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ANGEL GABRIEL
PACTO DE SANGUE (excerto)
de Ana C. Nunes
Ficha Técnica
Texto © Ana C. Nunes 2013
Capa e Ilustrações © Ana C. Nunes 2012/2013
Contacto da autora: [email protected]
Blog da autora: http://capala.wordpress.com/
Todos os direitos reservados a nível mundial.
Tipos de Letra da Capa: Journal © Fontourist, Ostrich Sans © Tyler Finck
Revisão: Marcelina Gama Leandro e Mariana Teixeira
1ª edição: 10 de abril de 2013
Esta obra é propriedade de Ana C. Nunes e não poderá ser distribuída, copiada
ou alterada, na totalidade ou em parte, sem autorização escrita da proprietária. Se gostar
de ler esta história, por favor considere deixar um comentário no local de onde a
adquiriu. A autora agradece.
Esta obra está redigida em concordância com o novo Acordo Ortográfico de
Língua Portuguesa. Caso deseje ler uma versão diferente, por favor contacte a autora
através do email ([email protected]).
An English version of this ebook will be available soon. Please check the
author’s blog for more information.
Nota de Autor:
Nesta história são mencionadas várias localidades europeias e todas elas existem
de verdade. Também são referidos vários locais verídicos (castelos, santuários e
palácios), nos quais a autora tomou certas liberdades criativas, daí que as descrições dos
seus edifícios e seus interiores possam não corresponder à realidade.
Todas as personagens e acontecimentos são fictícios e qualquer semelhança com
a realidade é pura coincidência.
Capítulo 1
Há 165 anos, o mundo mudou.
Diz-se que o universo começou com uma grande explosão, mas na noite que
para sempre alterou a humanidade, foi o fogo de artifício a pintar o céu de cores
garridas enquanto a espuma saía à força das garrafas de champanhe e o chão se tingia de
vermelho.
A 1 de janeiro de 2010, vampiros e imortais, criaturas que os humanos nunca
pensaram que poderiam existir, revelaram-se, e a partir daí tudo mudou. Eles
multiplicaram-se e nós quase fomos levados à extinção.
12 de janeiro de 2175, 02h00
Há sons que, por mais baixos que sejam tocados, têm o poder de alertar de
imediato qualquer ser. O da sirene é um deles. Tornamo-nos extremamente alertas e
assustadiços só de as escutar, sabendo que nunca precedem algo de bom. É o resultado
de vivermos em constante luta com seres que nos querem beber o sangue, sem a cortesia
de deixarem o suficiente para que possamos regressar a casa.
Vestindo o primeiro casaco que apanhei a jeito, enfiei à pressa as botas de cano
alto nos pés e saí do quarto diretamente para o corredor, onde a poeira acumulada no
chão flutuava ao gosto das centenas de pares de pés que seguiam em filas ordenadas em
direção à luz ao fundo do túnel. As pedras das paredes mantinham-se incólumes ao
reboliço e à passagem do tempo. O som da sirene punha-me nervosa, à medida que a
multidão me dificultava a passagem, e eu não conseguia parar de praguejar entre dentes.
«Não corram», diziam os sinais nas paredes. Pensar-se-ia que numa emergência
todos iriam ignorar os avisos, mas desenganem-se.
Empurrando algumas pessoas, desculpando-me a outras e saltando para tentar
cobrir mais caminho por entre os corredores escuros e estreitos, cheguei finalmente à
praça. A luz das centenas de tochas, seguradas pelos residentes, cegou-me
momentaneamente. A galeria central da gruta estava aos poucos a ficar cheia de gente.
Homens, mulheres e crianças que se haviam juntado ali com os pijamas ainda vestidos.
As tochas resultavam ainda mais suor do que o que já advinha do medo, pois apesar de
estarem calmos, não conseguiam evitar estar temerosos. A fraca luz da lua, que escoava
pela pequena claraboia no centro da praça, pouco se refletia nos rostos preocupados. A
sirene não parava de tocar, adicionando mais tensão aos corpos colados. E enquanto
pensava que caso fosse necessária uma evacuação, o facto de estarem todos juntos na
praça não ia ser uma vantagem, ouvi alguém chamar por mim.
“Angel!” – Olhei na direção da voz, que reconheci de imediato. Junto a um dos
outros túneis, à minha direita, vi o cabelo preto da minha irmã adotiva, Amilda, que me
acenava vigorosamente. Como ela conseguia manter aquele belo sorriso mesmo em
alturas de crise, seria para mim um eterno mistério.
Enfiando os braços no meio da multidão, abri caminho até ela, ouvindo umas
quantas queixas pela minha rudeza. Cheguei ao pé dela rapidamente e respirei fundo
antes de perguntar: – “Onde está a mãe?”
“Já está lá fora.”
Agarrou-me a mão e puxou-me para a direita, para as portas de aço que estavam
abertas para deixar passar cinco homens e mulheres, cobertos por pesados casacos e de
cabeças juntas em estratégias sussurradas. O aperto da multidão libertou-me quando os
alcançamos, e pude finalmente respirar normalmente mas, assim que passamos as portas
de aço, fomos rapidamente acarinhadas pelo vento gelado do exterior. Um outro túnel,
muito mais largo que os anteriores, mas igualmente mal iluminado, estendia-se várias
centenas de metros até ao verdadeiro exterior. O vento uivava como uma alcateia
coordenada, forçando-nos a puxar os capuzes para cima e a enfiarmos os visores de
neve.
Encostadas às paredes estavam alinhadas várias motos de neve, velhas,
consertadas centenas de vezes a partir de peças antigas, retocadas para andarem à base
de energia solar acumulada e, por isso mesmo, parecendo prontas a desfazerem-se mal
alguém lhes ligasse o motor; tal como todos os outros transportes no refúgio.
Os dois homens e três mulheres que seguiam à nossa frente montaram as três
motos mais próximas do fim da gruta e saíram para a noite calma e gelada. Amilda pôs-
se em cima da seguinte, acionou o botão e deu à chave. O motor zuniu baixinho,
fazendo tremer o veículo.
Os seus olhos pretos brilharam quando se voltou para mim, desenrolando a gola
da camisola grossa até tapar o nariz, dizendo numa voz abafada. – “Vou patrulhar as
colinas. Vens?”
