedo dizendo: “Nada a fazer!”. Enquanto a felicidade for

concebida como posse ou empoderamento de algo, material ou espiritual, não passará de quimera.

Isto, contudo, não deve ser confundido com a ratio essendi da existência e sua responsabilidade

constitutiva, a saber: a liberdade para além de todo valor e mesmo independente de toda moral –

esta “razão de ser”, todavia, não faz do mundo algo racional, dotado de sentido. A ratio essendi não

é um fundamento no sentido de uma causa que, perseguida por encadeamentos lógicos, venha a

ser dada em uma descoberta; ela se abre em meio ao salto para nossa própria natureza em seu ser,

para além de todo entendimento. Aqueles que, otimistas, veem no mundo alguma razão teleológica

– ou seja, stricto sensu, alguma justiça –, são aqueles que buscam fazer a felicidade depender da

virtude como de uma causa necessária (ainda que não suficiente) e, portanto, das ações e do saber

necessário, como que conferindo orgulhosamente ao homem um poder que não possui, sempre

segundo a ilusão do “eu”. Contra eles, afirma Schopenhauer (2004, [cap. XLVIII] p. 1378) que “a

ação virtuosa é uma passagem momentânea pelo ponto para o qual a negação do querer-viver é

um retorno durável”, pois, se a esta negação corresponde o fim de toda motivação antimoral, daí

152 Tais questões acerca da felicidade não podem ser desenvolvidas neste estudo preparatório, exigindo, como ponto de partida, considerações acerca de nossas representações do ser-feliz, “filosóficas” ou não, com desdobramentos pelos quais se tematize adequadamente os modos de ocupação em vista da felicidade e as maneiras como isto se reflete em nosso modo de ser-com no-mundo. Uma abordagem meramente conceitual do problema indicado não poderia resultar senão em uma erudição abstrata, tanto quanto volumosa, mesmo ultrapassando os limites de uma Filologia.

Page 226: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

226

apenas decorre toda justiça e caridade (Schopenhauer, 2001, [§§14-19, p. 196 et seq.] p. 120 et seq.).

Em síntese, para além das representações, nenhuma ética sequer é exigível.

Ao contrário, então, do que pode parecer em sentenças como “o mundo é minha

representação”, Schopenhauer defende a tese de que nada está em poder do homem, em nada o

homem é livre exceto no fato dado e irrecorrível de haver-se querido – se como egoísta, mau ou

compassivo, apenas suas ações hão de mostrar-lhe – e desde então haver-se imediatamente

condenado à finitude e à morte no tempo. Nesse sentido, a morte se coloca como perspectiva da

finitude inerente a esse “eu” que se quis. Se, por um lado, a morte pode ser encarada como uma

contradição da vontade e, assim, como marca do destino daquilo que “não deveria ser”, corolário

do sofrimento da vida, por sua vez, traz consigo uma abertura para a compreensão do

desinteresse como redenção, ou seja, libertação pela via da negação do querer-viver mediante a

ausência de propósito para toda vida, cujo maior sofrimento provém do querer além de si mesma,

empenhada na impossível satisfação da voracidade do querer-viver.

A generosidade que perdoa o inimigo e retribui o mal com o bem é sublime e merece o mais alto louvor, porque reconhece sua própria auto-essência também ali onde ela se nega decididamente. [...] [...] Então considera a morte como o piscar de olhos que não interrompe a visão. [...] aquele que avistasse sua essência em todos os outros e ainda em tudo o que tem vida, cuja existência fluísse, portanto, junto com a existência de todos os viventes, perderia com a morte apenas uma pequena parte de sua existência. Perdurariam em todos os outros nos quais ele reconheceu e amou sua essência e seu si-mesmo, e desapareceria a ilusão que separava sua consciência do resto. É nisto que pode repousar, não toda, mas a maior parte da diferença entre a maneira como os homens especialmente bons e os predominantemente maus aceitam a morte. (Schopenhauer, 2001, [§22, p. 272-274] p. 221-222; grifo nosso153)

A sublimidade da generosidade, portanto, reside no fato de que exprime uma superação

bastante peculiar do amor-de-si: oferece a outrem o que outrora, tendo em vista apenas a própria

pessoa, somente se ofereceria ao “si-mesmo” dado na representação. A esta altura, a vontade se

afirma no não-eu, desviada do eu-mesmo. Trata-se de uma misteriosa dádiva, de um amor autêntico

no rigor do termo, pelo qual o amor-de-si, em vez de simplesmente suprimido em prol de um

153 Grifamos o trecho que consideramos de grande importância para percebermos que a negação da vontade, antes de significar um mero “ódio à vida” fruto de um profundo pessimismo, como alardeará Nietzsche, pode (e, a nosso ver, deve) ser lida como negação daquilo que faz da vida um mal – o individualismo – em nome da totalidade. Nesse movimento, o amor-de-si se integra ao amor-do-outro em uma co-pertinência ao mundo, superando-se as motivações egoístas que, fundadas na ilusão do “eu”, produzem sofrimento muitas vezes encoberto pelo sentimento de conquista e poder. Se, por sua vez, apenas há vida individual – não o neguemos! –, trata-se de mero fenômeno, de modo que a negação da vontade não é tanto a negação do que as coisas são, do mundo em si, mas do que pensamos ser. Trata-se, pois, de uma des-ilusão. No compadecimento, por fim, aprende-se o amor do que verdadeiramente somos, condição de todo assumir-se, amor buscado pelo próprio Nietzsche sob a rubrica do amor fati.

Page 227: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

227

amor-do-outro, tendo sido desfeita a diferença fenomenal que separa um e outro, ama tudo que

vive e padece como a si mesmo; não apenas padece-com, mas também vive-com. Nesse sentido,

como que se abre a possibilidade de uma libertação pelo amor. Tal perspectiva, segundo

Schopenhauer, se liga à própria natureza forjada do ser-indivíduo – o indivíduo é o que não deve

ser, não tanto por consistir em um erro (pois, nesse caso, quem o teria cometido e com relação a

que?), mas, sobretudo, por não ser o que a vontade é em si: não-determinada e, portanto, livre. Se

podemos dizer que o amor-de-si se encontra na essência da afirmação, superado o mundo como

representação, essa essência é liberada na medida em que o “si” não é “alguém” que se quer de

modo exclusivo ou exclusor.

Mas o homem que menos temer ser aniquilado na morte é aquele que reconheceu que desde então não é nada e, por conseguinte, não toma nenhum interesse por seu fenômeno individual: o conhecimento como que consumiu e devorou nele a vontade na medida em que não mais se conserva nele o menor querer, a menor sede de existência individual. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1377; grifo nosso)

Paradoxalmente, apenas o não-livre enclausurado no “eu” temporalizado tem diante de si a

morte, que é uma determinação, uma pré-destinação, um “fato natural”, mas esta somente pode

se pôr originariamente como destino daquele que, livremente, quer viver; enquanto mera

possibilidade, o querer-viver não tem sujeito, não é sujeito, tampouco morre. (“Apenas o homem

morre”, dirá Heidegger repetidas vezes e em diferentes contextos, como veremos a seguir.154)

Suspenso o interesse, ligação entre a Vontade e seus fenômenos, o fenômeno fundamental da

individuação é suspenso e, com ele, a própria vontade enquanto “princípio de adesão aos entes”,

podemos dizer; suprimido o objeto de uma vontade (representação subjetiva do querer), suprime-

se seu sujeito (fenômeno objetivo do querer), suprimida a relação, suprime-se seu polos. Tal

suspensão é uma suspensão no nada, tema do capítulo final de O mundo...

154 “Os mortais são os homens. São assim chamados porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O animal finda. Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A morte é o escrínio do Nada, do que nunca, em nível algum, é algo que simplesmente é e está sendo. [...] Escrínio do Nada, a morte é o resguardo do ser. Chamamos aqui de mortais os mortais – não por chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como morte. Os homens são mortais antes de findar sua vida.” (Heidegger, 2007f, p. 156) Comparar com o que escreve Kierkegaard (1962, p. 140, nota; grifo nosso): “Definir o temporal como pecabilidade acarreta a morte como castigo. Há aqui uma antecipação, mas poderemos encontrar uma analogia, si placet, no fato de a morte, mesmo como fenômeno exterior, se apresentar tanto mais terrível quanto a estrutura do vivente é mais perfeita. Ao passo que a morte e o apodrecimento de uma planta exalam um perfume quase mais suave que o seu capitoso aroma, a putrefação de um animal empesta os ares. Num sentido mais profundo, poder-se-á dizer que quanto mais alto se coloca o homem, mais terrível será a morte. No fundo, o animal não morre; mas aí onde o espírito se pôs como espírito, a morte exibe o seu rosto terrível. [...] No instante da morte, o homem alcança o ponto extremo da síntese. O espírito não pode, por assim dizer, estar presente; porque, não podendo morrer, deverá no entanto aguardar, uma vez que o corpo tem de morrer.”

Page 228: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

228

[...] em lugar da passagem eterna do desejo [de conquista] ao temor [da perda], da alegria à dor [que sempre acompanham conquista e perda respectivamente], em lugar da esperança jamais saciada, jamais extinta, que transforma a vida do homem, enquanto a vontade a anima, em um autêntico sonho, descobrimos aquela paz mais preciosa que todos os bens da razão, aquele oceano de quietude, aquele repouso profundo da alma, aquela serenidade e aquela segurança inabaláveis [...]; nada mais há além do conhecimento, a vontade dissipou-se. (Schopenhauer, 2004, [§71] p. 515)

A esta altura já se deve reconhecer que, a despeito do vocabulário carregado e maculado

pela tradição que opõe razão e sensibilidade, sabedoria e desejo, não é lícito transpormos para

nossa leitura tais preconceitos. Em vez disso, sem qualquer pretensão reducionista, parece correto

supor que muito do vocabulário schopenhaueriano, quando não herdado de Kant, se estabelece

segundo suas rivalidades, como que buscando enfrentar especialmente Fichte, Schelling e Hegel

em seus próprios terrenos. Bem entendido que o conhecimento aqui evocado é o conhecimento

da Vontade por ela mesma enquanto “sujeito puro” – ou seja, não determinado relacionalmente

como o sujeito lógico-psicológico segundo o princípio de razão –, bem como que a Vontade ela

mesma é indestrutível e livre, reconhece-se aí o desembaraçar-se das relações que constituem o

mundo da vida, o retorno da Vontade a si mesma, a recondução do indivíduo a seu nada, sua

elevação, a remissão da queda pela des-individualização ou, melhor dito, des-personalização. Mais

que isso: a Vontade que se conhece a si mesma é, para Schopenhauer (2004, [§71] p. 514), o que

propriamente significa “mundo”. No mesmo lugar, Schopenhauer reconhece que

“conhecimento” não é uma palavra adequada, pois tal estado “não mais comporta a forma de

sujeito e objeto”, pertencendo a uma experiência própria e incomunicável, de maneira que a

tentativa de elucidá-la consiste em um esforço inevitavelmente limitado pelas possibilidades de

expressão filosófica, cujo instrumento é o discurso abstrato-conceitual. Parece-nos correto dizer

que tal “conhecimento incomunicável”, como terminologia herdada de uma mística

racionalizada,155 precisamente porque não encontra apoio possível em quaisquer categorias

adequadas ao mundo como representação – o mundo da linguagem filosófica –, consiste em um

conhecimento daquele nada originário, cuja essência Heidegger designará “nadificação”.

155 Schopenhauer (2004, [cap. XVII] p. 882) chega a recusar sistemas baseados em experiências extáticas ou visões casuais, subjetivas e particulares. Embora seja claro que sua filosofia não se funda em qualquer tipo de “revelação mística”, constituindo-se como uma filosofia sobre o mistério e não sua solução definitiva, tal recusa parece merecer atenção especial, a que, no entanto, não poderíamos nos dedicar devidamente no presente estudo senão sob pena de nos desviarmos bastante de nosso propósito.

Page 229: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

229

6.5. O acontecimento da liberdade

Somos chegados a um ponto delicado de nossas considerações, a saber: até que nível há

uma verdadeira proximidade entre os fenômenos pensados em sua radicalidade por Heidegger e

por Schopenhauer. Esta questão talvez não possa ser satisfatoriamente respondida tão depressa...

Ademais, nosso propósito atual não passa por formalismos desta natureza – dedicamo-nos aqui

ao que está sendo pensado por um e outro em vista de pensá-lo uma vez mais. De todo modo,

parece que a diferença crucial reside no fato de Schopenhauer, inevitavelmente dialogando com

os seus contemporâneos que priorizavam as noções de “saber”, “consciência”, “razão”,

“universalidade”, dirige seu próprio foco de atenção ao projeto de expor à luz algo de impensado

(e quiçá impensável) no que diz respeito ao conhecimento, seguindo o caminho aberto por Kant

justamente na direção que não teria sido adequadamente percorrida por seus sucessores.

Enquanto Heidegger partirá da questão do ser, Schopenhauer partira da questão do conhecer,

uma vez que, para ele, o que é objetivamente consiste sempre em fenômeno representado. De

modo algum Schopenhauer ultrapassa o projeto mais modesto de realizar uma “crítica da crítica

do conhecimento”, em que rivalizava com Hegel, muito embora supere as expectativas ao fazê-lo.

Por exemplo, advogando uma experiência mal expressa pelo termo “conhecimento”, parece ainda

querer apontar para o conhecer ele-mesmo tentando desembaraçar o em-si das determinações

subjetivas ou objetivas, paralelamente ao que pretendera Hegel na Fenomenologia do Espírito, porém

em sentido inverso: não é interesse de Schopenhauer inflacionar o fenômeno da verdade, mas

desmascarar o mundo como artifício impalpável da vontade. Em Schopenhauer, em-si e para-si

convergem no colapso da distinção transcendentalmente operada pela faculdade representacional

e seus aparatos. Ao dizer, então, que o mundo é a Vontade que se conhece a si mesma – bem

provavelmente rivalizando com Schelling, que já superara o solipsismo fichteano –, pretende nos

ensinar que todo conhecido consiste no reflexo do conhecedor estabelecido segundo interesses e cujo

“anteparo” é o intelecto, porém reiterando sempre que não há tal coisa como Eu Absoluto, já

teorizado por Fichte e desenvolvido por Hegel, ao mesmo tempo em abole o Deus schellingiano.

É neste sentido que o conhecimento, em Schopenhauer, é superior à vontade: não no sentido de

que deve antecedê-la ou guiá-la, como pensavam seus antecessores desde Sócrates, mas no

sentido de que, uma vez purificado pela suspensão dos interesses, pode encontrar-se a sós

consigo como puro conhecer, liberto dos princípios do conhecimento objetivo, caminho de

investigação que talvez só seja resgatado pela Fenomenologia do século XX. Somente quando o

intelecto deixa de ser meu, cessando a oposição relativa a tudo que não-sou, torna-se-lhe possível

ser o que é, não mais obliterado por uma autoimagem representada, um “eu” individual, seja

Page 230: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

230

particular ou universal. Trata-se da inteligência que, em seu modo próprio – inteligir –, não apenas

entende nem sequer pertence ao entendimento – que, para Schopenhauer, significa: faculdade de

representar relações de causa e efeito –, e por isso se faz una à sensibilidade – uma faculdade

intuitiva e não-conceitual. Eis o que significa “intelecto irracional”, ou melhor dito: ante-racional.

Sem dúvida, a individualidade é primordialmente inerente ao intelecto, o intelecto reflete o fenômeno, faz parte dele, e o fenômeno tem a forma do princípio de individuação. Mas ela [a individualidade] é inerente também à vontade, na medida em que o caráter é individual: todavia o caráter é ele mesmo suprimido na negação da vontade. A individualidade é assim inerente à vontade somente na afirmação, não na negação que se produz. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1377)

Logo, não é o intelecto a romper sozinho com sua própria individualidade já determinada

como vontade afirmada; também não se trata propriamente de uma mera modificação do querer.

Trata-se, antes, de uma espécie de metanoia, de uma virada de cento e oitenta graus no sentido da

origem, uma remissão da queda na individualidade egoica que põe a vontade em face de si mesma,

e não mais dirigida a seus fenômenos. Tal remissão, no sentido de um retorno àquilo de que procede,

não é uma “volta no tempo”, mas uma abertura no véu de ocultamento que se dá, que acontece

concretamente no “aqui e agora” – “concretamente” quer dizer: não de modo abstrato como

quando concebemos “aqui e agora” em contraste a ali, lá, outrora, por vir. Com isso, se dá a

supressão do caráter individual – incluso o inteligível segundo o qual, me individualizando, sou o

que sou –, ou seja, torno-me “ninguém” quando deixo de ser alguém-que-quer, um sujeito volitivo,

de modo que, deste ponto de vista, meu próprio fenômeno cai na indefinição. Não apenas me

liberto... “Sou” o mundo como vontade; “sou” a liberdade – eis em que se funda minha

identificação radical com todo outro ente, que não é mais “outro”, não é mais “ente”, não mais se

trata sequer de uma “identificação” propriamente dita, mas seu contrário: suspensas as relações e

referências, a vontade se des-entifica e des-identifica. Conforme citado acima, apenas pela

liberdade se vem à existência; apenas segundo a liberdade há existência – e mais: apenas em

liberdade “eu” e “mundo” são o mesmo. Tal condição precede todo intelecto, não podendo

jamais ser por intermédio dele conquistada ou mesmo resgatada; sua participação consiste no ser

determinado de tal modo que, nele, as motivações egoicas sejam ineficientes; a abertura no

inteligir pertence a seu destino.

