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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP André Noro dos Santos A Relação Homem-Máquina na Cultura Japonesa: A hibridação entre o corpo tecnológico e humano através da animação Neon Genesis Evangelion MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

André Noro dos Santos

A Relação Homem-Máquina na Cultura Japonesa: A hibridação entre o corpo tecnológico e humano

através da animação Neon Genesis Evangelion

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2013

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André Noro dos Santos

A Relação Homem-Máquina na Cultura Japonesa: A hibridação entre o corpo tecnológico e humano

através da animação Neon Genesis Evangelion

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica – área de concentração: Signo e Significação nas Mídias – sob a orientação da Professora Doutora CHRISTINE GREINER

São Paulo 2013

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Banca Examinadora

Aprovado em ____/____/________

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Autorizo, para fins exclusivamente acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores e eletrônicos:

Assinatura: _________________________________________________________________

São Paulo, ________ de agosto de 2013.

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Dedico este trabalho a minha mãe, Setsuko, cujo apoio foi fundamental para a realização deste curso.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Professora Doutora Christine Greiner, que me conduziu de modo

seguro e acolhedor nesta jornada de vida e acompanhou de perto toda a evolução da presente

pesquisa.

Aos meus pais Joseney e Setsuko pelo amor e apoio.

Ao doutor Marco Souza, pela inestimável contribuição com seu conhecimento e

valiosas sugestões.

À doutora Patrícia Borges pela amizade e sugestões preciosas.

À doutora Cecília Saito, pelo carinho e oportunidade de trabalhar no grupo de

pesquisa.

Aos amigos, Roberta e Marcelo, pela presença constante e apoio nos momentos de

insegurança.

À Cida e a todos os amigos que, de alguma forma, contribuíram para a realização da

presente Dissertação.

A CAPES, pela ajuda financeira durante a realização do mestrado.

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RESUMO

O tema desta dissertação é a relação homem-máquina na cultura japonesa. Por tratar-se de um tema muito amplo, o objetivo principal da pesquisa foi analisar a série de animação Neon Genesis Evangelion, demonstrando como esta evidenciou a hibridação entre seres humanos e máquinas, de modo a propor uma reflexão acerca dos usos das novas tecnologias na sociedade contemporânea. Embora este objeto de estudo faça parte da cultura otaku – que marca a produção do Japão pop a partir de 1980, a hipótese principal da pesquisa é que a construção desses corpos híbridos sempre existiu na cultura japonesa e, ao contrário do que discutem vários autores ocidentais, para os japoneses não se trata de uma condição pós-humana. Desde o Japão tradicional, diversas modalidades de teatro de bonecos já propunham uma indistinção entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco. Em termos metodológicos, analisou-se a linguagem da série de animação Neon Genesis Evangelion demonstrando como esta evidencia a hibridação estabelecida entre humano e máquina, sem sugerir, no entanto, que este tipo de relação tem início no Japão contemporâneo. Espera-se que a pesquisa contribua com o campo da comunicação, tanto no sentido de elucidar aspectos da cultura pop japonesa, como nas discussões acerca da relação entre corpo e tecnologia.

Palavras-chave: Animação japonesa. Homem-máquina. Corpo híbrido. Pós-humano

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ABSTRACT

The topic of this dissertation is the man-machine relation in Japanese culture. As this is a very broad topic, the primary goal of this study was to analyze the animated series Neon Genesis Evangelion demonstrating how it shows the hybridization of human beings and machines in order to propose a reflection on the uses of new technologies in modern society. Although this object of study is part of the so-called otaku culture - that marks the production of Japanese pop since 1980, the main hypothesis of the research is that the construction of these hybrid bodies always existed in Japanese culture and that, contrary to what many Western authors state, for the Japanese this does not constitute a post-human condition. In Japanese tradition, various forms of puppet theater established no clear distinction between the body of the puppeteer and the body of the doll. In methodological terms, the proposal was to analyze the language of the animated series Neon Genesis Evangelion, demonstrating how it shows the hybridization of human and machine without suggesting, however, that this type of relationship originates in modern Japan. It is hoped that this study will contribute to the field of communication both in the sense of clarifying certain aspects of Japanese pop culture as well as in the discussions regarding the interface between the human body and technology. Keywords: Japanese animation. Man-machine. Hybrid body. Post-human.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Fragmentos de pergaminho Chojugiga 19