Sorri-lhe. – “Achas que estou aqui só para apanhar frio?”
“Nunca se sabe …”
Subi para a moto atrás dela e mal tive tempo de me agarrar antes de ela carregar
na alavanca e a moto começar a deslizar pela neve acumulada. Aguardando a imensidão
do branco que sabia já de cor, fiquei desapontada pela escuridão quase total que me
impediu de ver para além do que os faróis iluminavam. Várias centenas de metros à
nossa frente seguiam as outras três motos, e ainda mais à frente, quase impercetíveis na
distância, mais duas deslizavam com força em direção a Norte. A ausência de nuvens e
a fraca Lua permitiam ver o céu estrelado em todo o seu esplendor; ergui a cabeça
afastando a marrafa para o admirar, enquanto Amilda se focava em não ir contra uma
árvore ou embater num animal.
Para grande parte dos outros humanos, a noite era uma maldição, mas eu não
conseguia evitar vislumbrar-lhe uma beleza sombria e uma chama de esperança. Não
podíamos odiar aquilo que também nos dava mais poder, pois nem o calor do Sol se
sobrepunha à magia das estrelas e da Lua, e qualquer feiticeiro que quisesse convencer-
se do contrário estava a iludir-se.
Na distância as primeiras duas motos pararam e demorei alguns segundos a
reconhecer a silhueta da torre de vigia que se erguia alta no cimo de uma pequena
colina. A torre era uma construção simples, esguia e alta, feita de madeira, com
capacidade apenas para albergar um sentinela de cada vez. Não tinha luzes em volta,
nem fora nem dentro do posto de vigia, e era impossível adivinhar-se qualquer forma
humana ou animal nas imediações. Estava escuro demais.
As restantes motas dispersaram, cada uma para uma colina diferente, e Amilda
fez o mesmo, seguindo para a direita e desligando os faróis da moto. Teve de reduzir a
velocidade e ouvi-a rezar baixinho. Levantou a mão direita até aos visores e pressionou
o pequeno botão ao lado da lente. Fiz o mesmo nos meus e a minha visão passou a ser
processada em tons de verde e cinza escuro, discernindo com alguma facilidade as
curvas da colina e os picos das árvores cobertos pela neve fofa que caíra nessa tarde.
Avançamos para lá da torre, em direção a Este, até alcançarmos o cimo de uma
pequena montanha de onde podíamos vislumbrar as planícies em volta. Tirei os visores
por uns instantes, perscrutando a paisagem em busca de focos de luz. Nada. Voltei a
colocar os visores e, tanto eu como Amilda, usámos a visão noturna e o zoom para
procurar outras formas de vida.
Vozes alteradas subiam com o vento até nós. Não estávamos muito longe da
torre e as planícies eram propícias a espalhar conversas. Desviei a minha atenção para o
encontro lá em baixo. A minha mãe, que distingui por ser a mais baixa e magra de
todas, escondia-se atrás de um dos alicerces de madeira da torre. Uma outra mulher e
um homem do refúgio, que não consegui reconhecer por estarem de costas viradas para
nós, falavam com um casal jovem, ansioso e com roupa a menos para um inverno tão
rigoroso. Consegui apenas perceber trechos da conversa, mas ouvi-os mencionarem TS
(Teia de Sangue). O que fazia sentido, já que a mono-sirene não era aviso de ataque,
mas sim de um pedido de auxílio.
Muitos novos vampiros escolhiam cooperar com humanos em troca de sangue.
Como os humanos se tornavam cada vez mais difíceis de encontrar e os mais recentes
vampiros não tinham a perícia dos seus antecessores, estes faziam um pacto com alguns
refúgios. Em troca de silêncio sobre a localização dos esconderijos que conheciam, era-
lhes providenciado sangue sempre que necessitavam. Uma boa troca, já que os humanos
não podiam abandonar os refúgios sempre que alguém se tornava vampiro, ou teriam de
estar em constante movimento, o que limitaria o crescimento populacional. Infelizmente
nem todos os novos vampiros aderiam à TS o que muitas vezes resultava em tragédia.
A voz da Amilda fez-me desviar os olhos da cena lá em baixo. - “Parecem-te de
confiança?”
“São jovens. Parecem acabados de transformar e estão assustados.”
Levantando o visor para me ver com cores naturais, Amilda desviou a gola da
boca que se estendia num sorriso torto. – “E conseguiste perceber isso tudo só de
olhares para as caras esverdeadas deles?”
Encolhi os ombros com uma risada. – “Já sabes …”
Abanando a cabeça ela voltou novamente a atenção para o espaço circundante. –
“Um dia hás de me ensinar esse truque.”
“Não é um truque. É intuição--“ – Ela cortou-me as palavras.
“Feminina! Já me disseste! Mas se assim é porque é que eu não a tenho, nem
mais ninguém no refúgio?”
Voltei a encolher os ombros. – “Talvez porque eu sou mais mulher que vocês?”
Ela riu-se e eu senti-me tentada a imitá-la. Ao invés afastei-me um pouco, em
direção a Este, calcando o topo estreito da montanha, quase em forma de lâmina de tão
fino que era. Não havia movimento algum, mas foi exatamente isso que me deixou
alerta. Àquela hora, naquele local, era comum ouvirem-se lobos, tigres, corujas e uma
miríade de animais que, ao longo das décadas, haviam retomado o território que os
humanos em tempos lhes tinham roubado.
Voltei-me novamente para a transação lá em baixo. Os ânimos pareciam ter-se
acalmado. A minha mãe mantinha-se escondida, em caso de problemas, mas o casal de
jovens estava menos acobardado e uma outra moto de neve aproximava-se. Era bom
sinal.
Dei mais uns passos cuidadosos, afastando-me algumas dezenas de metros da
Amilda que partiu na direção oposta. Alguma coisa me estava a levantar os cabelos da
nuca, e não era o frio, nem o casal de recém-chegados lá em baixo. Na ponta de um
pequeno precipício, suspirei e fechei os olhos, tentando concentrar-me, abstrair-me das
vozes e dos uivos do vento; e foi quando tudo isso desapareceu da minha mente que o
senti. A força que me arrepiava os cabelos. Uma energia tão fraca e distante que me
passaria despercebida, caso não estivesse à procura dela.