Dissemos acima que a negação não é um ato voluntário relativo a algo dado, um não-

querer isto ou aquilo, mas sim, um acontecimento, e isto vale não apenas para Schopenhauer. Tal

acontecimento é explicitamente tematizado por Heidegger (2000d, p. 56-57):

Page 231: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

231

Acontece no ser-aí do homem semelhante disposição de humor na qual ele seja levado à presença do próprio nada? Este acontecer é possível e também real – ainda que bastante raro – apenas por instantes, na disposição de humor fundamental da angústia. Por esta angústia não entendemos a assaz frequente ansiedade que, em última análise, pertence aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se mostram. [...] [...] perpassa-a uma estranha tranquilidade. Sem dúvida, a angústia é sempre angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou daquilo. A angústia diante de... é sempre angústia por..., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indeterminação [Unbestimmtheit] daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, não é apenas uma simples falta de determinação [Fehlen der Bestimmtheit], mas a essencial impossibilidade de determinação [Unmöglichkeit der Bestimmbarkeit]. [...] Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença [Gleichgültigkeit]. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime [das uns in der Angst umdrängt, bedrängt uns]. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém – na fuga do ente – este “nenhum”. A angústia manifesta o nada. “Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não és “tu” que te sentes estranho, mas a gente [“einem”] se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí [das reine Da-sein] no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. [...] Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” – nada. Efetivamente: o nada mesmo – enquanto tal – estava aí.156

Não nos deteremos no fato de Heidegger recusar a identificação entre Dasein e um “sujeito

puro”. Importa, em vez disso, termos em conta que não se trata aqui de um sentimento subjetivo,

mas de uma disposição, uma afinidade fundamental, conforme explicitado no capítulo

precedente. A partir disto, o trecho citado da preleção “Que é metafísica?” nos diz de uma

angústia de e por nada, isto é, não suscitada por um ente determinado e não explicável por razões;

em uma palavra: um acontecer, o qual provém do fundo do ente que somos, de nossa essência, sem

causa e sem efeito. A angústia, como tal, libera o ente que somos não apenas das ocupações

cotidianas; estas mesmas perdem sua significância, o que claramente, na linguagem

schopenhaueriana herdada da tradição, se traduz como suspensão do princípio de razão suficiente

– não somos na angústia um ente determinado em meio a relações ônticas; somos antes

remetidos a nosso próprio ser essencial. Não se trata, como bem destaca Heidegger, de uma mera

156 Cf. Heidegger (2007h, [§40, p. 185-187] p. 252-253).

Page 232: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

232

indeterminação parcial ou relativa, de ausência de precisão ou certeza (Bestimmtheit), mas de sua

impossibilidade essencial, o fato de não ser mesmo pertinente ao ser enquanto tal qualquer

determinabilidade (Bestimmbarkeit). Por isso mesmo não é um sujeito dado quem se angustia, a

angústia não é algo exterior que me acomete nem algo que, de repente, encontro em mim; somos

angústia – a angústia se angustia... O ente na totalidade foge e, com ele, nós mesmos. Esse “nós”,

por sua vez, também não é um conjunto dado de sujeitos, mas cada singularidade, “einem” – o

sujeito mesmo é indeterminado, retirado de si e posto pelo si-mesmo em face do seu próprio nada.

Se não se trata aqui de um conhecimento da Vontade por ela mesma, parece algo que lhe faz

algum paralelo, algo de perturbadoramente análogo, arriscamos dizer. Todavia, a esta altura,

devemos prosseguir no pensamento do fenômeno sem priorizarmos a terminologia, mas sim, o

que se pretende indicar por seu intermédio – o que aí se pensa.157

Importa, pois, antes de tudo, que a angústia põe em fuga o ente na totalidade incluso o ente

que somos – por isso, não há refúgio. Do ponto de vista do ente determinado, o nada manifesto

na angústia originária causa horror.

Pode-se comparar a angústia à vertigem. Quando o olhar mergulha num abismo, há uma vertigem, que tanto nos vem do olhar como do abismo pois que nos seria impossível deixar de o encarar. Tal é a angústia, vertigem da liberdade, que nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese [em que se unem corpo e alma em um indivíduo consciente], a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair. Nesta vertigem a liberdade soçobra. Eis até onde chega a Psicologia, recusando-se a ir mais além. No mesmo instante, porém, tudo mudou, e quando a liberdade se soergue, descobre-se culpada. É entre estes dois instantes que se dá o salto, inexplicado e inexplicável por qualquer das ciências. (Kierkegaard, 1962, p. 93)

Régis Jolivet, em seu As doutrinas existencialistas, explica:

A angústia caracteriza a existência e revela ao existente o seu ser. Se não temos senão a possibilidade de um eu (de virmos a ser isto ou aquilo), cada homem se vê colocado diante do nada e como que voltado para o vácuo. Daí, a vertigem

157 A propósito, Rosset, filósofo da singularidade do real, em um ensaio intitulado “De um real ainda por vir”, discorre analogamente acerca de um fenômeno muito mais corriqueiro: o esquecimento. “Assim como a insignificância se define não pela falta, mas pela proliferação dos caminhos, o esquecimento se caracteriza não por uma perda da lembrança, mas justamente por uma onipresença das lembranças, pela massa indistinta de todas as lembranças que, por ocasião do esquecimento, afluem em fileiras tão cerradas que se torna impossível distinguir ali a lembrança procurada. [...] Como escolher? Como orientar-se nessa massa [...]? Não há mais caminhos, nem mesmo falsas direções. Não há mais direções, nem postes indicadores. [...] a coisa ela-mesma está lá, presente, dentre a infinidade das coisas que já pensei até este dia: ela está lá diante de mim, e eu a conheço bem. Mas há coisas demais que conheço bem, e que estão lá diante de mim.” (Rosset, 2004, p. 18-19) Como ocorre na angústia ou na negação da vontade, no esquecimento temos a opressiva presença da totalidade que, como tal, indiferenciada, como que escapa. Que fique a sugestão de Rosset como mera indicação, dada a inviabilidade de aprofundarmos presentemente sua interpretação acerca do esquecimento.

Page 233: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

233

diante do que não é, mas poderia ser, pelo jogo de uma liberdade, que ainda não se conhece. A angústia do espírito se assemelha à vertigem física, pois é, ao mesmo tempo, temor e atração, simples vislumbre de uma possibilidade e ainda terrível encantamento. Antipatia simpática ou simpatia antipática, a angústia é o desejo do que teme, é temor de algo que se deseja. (Jolivet apud Barata, 1961, p. 12)

Trata-se aqui, claramente, de uma angústia que precede o “eu”. Situada a angústia nesta

origem, abre-se o caráter da “ação” desse nada “sobre” nosso ser. O “nada” que, para

Schopenhauer, aterroriza o indivíduo apegado a si como única realidade, bem como a suas

representações, já vimos ser bastante diverso daquele perante o qual soçobra nossa liberdade,

aquele de que fugimos não apenas antes, mas ainda enquanto somos um “eu”, o nada do mundo

como Vontade que nos repele para o mundo como representação. Para Brum (1998, p. 63; ver

também p. 86), com a noção de “vontade-de-viver” Schopenhauer pretende descrever seu

“caráter angustiante e infatigável”, interpretando “a vontade enquanto desejo, aspiração, esforço

em direção de um objeto incognoscível” – eis o mundo da vida. Mas será também o da coisa-em-

si? Com efeito, trata-se de uma vontade cuja essência é querer e cujo objeto não se sabe, mesmo

porque só há objeto (como amparo) para um sujeito, coisa que a Vontade, em si mesma, jamais é

– ser-lhe-ia uma limitação, uma determinação impensável senão sob o signo do princípio de

razão. Isto nos parece em certo sentido mais do que a inocência kierkegaardiana, algo que penetra

profundamente na vida, naquilo que somos perante nós mesmos a cada dia, ainda que e

comumente de modo despercebido, um vazio essencial e existencial que a cada momento

buscamos preencher com representações. Neste “despercebido” converge nosso “interesse”, a

ele devendo se dirigir nossa atenção, nossa afetividade, nosso pensamento, sempre em busca de

afinidades e familiaridades.

Em cada caso, angustiante seria o decidir-se em função de si mesmo, sem qualquer apoio,

critério, regra ou orientação, em face do nada de determinações (indeterminabilidade), de um

lado, e a plenitude de possibilidades (determinabilidade), de outro, pois o próprio não-saber – em

certo sentido, como a inocência – não é capaz de delimitar possível e impossível. No que diz

respeito a Kierkegaard, por central que seja a figura do Indivíduo em seu pensamento, a angústia

lhe é ainda mais originária, tal como o é com relação a todo “eu” – razão mesma pela qual haverá

distinção entre angústia subjetiva e angústia objetiva, bem como entre angústia, ansiedade e

temor. “O verdadeiro Eu só surge com o salto qualitativo; num estádio precedente, será

impossível falar dele. Querendo explicar o pecado pelo egoísmo embrenhamo-nos, assim, em

obscuridades, pois que, ao invés, é no e pelo pecado que o egoísmo se forma.” (Kierkegaard,

1962, p. 120) O pecado não é, portanto, um simples “dar as costas a Deus”, mas, antes disso, se

nos mostra como algo de inerente à própria individualidade em que se enraíza o individualismo.

Page 234: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

234

O egoísmo sucede o pecado não como mero derivado do estado de corrupção do espírito, mas

por ter como condição ontológica a consciência da individualidade. Em Kierkegaard, como em

Schopenhauer antes dele, a condição do egoísmo é a adesão a um “eu” que se determina por nada.

Já vimos no capítulo precedente como se pode relacionar liberdade, culpa e pecado, problemática

continuada no capítulo em curso. Neste momento, contudo, recebe destaque a tese de que é em

função e em vista de nada – segundo uma liberdade originária que encerra a própria decisão de ser si-mesmo

quando o si-mesmo é mera possibilidade, em nada e por nada determinado – que somos no mundo como

indivíduos, o que, em última instância, significa nossa “queda” na existência, entregues à responsabilidade de ser

este ente.

Desse modo, é necessário ressaltar que o “caráter angustiante e infatigável” da vontade-de-

viver não pode ser atribuído à Vontade ela mesma, como coisa-em-si. A Vontade, como

liberdade, é possibilidade a cada vez em vias de uma decaída que não é propriamente sua, embora

oriunda dela mesma. Determinado como este ente que é, afirmando-se como querer-ser, o ente

decai no instante mesmo de sua determinação, ou finitização. Por sua vez, quando do acontecimento

de sua negação, que se dá no âmbito da existência determinada mediante a consciência de seu

próprio “fundo vazio”, a angústia parece designar adequadamente a disposição própria do ente

que se desembaraça da perdição evadida no mundo da vida e se confronta a si mesmo no

paradoxo da liberdade possível enredada na sua própria determinidade existencial – trata-se de

uma liberdade entravada desde que se decide para-ser. Como ocorre com o ser-no-mundo

heideggeriano, não é o caso de uma perda de mundo, mas de “sofrer” a opressiva presença do

mundo como mundo em sua totalidade (Heidegger, 2007h, [§40, p. 187-188] p. 253-254). Neste

“retorno a si” da Vontade, o já sempre querer-ser o que-se-quis e continuar sendo esse querer se

revela na dimensão da incontornável responsabilidade de si mesmo que, ao mesmo tempo,

nadifica toda “autoconsciência” dando lugar à singularização pelo ser-livre. À Vontade, que não é

um ente, mas antes uma relação essencial com o mundo e em um mundo, jamais caberia algo como

uma disposição – a Vontade não “existe” em sentido próprio, não é uma coisa do mundo nem o

próprio mundo senão segundo uma perspectiva de consideração do mesmo por uma

subjetividade situada na imanência. É apenas como meu próprio corpo intuído imediatamente

que a Vontade, ou coisa-em-si que eu mesmo sou, pode ser denominada ens realissimum, posto que

não é de modo algum um ente à parte dessa intuição (ver Safranski, 1991, p. 294-295). A Vontade

como tal também não é uma de suas possibilidades. A Vontade de modo algum é.

A angústia, pois, só pode estar radicada no ente que é e se compreende como seu próprio

querer-ser, no ente singular cuja “individualidade” e “egoidade” são duas de suas possibilidades

existenciárias, não sua substância. Apenas a este ente, a saber, o ente finito, consciente de sua

Page 235: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

235

finitude – ainda que de modo não-tematizado –, pode se colocar existencialmente o problema do

“fim indeterminado” e do “não saber a que se dirige seu querer essencial”, o que quer dizer que

não é de modo algum necessária uma reflexão sobre a própria finitude para que o possível como

tal faça emergir a angústia. Em outras palavras, apenas ao ente que é e sabe-se como querer-ser

pode ser angustiante a lacuna do que-ser?, lacuna esta que a cada vez o esmaga exigindo o

asseguramento de si, muito diferente do mero sentimento de insegurança ou inquietude diante do

que-fazer? em seguida. O interesse (ou querer determinado) é o escape do ser-no-mundo, o que, na

nomenclatura de Ser e tempo, deverá se traduzir nos modos da decadência – a falação, a

curiosidade etc.

6.6. Fuga e querer impróprio... até a morte

O caráter essencial de fuga não será tematizado ontologicamente antes de Heidegger em Ser

e tempo, inicialmente nos seguintes termos:

Chamamos de “fuga” de si mesmo o decair da presença no impessoal e no “mundo” das ocupações. Entretanto, nem todo retirar-se de..., nem todo desviar-se de... [Abkehr von] é necessariamente uma fuga. Caráter de fuga tem apenas o retirar-se, baseado no medo daquilo que desencadeia o medo, isto é, do ameaçador. [...] Na decadência, a presença se desvia [kehrt sich... ab] de si mesma. Aquilo de que [neste caso] se retira deve possuir o caráter de ameaça; o que, porém, ameaça é um ente que tem o modo de ser de um ente que se retira, ou seja, é a própria presença. [...] O desvio da decadência não é, por conseguinte, um fugir que se fundasse num medo de algo intramundano. Nesse sentido, o desviar-se não possuiria o caráter de fuga, sobretudo quando se aviasse para o ente intramundano no sentido de nele empenhar-se. Ao contrário, o desvio da decadência funda-se na angústia que, por sua vez, torna possível o medo. (Heidegger, 2007h, [§40, p. 185-186] p. 252)

Em que medida e “por que” somos a cada vez o fato dessa fuga? Na passagem supracitada

se encontra uma distinção entre a fuga em geral e a fuga propriamente originária do ser-no-

mundo em seu desvio de si mesmo. Observa-se que o verbo “desviar” corresponde também a

uma variação da palavra “Kehre”. “Abkehren” carrega a ideia de um giro em que, ao contornar

algo, em um movimento de afastamento e abandono (Abkehr), também oculta. Este desvio de si

mesmo é a própria marca da existência. Enquanto “foge-se” do que se teme, do que amedronta, de

um intramundano, de alguma coisa, tal fuga meramente responde negativamente àquilo que surge

aqui ou ali, ou pode surgir; trata-se de uma antecipação em que se procura evitar um perigo,

evadir-se. Assim se explica a precedência da angústia em relação ao medo, pois, para que algo

Page 236: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

236

amedronte, é condição que a ele já estejamos dirigidos, nele empenhados como algo pertinente ao

nosso “mundo”, e tal direcionamento e empenho supõe o já se ter desviado de si mesmo em fuga

da ameaça originária do livre ser si-mesmo. Por sua vez, não nos encontramos sempre nesse

estado, assim como não evitamos a morte a cada instante da vida. Não é esta a fuga em que se

enraíza a decaída do ser-no-mundo em um “mundo” de determinações como o mundo da vida

onde a possibilidade da morte por vezes nos ameaça e aflige, mas não na maior parte do tempo.

O fato de às vezes se fugir e às vezes não, uns de certas coisas, uns de outras, de muito ou de

quase nada, apenas deve revelar o ocultamento da fuga originária, a fuga do possível como tal que

se coloca tão-somente ao ser-no-mundo como tal. É o que já encontramos nas palavras de

Kierkegaard (1962, p. 234-235): “a possibilidade é burlada de todas as maneiras: pois, com efeito,

se não fosse assim, qualquer homem só com o pôr a cabeça fora da janela, veria o bastante para

que a possibilidade pudesse começar os seus exercícios”. Por essa mesma razão Kierkegaard e

Heidegger, por diferentes vias, concordam na conclusão de que o desconhecimento da angústia

por parte da grande maioria nada prova contra seu caráter essencial.

O que aqui digo parecerá a mais de uma pessoa um discurso obscuro e insignificante, pois bem mais de uma pessoa se gaba de nunca ter conhecido a angústia. A isso responderei que não é necessário, decerto, sentir angústia ante os homens e as coisas do finito mas que só depois de se ter passado pela angústia do possível se está formado de modo a não se ser sua presa. Não que se evitem os horrores da vida; simplesmente, estes serão sempre frouxos comparados com os do possível. E se, contrariamente, o meu interlocutor considerasse uma grandeza o nunca ter conhecido a angústia, iniciá-lo-ia com muito prazer na minha explicação de que por isso seria responsável a sua grande indigência espiritual [i.e., existencial]. (Kierkegaard, 1962, p. 234) [...] a angústia já sempre determina, de forma latente, o ser-no-mundo [...]. Medo é angústia imprópria, entregue à decadência do “mundo” e, como tal, angústia nela mesma velada. De fato, na maior parte das vezes, a disposição da estranheza também permanece incompreendida do ponto de vista existenciário. Em vista do predomínio da decadência e do público, é rara a angústia “propriamente dita”. [...] Ainda mais raras do que o fato existenciário da angústia propriamente dita são as tentativas de interpretação desse fenômeno em sua constituição e função ontológico-existencial. [...] a raridade do fenômeno é um indício de que, em sua propriedade, a presença permanece encoberta para si mesma em vista da interpretação pública do impessoal, e que, nessa disposição fundamental, abre-se para um sentido originário. (Heidegger, 2007h, [§40, p. 189-190] p. 256-257; ver também: 2000d, p. 59)

A fé salvadora de Kierkegaard, que não suprime, contudo, “os horrores da vida”, não mais

se coloca nas considerações de Heidegger, que não reconhece um outro “salto qualitativo” senão

aquele originário pelo qual já decaímos como o ente-lançado em um mundo. Também o que é

Page 237: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

237

designado por Kierkegaard “indigência espiritual” é apenas um paralelo da impessoalidade

cotidiana que permeia e determina o modo de ser da decadência. O que para Kierkegaard

significa uma inconsciência da síntese de corpo e alma, tendo como consequência uma abnegação

do Bem e da liberdade, aproximando formalmente o homem da criança e do animal, Heidegger

compreenderá mais adequadamente como um esquecimento de si mesmo e do próprio

encobrimento, favorecendo a fuga ao pensamento em direção à busca de refúgio no seio dos

entes disponíveis ao uso e ao conhecimento. Em ambas as abordagens, porém, trata-se da

perdição do ser-singular por uma espécie de autoengano. Em ambos os casos, a “função”

ontológico-existencial da angústia é trazer o ente de volta para seu próprio si-mesmo singular na

medida em que revela o possível como tal e seu primado em relação às determinações ônticas.

Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada na medida em que ela singulariza. Essa singularização retira a presença de sua decadência, revelando-lhe a propriedade e impropriedade como possibilidades de seu ser. Na angústia, essas possibilidades fundamentais da presença, que é sempre minha [não egoisticamente, mas lançado para assumir158], mostram-se como elas são em si mesmas, sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença se atém. (Heidegger, 2007h, [§40, p. 190-191] p. 257)

É precisamente nessas possibilidades fundamentais que reside uma outra espécie de horror,

como dizia Kierkegaard. Desse horror se foge mais originariamente. Trata-se do horror ao nada e

seu estranho silêncio. Tendo já visto acima em que consistem esse estranhamento e essa

silenciosidade, fica mais claro que a fuga originária não é fuga de um ente, mas, sim, para um ente,

conforme Heidegger, “no sentido de nele empenhar-se”. Aquilo de que se foge na fuga é a não-

familiaridade, pelo que se busca familiaridade junto às determinações do ente. Enquanto ser-no-

mundo, é próprio a este ente pôr-se na direção do ente, movimento no qual decai no próprio

esquecimento, perdendo-se naquilo que ele mesmo, o ser-no-mundo, não é. A adequada

compreensão disto já elucida de início toda limitação de tematizações sociológicas, históricas,

psicológicas, antropológicas, naturalistas acerca dos modos humanos de ser e existir. Isto também

significa dizer que apenas pelo direcionamento decadente o indivíduo determinado pode ser

interpretado impropriamente como “vontade”. “Vontade”, para Heidegger, é apenas o modo

inadequado de interpretação de nosso ser a partir de suas ocupações e preocupações, deixando de

lado as raízes ontológicas dessas mesmas ocupações e preocupações. Esta consideração é

necessária para que se compreenda todos os ataques de Heidegger à perspectiva de um “mundo

como Vontade” tal como ordinariamente tematizada, ou seja, a partir do dado no mundo da vida.

158 Conforme nota marginal do exemplar de Martin Heidegger.

Page 238: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

238

Tanto o querer como o desejar [Wollen und Wünschen] estão enraizados, com necessidade ontológica, na presença enquanto cura [...]. O mesmo vale para tendência e propensão [Hang und Drang]. [...] Isso não exclui que tendência e propensão também constituam, ontologicamente, o ser dos entes que apenas “vivem”. [...] [...] [...] No querer só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação [besorgendes] ou a ser cuidado em seu ser na preocupação [Fürsorge]. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou [um meio] a partir daquilo em-virtude-de que [um fim] se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-virtude-de que (o anteceder-a-si-mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreender da presença num poder-ser para a possibilidade de um ente “que se quis”. No fenômeno do querer, transparece a totalidade subjacente da cura [Sorge]. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 194] p. 261-262)

É evidente que a limitação aí apontada no que concerne às tematizações do ser como

vontade não dá conta do sentido que adquire a Vontade no pensamento de Schopenhauer. Como

se constatou, a Vontade schopenhaueriana não é, em si mesma, um querer a que já sempre se

ligou um objeto como um dado, como meio ou como fim, tampouco o fato de cada um ser o

ente “que se quis” pode ser reduzido a uma constatação que eventualmente se dê mediante tudo

o mais que se coloca ao querer de um sujeito. É uma Vontade intransitiva, um querer no qual está

ausente o que se quer. Não sendo objeto, tanto menos sujeito, a Vontade não se relaciona de

modo causal determinando-se em vista de algo dado de fato na experiência ou na imaginação.

Em verdade, o próprio sujeito em si mesmo, segundo Schopenhauer, não se confunde com suas

representações empíricas e psicológicas radicadas na autopercepção como corpo, ou seja, com a

subjetividade tomada como objeto por um sujeito dado. O princípio de razão é inaplicável ao

sujeito pois é instrumento de seu pensamento, isto é, a forma segundo a qual um objeto pode ser

dado para um sujeito, não havendo, portanto, qualquer relação causal entre sujeito e objeto – não

é sequer lícito supormos que nosso corpo, nossa existência, seja produto de um querer que já é

meu, senão por uma analogia completamente infundada com minhas não-compreendidas ações

no mundo.159 Só se aplicando a objetos, à matéria (do pensamento), o princípio de razão, que é

159 Quando um indivíduo age como causa eficiente sobre uma matéria, tal ação é determinada não pelo sujeito como tal, mas por suas representações (seu propósito, ou finalidade, suas habilidades e seu corpo). Toda ação produtiva é, pois, material, significando a ação de uma representação sobre outra, muito embora remeta ao sujeito. Por estranho que possa parecer, é perfeitamente consistente em relação à tese de que toda modificação fenomenal só nos pode ser dada já sempre como representação. Do ponto de vista contrário, o que me afeta do mundo externo afeta antes meu corpo, uma representação, produzindo representações que, embora possam influenciar meu modo de pensar e agir (como representações), não afetam meu modo de ser. Portanto, sempre que digo “eu produzo”, “eu sou afetado”, o pronome indica um objeto, uma matéria, um corpo, um fenômeno, qual seja, a representação que faço de mim mesmo, não o sujeito propriamente dito que sou, aí meramente representado. Por esta razão, meu “autoconhecimento” está sempre restrito a meu próprio corpo e ao que vivencio por seu intermédio, ou seja, a representações causais/materiais; o sujeito como tal, enquanto polo formal do representar, não sendo material, conhece sem ser conhecido. Sobre o caráter

Page 239: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

239

sua forma, já supõe a distinção entre sujeito e objeto, sendo o “modo universal de uma existência

objetiva qualquer” (Schopenhauer, 2004, [§5] p. 38). Sendo assim, é por um equívoco ou uma

ilusão constitutiva de toda autoimagem que o sujeito do conhecimento toma a si mesmo como

objeto de modo a pensar-se como sujeito-do-querer capaz de fazer escolhas e satisfazer desejos

ou ainda como objetivamente existente como sujeito – no fundo, trata-se de uma expressão

objetiva da Vontade (um corpo) já sempre dirigida a outros objetos; dito de outro modo, é

apenas como corpo (objeto) que um sujeito representa a si mesmo como sendo e estando em relação

volitiva com o mundo circundante. Nos Suplementos, acrescenta Schopenhauer (2004, [cap. IV] p.

710): “Não reconhecemos de modo algum a ação imediata particular da vontade como diferente

da ação do corpo, e não vemos ligação causal entre uma e outra; ambas nos aparecem como uma

só e mesma coisa; é impossível separá-las. Não há entre elas qualquer sucessão; elas são

simultâneas”. Do mesmo modo que, fora do âmbito do princípio (subjetivo) de razão, a vontade

não se exerce sobre o corpo por qualquer meio, mas sim, nele se manifesta imediatamente, a

consciência não tem poder algum sobre a vontade – desse modo se refuta o livre-arbítrio e, no

mesmo golpe, a noção tradicional de vontade como “disposição” subjetiva. Sobre a originalidade

da Vontade schopenhaueriana, escreve Safranski (1991, p. 285):

O conceito usual da vontade na tradição filosófica, bem como no uso cotidiano do termo, o associa às noções de “propósito”, “objetivo”, “finalidade”. Quero algo e esse “algo” é o que imaginei, pensei, vi etc. Em cada caso, o “querido” já está em minha mente antes que conduza à ação do querer. A “vontade”, entendida deste modo, está portanto intelectualizada. Mas precisamente Schopenhauer não a entende de tal modo. Apesar de tudo, foi impossível evitar os malentendidos e, já que o conceito habitual continuou determinando o sentido da palavra, eis uma das causas prováveis de que não se tenha percebido a novidade que Schopenhauer queria tornar manifesta com o novo conceito, e um dos motivos pelos quais sua filosofia ficou relegada ao esquecimento. [...] para ele, a vontade intelectualizada é apenas um caso extremo. A vontade pode seguir acompanhada pelo conhecimento, mas este não lhe é essencial.

De fato, do ponto de vista do mundo como representação, segundo a perspectiva do

indivíduo, que é vontade-de-viver, a crítica heideggeriana se aplica com perfeição, mas já fora

antecipada pelo próprio Schopenhauer. O ímpeto para a existência é antes a expressão do livre

querer-ser, não o próprio querer-ser senão enquanto se afirma, estando na raiz de todo desejo e

toda ambição intelectual ou afetiva. O querer a que Heidegger dirige sua crítica é o querer como

representação de um sujeito, que certamente deixa encoberto o caráter de ser-no-mundo como

cura. Schopenhauer, por sua vez, buscara trazer à luz um querer livre a que não pertence

mediato de nosso conhecimento do objeto imediato (o corpo), ver Schopenhauer (2004, [§6/cap. I] p. 45-46/674-675).

Page 240: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

240

necessariamente algo que se quer, e por isso mesmo um querer em si mesmo sem sujeito. Suas

possibilidades ontológicas verdadeiramente exigem determinações mediante o poder-ser para a

possibilidade de um ente que, sendo, se quis a si mesmo, devendo, na existência, retomar seu

próprio poder-ser e, assim, assumi-lo como seu próprio. Esta retomada, por sua vez, exige a suspensão

das determinações impróprias, trazendo consigo o mundo como mundo e a nadificação. O

querer cuja negação advoga Schopenhauer é, portanto, o mesmo cuja insuficiência ontológica é apontada

por Heidegger.

O “querer” tranquilo, que se acha sob a guia do impessoal, também não significa a extinção do ser no poder-ser, mas somente uma modificação. O ser para possibilidades mostra-se, pois, na maior parte das vezes, como simples desejar. No desejo, a presença projeta o seu ser para possibilidades as quais não somente não são captadas na ocupação como não se pensa ou se espera, sequer uma vez, a sua realização. Ao contrário, a predominância do anteceder-a-si-mesma, no modo do simples desejar, comporta uma incompreensão das possibilidades fáticas. O ser-no-mundo, cujo mundo se projeta primariamente como mundo do desejo, perde-se, de modo insustentável, no que se acha disponível, e isso de tal modo que o que está disponível como o único manual jamais é suficiente à luz do que se deseja. Desejar é uma modificação existencial do projetar-se do compreender que, na decadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades. Essa adesão fecha as possibilidades; aquilo que está “por aí” [“da”] na adesão do desejo torna-se “mundo real”. Ontologicamente, desejar pressupõe a cura. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 195] p. 262-263)

Talvez seja excessivo discutir no presente momento a inadequação da compreensão, por

Schopenhauer, do ser-no-mundo como cura sob a rubrica do ser como Vontade a que

circunscrevera de início sua reflexão, mesmo porque a terminologia, já o dissemos, não é o

interesse central destas considerações. De todo modo, pode-se reconhecer aí um paralelo, não

uma oposição, no que diz respeito ao modo como Schopenhauer e Heidegger traduzem o sentido

originário da estar-orientado-para os entes.160 Ademais, mediante a explicitação da ontologia

schopenhaueriana que operamos ao longo deste estudo, não parece fazer justiça a seu

160 Não é sem ironia que Richard Ross, em sua Introdução a O mundo como vontade e representação, comenta o repúdio de Heidegger à suposição de haver qualquer traço schopenhaueriano em seu pensamento. Por sua vez, Clément Rosset, no tardio Prefácio à mesma obra, considera Schopenhauer um precursor “do existencialismo e seu conceito de ‘faticidade’ da existência”. (Cf. Schopenhauer, 2004, p. VI/XXI-XXII). Zöller (2000, p. 215), interpretando, diferente de nós, a relação entre essência e existência no pensamento de Schopenhauer, no fim de seu artigo o aproxima implicitamente da inversão sartreana – segundo ele, o pensamento existencial é herdeiro do Idealismo alemão como um todo. Similarmente, Svendsen (2006, p. 74-75) defende que o Romantismo conduz ou mesmo já é existencialismo, que “o existencialismo é incorrigivelmente romântico”, indicando por este termo “fundamentalmente o Romantismo alemão, que se desenvolveu a partir do pensamento de Kant e Fichte” (p. 64) – todavia, temos reservas quanto ao sentido desta aproximação em Svendsen, embora o autor a justifique adequadamente. De todo modo, romantismo, pessimismo e existencialismo já foram aproximados por Rosset, especialmente em sua tese doutoral: A antinatureza (Rosset, 1989). Para Safranski (1991, p. 284-286/296-299), finalmente, o sistema de Schopenhauer parte precisamente de uma “hermenêutica da existência”, sendo um dos aspectos mais importantes de sua filosofia a busca de um significado, não de uma explicação.

Page 241: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

241

pensamento propor, sem mais, que a doutrina do mundo como Vontade consista em mera

extrapolação absolutizante do fenômeno do desejo conforme descrito por Heidegger com muita

acuidade e penetração. Nenhum dos dois pensadores aceita a redução desta orientação ao simples

desejo, mas o fazem remeter a um decidido querer-ser que originariamente nos dispõe no mundo

segundo possibilidades de ocupação e no modo da decadência do ser-livre em que se oculta e

deturpa todo poder-ser. O “mundo” dos entes, na decadência, aparece como a única “realidade”,

e suas “possibilidades” as únicas possíveis porque passíveis de empenho. Naquilo que não se

disponibiliza nenhum empenho é possível e é impossível tudo aquilo de que não se possa dispor;

as possibilidades de fato, portanto, já se encontram desde sempre fechadas antes mesmo que o

faça o desejo em suas eleições. Nesse desvio, ocupamo-nos cotidianamente das “possibilidades”

oferecidas pelo “mundo da vida” em vista de um asseguramento tranquilizador e, um tanto

paradoxalmente, a atividade das ocupações, orientada pelo desejo, jamais atinge o repouso que

supostamente promete – em Schopenhauer, esta dinâmica fora aprofundada apenas do ponto de

vista aparentemente limitado do ciclo de dor e prazer, inquietude e satisfação impermanente. Em

toda ocupação pela qual cada um de nós se empenha em um tornar-disponível, em realizações,

em verdade anula-se a possibilidade do que é possível, conforme mais adiante nos diz Heidegger

(2007h, [§53, p. 261] p. 337). Todo “querer” uma possibilidade determinada ou outra significa

sempre, por isso, uma liberdade imprópria e, em verdade, vazia, sofrivelmente digna deste

nome161, cujo papel principal não é apenas suprimir uma pendência em vista de alguma satisfação

pessoal. Seu papel é, sim, encobrir o fato de que toda preferência ou motivação remetem a um

querer mais originário, o próprio projetar-se no mundo, a decisão de que somente pode provir

toda e qualquer responsabilidade, que remete antes ao próprio ser do que a qualquer agir ou

simples planejar – “planejar” significa dispor sobre um plano, nivelar as possibilidades em

benefício de garantir o agir, submeter o porvir a uma previsão racional.