Eu nunca fui considerada uma feiticeira, como a minha mãe ou mesmo como a
Amilda; mas havia algo no qual eles sabiam que eu me sobrepunha a todos eles: os
meus sentidos. Todos os humanos, quais presas alertadas pela presença do predador,
conseguiam pressentir vampiros até cerca de quatrocentos ou quinhentos metros. Mas
era aí que eu me destacava, pois desde cedo que desenvolvera um radar interno (vamos
chamar-lhe assim) mais potente. Conseguia senti-los à distância de um quilómetro ou
mais, se me concentrasse o suficiente. Naquele caso não necessitara de tanto. O vampiro
que pressentia estava longe demais para os outros feiticeiros, o que era claramente
deliberado, mas não o suficiente para mim.
“Merda!” – Praguejei.
“O que foi?”
Corri para a moto e Amilda encontrou-me lá. Com um simples olhar para o meu
rosto obscurecido, ela saltou para a moto e ligou-a, perguntando: “Para onde?”
Apontei um dedo para sudeste e ela arrancou a toda a velocidade, ligando os
faróis no máximo. A neve voou à nossa volta, embatendo com força nas nossas pernas e
caras. Em breve comecei a ouvir as outras três motas atrás de nós.
Amilda gritou acima do barulho da moto na neve. - “Já nos viram!” – Eram os
outros feiticeiros que vinham em nosso auxílio. Com as motos a andar àquela
velocidade, a menos que intruso tivesse um meio de transporte, não conseguiria escapar-
se.
De mãos fortemente fechadas em volta da Amilda, senti quando o corpo dela
enrijeceu. - “Já o sinto!”
“Boa! Segue-o e eu trato dele.”
“Está bem!”
A neve a embater no visor dos óculos não ajudava a uma maior visibilidade, mas
eu não precisava dos olhos para o que tinha de fazer. Tranquei os pés nas ranhuras dos
lados da moto e soltei-me da Amilda, quase sendo atirada para trás pelo vento.
Recuperado o equilíbrio, tirei as luvas com os dentes e guardei-as nos bolsos do casaco.
Ao longe uma figura solitária corria pelos campos de neve, tropeçando vez atrás de vez
e voltando-se a cada dois passos para nos ver aproximar. Estávamos a menos de uma
cinquenta metros dele.
“Para aqui!” – Gritei.
Amilda obedeceu de imediato. Parou o veículo e virou-o ligeiramente para a
esquerda, deixando-me a mira livre. Respirei fundo e, ignorando as leves picadas nas
costas, estendi o braço esquerdo de punho fechado na direção do alvo, estiquei o outro
braço e puxei-o para junto do corpo lentamente enquanto dizia:
“Invocare ad lacea ab spiritus.”
À medida que a minha mão direita se retraía contra o meu peito, com dois dedos
esticado, um feixe de luz vermelho ficava no seu caminho, formando uma seta
luminescente que pulsava nos meus dedos; e do punho do braço ainda estendido um
outro feixe da mesma luz vermelha se abria, para cima e para baixo, em forma de arco.
Redirecionei a mira e expirei à medida que largava a cauda da seta, deixando-a cortar o
vazio do ar e ir de encontro ao intruso. O arco de magia desapareceu assim que a seta
foi atirada mas a flecha não parou até se alojar nas costas do homem, trespassando-lhe o
coração. Do vampiro não saiu nem um pequeno grito, antes que caísse na neve que seria
o seu túmulo.
Corremos até junto do cadáver e Amilda aproximou-se do corpo, voltando-o
com os pés e baixando-se para lhe estudar o rosto. Ele era velho e tinha a cara coberta
de cicatrizes antigas
“Achas que estava com os outros dois?” – Perguntou Amilda.
Baixei-me ao lado dela. Tal como acontecera com o arco, a seta desaparecera
assim que cumprira a sua missão, mas um buraco ficara no seu lugar e sangue manchava
as roupas velhas do homem cuja boca se abria num grito silencioso, mostrando as presas
pontiagudas que lhe haviam providenciado alimento na segunda vida.
“Não. Acho que este os andava a seguir, a espiá-los. Bem viste como se manteve
longe o suficiente para que ninguém o sentisse.” - Respondi por fim.
“Mas estava a segui-los para quê?”
“Para descobrir o refúgio, talvez?”
Ela inspirou fortemente. - “Pelo menos sabemos que agora não vai entregar a
informação a ninguém.”
Olhei para a distância, semicerrando os olhos, esperando ver algo mais, algo que
não estava lá.
Era a primeira vez que aquilo acontecia. Os vampiros que pediam auxílio
tomavam precauções extra para não serem seguidos. Tudo aquilo parecia muito
estranho.
“Estou com um mau pressentimento.” - Disse.
Amilda estremeceu, levantando-se e fechando os braços em volta do seu corpo.
– “Não digas isso!”
Os outros feiticeiros aproximaram-se e assim que viram o vampiro morto,
também eles começaram a perscrutar atentamente a imensidão que se estendia à nossa
volta. Levantei-me e ajudei-os a cobrir o corpo do vampiro com neve, não fosse alguém
passar por ali e ver um corpo fresco. Dentro de umas horas os animais descobririam a
carcaça e dariam conta dele num instante.
Regressámos rapidamente para junto da torre e encontrámos a minha mãe, a
Gigliona e o Borodorin (o casal que eu não reconhecera de costas) reunidos em volta
dos corpos do jovem casal de vampiros. Desviei os olhos quando vi como os dois se
haviam agarrado um ao outro antes de morrer. Eram crianças, não deviam ter mais de
dezasseis anos e tinham morrido assustados, se não mesmo de susto.
“Não precisavas matá-los!” – Gigliona gritava com Borodorin, que escolheu
ignorá-la, cruzando os braços.
“Estás a ser sentimentalista outra vez.” – O homem, muito mais novo que a sua
colega, esfregou os dedos nos cotovelos e bufou os cabelos negros da frente dos olhos,
como se aquilo nada mais fosse que rotina diária.