Como fático, o projetar-se compreensivo da presença está sempre junto a um mundo descoberto. É a partir dele que o projetar-se recebe as suas possibilidades e, numa primeira aproximação, segundo a interpretação do impessoal. Essa interpretação já restringiu antecipadamente as possibilidades de escolha ao âmbito do já conhecido, do que se pode alcançar e suportar, do que é pertinente e conveniente. Esse nivelamento das possibilidades da presença ao que se oferece de imediato, no cotidiano realiza, ao mesmo tempo, uma obliteração do possível como tal. A cotidianidade mediana da ocupação se torna cega para as possibilidades e se tranquiliza com o que é apenas “real”. Essa tranquilização não exclui, ao contrário, desperta uma atividade febril de ocupação. O que se quer não são novas possibilidades positivas. O que está

161 Dizemos “sofrivelmente digna” e não, categoricamente, “indigna”, em razão de sua origem. Significa não um erro ou inadequação conceitual, mas uma incompreensão existencial.

Page 242: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

242

disponível é o que se altera “taticamente”, de maneira a dar a impressão de que algo está acontecendo. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 194-195] p. 262)

Com o tema da tranquilização decadente nas ocupações se reconhece o sentido da ânsia

por familiaridade que caracteriza o modo de ser do homem na cotidianidade, bem como surge a

necessidade de posterior análise dos meios de tranquilização relativamente a cada um dos modos

gerais da cura – ocupação e preocupação. Essa “tranquilidade” tem em vista, segundo Heidegger

(2007h, [§38, p. 177-178] p. 243), assegurar a ordem das coisas, nada tendo a ver com qualquer

forma de repouso, provendo, pelo contrário, muitíssima e crescente agitação, expressa, por

exemplo, nos modos já indicados da decadência, como a falação ou a curiosidade, sobretudo na

assim-chamada “Era da Informação” em que nos encontramos. Todo empenho intelectual, toda

forma de divertimento, todo sentimento de segurança ou insegurança, certeza ou incerteza,

privacidade e hiperexposição que permeiam a vida atual reconduzem a esse comportamento pelo

qual se pretende a cada vez garantir a previsibilidade dos acontecimentos contra qualquer

surpresa e estranhamento – a propósito, apenas nesse contexto faz sentido, como nunca e cada

vez mais intensamente, o querer surpreender, um verdadeiro apelo que se exerce desde o “marketing

pessoal” em redes sociais às políticas públicas de incentivo à inovação. Em ambos os casos

haverá de se reconhecer uma vontade de controle/segurança contra a indeterminidade e, em seu

fundo, o “risco” da nadificação que aí mesmo se impõe – fuga no querer-conhecer e fuga no

querer-possuir, ordinariamente decaída no anseio de notoriedade (ser-conhecido) como no de

reconhecimento (ser-amado). Paradoxalmente, tal comportamento se empenha ainda na

constante busca por novidades que agucem os interesses capazes de a cada vez nos desviar de

nós mesmos – parece que, após o fim da história, o fim da arte, o fim da metafísica, o fim do

trabalho, chegamos ao fim da pessoa, coisa talvez já antecipada em certo sentido por pensadores

como Foucault ou Bauman.

Alguns desses modos de fuga devem ser pormenorizados em estudos posteriores, mesmo

porque, além de inesgotáveis, não podem ser discutidos a contento em seus traços mais

relevantes se tratados apenas de passagem em um capítulo acerca do caráter de fuga que

determina a existência como tal. Mesmo tratados à parte, exigem desenvolvimento ao menos tão

volumoso quanto o realizado até aqui. Para tanto, será necessário, ao menos, tematizar antes em

que sentido se enraízam nessa fuga os empenhos pelo saber e pela felicidade na vida. Por ora,

basta-nos enfatizar a caracterização da existência como ser-no-mundo como cura em fuga de si

mesmo, apontando as formas decadentes de ocupação e preocupação como modos de

ocultamento dessa fuga, deixando o restante, por ora, às reflexões do leitor. Retomemos então

nosso ponto, já em via de finalização.

Page 243: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

243

E, por conseguinte, o existir fático da presença não está apenas lançado indiferentemente num poder-ser-no-mundo, mas já está sempre empenhado no mundo das ocupações. Nesse ser junto a..., que constitui a decadência, anuncia-se, explicitamente ou não, compreendida ou não, uma fuga da estranheza que, na maior parte das vezes, permanece encoberta pela angústia latente, uma vez que o caráter público do impessoal reprime toda e qualquer não familiaridade. Na decadência, o ser junto ao manual intramundano da ocupação acha-se essencialmente incluído no anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-um-mundo. (Heidegger, 2007h, [§41, p. 192] p. 259)

Por ser constituído essencialmente como cura, o ser-no-mundo, na decadência, dirige-se

não ao ser, mas ao ente de que pode se ocupar, de que pode “dar conta”, com que pode lidar,

escapando assim à não-seguridade do nada que mais originariamente tem nele mesmo seu lugar,

sendo até curioso o gosto crescente por surpresas, por novidades – aliás, nisto mesmo consiste a

curiosidade como modo da decadência. Esse nada, que é possibilidade e liberdade, é ainda

repulsivo, e o é sobremaneira, por trazer ao ser-no-mundo, segundo Heidegger, a mais extrema

possibilidade, implicada antecipadamente em todo existir: a possibilidade da impossibilidade, ou a

finitude constitutiva de todo projetar-se como ser-no-mundo, a impossibilidade ulterior de toda

cura e do próprio ser-no-mundo – a morte, o “fim” de ser-no-mundo. Ser-no-mundo, pois, é

também ser-para-a-morte. Finalizamos então este capítulo – e com ele a preparação de que nos

ocupamos na tese, dedicada ao embasamento teórico do que há por se desenvolver e aprofundar

– retomando sua questão inicial: a queda no mundo coincide com a consciência (na maior parte

do tempo velada) da possibilidade sempre vigente do morrer. Ser-no-mundo como cura é ser-no-

mundo como ser-para-a-morte – “A cura abriga em si, de modo igualmente originário, morte e

dívida”, afirma Heidegger (2007h, [§62, p. 306] p. 389).

Mas por que o morrer como possibilidade mais originária e decisiva? Por pertencer à

própria singularização finitizante pela qual o ser-no-mundo é o que é em um mundo como o ente

que é-aí, em face de seu próprio ser, ex-sistente, já decidido perante si mesmo e por si mesmo.

De acordo com Heidegger (2007h, [§65, p. 329-330] p. 414),

A cura é ser-para-a-morte. A decisão antecipadora foi determinada como ser próprio para a possibilidade característica da absoluta impossibilidade da presença. Nesse ser-para-o-fim, a presença existe, total e propriamente, como o ente que pode ser “lançado na morte”. Ela não possui um fim em que ela simplesmente cessaria. Ela existe finitamente. Em sentido próprio, o porvir [i.e. o fenômeno primário da temporalidade originária e própria] que temporaliza primariamente a temporalidade, que constitui o sentido da decisão antecipadora, desvela-se, portanto, como sendo em si mesmo finito.

Logo a seguir, Heidegger explica que finitude não é antes de tudo uma terminalidade, mas

“um caráter da própria temporalização”. Por isso Ser e tempo, em sua porção publicada, termina

Page 244: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

244

com a tematização ontológica do sentido de ser no tempo, ou do caráter temporal do Dasein. Ao

se decidir pelo projeto de ser-no-mundo, antecipa-se a finitização da existência, ontologicamente

compreendida como o porvir além do qual não mais se é no mundo. Antecipando-se e já sempre

sendo seu próprio fim, o morrer do ser-no-mundo “não significa o ser e estar-no-fim” – no seu

próprio fim, o ser-no-mundo não mais está aí –, mas “ser-para-o-fim”, sendo a morte “um modo de

ser que a presença assume no momento em que é” (Heidegger, 2007h, [§48, p. 245] p. 320). A

morte, segundo seu sentido ontológico, não é o mesmo que o aniquilamento do ente que,

determinado pela vida, deixa de viver em algum momento, mas sua totalização enquanto projeto

lançado, seu acabamento, considerando-se toda a positividade que o termo compreende em seu

leque semântico. Esta totalização não é uma realização no sentido de um aperfeiçoamento ou

elevação, tanto significativos quanto forem a “imperfeição” inicial, pois em toda sua existência o

ser-no-mundo é o fato de seu estar-em-acabamento, não no sentido da aristotélica relação

potência-ato-potência, pois ser-no-mundo é ser sempre o próprio si-mesmo. Não se trata,

portanto, de algo que se atinge ou se domina, mas que já sempre se espera, porém não como mera

fatalidade. Ser-lançado por si mesmo na liberdade é lançar-se para a morte; ser-livre é, pois,

poder-ser-lançado na liberdade para a morte que se angustia (ängstenden Freiheit zum Tode)

(Heidegger, 2007h, [§53, p. 266] p. 343). Só o homem morre enquanto morrer “exprime o modo de

ser em que a presença é para a sua morte” (Heidegger, 2007h, [§49, p. 247] p. 322). A morte como

morte, como possibilidade que angustia, nada pode ter, portanto, de efetividade. “Conhecer” a

morte, assim como “conhecer” a vida, é encobrir uma e outra em seus respectivos sentidos

ontológicos. “O ser para a possibilidade enquanto ser-para-a-morte, no entanto, deve relacionar-

se para com a morte de tal modo que ela se desvele nesse ser e para ele como possibilidade.”

(Heidegger, 2007h, [§53, p. 262] p. 339) Heidegger completa, esclarecendo na sequência:

Como possibilidade, a morte não propicia à presença nada para “ser realizado” e nada que, em si mesmo, possa ser real. É a possibilidade da impossibilidade de toda relação com..., de todo existir. No antecipar, a possibilidade “será sempre maior”, ou seja, desvela-se como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência. Em sua essência, essa possibilidade não oferece nenhum apoio para alguma expectativa e para se “configurar” um real possível e, assim, esquecer a possibilidade. Enquanto antecipação da possibilidade, o ser-para-a-morte é que possibilita essa possibilidade e que a libera como tal.

Como pura possibilidade, o poder-ser próprio que originariamente angustia é indeterminado,

conforme discutido no capítulo anterior. Se esta indeterminância se abre precisamente na

angústia, é no ser-para-a-morte que se dá sua completa revelação, pois o nada trazido pela

angústia confronta o ser-no-mundo à nulidade de seu fundamento: estar-lançado na morte, livre

Page 245: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

245

para a morte (Heidegger, 2007h, [§62, p. 308] p. 391). Como a possibilidade do morrer, agora

distinguido da morte como fatalidade da vida, não traz consigo nenhuma ocupação ou

possibilidade ulterior – por isso se trata da possibilidade da impossibilidade –, sua possibilidade

desvela o possível como tal, não como algo inscrito no “mundo do desejo”. Não é à toa que o

homem ainda procure se apropriar da possibilidade fática da morte por meio de ritos fúnebres,

deliberações acerca de sepultamento ou cremação, questionamentos acerca de eutanásia ou morte

natural e/ou expectativas acerca de um “possível” além-vida. A opressiva proximidade dessa

ameaça, com todo o peso de sua inevitabilidade fatal e indeterminância desamparada, põe em

fuga o ser-no-mundo justamente porque, como ameaça absoluta e mais extrema, é a possibilidade

da impossibilidade de sua existência, razão mesma pela qual o ser-no-mundo, decaído no

“mundo”, não busca outra coisa senão o próprio asseguramento, fazendo-o por meio de

“certezas”.

No antecipar para a morte certa mas indeterminada, a presença abre-se para uma ameaça que sempre emerge de seu próprio pre [Da]. O ser para o fim deve manter-se nessa ameaça e não pode apagá-la, mas, ao contrário, ela é que deve construir a indeterminação da certeza. [...] A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da presença. Na angústia, a presença dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder-ser daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema. (Heidegger, 2007h, [§53, p. 265-266] p. 343)

Page 246: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Epílogo

O estudo da liberdade a partir de sua possibilidade mais extrema, qual seja, a negação da

vontade, trouxe consigo repetidas vezes o problema do conhecimento pautado em

representações do ente, as quais, encobrindo sua essência, o ente enquanto ente, se apresentam

ao intelecto humano como motivos para o querer-viver. Tais representações, em si mesmas, de

acordo com Schopenhauer, consistem em objetivações da Vontade segundo o princípio de

individuação, cognoscíveis e desejáveis segundo o princípio de razão suficiente. Na medida em

que a vontade individual se determina por representações, adere aos fenômenos de modo a

alienar-se de sua liberdade originária e essencial. Se, por um lado, a liberdade remete ao nada e à

angústia e sob este ponto de vista existencial sua possibilidade mais extrema remete ao ser-para-a-

morte e sua liberdade para a morte, o encobrimento da angústia e do morrer mediante a fuga do

nada implica uma adesão ao mundo de determinações, ao mundo da vida. Sendo este mundo da

vida o mundo dos fenômenos, o mundo como representação no dizer de Schopenhauer, faz-se

necessário melhor compreender a natureza desta adesão em que a representação nos parece o

mais sólido, aquilo mesmo a que se deve dar atenção em detrimento daquilo que, em última

instância, cada um de nós é. Além disso, sendo pelo conhecimento que, ao contrário do que

habitualmente se afirma, a liberdade se vê extraviada, é necessário ainda compreender como é o

próprio conhecimento a favorecer o resgate da liberdade, em que medida e que espécie de

conhecimento será esse. Até onde se avançou, apenas ficou claro que não se trata de um

conhecimento de meras representações das coisas, mas das coisas elas-mesmas. Mas que outro

tipo de conhecimento haverá senão o de representações? A dificuldade em pensar isto parece

estar na própria raiz do problema, o que nos faz recordar o aforismo 355 de A gaia ciência:

O conhecido, isto é, aquilo a que estamos habituados, de modo que não mais nos admirarmos, nosso cotidiano, alguma regra em que estamos inseridos, toda e qualquer coisa em que nos sentimos em casa: – como? nossa necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido, a vontade de, em meio a tudo o que é estranho, inabitual, duvidoso, descobrir algo que não mais nos inquiete? Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? E o júbilo dos que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado?... [...] – Oh, que fácil satisfação a dos homens do conhecimento! Examine-se, quanto a isto, os seus princípios e soluções para os enigmas do mundo! [...] Também os mais cautelosos entre eles acham que ao menos o familiar é mais facilmente cognoscível do que o estranho; que o método exige, por exemplo, que se parta do “mundo interior”, dos “fatos da consciência”, pois este é o mundo mais familiar para nós! Erro dos erros! O familiar é o habitual; e o habitual é o mais difícil de “conhecer”, isto é, de ver como problema, como alheio, distante, “fora de nós”... A grande segurança das ciências naturais, em

Page 247: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

247

relação à psicologia e à crítica dos elementos da consciência – ciências não naturais, poderíamos talvez dizer –, reside justamente no fato de tomarem o estranho por objeto: enquanto é quase contraditório e absurdo querer tomar por objeto o não-estranho... (Nietzsche, 2004d, p. 250-251)

Nesta oportunidade, enunciando possibilidades futuras de desenvolvimento da presente

pesquisa, limitemo-nos à exposição das linhas gerais da conexão entre o estudo aqui desenvolvido

e suas consequências para uma análise crítica de nossa relação com o saber e com a afetividade.

Uma passagem do sermão 52 de Mestre Eckhart (2006, p. 287), já citada parcialmente,

parece corresponder muito bem à estrutura do questionamento a que nos referimos: “Um

homem pobre é aquele que nada quer, nada sabe e nada tem” – isto na medida em que,

presentemente, discutimos o querer em geral, compreendendo a liberdade como estando

vinculada a uma certa espécie de não-querer e, por sua vez, como aquilo mesmo em virtude de

que existimos como homens habitantes e construtores de um mundo. Em virtude e a partir disto,

torna-se necessário, conforme indicado em diversos pontos do estudo, questionar o sentido da

vontade de conhecer tal como expressa pela tradição científico-filosófica ocidental, reconhecendo

aí sua essencial “vontade de verdade”, e, por fim, o sentido da vontade de possuir, expressa em

nossa vida prática à luz de nossas representações de controle, bem-estar e moralidade em

contraste com a perspectiva trágica.

Deixando provisoriamente à parte o sentido que aqui tem “homem pobre”, apenas em

aparência definido, em cada caso, nosso objeto final, enquanto humanos, é a busca por

significância, estabelecimento e exercício de controle sobre o mundo e o que nele se encontra, a

cada vez nos enclausurando junto a tudo aquilo que é dado, e isto independentemente de

almejarmos pobreza ou riqueza, seja material, seja espiritual. Dito brevemente, na intenção de

compreender essa “objetivação” da vida, exige-se uma discussão acerca de nosso vertiginoso

esvaziamento em busca de preenchimento, movimento catalisador de todo tédio, todo

aborrecimento, toda alienação – a adesão às coisas à procura de algo que não se encontra nelas: o

aquietamento da vontade nos objetos de nossas representações de “solo firme” (fundamento, razão

de ser, justificativa) em fuga da angustiosa ausência de solo. Tais adesões se explicam também em

seu sentido mais originário, segundo Heidegger, a partir das noções de “ocupação” (Besorgen) e

“preocupação” (fürsorge), ambas modos da “cura” (Sorge) inerente ao nosso ser-no-mundo e, como

tais, estreitamente vinculadas ao fenômeno da angústia e à essência do ser-livre. Por isso o tema

da representação vem esclarecer nosso modo de, pelo entendimento e pela racionalidade, bem

como pelo sentimento, pormo-nos em relação com os entes que nos circundam sem que com

isso reduzamos nossa existência a relações psicológicas – ao contrário, o intuito consiste em

analisar tais vivências em seu fundamento ontológico e seus “princípios”, muito embora uma

Page 248: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

248

certa “psicologia” seja aí exigida. Em acréscimo, o recurso à analítica existencial do ser-no-mundo

visa a uma mais profunda elucidação e explicitação do sentido da fuga em que se adere às

representações, objetivo inicial cujas linhas gerais se pretendeu cumprir neste estudo preliminar.

Dito brevemente, se as representações exibem uma sintomática de nossos empenhos cotidianos a

ser tratada psicologicamente, respondem por sua vez a uma condição existencial mais profunda

que exige relevo e prioridade.

No mesmo sermão, Mestre Eckhart (2006, p. 289-290) diz mais dessas “adesões” aos entes

tal como apontadas aqui, ou seja, adesões pelo conhecer e pelo amar:

Tudo o que um dia proveio de Deus foi colocado para um límpido atuar. O atuar determinado para um homem é amar e conhecer. Ora, é uma questão controversa sobre em que consiste de preferência a bem-aventurança? [...] dizemos que a bem-aventurança não está nem no conhecer, nem no amar; há, antes, um algo na alma do qual efluem conhecer e amar; mas ele mesmo não conhece, nem ama, como o fazem as forças da alma.

Se o amar diz respeito ao trazer para junto de si, lembrando Empédocles en passant, que

caráter adquirirá isto sob a pressão de uma vontade de controle ávida por saber e asseguramento?

Embora nosso ser-no-mundo não deva ser entendido como alma, a superação empreendida por

Mestre Eckhart da perspectiva subjetiva – em seus termos: “criatural”, ou “pessoal” –, aqui

representada pelas “forças da alma”, ou seja, nossas faculdades e vivências subjetivas pelas quais

se conhece e se ama, nos permite a analogia no sentido de que, pelo querer preencher-se com

saberes e afetos, dirigimo-nos às coisas como a motivos para nossas preferências em prejuízo de

um modo de ser mais fundamental e segundo o qual sempre nos dirigimos ao que quer que seja.

Assim nos exilamos de um ser-livre mais originário. Em verdade, o único autêntico ou

“consistente”, ou seja, próprio a um âmbito em que uma totalidade de mundo se dá em conjunto

(con-sistere) e não de modo compartimentado, hierarquizado, classificado segundo categorias ou

valores representados subjetiva ou intersubjetivamente.

Nesse sentido, nada querer, nada saber e nada possuir exigem uma compreensão positiva,

não niilista, irredutível à pura e simples recusa de algo sentido como indesejável, mas

compreensível enquanto “resgate” de si e de uma compreensão mais profunda de nosso próprio

dirigir-se às coisas e aos outros. Tal compreensão deve passar pela análise de nosso

“comportamento” – i.e., nosso “pôr-se junto”, com-portar-se, em sentido próprio e amplo – diante

das coisas em meio às quais atuamos representando-as insuficientemente como objetos de nossa

racionalidade e causas de nossos afetos. Isto significa: discutir a coisificação objetificante do que nos

cerca na medida em que nos representamos a nós mesmos enquanto meros sujeitos do conhecimento

ou sujeitos da afecção. A ideia basilar de nossa abordagem é a de que tais objetos, enquanto tais,

Page 249: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

249

constituem objetos de nossas “vontades” em busca de satisfação e impossível aquietamento pelos

quereres determinados e especialmente sob seu pretenso abrigo, busca esta que, enquanto fuga, é

fuga empreendida livremente pela vontade, paradoxalmente, contra sua própria essência: o

intransitivo e indeterminado ser-livre-para... cujo fim não se reconhece em nada (nem ninguém)

determinado, mas no meramente possível que não se efetiva senão pela decisão para-ser.

Como também diz Mestre Eckhart em seu sermão 11 (2006, p. 97) em uma referência a

Santo Agostinho, e em consonância à hipótese inicial, geradora do presente estudo: “É por causa

da ansiedade da alma que ela quer agarrar e possuir muitas coisas, saindo assim em busca do

tempo, da corporalidade e da multiplicidade e perdendo justamente o que possui. Pois, à medida

que o ‘mais, e cada vez mais’ está em ti, Deus jamais pode morar nem operar em ti”. Ainda que

desconsiderada a perspectiva teológica e mesmo soteriológica aí explicitamente implicada, que, a

propósito, não foi nem há de ser a nossa – salientando-se apenas que o Deus de que aí se trata

não é uma pessoa, um outro que nos tenha criado, uma causa eficiente –, esclarece-se o modo como as

representações engendradas segundo a vontade em sua voracidade vinculam saberes e afetos à

busca por aquietamento por aquela “alma” condenada à incompletude, finitude, solidão, tédio e

perene insatisfação em razão de sua própria essência, qual seja, jamais permitir-se o

aprisionamento a fins ou quaisquer determinações. Não é, portanto, à toa que nossos passos

iniciais no sentido de explorar o sentido mais profundo da schopenhaueriana negação da vontade

levaram em conta o movimento inaugural de Mestre Eckhart, movimento este que certamente

não se esgota em seu pensamento, mas tão-somente recebe seu grande impulso até que

Schopenhauer o retome, conforme defendemos aqui.

Buscar na vontade como “qualidade do espírito” uma explicação para nosso

“comportamento” ou para o sentido último da existência não é, contudo, suficiente, deve-se

enfatizar, nem se o deverá fazer, posto que, conforme pretendermos ter mostrado com bastante

suficiência, a liberdade não lhe é pertinente. Necessário se faz o passo atrás que nos possa

conduzir à natureza mesma dessa “ansiedade” – esse viver segundo anseios – e suas raízes no

fenômeno mais originário da angústia de e por ser-no-mundo como ser-livre para possibilidades de

ser, mais originariamente do que todo atuar. Somente então podemos ser capazes de considerar

ambos os modos de comportamento tanto em seu nível representacional (psicológico) quanto em

seu sentido existencial mais profundo e prévio. Caso contrário, estaríamos restritos a uma

compreensão mecânica segundo a qual somos nada mais que pré-determinados por uma natureza

cegamente voluntariosa. Aliás, esta é uma leitura bastante corrente da Vontade schopenhaueriana

que, assim interpretada, vinculando-o a um estrito e até ingênuo pessimismo, ou mesmo ao

irracionalismo ou ao niilismo romântico, nada esclarece sobre a possibilidade da negação do

Page 250: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

250

querer em geral. Seguindo-se esse caminho tradicionalmente consolidado, perde-se de vista e se

oblitera a perspectiva de libertação do círculo de dor e prazer, a não ser tomando tal possibilidade

(de negação da vontade), como também se faz, como uma luminosa (embora estreita) brecha para

um otimismo refutado por Schopenhauer de início e em toda parte, em benefício de uma

discussão ética voltada até mesmo para perspectivas salvífico-remissivas de autoajuda, sem dúvida

reduzindo sua relevância filosófica e originalidade.

Toda psicologia mecânica deve, pois, ser descartada junto a qualquer antropologismo

histórico-cultural. Aliás, se é na perversidade da Vontade que o próprio Schopenhauer vê a

refutação de todo otimismo, é justamente na dissimulação ou relativização desse elemento que

muitos procuram encontrar abrigo, solo para suas “éticas” mais sofisticadas e, contra todas as

ressalvas do pensador, esperança para a reiteração ou renovação da mais subterrânea afirmação

do querer-viver. Nesse ínterim, a própria ênfase em seu pretenso “pessimismo” pode conduzir a

leitura do pensamento schopenhaueriano a um psicologismo barato – estariam certos estes

comentadores se corretas fossem suas leituras, mas o que as dirige, afinal? Nossas “ansiedades da

alma”, enquanto motores da busca por motivos e apoios no “exterior” de nosso próprio ser para

suportarmos a existência e o sentimento de absurdo que tão comumente a acompanha, ainda que

de maneira latente e encoberta, em sua mecânica natural, são meros estados psicológicos secundários que

exigem reflexão e atenção com relação àquilo de que mais originariamente provêm: uma vertiginosa

fuga do nada e da angústia que dele emerge e nos oprime, do nada em meio ao qual sequer somos

um “eu” – apenas disto pode-se licitamente desenvolver uma abordagem psicológico-existencial,

ou seja, uma psicologia que não trate de “causalidades do espírito” ou de “faculdades”. O

angustioso nada da Vontade seria, antes, algo a se resgatar e a que se atentar caso se considere a

compreensão adequada do ser-livre como toda bem-aventurança possível, mas sem jamais se

perder de vista que isto mesmo se encontra fora de nossa vontade, de nossa individualidade fática

e fatal, de um livre-arbítrio que, mesmo que existisse, seria para tanto impotente. Mais que isto,

perder tal verdade de vista consistiria mesmo no definitivo encobrimento daquela fuga, recaindo

no psicologismo barato ou no antropologismo que não enfrentam a problemática existencial

propriamente dita, cegos por seus próprios pressupostos, uma cegueira autoinfligida que, como a

de Édipo, em seu fundo responsabiliza a natureza.

Como então compreender a negação da vontade se não como compreensão originária da

natureza de nossa cotidiana adesão àquilo que a cada momento a move, e isto pela compreensão

da natureza da Vontade, sua origem e seu destinar-se, sua expressão em cada comportamento

nosso para com os objetos de nosso saber e de nosso afeto? Compreensão pela qual o próprio

comportamento se suspende e (re-)tornamos a nós mesmos mais verdadeiramente... Eis nestas

Page 251: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

251

formulações preliminares, e não mais do que isto por enquanto, nosso tema e nossa hipótese, a

problemática envolvida, a direção de nossa exposição e seus possíveis desdobramentos, o sentido

de nossas opções teóricas e sua justificativa. Espera-se, pois, que com estas considerações o leitor

se sinta munido da perspectiva adequada ao horizonte em direção ao qual começamos a nos

mover – a direção de um retorno. Do sucesso desta preparação há de depender, certamente, a

consecução de uma nova grande etapa ainda por vir: a retomada compreensiva dos modos de ser-

no-mundo de fato.

Page 252: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Considerações Finais

A tematização da schopenhaueriana negação da vontade de viver, defendida como

possibilidade máxima da liberdade no mundo humano, exigiu que, ao lado da crítica do conceito

de liberdade em busca da essência do ser-livre, se investigasse a alternativa schopenhaueriana para

a compreensão do conceito de “vontade”. No âmbito estrito da doutrina da negação da vontade

de viver se pôde reconhecer a insuficiência da exposição dos fenômenos para sua fundamentação,

do mesmo modo que a admissão da mística aí exaltada não basta à adequada compreensão

filosófica do fenômeno estudado. Para tanto não se fez necessário recorrer à ampla literatura

sobre o tema. Em um primeiro momento, logo nos deparamos com o problema do

conhecimento e seu papel no agir. Ordinariamente acessório, o conhecimento também pode vir a

ser protagonista na efetivação da negação da vontade, desde que, não determinado pela estrutura

cognoscitiva que se realiza na polaridade sujeito-objeto, consista em uma intelecção imediata da

unidade da Vontade. Esta possibilidade, em vez de depender da razão ou do entendimento, ora

parece mais primitiva, ora mais elevada. Parece primitiva se pensarmos que a inteligência regride

dos conceitos e intuições causais/materiais à forma do tempo. No entanto, se confirma como

mais elevada se pensarmos o intelecto schopenhaueriano como objetivação superior da Vontade.

Isto porque, se a razão permite ao homem a abstração representacional da unidade sob a forma

do conceito e ainda uma egoidade consciente, e isto permanece circunscrito à esfera da

subjetividade e submetido aos princípios de identidade e contradição, o intelecto irracional –

melhor dito: arracional ou pré-racional – favorece a ruptura final com a subjetividade inteligindo

de tal modo a coisa em si que instantaneamente se confunde com ela. Trata-se, neste segundo

caso, de uma subjetividade pura, ou seja, não reflexiva, não racional, não discursiva, não abstrata

que, subsumida à Ideia como objetivação imediata da Vontade, isto é, não forjada pelo aparato

cognitivo do homem, se identifica com o mundo. Tal movimento não seria possível aos entes nos

graus mais inferiores da natureza por estarem movidos pela necessidade natural e submetidos ao

gênio da espécie, com o qual a individualidade humana já rompe em certa medida.

Nesse caso, o aparente contrassenso da denominação “intelecto irracional”, merece

esclarecimento, bem como “subjetividade pura”. Considerando-se o sentido estrito que confere

Schopenhauer à palavra “razão”, respeitada a interpretação comum de que se trata de faculdade

distintiva da espécie humana, por “intelecto” devemos compreender o nome da faculdade de

inteligir em geral, de intuir. A novidade schopenhaueriana neste ponto consiste em fazer da

inteligência, stricto sensu relacionada à noesis, ou intuição pura platônica, uma impossibilidade da

Page 253: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

253

razão lógica. A razão lógica, com o perdão do pleonasmo, consiste, como indica a própria

designação, em uma faculdade de medir proporções à luz das possibilidades do discurso ou ainda

produzindo novas possibilidades de discurso, mas sempre por abstrações, seja de intuições

sensíveis reais ou da mera fantasia. Em síntese, o uso mesmo da razão é, por definição, relacional

e tal relação sempre envolve alguma espécie de material, mesmo quando submetido a

formalização. Desse modo, a razão é uma faculdade de abstrações e nada mais. Se Platão, por

exemplo, atribui à razão o poder de chegar ao puramente inteligível, o faz a partir do papel

desempenhado pela dialética ascendente no processo de aquisição do saber (sobre o) universal.

Contudo, não se pode esquecer que a intuição propriamente dita da Ideia não pertence nem pode

ser adequada ao âmbito do discurso e das definições. Ao contrário, a noesis é antes declarada

como uma visão, uma theoria. A despeito da identificação atribuível a Platão entre alma e razão,

devendo-se ainda ter em conta que a logística é uma capacidade da alma dentre outras, justamente

aquela capaz de discurso, percebe-se que a natureza da noesis está na raiz da modificação operada

por Schopenhauer. Até Kant, o inteligível era um objeto do pensamento racional, devedor da

logística. Com Schopenhauer, a inteligência pura conserva o caráter platônico de ascese ao

supraconceitual jogando fora a escada da dialética (ser sequer havê-la utilizado!), e isto em guerra

aberta contra os sistemas filosóficos pós-Kant. Aliás, “jogar a escada fora” é condição para que se

possa subir, segundo Schopenhauer. Desse modo, temos o intelecto racional, submetido a regras

do pensamento representacional, escravo da vontade, e o intelecto irracional, livre dessas amarras

e, por isso, capaz de liberar uma clara visão do fenômeno em seu ser sem a mediação da matéria,

ou de categorias, o que dá no mesmo. O objeto da noesis não é um ob-jeto propriamente dito,

posto que não se contrapõe a um sujeito, mas se une a ele como o mesmo, e eis que esse “objeto

puro”, para ser apreendido como em-si, faz supor uma entidade conhecedora denominada

“sujeito puro”, mas, a rigor, ambas as designações não resultam senão de uma tentativa de

tradução abstrata de um acontecimento supranatural: o conhecimento da Vontade por ela mesma

no refletir em que contemplante e contemplado se confundem na contemplação. Assim

Schopenhauer explica que essa inteligência em nada se identifica com o que se convencionou

chamar de “intuição intelectual”, ou seja, a suposta possibilidade de a mente, ou alma, confrontar

um objeto que não provenha, em última análise, dos sentidos – quanto a isto, Schopenhauer

adere decididamente aos empiristas britânicos por intermédio da crítica kantiana, além de

empreender um parricídio contra Platão. Em virtude mesmo de sua indefinibilidade, a Ideia

platônica não se confunde, porém, com um “objeto puro” da razão cartesiana.