“Sentimentalista?” – Os cabelos ruivos da Gigliona encaracolaram-se ainda mais
com os nervos, como se ganhassem vida. – “Eram crianças, seu insensível!”
Uma raiva animalesca brilhou nos olhos do feiticeiro e a minha mãe teve de se
meter entre os dois para impedir um confronto corporal. - “Acalmem-se!”
Quando Ishvar falava, os outros calavam e ouviam. Ter uma mãe assim era
espetacular … de vez em quando …
“O que está feito, feito está. Vamos regressar porque temos muito que fazer.” –
Só quando sentiu que os outros dois se haviam acalmado é que a minha mãe baixou os
braços e veio ter comigo e com Amilda. – “Filhas.” – Abraçou-nos, juntando-nos pelos
ombros e esmagando-nos uma contra a outra. Mas tão depressa quanto o afeto
aparecera, desapareceu e, no seu lugar, ficou a seriedade de uma profissional. –
“Contem-me o que aconteceu.” – Ela pediu.
Não precisei falar muito, pois rapidamente a Amilda a pôs a par de tudo. Mas,
durante todo o tempo, não consegui afastar a sensação de que havia algo que me estava
a iludir. A experiência tinha-me ensinado que o instinto é a mais forte arma que os
humanos possuem na luta contra os vampiros e os meus instintos diziam-me que algo
me estava a escapar.
Capítulo 2
13 de janeiro de 2175, 00h30
Seria por divertimento que escolhiam igrejas como postos de descanso
temporário? Vampiros, igrejas, templos, fé; tudo conceitos que em tempos se haviam
unido no conhecimento popular; tudo mentira. Daí que não me admirasse que fosse pelo
puro gozo da ideia, que o Cornivar tivesse uma predileção pelos santuários da fé, em
todas as suas formas.
A pequena capela em Orhei, assente no topo da montanha, era quase engolida
pela imensidão da paisagem; a imagem de um culto pequeno. Os seus calabouços, por
outro lado, contavam uma história diferente.
Arrastei os pés cansados pela neve e mais alguns metros à frente da capela
empurrei uma porta de madeira velha e comida pelos bichos (tão baixa que tive de me
curvar para passar por ela), assente em paredes de pedra que formavam um arco. Nas
traseiras ficava uma insignificante torre de sino, tão díspar da entrada que juraria ser de
outra época.
O ar abafado tocou-me sem gentileza e forçou-me a fechar os olhos. O vampiro
que guardava a entrada cumprimentou-me e eu ofereci-lhe a mesma gentileza distante,
seguindo caminho pelo túnel que descia para debaixo da terra, num declive pouco
acentuado. O ar saturado tresandava a suor, sangue e bolor, o último dos quais não era
culpa dos seus mais recentes inquilinos. O terreno em rochedo e argila ficou nivelado ao
fundo do túnel, apenas para se separar em dois outros, mais iluminados e de onde se
ouviam gritos de prazer e dor, conversas múltiplas e um número ilimitado de disparates.
Suspirei e segui pelo túnel da direita, cruzando várias portas escancaradas e
vislumbrando coisas que poder-me-iam ter tentado, mas que por culpa do cansaço
apenas me fizeram revirar os olhos. Não havia orgia suficientemente aliciante para me
reavivar os músculos exaustos de dias de viagem intensiva.
As portas duplas que finalmente se apresentaram no fim do túnel, quase me
fizeram suspirar de alívio, não fosse o pleno conhecimento do que estava para além
destas. Rodei o pescoço e os ombros até ouvir um estalido. Sem perder tempo em
pensamentos dispersos, entrei no pequeno salão, nada digno de reis, mas Cornivar
nunca foi de luxos (nem nunca foi rei); já Aaralyn gostava de dar o seu toque a todos os
locais por onde passavam, daí que o pequeno e simples salão, de paredes toscas em
argila alaranjada, estivesse decorado exoticamente em cores berrantes e matérias de
toque delicado, espalhadas pelos cantos, estendidas nas colunas e atiradas aos pés dos
visitantes.
Perdidos num beijo absolutamente nojento (eu bem sei onde aquelas línguas
andaram) os dois ignoraram a minha chegada e continuaram o seu ritual amoroso uns
bons minutos mais. E a única razão porque não desviei o olhar foi porque Cornivar não
desviou o seu de mim. Canalha nojento!
Aaralyn puxava-lhe os cabelos castanhos com tal força que lhe curvava a cabeça
até quase bater nas costas. E não seria essa uma visão linda? Ele com o pescoço partido
por culpa da brutalidade da amante. Oh, se seria!
Infelizmente a cabra não me fez a vontade. Mordeu os lábios do amante até
ficarem em carne viva e depois largou-o, atirando-o contra as costas do cadeirão em que
estavam ambos instalados. Com a boca vermelha de sangue, os olhos a brilharem de um
tom mais vivo da mesma cor e os curtos cabelos avermelhados colados ao pescoço,
Aaralyn levantou-se e caminhou até mim com o corpo sinuoso a mover-se de um lado
para o outro. Apesar de ter umas curvas bem generosas (alguns diriam até demais) e
seios pequenos, muitos eram os que a consideravam uma beleza impossível de resistir,
graças ao cabelo ruivo e liso, aos lábios separados pelo desejo, as presas cobertas de
sangue fresco e as sardas abundantes salpicadas pela cor da paixão. Mas eu não era um
desses que caiam a seus pés. E não era por não gostar das suas curvas.
“Gabriel, é bom ter-te de volta.” – Tocou-me o rosto com as costas da mão e
deixou ficar um sorriso à sua passagem.
Cerrei os punhos, para evitar responder-lhe com um estalo na mão, e voltei a
focar-me no Cornivar, já ajeitado na sua poltrona de pele, de cabeça repousada na palma
da mão e pernas cruzadas, qual cliché ambulante.
“Regressaste.”
“Mais uma vez.” – E como isso devia irritá-lo.
O sorriso em carne viva que ele conseguiu estender na minha direção, quase me
fez desviar os olhos. Quase.
“Já soube do teu sucesso. Bom trabalho.”
Anui simplesmente. Quando temos medo de dizer coisas que nos vão causar
problemas, a solução é cortar a comunicação verbal ao máximo.