Nada disso parece-nos bastante para a qualificação de Schopenhauer como irracionalista;

trata-se mesmo de algo indefensável, mesmo porque que é graças à razão e à linguagem que

Page 254: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

254

qualquer coisa pode ser tornada consciente e comunicável. Em vez disso, Schopenhauer

reconhece dois modos de consideração do mundo, e em um deles a racionalidade não

desempenha papel algum, muito embora ainda se trate de representação, de maneira que nenhum

intelecto é capaz de negar a Vontade – apenas ela mesma o pode.

A tese de Schopenhauer, que somente será aprofundada na parte dedicada à Estética, até

então, possui um caráter estritamente antropológico na medida em que procura justificar o lugar

do homem na natureza do ponto de vista dos vários graus de expressão da Vontade, sendo o

intelecto o mais elevado. Importante foi, de início, justificar o interesse em se investigar o sentido

próprio de “Vontade” no pensamento de Schopenhauer a fim de que o mesmo pudesse ser

repensado à luz do pensamento existencial posterior. Afinal, o caráter duplo e conflituoso do

mundo como vontade e como representação haveria de ser de grande importância para

subsequentes considerações acerca do mundo da vida e da cotidianidade. Nesse processo, a

ruptura de Schopenhauer com o racionalismo, o essencialismo, o subjetivismo, bem como suas

inovações antropológicas e no que toca ao conceito de “Vontade”, fazem dele um precursor

arrojado em temas fundamentais de filosofia existencial.

Em meio às linhas gerais traçadas no primeiro capítulo, se pôde reconhecer a negação da

vontade não como uma doutrina convidativa ao ascetismo ou ao misticismo, mas que neles

encontrava formas concretas de expressão que, para Schopenhauer, pareciam mais eloquentes do que

qualquer argumento lógico-racional. Aí mesmo onde se reconhecia uma deficiência filosófica

descobriram-se indícios de uma verdade mais originária, a saber: se a mística é o meio pelo qual

essa verdade se dá e o ascetismo é o fim durável que se atinge por força desse desvelamento, o

princípio, a origem, deverá remeter ao próprio caráter que assim se manifesta e para o qual o

desvelamento se faz possível. É na compreensão desse caráter que a adequada compreensão da

possibilidade da negação da vontade como possibilidade máxima da liberdade pode acontecer.

Preliminarmente, foi defendido que a negação da vontade não significa a destruição da coisa em

si, nem o aniquilamento de qualquer essência – o que, neste caso, é o mesmo –, tampouco a

destruição do ente real, mas a superação do mundo como representação, o mundo da

determinidade, cuja alteridade, do ponto de vista da representação, é o “nada”. No entanto, se

“nada” consiste em ausência de representações, sem que isto signifique a destruição da coisa em

si, devemos supor que, mesmo negada, a Vontade subsiste como coisa em si, como aquilo

mesmo que nega, como o mais originário. Desse modo, evidencia-se a obscuridade do que até

então parecia mais claro. Em que, afinal, consiste o negar vigente nessa negação? Se não se trata de

recusar algo determinado, uma vez que todo determinado é mero fenômeno objetivo ou

Page 255: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

255

representação subjetiva, o próprio não-querer exige esclarecimento antes que qualquer outro

passo seja dado.

Por negação do querer desde sua essência deve-se entender a superação do mundo como

representação a partir da compreensão da insubstancialidade daquilo que lhe serve de matéria: o

individual. A Vontade se nega naquilo em que se expressa como ela mesma não é: a manifestação

como alguma coisa. Toda determinação colapsa mediante a supressão da distância interposta

fenomenalmente entre os indivíduos. A Vontade, negando sua manifestação, que é afirmação sua,

retorna a si mesma. O nada nomeia a originária insignificância e, portanto, a indiscernibilidade do

ser enquanto ser de todo ente. O nada “é”, pois, o outro do ente ao invés da mera negatividade ou

ausência no ente ou do ente. Esta última é a perspectiva representacional em que se baseiam

ontologias derivadas, negativas, cujos discursos versam sobre a impertinência de propriedades

dadas a entidades dadas; aquela, a perspectiva ontológica mais originária segundo a qual “nada”

não consiste na carência de ser (determinação negativa), mas antes coincide positivamente com

ser enquanto ser. Nada-querer deverá então significar um não dirigir-se a coisa alguma de

individual enquanto individual, seja para trazê-la para junto de si, seja para afastá-la para longe de

si, seja para ignorá-la indiferentemente – trata-se de um não desejar, porém em uma dimensão

metapsicológica. Mais do que isso, em vez de significar uma atitude individual, particular, será a

expressão imediata do não se representar como indivíduo dado, determinado. Ao se negar as

múltiplas formas de expressão do querer-viver, conforme antecipado no segundo capítulo em

uma primeira formulação construída com o auxílio de Nietzsche e Mestre Eckhart, pela negação

da vontade, afirma-se o ser livre para a plenitude de ser si-mesmo não determinado segundo representações. O

fenômeno da negação da vontade, dito brevemente, significa essencialmente a autoafirmação da

Vontade naquilo que ela mesma é: livre e una, eterna e infinita. Com isto se perdem as

determinações causais, espaciais e temporais, conquistando-se, por sua vez, a responsabilidade

pela própria existência, expressão do querer-ser. A unidade originária, nesse contexto, não é uma

entidade abstrata. A negação da vontade começa a aparecer, na contramão das interpretações

usuais, como atitude fundamentalmente positiva, tornando-se reconhecível uma possível afinidade

com uma espécie de não-querer que Heidegger buscará pensar como essência do pensamento

possibilitador da serenidade para com os entes – a liberalização desocupada do ente em sua

entidade; o livre pensar a coisa como coisa.

Como resultado, atinge-se a compreensão de que a vontade que, conforme sua natureza, se

afirma no “mundo”, ou como “mundo”, o faz sempre de forma mediata, ou seja, como caráter

individual – em uma palavra: como fenômeno. Todo indivíduo, então, afirma-se a si mesmo em

contraposição àquilo que ele não é, o outro. As formas “inferiores” de vida, enquanto regidas

Page 256: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

256

pelo gênio da espécie, mais dificilmente desenvolvem comportamentos opositores contra os seus

semelhantes, e quando isto ocorre é sempre em virtude do ímpeto de conservação da própria

vida e da vida da espécie. Uma vez que a espécie humana é mais marcadamente individualizada, o

egoísmo essencial adquire outra forma, podendo chegar à maldade graças às representações

aguçadoras do amor-de-si. Podemos mesmo dizer com certa audácia: isto é uma evidência de que

os homens, em seu íntimo, em geral, não tomam uns aos outros jamais como iguais e muito

forçosamente como semelhantes, a despeito de todo formalismo ético ou legal; caso contrário,

sequer o amor seria possível, o mesmo valendo para o ódio. Se tomamos este diagnóstico e o

remetemos à Vontade ela-mesma, podemos perceber em que consiste o fundo de nossa

interpretação para o fenômeno da negação do querer-viver. O “outro” da livre coisa em si é o

fenômeno finitizado e contra ele se dirige seu ímpeto afirmador; no entanto, do ponto de vista do

fenômeno em que se dá esse acontecimento, negado o mundo como representação mediante a

apresentação de seu em si, livremente posto por si mesmo, a partir de si mesmo, e perante a si

mesmo, a substancialidade fenomenal colapsa dando lugar à visão do mundo como Vontade. O

fenômeno da negação, visto por esse prisma, é ontologicamente positivo, nisto consistindo a

ambiguidade fundamental da Vontade que, como tal e de seu próprio “ponto de vista”, não é nem

positiva nem negativa. Tais valores não podem ter sentido senão do ponto de vista do ente que antes

de tudo, por natureza, apenas tem em conta ele mesmo e sua persistência na existência.

Sendo então exigida uma revisão profunda não apenas das interpretações consolidadas do

suposto pessimismo schopenhaueriano, mas também da forma como o ascetismo é lido em sua

obra, prosseguimos em direção à redução da distância entre Schopenhauer, Nietzsche e

Heidegger, já iniciada no segundo capítulo. Pretendeu-se realizá-lo inicialmente em meio à

detalhada análise do conceito que mais adiante consideraríamos central para a adequada

compreensão do pensamento schopenhaueriano acerca do elemento vinculador entre vontade e

representação. Trata-se do conceito de “interesse”. Sua tematização conduziu ao âmbito da

Estética, ou filosofia do belo, já tangenciada rapidamente no capítulo precedente. Contudo, a

problemática do interesse já prelineava, por sua vez, bem como visava sua articulação com a

problemática ético-ontológica da liberdade. Desse modo, o terceiro e o quarto capítulos podem

ser compreendidos à luz de um único movimento, qual seja: o de apartar o problema da liberdade

das representações usuais voltadas ao interesse da vida “prática” tal como migraram para a

tematização política, aproximando-o, assim, de uma Ontologia que privilegia o jogo entre ser-

livre e liberalização, não apenas como comportamento perante o belo e o sublime, mas

especialmente, como retomada de si. Tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista

ontológico privilegia-se uma “inteligência” do ser-livre pela qual se supera a estrita racionalização das

Page 257: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

257

ocupações baseada em uma suposta “potência psicológica” de deliberação, que não implica senão

uma vontade de controle e previsibilidade tranquilizante, bem como a possibilidade – pouco

justificável fora do âmbito dessa vontade – de fundamentação de uma Ética. A própria necessidade

de uma Ética, ao menos nos moldes tradicionais, deve ser, pelo contrário, posta em questão a

começar pela necessidade metafísica que a enseja, e para tanto fora de início proposto o privilégio

da Estética na tematização do ser-livre.

De acordo com esse movimento, o terceiro capítulo advoga a compreensão do conceito de

“interesse” segundo sua significância ontológica de “relação entre entes dados”, daí concluindo por

seu sentido existencial mais profundo no tocante ao esclarecimento do caráter livre encontrável na

contemplação desinteressada. Em torno desta discussão se atinge uma primeira positividade no

conceito de liberdade, a qual só se confirmará pela denúncia e explicitação da tematização

fundamentalmente negativa vigente ao longo de toda a história da Ética e da Filosofia Política até

Kant, sempre regida por representações do mundo natural cuja estrutura de cognoscibilidade é

sempre tomada como solo firme para todo conhecimento possível, mesmo em Kant. Tal

negatividade consiste no fato de, como o próprio Kant reconhece, o conceito de liberdade

sempre pressupor o de necessidade. Além disso, ainda segundo Kant, o juízo de gosto é mais livre

do que o juízo moral na mesma medida em que, no primeiro caso, não há objetos determinados,

conhecidos ou pensados pelos quais se tomar interesse. Sendo características do belo a não-

utilidade, a universalidade, a conformidade a fins sem fim e a independência com relação a

conceitos, o caráter não-interessante aí implicado suspende a relação sujeito-objeto. Na contemplação

estética, portanto, todo condicionamento da percepção e da vontade se encontra ausente; a

vontade não é mais excitada, não no sentido de que se torna indiferente, mas sim no de que se vê

indiferenciada em face da Ideia, da representação. A “relação” entre vontade e representação se

essencializa em sua raiz como liberdade na união de contemplante e contemplado na

contemplação. A Vontade retorna a si mesma e ao movimento próprio de seu vigor originário

sem qualquer remissão à determinidade fenomênica; pelo contrário, todo impulso é impulso

criador. O desinteresse não se revela, pois, como apatia indiferente, mas como disposição livre,

deixando claro, desde já, que a liberdade da vontade nada tem a ver com escolhas em que se

exercita uma “faculdade de arbítrio” pela qual se dá fins ou meios ao ente segundo motivos;

liberdade não é apropriação de possibilidades, mas sua liberação. Schopenhauer então supera

Kant ao conseguir extrapolar o âmbito da Estética e estender seus resultados à Ética, ou vice-

versa.

No entanto, conforme mostra o longo capítulo quarto, há uma retração do pensamento na

medida em que já se antecipa na Antiguidade a redução do problema da liberdade ao da

Page 258: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

258

causalidade, ou seja, ao da possibilidade de conhecimento. Se, por um lado, o saber mais nobre é

aquele que não se deixa reger ou limitar pelas necessidades da vida cotidiana, por outro, a própria

inteligibilidade aparece condicionada à ordem das causas. Se a liberdade não é tematizada como

problema na Antiguidade, por sua vez, é reconhecida naquele que se dedica a um determinado

tipo de saber, aquele certo e seguro, ou seja, aquele devidamente fundado em causas universais. A

dignidade do homem livre é ainda correlata à dignidade do homem sábio. A “vontade de

conhecer”, a “vontade de verdade”, imprime sua marca na história do pensamento e o determina

desde suas raízes, sendo muito próprio a este movimento que a liberdade “moral” seja

prontamente vinculada à “liberdade de arbítrio”, o que ganhará imenso relevo no pensamento

moderno sobre o Estado no contexto do que pode ser designado “liberação do sujeito”. Se a

tragédia questiona pré-ontologicamente a possibilidade humana para agir mediante o conflito

entre destino e responsabilidade, de seu paradoxo emerge a conformação entre ser e agir, verdade

e liberdade, segundo a mediação da consciência enquanto faculdade da alma racional que delibera

segundo o cálculo de causas e efeitos. Posteriormente, a liberação do sujeito, bem como os

conceitos em que se apoia, como não poderia ser diferente considerando-se esse histórico

racionalista, se enraíza na perspectiva do mundo como representação, no princípio de razão e no

princípio de individuação, servindo pouco ao nosso propósito na medida em que urge a crítica

dos pressupostos aí vigentes. O que fica explicitado, no entanto, é que a relação entre saber e

liberdade se dá de maneira bastante distinta nos contextos antigo e moderno, pois, se em nenhum

dos casos saber e liberdade se separam, mas pertencem a um mesmo domínio, no primeiro

momento a liberdade é sempre relativa às condições gerais de vida, não uma propriedade do

homem enquanto homem, uma prerrogativa de toda e qualquer racionalidade ou mesmo um

direito. Tal mudança parece ideologicamente determinada por certas orientações políticas e

antropológicas que parecem fortemente influenciadas pelo Cristianismo e circunstancialidades

que desembocaram na chamada “liberdade de consciência religiosa” como problema público da

preservação das liberdades individuais.

A influência cristã a que nos referimos se dá pela antropologia que declara o homem livre

para o pecado na mesma medida em que o condena a um mundo de necessidades em razão de

sua própria culpa. Nessa perspectiva, a tese da salvação anunciada por Cristo deve ser completada

pela ação humana iluminada pela verdade – um resquício da Antiguidade –, individualizando assim

dever e responsabilidade e propondo uma subjetividade senhora de si mesma, questão que ocupa

grande e importante porção do pensamento de Foucault. O Estado então deverá ser concebido

como o macrocosmo desta subjetividade autodeterminada, e ao sujeito livre sucederá

rapidamente o Estado de Direito; a própria liberdade passará a ser pensada a um tempo como

Page 259: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

259

natureza e como direito, ou seja, antropologicamente e juridicamente. A esfera da liberdade não é

a do ser de fato, mas a da possibilidade ou do poder de agir conforme razões e para além das leis

estabelecidas – liberdade é escolha independente. Atenção especial será dada à fundamentação

kantiana da moral, que, na mesma medida em que aprofunda a demonstrada negatividade do

conceito de liberdade e sujeição da vontade à causalidade, além de consolidar a concepção de

homem como ser anfíbio, permite-nos, por outro lado, uma confrontação direta das

insuficiências de seu projeto crítico no que diz respeito à elucidação da liberdade da vontade, o

que se obteve principalmente com a crítica empreendida por Schopenhauer.

É, portanto, no sentido de atender à exigência de tematização da liberdade da vontade em

seu sentido existencial que se busca nas filosofias da existência, notadamente em Kierkegaard e

Heidegger, a positividade necessária para a adequada compreensão do ser-livre. Nesse mesmo

contexto, deparamo-nos com a tematização da angústia, não por acaso vinculada, de início, ao

mito judaico-cristão do Pecado Original. A originalíssima tematização da angústia elaborada por

Kierkegaard nos conduz ao que pode ser tido como o “tom” próprio do problema da liberdade,

tendo o Indivíduo como protagonista de uma relação radical consigo mesmo, independente de

toda lógica, todo saber e toda moralidade. Entretanto, no aprofundamento desta perspectiva,

facilmente se relevam ainda algumas insuficiências.

Convertida em paradoxo, a dialética hegeliana insiste na figura do conflito com Deus e com

o Eu, persistente em Kierkegaard. Kierkegaard ultrapassa o Eu, mas Deus resta insuperável. A

primeira insuficiência, quanto à relevância, consiste na “originariedade” em que se situa a

angústia: Adão é criatura de Deus. Adão é alguém. Entregue a si mesmo, Adão angustia-se

segundo a provocação divina, de modo que a possibilidade de sua liberdade é como algo que lhe

advém no curso de sua existência já efetiva. Nisto consiste a segunda insuficiência, muito embora

a liberdade lhe seja constitutiva independentemente de todo o resto. Contudo, a terceira

insuficiência consiste na ideia de que, embora imponderável com relação à necessidade, a

liberdade kierkegaardiana se veja entravada pela culpabilidade – decerto uma má palavra para

indicar uma certa “consciência da responsabilidade”, muito embora ambas (liberdade e culpa)

estejam relacionadas enquanto possibilidades. De todo modo, estimamos que o saldo final do

pensamento kierkegaardiano seja positivo, sobretudo por nos indicar o caminho de que a

moralidade é uma exigência da culpa, não o contrário. Mais que isso, tal exigência provém não

tanto do anseio de reparação – a Ética de Kierkegaard chega a negar sua possibilidade – e menos

ainda da necessidade de justificativa ou da tática de assujeitamento à la Nietzsche ou Foucault. A

exigência provém, antes de tudo, originariamente, da angústia em meio a que emerge a

culpabilidade, ou seja, a possibilidade de tornar-se culpado para com Deus e para consigo mesmo,

Page 260: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

260

sempre em virtude de si mesmo. Em poucas palavras, o pequeno tratado de Kierkegaard nos ensina a

necessidade de total reformulação do que até então se entendeu por “consciência moral”, ponto

no qual Schopenhauer ainda se mantinha no senso comum da Filosofia, ainda que parcialmente.

Cada uma destas insuficiências aqui apontadas serão uma a uma preenchidas paradigmaticamente

pela analítica existencial de Heidegger, cuja obra resta indubitavelmente como o grande divisor de

águas da Filosofia ocidental, ainda que consideremos temerário estimá-la como autossuficiente. A

primeira insuficiência é preenchida com o Dasein; a segunda, com o projeto (Entwurf), bem como

com a distinção entre existencial e existenciário, redelimitando os âmbitos ôntico e ontológico; a

terceira, com a ressignificação da palavra “dívida” mediante a investigação de seu sentido originário-

existencial.

Heidegger mostra que a interpretação ordinária de “consciência” como faculdade moral

não esclarece o sentido existencial que dirige à compreensão de si como sempre sendo e estando

em dívida. Caso contrário, seria possível não sermos e estarmos em dívida desde que

cumpríssemos com nossos “deveres”, sejam estes para com os outros, sejam para com nossa

razão, seja para com Deus, o que é extremamente problemático... Não apenas isto diz que a todo

homem é dado “não ser culpado”, “não estar em dívida”, colocando para tanto uma exigência de

adequação, como também, e mais importante caso pensemos em superar os limites já apontados

de toda Ética, carrega uma série de pressupostos. Já indicamos, a partir de Schopenhauer, a

impertinência da analogia empírico-causal. Em Heidegger, pode-se reconhecer duas “intuições”

correlatas que norteiam seu pensamento a respeito: a redução do problema da má consciência à

sucessão fatual, pois a culpa futura é pensada segundo a avaliação do ato presente à luz de uma lei

dada previamente no tempo; a exigência da Ética como oriunda de uma exigência mais originária

de asseguramento. Em ambos os casos, temos a prevalência do modo de interpretação cotidiano,

atrelado a representações. É ainda defensável que Heidegger mais se atenha ao fato de que o

homem elabore teodiceias do que o despreze... Daí o interesse no estudo de Kierkegaard.

Heidegger, contudo, se diferencia no sentido de, em vez de negar a existência do Deus-Juiz,

busca nesta representação uma “voz” que abre alguma verdade. Dito de outro modo,

perguntamos: Por que, afinal, o homem em geral se representa como sendo desde sempre em

dívida, independentemente de sua “boa consciência”? Por isso mesmo aquele que se representa

como absolutamente destituído de culpa deve ser considerado o mais esquecido de si. É de fato

muito fácil declararmo-nos ateus, porém mais honestos do que qualquer pio, a fim de, com isso,

eximirmo-nos de toda culpabilidade.

Como que seguindo o fio condutor desta pergunta, Heidegger observa que a culpabilidade,

o sentimento de uma dívida contraída, tal como entendido ordinariamente, remete a uma

Page 261: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

261

condição mais originária, existencial, que independe de toda faticidade e, por isso mesmo, dá

testemunho de uma liberdade que em nada se confunde com aquela conceituada ao longo da

tradição ocidental. Justamente a busca por uma resposta teológica – leia-se metafísica – para a

morte, encontrando na culpa originária seu aquietamento, é indicativa de duas coisas: que o

homem já sempre compreende a responsabilidade por sua própria finitude; que a transposição

dos negócios cotidianos para o âmbito ontológico, nesse caso, denuncia o aprisionamento ao

cálculo, à representação, não apenas encobrindo os sentidos próprios de “consciência”,

“responsabilidade” e “liberdade” como também, e sobretudo, permitindo um duplo

asseguramento – junto à Lei, para os pios; junto à certeza de si, para os ateus. É no fundo do

modo de ser cotidiano que Heidegger reconhece o caráter constitutivo da dívida, não segundo

pressupostos teológicos ou em um mero exercício de generalização do fenômeno antropológico

da culpa. Em todo caso, a resposta deve ser encontrada na fuga da angústia em face do nada, o

âmbito próprio da liberdade para ser, de todo poder-ser, sem o que uma “culpa” originária seria

completamente desprovida de sentido – mais uma vez, a liberdade não é mero pressuposto.

Liberdade é, antes de tudo, liberdade para o poder-ser si-mesmo.

Além da Ética e das representações, deve ser posto à parte, quando em direção à liberdade

originária, também Deus. Este “sacrifício” não é uma oferta ao ídolo Liberdade, uma pedra a

mais na edificação do Asseguramento; ao contrário, é sua demolição! Nada se sacrifica à

Liberdade; ser-livre é o sacrifício de si mesmo, o sacrifício das próprias possibilidades. O

reconhecimento deste sacrifício originário põe de lado, por fim, todo tranquilizador preconceito

acerca do que significa “consciência”. Eis, a nosso ver, o sentido da destruição fenomenológica

empreendida por Heidegger em nome do ser-livre, não sendo à toa que sua concepção de

liberdade pareça a tantos tão sofisticada na mesma medida de sua improficuidade – a liberdade de

tipo heideggeriano, como é de se esperar, não pode ser apropriada por ninguém. Nesse sentido, o

existencial se “opõe” ao fatual não por desprezar a “realidade”, mas por atingi-la em sua verdade

mais íntima, não como pretende fazê-lo a mera teoria, mas ao desvelar-lhe as estruturas

fundamentais, pois todo ser de fato exige uma possibilidade de poder-ser de fato, cuja raiz reside

nos modos de ser-no-mundo, ser como possibilidade de ser si-mesmo. Não uma possibilidade

dentre representações dadas de uma contingencialidade, imaginativamente, mas a possibilidade

como tal. Apenas na superação da Ética a Ética pode ser adequadamente compreendida em seu

sentido, como amparo ao des-amparo angustioso. Apenas do ponto de vista da possibilidade de

possibilidades se pode atingir o sentido próprio de sua compreensibilidade originária, bem como

da liberdade e da vontade, seja em sua essência, seja em suas representações. Toda decisão por

esta ou aquela possibilidade de ser consiste em antecipação de quaisquer possibilidades fatuais

Page 262: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

262

cotidianamente representáveis, de modo que toda “escolha”, pragmática, moral etc., acerca do

agir ou não agir, deste ou daquele modo, sempre expressa um já-sempre-estar-decidido acerca de

e por si-mesmo no “estado” originário de silenciosa solidão sem socorro e sem abrigo. Somos o

que somos, e este é o maior dos sacrifícios segundo seu peso – o maior de todos, dirá Nietzsche

no primeiro anúncio do eterno retorno.

Resulta, em primeiro lugar, que todo empenho por “compreensão” no âmbito familiar e,

sobretudo, razoável das representações encobre algo de mais originário, uma compreensão de

nosso próprio ser de que a cada vez nos evadimos: o estar-suspenso em meio ao nada da

angústia. Observa-se ainda que o referido sacrifício, ao contrário dos holocaustos pela expiação

das faltas cometidas, não resgata dívidas; ao contrário, constitui a dívida fundamental. O sacrifício

inaugural de toda existência é o presente ofertado pela presença (Dasein) a si mesma, mediante o

qual ela é o que é – não é, pois, reparador; é ao invés disso irreparável. O que uma vez se dá a si

não se toma de volta. Daí emergirá o tema da possibilidade extrema: a possibilidade da

impossibilidade expressa no ser-para-a-morte. Será então cabível denominá-lo – esse sacrifício –

“pecado”? Certamente, não, senão por uma muito inapropriada metáfora. Contudo, por meio

desta metáfora se procedeu em mais um passo no problemático diálogo entre Schopenhauer e a

filosofia existencial. A queda na decadência e a questão da mortalidade ou, melhor dito, da

finitude aí “implicada”, convertem-se nos novos fios condutores da investigação no sentido de se

estabelecer, por fim, os fundamentos da adesão veladora ao “mundo como representação”, o

mundo do empenho incondicionado pelo asseguramento da vida, o mundo do enclausuramento da

vontade em fuga para longe de seu próprio nada essencial.

Preliminarmente, ainda que reconhecendo o pouco interesse ou aparente irrelevância do

conceito de “angústia” na obra principal de Schopenhauer, a leitura atenta e contextualizada

trouxe à clara luz modos mais originários da angústia, ou seja, não-mediados por representações,

e, além disso, de extrema relevância ao aprofundamento da compreensão do sentido existencial

da superação do princípio de individuação como reviravolta na perspectiva do mundo como

representação. Como preâmbulo à nova tematização do problema da “queda no mundo da vida

pela própria decisão”, o tema da mortalidade e sua relação com a individualidade, tal como a

compreende Schopenhauer, recebe tratamento diferenciado. Neste sentido, dá-se mais um passo

na refutação de um possível dualismo schopenhaueriano. Com isto, ganha destaque o modo do

encobrimento do ser-mortal como modo próprio de manifestação da vontade de viver – o ser-

mortal e sua angústia como aquilo de que todo ente já sempre foge em suas ocupações junto ao

mundo da vida: a mera conservação da vida, individual e da espécie, mostra-se fenômeno

secundário. Antecipa-se, assim, a abordagem heideggeriana do ser-para-a-morte próprio da

Page 263: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

263

existência. A morte, pensada originariamente segundo a angústia existencial, em vez de

representada como mero fim do estar-vivo, desencobre-se como a própria face do paradoxo

existencial da liberdade: liberdade para morrer é o sentido existencial da finitização pela decisão

para existir. Morte e existência são co-pertinentes, mas não porque “tudo que tem um começo

tem um fim”, nem porque pudera ser possível uma vida eterna na ausência do pecado. Do

mesmo modo que todo decidir-se como servir-se de possibilidades elimina possibilidades, decidir-

se existencialmente é pôr-se em direção ao próprio fim, nisto se radicando existencialmente todo

horror do vazio como também todo horror das limitações – o homem quer o infinito temendo a

vastidão; o homem quer abrigo temendo o aprisionamento. (Será difícil perceber o quanto nossa

ciência e nossa afetividade se movem e demovem neste paradoxo?) A própria história do homem

ocidental pode ser reduzida ao projeto, por séculos não explicitado, de uma superação de limites

pela qual, ao mesmo tempo, tencionava-se eliminar toda obscuridade e todo vazio, a pretensão de

construção de um mundo absolutamente “significativo” e familiar, um mundo sem morte, um

mundo de estabilidade e segurança ilimitadas.

Desse modo, assim como a “angústia da morte” revela o sentido mais originário de nossa

fuga existencial, já em Schopenhauer, a “angústia da consciência”, ou “angústia da alma”, indicará

a clara visão de nossa cotidiana fuga do que cada um de nós já sempre é, sobretudo acerca do

caminho barrado ao autoconhecimento sob o modo das representações. Em cada caso destes

fenômenos da angústia, não tematizados enquanto tais por Schopenhauer, vimos entrar em jogo

o problema da originária liberdade para ser, bem como o caráter indissociável de vida e morte, si-

mesmo e mundo, vontade e representação, apenas dissociáveis por abstração.

Segundo Schopenhauer, mediante a “evidência” da ausência de um bom Deus criador do

homem em estado de liberdade de arbítrio, deve-se concluir não apenas pela tese de que a

existência se deve tão-somente à decisão da vontade pelo querer-ser, mas que, nesse caso,

essência e existência, ou seja, a determinação da vontade como caráter individual e sua

objetivação como fenômeno, devem ser congêneres, assim como “sujeito” e “mundo”. Com isto,

Schopenhauer é o primeiro a romper com a tradicional precedência da essência relativamente à

existência, ao mesmo tempo em que evita sua ingênua inversão – nisto supera tanto Kierkegaard

quanto se encontra acima de Nietzsche, aproximando-se bastante do que dirá Heidegger.

Vontade, como coisa em si, significa, portanto, a liberdade para ser em virtude de nada. Mediante

esta decisão, a que se chama “pecado”, dá-se a queda no mundo onde a cada vez a liberdade foge

de si mesma, ou mais precisamente, do sofrimento intrínseco à dívida impagável. Tal fuga se

manifesta cotidianamente como o ocultamento do que se é sob o véu das representações.

Atravessar esse véu significará, enfim, a suspensão dos interesses e, pela eliminação compassiva

Page 264: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

264

da distância entre eu e mundo, essência e existência, assumir-se como Vontade a partir de si mesmo como

Vontade – eis o sentido da negação da Vontade por ela mesma.

Portanto, negar a vontade de viver significa a conversão da rota de fuga que se expressa a cada vez

nos modos particulares da afirmação da vontade de viver. Se a fuga segue o grau de afirmação da vontade,

será maior na medida da adesão ao fenômeno da individualidade. A Vontade é ao mesmo tempo

mais e menos ela mesma no indivíduo autoconsciente como indivíduo: mais afirmada, menos livre;

mais determinada, menos conhecedora de si mesma. Compreende-se então que, ao contrário do

que comumente se “pensa”, a individualidade não é o lugar privilegiado da liberdade, mas antes

seu “produto”, seu fenômeno, manifestação singularizada da Vontade una como uma vontade

entre inúmeras outras. A vontade que já se é não escolhe; ao mesmo tempo, não é objeto legítimo

de um querer subjetivo – é fatalidade e também impotência, finitude constitutiva, individualidade

fugitiva, cuja autoconsciência é, antes de tudo, autoencobrimento. O primado do corpo, por meio

do qual se adquire a consciência da própria individualidade enquanto apartamento, destacamento

do mundo, é apenas um primado do ponto de vista das representações. Desse mesmo ponto de

vista, o próprio mundo como fenômeno da vontade de viver recebe este título por analogia ao

modo de ser da vontade no homem. Isto não quer dizer, todavia, uma antropomorfização

solipsística do mundo como mero reflexo da consciência humana, mas a completa

despersonalização da vontade, dissolvida na unicidade fundamental do mundo visto como

manifestação do ímpeto para a existência cuja multiplicidade se mede pelo emaranhado de

interesses que constituem a situação determinada de cada ente no mundo. Daí a necessidade de

distinção radical entre vontade como querer-ser e vontade como querer-agir ou querer-poder.

A Vontade em si mesma pode então ser compreendida, abstratamente, para fins

expositivos, como o ímpeto para a existência e sua conservação que se mostra a si mesmo a partir de si mesmo

como o mesmo, apenas se diferenciando segundo as formas de apreensibilidade de seu dar-se como fenômeno, sendo

este ímpeto reconhecido analogamente como modo de ser de todo ente dado como representação. Esta tentativa de

definição atingida no último capítulo tem, para nós, a vantagem de ser estritamente ontológica,

colocando à parte a psicologia e, em vez de partir da ratio cognoscendi do mundo como Vontade, ou

seja, o reconhecimento da unidade essencial dos fenômenos – o mundo é Vontade porque assim

nele me reconheço –, oferecer a ratio essendi desse reconhecimento – reconheço-me no mundo

como Vontade por eu mesmo já ser Vontade. Tratando-se de um sentido ontológico, querer-agir e

querer-poder são explicitados como modos derivados do ser-querer em geral, os quais só podem

ter lugar à luz das relações postas fenomenalmente como representações do querer em busca de

determinações cada vez mais personalizadoras.

Page 265: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

265

As peculiaridades do querer-ser são, portanto, sua originariedade e o nada que o caracteriza

como nada próprio da liberdade. Nesta liberdade se decide a finitude do ser-homem. Uma vez

propriamente disposto pela angústia em face do próprio nada, o ser-livre para a existência se

revela de modo privilegiado, bem como o sentido de sua fuga para junto do ente em que

pretende encontrar apoio e segurança. Esse apoio e essa segurança serão primeiramente pautados

no conhecimento fundado em determinações.