“Espero que não estejas muito cansado porque tenho uma nova missão para ti.”
– Os olhos castanhos dele faiscaram de prazer.
Enterrei as unhas na carne das palmas da mão e forcei-me a inspirar e expirar. –
“Com todo o respeito ...” – Quase trinquei a língua ao gesticular as malditas palavras. –
“Estou exausto. Há dias que não me alimento e tive de viajar a pé mais de duas
semanas. Julgo merecer pelo menos um dia de descanso.”
Ele sorriu. - “Claro! Mas não agora.”
“Mas---“
Com um movimento rápido dos dedos, silenciou-me. Até o conhecer, cento e
cinquenta e cinco anos antes, não pensava que alguém fosse capaz de me paralisar com
um simples olhar, mas acreditem que não é preciso muito, basta ter-se a imortalidade ao
dispor. Quando sabemos que alguém pode perseguir-nos para toda a eternidade, a nossa
perspetiva de coragem tende a mudar drasticamente.
Esticando o pescoço e cerrando os dentes, disse: - “Qual é a missão?”
Ele tentou sorrir, sendo que tentou é a palavra de ordem. – “Descobrimos o
esconderijo da Ishvar.”
Estremeci ao ouvir o nome: Ishvar, a mais temida das feiticeiras; a primeira a
matar um Primordial. Aaralyn e os outros andavam à sua procura desde há dezassete
anos, altura em que Alcour foi assassinado e os humanos ganharam uma nova
esperança. Depois dele, mais dois Primordiais tinha perecido, Nevora e Yoseph, pela
mão de outros feiticeiros poderosos, mas nenhum era tão odiado como Ishvar.
Cornivar prosseguiu como se não tivesse dito nada de especial importância. – “A
Ubiny, o Vaughan e a Kaelan saíram ontem ao fim da noite, em direção a Kirovohrad na
Ucrânia.” – Passando os dedos pelos lábios sangrentos, acrescentou. – “Se a Omniua
estivesse cá, teria ido com eles, mas na ausência dela tu vais segui-los e ajudá-los.”
De certa forma as palavras dele mostravam uma preocupação que sempre me
espantara. Cornivar podia ser um sociopata na maioria dos dias, mas não podia julgá-lo
na afeição que tinha aos doze Primordiais. Tratava-os como irmãos, filhos mesmo, mas
fingia bem na presença da maioria das pessoas. Eu é que já convivia há tempo suficiente
com ele para perceber que havia algo mais. O que não tornava a sua atitude para
comigo, e com os outros, menos desprezível.
“Partirei depois de me alimentar.” – Disse.
O pôr do sol havia sido cinco horas antes. Já tinha um enorme atraso em relação
aos Primordiais, mas se saísse rapidamente dali ainda conseguiria cobrir uma boa
parcela de terreno antes de amanhecer. Eles tinham de ter parado para descansar durante
o dia, por isso o avanço não poderia ser assim tão grande.
Silenciosamente agradeci a falta da Omniua, a minha criadora. Não tinha
saudades dela, ou da sua possessividade, e preferia sempre viajar sozinho.
Cornivar dispensou-me com um gesto vago de mãos, mas só virei costas quando
ele desviou os olhos para os buracos na escarpa da montanha, fazendo as vezes de
janelas sem vidros, por onde o vento gelado entrava sussurrando, como se até esse
elemento da natureza tivesse medo do imortal.
Estava já junto das portas quando o ouvi chamar. Voltei-me uma vez mais e
quase fechei os olhos, para tão cedo não os voltar a abrir. Sentia-me prestes a desfalecer.
– “Sim?”
“Quando isto terminar, quero-te de volta aqui. Nada de desvios.” – Disse ele.
Mordi o interior da bochecha, silenciando um protesto ensurdecedor. Queria
gritar e atirar-me ao pescoço dele. Naquele momento até o sangue ressabiado daquela
aberração da natureza serviria para me saciar a sede. Se ao menos isso fosse suficiente
para o matar, quantas vezes já não o teria aniquilado? Quantas vezes eu não tentara já?
A falta de poder é mesmo castradora. – “Assim farei.”
Sem esperar, incapaz de o olhar mais um segundo, quase parti a maçaneta com a
força que empreguei para fechar a porta atrás de mim; e podia jurar que as paredes
argilosas da montanha estremeceram, mas não era a montanha que tremia, era eu. Os
meus músculos doridos vibravam com os nervos aprisionados e as palavras por dizer.
Esfreguei vigorosamente as mãos nos olhos cansados e bati com os pés, à vez, no chão,
recuperando controlo de um corpo que se encontrava mais frustrado que o próprio
cérebro.
Quando ergui a visão cansada deparei-me com as sardas numerosas de Aaralyn e
os seus brilhantes olhos vermelhos. – “Sentiste a minha falta?”
Não a deixei voltar a tocar-me. Afastei-me com um passo atrás e desviei a mão
dela, já erguida, com um movimento rápido do braço esquerdo. - “Nem por isso.”
Pareci diverti-la pois esticou os lábios num sorriso que mostrou as suas presas
em toda a sua glória. Naquele momento pouco a distinguia de um animal predatório. –
“Pois olha que eu senti a tua falta.”
Olhei em volta. O corredor estava deserto, as portas todas fechadas e as tochas
haviam-se apagado, não por obra do divino, certamente. Ela tinha uma preferência
macabra pela escuridão.
“Onde está o teu novo brinquedo?” – Da última vez que saíra em missão, há
mais de um mês, ela havia adquirido um novo “brinquedo”, um vampiro adulto,
encorpado e com uns olhos tão negros que pareciam um poço sem fundo. E, acreditem,
quando Aaralyn arranja um novo “brinquedo” não o larga até o ter estragado.
Encolhendo os ombros ela tentou aproximar-se uma vez mais. – “O Cornivar
mandou-o numa missão.”
Não consegui evitar erguer um sobrolho. Cornivar nunca mandava novatos em
missões. Eram demasiado instáveis e demasiado fracos, o que só podia significar uma
coisa: o vampiro não era nem um novato, nem um fraco e isso significava que era um
dos especiais. Qual seria o poder dele?, questionei-me silenciosamente.
Por instantes a curiosidade quase me distraiu e ela teve tempo de esfregar os
dedos no meu pescoço. Saltei para longe dela e arreganhei-lhe os dentes. Estava a
tornar-me um animal como ela.
“Não me toques!” - Sibilei.
Uma gargalhada escapou-se-lhe dos lábios. – “Não sejas antissocial, Gabriel.”
“Vai chatear outro!” - Virei-lhe costas e segui corredor abaixo, em direção à
bifurcação.
Ela não me seguiu mas ainda ouvi a sua voz ao fundo. – “Ainda vais implorar-
me por atenção.”
Quase rebentei a porta ao entrar na primeira à esquerda: a despensa temporária.
O quarto tresandava a dejetos, suor, lágrimas e mofo. No seu interior escuro, algemados
às paredes, separados uns dos outros, negados do mais básico contacto físico, estavam
uma série de humanos. Homens e mulheres, de várias idades, e nenhuma criança, coisa
que me agradou. Ao todo não eram mais de uma dúzia e nos seus olhos semicerrados
pelo medo via-se a ausência de algo capaz de mover montanhas: esperança. Não há fé
para quem é prisioneiro dos Primordiais. Não há salvação possível nem fuga possível.
Limpando o suor que se acomodava na minha testa, passei olhos fugazes por
cada um dos humanos. Estavam bem nutridos mas mijados de medo. Em outras
circunstâncias recusar-me-ia a morder o pescoço de qualquer um deles antes de lhes dar
um banho de lixívia, mas não tinha tempo para ser picuinhas. Escolhi o que estava mais
próximo da porta, um homem robusto, bem acima dos quarenta anos, de barbas rijas e
braços fortes. Ele debateu-se quando lhe tirei as correntes e tentou fugir; tive de o parar
com um par de murros e pontapés no estômago. Arrastei-o para o corredor e tranquei a
despensa para abafar os gritos dos outros. Agarrei nos cabelos escuros do homem e
atirei-o de cabeça contra a parede, deixando-o inconsciente. Só então me baixei para lhe
desviar as barbas e os cabelos, perfurando-lhe a artéria carótida com os dentes e
bebendo o sangue dele, avidamente, até à última gota, tentando controlar o impulso de
vómito que acompanhou o fedor que envolvia o humano.
Capítulo 3
15 de janeiro de 2175, 12h40
A inveja era um sentimento que eu conhecia com certa familiaridade. Sentia
inveja dos que seguiam as regras sem as questionarem, dos que não só agiam
normalmente como o eram de corpo e alma, e sentia ciúmes dos que eram felizes apesar
de tudo o que o mundo era. Às vezes sentia inveja até da Amilda, o que não deixava de
ser vergonhoso. Sentia-o porque apesar de tudo pelo que passara, ela era das que
conseguia ser feliz.
Agarrada ao Luigi, num abraço cheio do tipo de carinho que eu nunca quisera
experimentar com qualquer homem na vida, os dois eram o que poderia apenas ser
chamado de um casal inseparável. Unindo as testas e roçando gentilmente os narizes
vermelhos pelo frio, riram-se exatamente da mesma forma que o faziam desde crianças.
E se isso não era reconfortante, não sei o que o seria.
Infelizmente aquelas cenas amorosas davam-me uma vontade enorme de sair
rapidamente do quarto, que apesar de ser grande o suficiente para albergar três camas,
um guarda-fatos e duas cómodas (e deixar algum espaço para passear entre tudo),
parecia absolutamente minúsculo e imensamente quente com aqueles dois aos abraços e
sussurros.
“Vou dar uma volta.” – Disse, levantando-me.
A cabeça da Amilda levantou-se de imediato. – “Não precisas ir-te embora.”
Levantando um dos cantos da boca num sorriso trocista, disse-lhe. – “Vou dar-
vos algum espaço, pombinhos. Têm muito que praticar antes do casamento.” – Valeu a
pena só para ter o prazer de ver os rostos avermelhados dos dois antes de fechar a porta.
Distraída em sorrisos, quase embati na figura que apareceu à minha frente.
Levantei os olhos e deparei-me com o rosto familiar da minha mãe. Estava com mais
cabelos brancos, o que a fazia parecer ter setenta em vez de cinquenta e dois anos.
“Está tudo bem?” – Ela perguntava sempre aquilo. Era como o “olá” que ela
tinha só para mim.
“Tudo ótimo.” – Estudei-lhe o rosto e vi como ela tentou relaxar sob o meu
olhar, mas não funcionou. As rugas estavam demasiado vincadas e os olhos demasiado
mortiços. – “O que é que aconteceu?”
“Eles não me deram ouvidos.”
“Sobre a evacuação?”
Em resposta, ela simplesmente anuiu. Sabia que ela tinha estado a manhã toda
trancada com os homens e mulheres do Concílio, tentando convencê-los a evacuar o
refúgio, tal como tinha feito nos dias anteriores. Desde que matáramos o espião, ela
estava nervosa, e não era a única.
“Já não sei mais que lhes dizer. Eles agem como se nada tivesse acontecido.”
Pousei uma mão no ombro dela e sorri. – “Mãe, esquece isso. Pode ter sido
apenas coincidência, se calhar ele estava só à procura de uma presa fácil.”
“Nem tu acreditas nisso, meu anjo.”
Encolhi os ombros e tentei parecer mais despreocupada do que estava na
realidade. Já chegava eu ser paranoica, não precisava de deixar a minha mãe em
constante estado de alerta.
Ela tocou-me nas bochechas com ambas mãos, sorrindo. – “És a luz da minha
vida.”
“E tu da minha.” - Certas palavras já dizemos mais por hábito que por
significado. Não que elas não sejam verdadeiras, simplesmente acabam por perder força
a cada repetição.
As mãos dela escorregaram-me para os ombros e os seus olhos ficaram
subitamente mais carregados, sem a beleza do azul cerúleo que me deixava sempre
vidrada. – “Estás preparada, meu anjo?”
Hesitei em fazer a pergunta que ficara pendurada no ar. – “Preparada para o
quê?”
Ela sorriu tristemente. – “Para abrires as asas.”