No questionamento acerca do sentido de nossa adesão à perspectiva do mundo como

representação, sentido este encontrado na fuga do ser-livre originário, fecha-se o grande círculo

da problemática inicialmente proposta. A caracterização geral da decaída no mundo como

representação, ou seja, o mundo da objetividade e do conhecimento segundo razões, avançando

no que diz respeito à impertinência das volições subjetivas à perspectiva do mundo como

Vontade, permitiu a maior explicitação do sentido da negação da vontade de viver. Podemos,

ademais, concluir que, se o pensamento de Schopenhauer é uma filosofia da representação, cuja

obra central começa com a sentença “o mundo é minha representação” e termina com a

tematização da irrepresentabilidade do nada, a perspectiva da negação da vontade coincide com a

superação do mundo como representação em vista de uma inteiramente outra possibilidade de pensamento. Nesta

superação, a vontade que somos não mais nos impele para o empenho no ente representado – o

empenho está suspenso. Essa outra possibilidade, todavia, jamais seria por ele aprofundada; por

outro lado, ficou a indicação da tarefa.

Tematizando-se o nada característico do si-mesmo, uma vez postos de lado os princípios

do conhecimento empírico, tornou-se possível consolidar o diálogo entre o pensamento

schopenhaueriano e a filosofia existencial posterior. Segundo esta articulação, vislumbrou-se o

caráter de fuga da existência tanto sob o aspecto da afirmação da vontade de viver no indivíduo

quanto da decadência na cotidianidade impessoal, no “ninguém”. Essa fuga, sob um ou outro

ponto de vista, se manifesta a cada vez que, subsumindo eu e mundo à coisificação ditada pelo

pensamento que apenas representa e deseja, o homem se tranquiliza no refúgio de suas certezas,

planificações e esperanças – em outras palavras, no refúgio de um “mundo” cuja familiaridade faz

de seus pretensos “desafios à inteligência e à habilidade” o pobre alimento de suas mais ricas

ambições. A representação, no contexto do enclausuramento da vontade fugitiva do nada de sua

própria liberdade essencial, é o que se dá como remédio para o mal que é, em si mesmo, a mais

legítima cura: a angústia.

Page 266: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

Referências

Fontes Primárias

ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics (Ethica Nicomachea). Trad. para o inglês por W. D. Ross. In: McKEON, R. (Ed). The basic works of Aristotle. Introd. de C. D. C. Reeve. Nova Iorque: Modern Library, 2001a. p. 927-1112. ARISTÓTELES. Politics (Politica). Trad. para o inglês por Benjamin Jowett. In: McKEON, R. (Ed). The basic works of Aristotle. Introd. de C. D. C. Reeve. Nova Iorque: Modern Library, 2001b. p. 1113-1316. ARISTÓTELES. Metaphysics (Metaphysica). Trad. para o inglês por W. D. Ross. In: McKEON, R. (Ed). The basic works of Aristotle. Introd. de C. D. C. Reeve. Nova Iorque: Modern Library, 2001c. p. 681-926. ARISTÓTELES. Metafísica. Vol. II: Texto grego com tradução ao lado. Trad. para o italiano por Giovanni Reale; Trad. Marcelo Perine. Edição bilíngue grego/português. São Paulo: Loyola, 2002. DESCARTES, R. Discurso do método. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000a. p. 33-100. (Coleção Os Pensadores). DESCARTES, R. As paixões da alma. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000b. p. 101-232. (Coleção Os Pensadores). DESCARTES, R. Meditações. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000c. p. 233-334. (Coleção Os Pensadores). ECKHART, Mestre. Sermões alemães: 1-60. Trad. Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2006. ECKHART, Mestre. Sermões alemães: 61-105. Trad. Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2008. ESPINOSA, B. de. Ética (demonstrada à maneira dos geômetras). Trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 141-436. (Coleção Os Pensadores). FÍLON DE ALEXANDRIA. De opificio mundi. Les œuvres de Philon d’Alexandrie, v. 1. Trad. para o francês e introduções por Roger Arnaldez. Edição bilíngue grego/francês. Paris: du Cerf, 1961. FÍLON DE ALEXANDRIA. On mating with the preliminary studies (De congressu eruditionis gratia). Philo’s works, Vol. IV. Trad. para o inglês por F. H. Colson e G. H. Whitaker. Edição bilíngue grego/inglês. Cambridge: Harvard University Press, 1996. p. 449-551. (The Loeb Classical Library).

Page 267: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

267

FREUD, S. Um estudo autobiográfico. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 9-78. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito: parte I. 2. ed. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992.

HEGEL, G. W. F. Introdução à história da filosofia. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. In: Hegel. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 373-459. (Coleção Os Pensadores).

HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética. Vol. I. 2. ed. rev. São Paulo: EdUSP, 2001.

HEIDEGGER, M. Gesamtausgabe. Frankfurt: V. Klostermann, [ca. 1976- ]. HEIDEGGER, M. Serenidade. Trad. Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d.]. (Coleção Pensamento e Filosofia). Inclui “Para discussão da serenidade – de uma conversa sobre o pensamento, que teve lugar num caminho de campo”. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

HEIDEGGER, M. La vuelta. In: HEIDEGGER, M. Ciencia y técnica. Trad. Francisco Soler. Santiago: Editorial Universitaria, 1993. Disponível em: < http://www.heideggeriana.com.ar/textos/la_vuelta.htm >. Acesso em: 15 jul. 2011. HEIDEGGER, M. La frase de Nietzsche “Dios ha muerto”. Trad. para o espanhol por Helena Costés e Arturo Leyte. In: HEIDEGGER, M. Caminos de bosque. Madri: Alianza, 1996. p. 190-240.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Apres. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2000a. 2 v. HEIDEGGER, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología. Trad. Juan José García Norro. Madri: Trotta, 2000b. HEIDEGGER, M. Que é isto – a filosofia? In: HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2000c. p. 21-40. (Coleção Os Pensadores).

HEIDEGGER, M. Que é metafísica? In: HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2000d. p. 41-88. Inclui “Posfácio” de 1943 e “Introdução” de 1949. (Coleção Os Pensadores).

HEIDEGGER, M. Sobre a essência do fundamento. In: HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2000e. p. 109-148. Inclui “Prefácio à terceira edição” de 1949. (Coleção Os Pensadores).

Page 268: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

268

HEIDEGGER, M. Sobre a essência da verdade. In: HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2000f. p. 149-170. (Coleção Os Pensadores).

HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Ed. Medard Boss. Trad. Gabriella Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 2001. HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Trad. Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 2002. HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

HEIDEGGER, M. La pobreza. Apres. Philippe Lacoue-Labarthe. Trad. Irene Agoff. Edição bilíngue alemão-espanhol. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. HEIDEGGER, M. Nietzsche. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007a. Vol. I. HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007b. p. 11-38.

HEIDEGGER, M. A superação da metafísica. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007c. p. 61-86.

HEIDEGGER, M. O que quer dizer pensar? Trad. Gilvan Fogel. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007d. p. 111-124.

HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007e. p. 125-141.

HEIDEGGER, M. A coisa. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Acrescido do posfácio “Carta a um jovem estudante”, de 18/06/1950. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007f. p. 143-164.

HEIDEGGER, M. “... poeticamente o homem habita...”. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007g. p. 165-181.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. e Apres. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Posf. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Edusf, 2007h.

Page 269: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

269

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores). HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Félix. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 17-154. (Coleção Os Pensadores).

HUME, D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Déborah Danowski. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: UNESP, 2009.

KANT, I. Analítica do Belo (Crítica do juízo, §§1-22). In: KANT, I. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974a. p. 299-334. (Coleção Os Pensadores). KANT, I. A religião dentro dos limites da simples razão. Primeira parte da doutrina filosófica da religião: da inerência do mau princípio ao lado do bom ou sobre o mal radical na natureza humana. In: KANT, I. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974b. p. 365-389. (Coleção Os Pensadores). KANT, I. Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade. In: KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valerio Rohden e António Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 31-131. (Coleção Os Pensadores).

KIERKEGAARD, S. A. O conceito de angústia. Trad. João Lopes Alves. Porto: Presença, 1962. KIERKEGAARD, S. A. Le concept de l’angoisse. Trad. Knud Ferlov e Jean-J. Gateau. Paris: Gallimard, 1979a. KIERKEGAARD, S. A. Diário de um sedutor. Trad. Carlos Grifo. São Paulo: Abril Cultural, 1979b. p. 1-105. (Coleção Os Pensadores).

KIERKEGAARD, S. A. Temor e tremor. Trad. Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979c. p. 107-185. (Coleção Os Pensadores).

Page 270: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

270

KIERKEGAARD, S. A. O desespero humano (doença até a morte). Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979d. p. 187-279. (Coleção Os Pensadores).

LEIBNIZ, G. W. Essais de Théodicée sur la Bonté de Dieu, la Liberté de l’Homme et l’Origine du Mal / La Monadologie. Paris: Aubier, 1962.

LEIBNIZ, G. W. Os princípios da filosofia ditos a monadologia. Trad. Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. p. 103-115. (Coleção Os Pensadores). LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Trad. Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1983b. p. 117-152. (Coleção Os Pensadores). MONTESQUIEU, C.-L. de S., Barão de. Do espírito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Nova Cultural, 2005. Vol. I. (Coleção Os Pensadores). NIETZSCHE, F. W. Gesammelte Werke. Munique: DTV/De Gruyther, 1988.

NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a. NIETZSCHE, F. W. A filosofia na época trágica dos gregos. In: NIETZSCHE, F. W. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996b. p. 251-265. (Coleção Os Pensadores).

NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1996c. NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000a.

NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o martelo. Trad. Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000b. (Coleção Conexões).

NIETZSCHE, F. W. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. In: NIETZSCHE, F. W. Escritos sobre educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004a. p. 41-137.

NIETZSCHE, F. W. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, F. W. Escritos sobre educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004b. p. 138-222.

Page 271: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

271

NIETZSCHE, F. W. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004c.

NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004d.

NIETZSCHE, F. W. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: M. Fontes, 2005a. (Coleção Tópicos).

NIETZSCHE, F. W. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: NIETZSCHE, F. W. Escritos sobre história. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005b. p. 67-178.

NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Vol. I. (Companhia de Bolso)

NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Vol. II.

PLATÃO. Timée / Critias. Œuvres complètes, Vol. X. Trad. para o francês por Albert Rivaud. Edição bilíngüe grego/francês. Paris: Les Belles Lettres, 1949. PLATÃO. Defesa de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. In: PLATÃO; XENOFONTE; ARISTÓFANES. Sócrates. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 9-33. (Coleção Os Pensadores). PLATÃO. Fédon. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. p. 55-126. (Coleção Os Pensadores). PLATÃO. Sofista. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983b. p. 127-195. (Coleção Os Pensadores). PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996. PLATÃO. Mênon. Edição bilíngue grego-português. Trad. Maura Iglésias. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005.

PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores) ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997a. p. 27-243. (Coleção Os Pensadores). Vol. I.

Page 272: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

272

ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997b. p. 5-163. (Coleção Os Pensadores). Vol. II. SADE, D.-A.-F., Marquês de. Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diatribes e blasfêmias. São Paulo: Iluminuras, 2001. SARTRE, J.-P. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 1-32. (Coleção Os Pensadores).

SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Edição e comentários críticos por Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Stuttgart; Frankfurt am Main: Cotta-Insel, 1960-1965. 5 v.

SCHOPENHAUER, A. Sobre la voluntad en la naturaleza. [S.l.]: Librodot, [s.d.]. Disponível em: < http://www.librodot.com >. Acesso em: 15 jul. 2011. (eBook). SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Trad. Maria Lúcia M. de O. Cacciola. Pref. Alain Roger. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: M. Fontes, 2001.

SCHOPENHAUER, A. Sobre la libertad de la voluntad. In: SCHOPENHAUER, A. Los dos problemas fundamentales de la ética. Trad., intro. e anot. Pilar López de Santa María. Madri: Siglo Veintiuno de España, 2002. p. 35-132. SCHOPENHAUER, A. Parerga e paralipomena: scritti filosofici minori. Vol. I. Ed., pref. e trad. Giorgio Colli. Firenze: Adelphi, [2003a]. SCHOPENHAUER, A. Parerga e paralipomena: scritti filosofici minori. Vol. II. Ed. Mario Carpitella. Trad. Mazzino Montinari e Eva Amendola Kuhn. Firenze: Adelphi, [2003b]. SCHOPENHAUER, A. Le monde comme volonté et comme représentation. Trad. A. Burdeau. 2. ed. rev. e corr. por Richard Ross. Pref. Clément Rosset. Paris: Presses Universitaires de France, 2004. (Collection Quadrige). Edição completa, com apêndice e suplementos.

Fontes Secundárias

AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote: essai sur la problématique aristotélicienne. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. (Collection Quadrige). BARATA, J. A filosofia da angústia. Rio de Janeiro: [s.n.], 1961. BRANDÃO, J. de S. Teatro grego: tragédia e comédia. 8. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2001. BRUM, J. T. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Page 273: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

273

CACCIOLA, M. L. O conceito de interesse. Cadernos de filosofia alemã – publicação do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 5, p. 5-15, ago. 1999. ISSN 1413-7860. CARTWRIGHT, D. E. Historical dictionary of Schopenhauer’s philosophy. Lanham (Maryland): Scarecrow, 2005. (Historical Dictionaries of Religions, Philosophies, and Movements, 55). CASANOVA, M. A. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000. CHAUÍ, M. de S. Espinosa: uma filosofia da liberdade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

CRAIG, E. Solipsism. In: CRAIG, E. (Ed.). Routledge encyclopedia of Philosophy. Londres: Routledge, 1998. 1 CD. CRESSON, A. Schopenhauer: sa vie, son ɶuvre, sa philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1948. (Collection Philosophes).

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976. DERRIDA, J. Os fins do homem. In: DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991. HAMM, C. Sobre a necessidade e o limite da razão. In: INTUIÇÃO – CONCEITO – IDEIA, 2001, Santa Maria. Atas do colóquio... Santa Maria (RS): UFSM, Curso de Pós-Graduação [em Filosofia], 2001. p. 31-49.

KULENKAMPFF, J. Do gosto como uma espécie de sensus communis ou sobre as condições da comunicação estética. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 65-82. LANCELIN, A.; LEMONNIER, M. Os filósofos e o amor: de Sócrates a Simone de Beauvoir. Rio de Janeiro: Agir, 2009. LE BLANC, C. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. LOPARIĆ, Ž. A finitude da razão: observações sobre o logocentrismo kantiano. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 50-64. MACHADO, R. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.

MARQUES, A. A Crítica da faculdade do juízo como alargamento da revolução copernicana de Kant. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do

Page 274: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

274

juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 24-34. MORAES, D. Singularidade e repetição: “eterno retorno” como símbolo da afirmatividade trágica. Trilhas filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia da UERN, Campus do Seridó, Caicó, ano 1, n. 1, p. 81-97, jan.-jun. 2008. ISSN 1982-7490. Disponível em: < http://www.uern.br/outros/trilhasfilosoficas/conteudo/singularidade %20e%20repeticao_.pdf >. Acesso em: 15 jul. 2011. PERNIN, M.-J. Schopenhauer: decifrando o enigma do mundo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.

ROBLES, P. O. Imitación y expresión: sobre la teoría kantiana del arte. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 83-105.

ROHDEN, V. Tradução em perspectiva: sobre algumas questões e dificuldades na tradução da Crítica da faculdade do juízo. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 121-131.

ROSSET, C. A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. ROSSET, C. Schopenhauer: philosophe de l’absurde. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. (Collection Quadrige). ROSSET, C. Le monde et ses remèdes. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. (Perspectives Critiques).

ROSSET, C. Le réel: traité de l’idiotie. Paris: Minuit, 2004. RUSSELL, B. História da filosofia ocidental (livro 3.: A filosofia moderna - segunda parte: Desde Rousseau até o presente). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. SAFRANSKI, R. Schopenhauer y los años salvajes de la filosofía. Madri: Allianza, 1991. SCHUBACK, M. S. C. O vazio do nada: Heidegger e a questão da superação da metafísica. In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de. (Orgs.). Metafísica contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 81-97. SOBREVILLA, D. De Hume a Kant: el proceso de desontologización de la estética. In: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da faculdade do juízo de Kant, 1790-1990. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; Instituto Goethe/ICBA, 1992. p. 35-49. SVENDSEN, L. Filosofia do tédio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006.

Page 275: Angústia e Representação - cchla.ufrn.br DE DAX... · “O digno-de-ser-questionado é o que, antes de tudo, se dá ao pensamento com o que há de ser pensado, e de forma alguma,

275

SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004. WOLFSON, H. A. Philo: foundations of religious philosophy in Judaism, Christianity, and Islam. Cambridge: Harvard University Press, 1982. Vol. I. ZÖLLER, G. German realism: the self-limitation of idealist thinking in Fichte, Schelling and Schopenhauer. In: AMERIKS, K. (Ed.). The Cambridge companion to German idealism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. cap. 10. p. 200-218.