Por vezes achava que ela levava aquela analogia dos anjos um pouco longe
demais. Há limites para as brincadeiras com o meu nome, até para a mulher que me
trouxe ao mundo.
“Onde queres chegar, mãe?”
Naquele momento o facto de ela ser dez centímetros mais baixa que eu, nada fez
para atenuar a intensidade do seu olhar ou a imponência da sua resolução. - “Chegou o
momento.”
“Já não estou a gostar desta conversa.”
Dei um passo atrás, mas ela recusou-se a largar-me, fechando as mãos com ainda
mais força nos meus ombros e esforçando-se para manter a voz baixa. As paredes
tinham ouvidos.
“Eles descobriram-nos, meu anjo. Descobriram-nos e virão atrás de nós e, nessa
altura, eu vou precisar que tu me ajudes.”
“Para com isso!” - Agarrei as mãos dela e afastei-a, com determinação, mas com
cuidado. Ela cambaleou um pouco para trás e por instantes pensei que fosse cair, mas
isso não aconteceu. Mordi a língua ao perceber, com mais nitidez que nunca, o estado
de fragilidade em que ela se encontrava.
“Angel …”
“Não! Para!” – Afastei-me mais uns passos dela e tapei os ouvidos com as mãos.
– “Tu prometeste.” – Ouvi a minha voz quebrar e voltei a ser uma criança perdida na
confusão do poder e da morte. E senti-me ridícula, absolutamente ridícula, mas também
petrificada, de medo. Ali estava eu, já adulta, a agir exatamente da mesma maneira que
agira quando tinha oito anos.
Vi-a abrir a boca para continuar a falar mas interrompi-a uma vez mais. – “Não
quero ter esta conversa agora.”
Saí disparada dali, tropeçando na terra do corredor e arranhando as mãos nas
pedras das paredes. Engoli a culpa e o medo e só parei quando cheguei à galeria. O sol
projetava um feixe enorme de luz na praça e a poeira recusava-se a assentar, parecendo
que o ar vibrava com vida. Lentamente arrastei os pés até ficar no centro da luz e olhei
para cima, apenas para ter de fechar os olhos assim que alcancei o sol. Olhos claros e
luz forte nunca combinaram, e eu herdara os da minha mãe. Deixei cair os braços ao
lado do corpo e inspirei profundamente, deixando o calor acalmar-me os nervos e
saciar-me a necessidade de proteção.
Os sons dos passos dos que caminhavam em volta não me incomodaram tanto
quanto me ajudaram a relaxar, por isso não percebi quando um alguém se aproximou
por trás. Dois braços fortes rodearam-me a cintura e um corpo deliciosamente familiar
encostou-se ao meu num roçar sensual que me aqueceu mais que o sol.
“A apanhar sol na hora de trabalho?”
Sorri e virei a cabeça para trás. A primeira coisa que vi foram os lábios carnudos
que me haviam sussurrado, e de imediato lambi os meus em antecipação. – “Vai
castigar-me, senhor doutor?” – Huno era um dos curandeiros do refúgio.
“Pacientes indisciplinados devem ser punidos, minha pequena arruaceira.” –
Puxou-me ainda mais de encontro a si e baixou o rosto até que os nossos narizes se
tocaram e lhe vi os olhos castanhos manchados pela luxúria. – “Às quatro?”
Anui gentilmente e pus-me em bicos de pé para lhe beijar os lábios num
contacto que não durou mais que um instante. – “Combinado.” – Libertei-me dos braços
dele e afastei-me com um sorriso, fazendo questão de balançar as ancas para que ele
ficasse a ver-me partir.
Além de curandeiro, Huno era um Pai, que é como quem diz, um dos homens do
refúgio que decidira não se casar e que por isso dormia com todas as mulheres que o
quisessem, tornando-se pai de muitas crianças. Dava muito e pedia pouco em troca. Não
fazia perguntas a mais e, melhor que tudo, não queria nada para lá do sexo; por isso
dávamo-nos bastante bem, eu e ele. E como eu não era ciumenta, não me interessava
nada que ele dormisse com mais vinte ou trinta quando eu não estava a ver. Nesse
aspeto eu e a Amilda nada tínhamos em comum.
Fui trabalhar um pouco nos armazéns, onde metia as mãos na banha e ajudava a
salgar a conservar a carne dos porcos que outros haviam morto naquela manhã. Não era
o trabalho mais interessante de se fazer, mas eu nunca me queixara. Nos pequenos
armazéns, escavados nas escarpas dos montes e protegidos pelas colinas, as pessoas
falavam pouco e trabalhavam muito. Eu gostava disso.
Quando faltavam cinco minutos para as quatro, pedi uma pausa e fui direta à ala
oeste do refúgio. Ao contrário da maioria das pessoas, Huno tinha um quarto só seu, por
razões óbvias. Um Pai precisava de constante privacidade. Procriar era a máxima dos
humanos. Procriem como coelhos; os vampiros não podem vencer. Quantas vezes não
ouvira já discursos semelhantes? Contrariamente a isso, as minhas razões para visitar
Huno eram bem mais simples. Eu só me queria divertir e, por algum tempo, abstrair-me
da confusão.
Ele já me esperava, de ombro apoiado no vão da porta, com um sorriso
absolutamente delicioso nos lábios e uma mão que me guiou rapidamente para o
interior.
18h45
A menos de dez minutos para o pôr do sol, voltei ao meu quarto. Sentia o corpo
como banha, todo derretido e tinha a sensação de que levava um sorriso imbecil nos
lábios, mas não estava preocupada.
A minha mãe estava a preparar-se para se deitar, trajando uma camisa de dormir
de malha polar, bem quentinha e até já tinha um gorro a cobrir-lhe as orelhas. Ela tinha
sempre as pontas das orelhas geladas. Já Amilda estava debaixo dos lençóis, com o
cabelo enxuto e uma cópia velha do Scriptura ab Magia, o livro de magia, aberto em
cima dos joelhos. Ambas me cumprimentaram quando entrei.
Aproximei-me da minha cama, desapertei os cordões das botas e tirei-as, assim
como o resto da roupa. A camisola estava molhada e o meu cabelo ainda pingava.
Apressei-me a vestir roupa interior lavada e um pijama de flanela bem quente. Os
quartos não estavam tão gelados como a praça ou os armazéns, mas ali a roupa nunca
era demais.
“Estiveste a trabalhar a tarde toda?” - Bem vi a maneira como a minha mãe me
olhou enquanto me vestia. Devia ter percebido com quem tinha estado, ou pior, se
calhar vira-nos, mas eu não estava com vontade nenhuma de ouvir os sermões dela
sobre dar nas vistas e demais coisas aborrecidas. Por ela eu continuaria uma virgem
inocente, toda a minha vida. E, por isso mesmo, ignorei o inquérito.
A gaveta da cómoda empancou quando a estava a fechar, tentei uma vez,
gentilmente, mas enervei-me quando a minha mãe repetiu a pergunta e acabei por
empurrar a gaveta com força para dentro. Ela entrou, e as molduras caíram. Ainda tive
tempo de gritar pateticamente e esticar os dedos para tentar aparar a queda de uma
delas, mas acabaram as duas estateladas no chão.
“Oh não!” – Amilda levantou-se da cama e correu para a moldura da esquerda.
Agarrou-a com carinho e levantou-a. O vidro estava partido, mas a foto parecia intacta.
Ela suspirou de alívio.
“Desculpa.”
Ela sorriu. – “Foi um acidente.” – Levantou-se e bateu na madeira do tampo do
móvel. – “E estas cómodas estão velhas.”
Não fui capaz de lhe sorrir de volta. Apesar de Amilda ser parte da nossa família
há mais de doze anos, a sua verdadeira família era a que estava na foto.
Baixei-me e apanhei a outra moldura, com dedos trémulos. Percebi
imediatamente que aquela foto não tinha tido a sorte da outra. Os vidros caíram como
lágrimas e quando a virei vislumbrei a velha foto com vários riscos e rasgões. Fechei os
olhos e respirei fundo, acalmando o meu coração pesado.
Com cuidado retirei os vidros que restavam e deitei-os no caixote do lixo,
juntamente com os outros que Amilda entretanto apanhara do chão. Pousei a moldura
em cima da velha cómoda e baixei-me para a observar mais de perto. Há muito tempo
que não a contemplava e, de certa forma, isso fazia-me sentir culpada, como se estivesse
a negar a existência e a vida que os que nela estavam tinham vivido.
A mão de minha mãe no meu ombro, quase soltou as lágrimas que aprisionara
nos olhos. – “Não te preocupes. Ainda está em boas condições.” – Estendeu um dedo e
tocou no rosto do homem mais velho da fotografia, o meu pai, que com a sua barba mal
aparada era o mais sorridente de todos, apesar de já lhe faltarem uns dentes. – “Olha-me
este charmoso!”
Não consegui conter uma risada. Com o polegar da mão direita, tracei os rostos
de cada um dos seis ocupantes da foto: a farta cabeleira loira do meu pai, Mathew, que
me carregava nos seus ombros largos e abraçava a minha mãe pela cintura, quando ela
ainda tinha o cabelo encaracolado comprido e castanho; a minha irmã mais velha,
Michelle, com quem eu me parecia tanto que chegava a ser assustador, as únicas coisas
que nos diferenciavam eram a cor dos olhos, pois os dela eram castanhos como os do
pai e o cabelo curto encaracolado, que herdara da mãe; o meu irmão mais velho, Martin
que era uma cópia do meu pai, só que sem a barba e sem as rugas; e o meu outro irmão,
Nathan, que nascera dois anos antes de mim e que fora buscar o cabelo encaracolado da
mãe e os olhos do pai; ele não largava as saias da mãe. Um dos rasgões na foto
trespassava Michelle de cima a baixo, deixando contudo o seu rosto intocado. O seu
lindo rosto, que eu vira desaparecer num instante.
Sacudi a cabeça de um lado para outro, várias vezes, esforçando-me por
dispersar as memórias. Mas foi a voz da minha mãe que me trouxe de volta ao presente.
– “Eles estão em paz, meu anjo.” – Agarrando-me o rosto, beijou-me a bochecha. – “É
connosco que temos de nos preocupar.” – Aquilo foi o suficiente para que, por instantes,
me sentisse mais uma vez uma criança a gritar pela sua mãe, esperando aterrar nos seus
braços, onde promessas de que tudo ia ficar bem eram sempre formuladas. Infelizmente
a realidade nunca era bem essa.
Beijei-lhe a mão e levantei-me. Lancei um último olhar à moldura e depois,
inconscientemente desviei-a para a outra foto. A família da Amilda havia sido muito
mais numerosa que a nossa. Doze filhos, dos dezassete aos cinco, sendo que Amilda era
a mais nova e a mais medrosa. Na foto ela encolhia-se nos braços do irmão mais velho,
um rapaz feito homem, que parecia ter muito mais que a sua idade, cujos cabelos
castanhos-claros lhe chegavam aos ombros e cujo corpo musculado conseguia segurar
nos braços não só Amilda mas também outra menina, a de seis anos. Os três eram
completamente diferentes uns dos outros porque partilhavam todos pais diferentes. A
mãe da Amilda havia sido uma Mãe, que tal como Huno decidira não se casar mas ainda
assim tivera filhos atrás de filhos, vários com Pais diferentes. Apesar disso, os doze
irmãos e a mãe (que se erguia alta e forte a um canto), pareciam muito unidos. Todos de
mãos dadas, muito sérios, mas muito juntos.
Olhei para trás, para a cama onde a Amilda sorria tristemente, escondendo o
rosto no livro que, claramente, não estava com cabeça para ler. Perdera os irmãos
quando era muito nova e não se lembrava da mãe ou da maioria dos irmãos, mas
lembrava-se do irmão mais velho e da irmã mais nova, por alguma razão. Ou talvez
fossem memórias fabricadas, resultado do desejo de ter algo a que se agarrar, algo que
honrasse a memória dos que partiram e a protegeram mesmo depois de mortos.
Deitei-me com a cabeça a latejar e o peito comprimido, cerrado num aperto
incomum. E quando fechei os olhos, senti como se o fizesse pela última vez.
Leiam a continuação de “Angel Gabriel – Pacto de Sangue”:
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