Figura 2 – Apresentação de artistas Kamishibai 20

Figura 3 – Hokusai Mangá 21

Figura 4 – A arte Ukiyo-e 22

Figura 5 – A batalha entre o Macaco e o Caranguejo e Momotaro 24

Figura 6 – O Coelho e a Tartaruga e Momotaro, o número 1 do Japão 25

Figura 7 – Momotaro no Umiwashi 26

Figura 8 – Hakujaden 27

Figura 9 – Tetsuwan Atomu (Astro Boy) 30

Figura 10 – A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado 31

Figura 11 – Akira 37

Figura 12 – Chahakobi ningyo 40

Figura 13 – Zashiki karakuri, Dashi karakuri e Butai karakuri 41

Figura 14 – Sistema de funcionamento do Karakuri ningyo 42

Figura 15 – Gundam Wing Zero 44

Figura 16 – Mazinger Z 44

Figura 17 – Gundam 45

Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45

Figura 19 – Cell e Data 46

Figura 20 – Androide Repliee Q1 47

Figura 21 – Robô que lava cabelo e Cama robótica 49

Figura 22 – Robô regente e Robôs músicos 49

Figura 23 – Robôs e humanos 50

Figura 24 – Kuruma ningyo 55

Figura 25 – Cenas do Kuruma ningyo 55

Figura 26 – Hitogata e Katashiro 57

Figura 27 – Imagens de EVA e Shinji 59

Figura 28 – O Homem de Seis Milhões de Dólares e Robocop 60

Figura 29 – Humanoide Cog 63

Figura 30 – Stelarc e suas performances 67

Figura 31 – A Árvore da Vida 71

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Figura 32 – Lilith 74

Figura 33 – Tokio-3 75

Figura 34 – Gendo Ikari, Misato Katsuragi e doutora Ritsuko Akagi 75

Figura 35 – Pilotos adolescentes de EVA 79

Figura 36 – EVA 80

Figura 37 – Reações de Shinji em sincronia com as reações de EVA 81

Figura 38 – Equipamentos da Unidade EVA 82

Figura 39 – Piloto Shinji no Plug de entrada 82

Figura 40 – O lado animalesco de EVA 84

Figura 41 – EVA em Berserk 85

Figura 42 – Devaneios de Shinji 87

Figura 43 – Devaneios de Rei Ayanami 90

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 UM BREVE HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO JAPONESA: DOS KARAKURI NINGYO

AOS MECHAS ........................................................................................................................ 16

1.1 O DESENVOLVIMENTO DA ANIMAÇÃO JAPONESA ............................................................. 16

1.2 AS ANIMAÇÕES JAPONESAS E A CULTURA ROBÓTICA: ENTRE OS KARAKURI NINGYO, MECHAS

E A ROBÓTICA MODERNA NO JAPÃO ....................................................................................... 35

1.3 O CORPO HÍBRIDO: A TRADIÇÃO JAPONESA E O PÓS-HUMANISMO ..................................... 53

2 NEON GENESIS EVANGELION: UM MUNDO APOCALÍPTICO ENTRE EVAS,

PILOTOS E ANJOS ............................................................................................................... 70

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 96

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 98  

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INTRODUÇÃO

A animação japonesa representa um relevante fenômeno de massa do final do século

XX, que juntamente com os mangás – os quadrinhos japoneses tornaram-se um rápido

veículo de comunicação da cultura japonesa, sobretudo a partir de 1980. Alcançou enorme

popularidade quando trouxe para as televisões do ocidente uma narrativa construída a partir

da cultura pop sem, contudo, deixar de refletir, traços da tradição cultural milenar.

O desenvolvimento da animação no Japão, entretanto, possui longa história. A

animação foi introduzida no Japão, importada do ocidente, a partir de 1910, em particular,

com os filmes de animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl (GAN, 2009). Motivados

pela novidade, os desenhistas japoneses começaram a produzir suas próprias produções

audiovisuais, porém, sem deixar de enfatizar as suas tradições artísticas e culturais. Após a II

Guerra Mundial, o Japão experimentou novamente um contato intenso com ideias e costumes

vindos do ocidente, em especial, dos Estados Unidos da América (EUA). A partir daí, os

nipônicos absorveram as novas experiências, mesclando as suas tradições com as novidades

apreendidas do ocidente, construindo, assim, uma nova imagem das produções audiovisuais

japonesas. Especificamente, em relação às animações japonesas, as novidades em relação à

técnica, estética e traços característicos levaram o Japão a se consolidar na arte da indústria de

entretenimento, firmando-se, inicialmente, em seus próprios domínios, para, em seguida,

internacionalizar-se e obter respeitabilidade e status assegurado por volta do ano 2000.

A partir daí, tem-se uma visível influência das animações japonesas na cultura

ocidental. Esta se encontra em grifes, filmes, videoclipes etc., utilizando-se a temática

japonesa de animação. É justamente o gosto pela animação japonesa e mangás e o interesse

por temas que misturam elementos trazidos das culturas tradicionais e contemporâneas, que

levaram à escolha do objeto de pesquisa do presente estudo: a relação homem-máquina na

cultura japonesa através da série de animação Neon Genesis Evangelion (Shin Seiki

Ibangerion).

Trata-se de uma série televisiva composta de vinte e seis episódios, escritos pelo

diretor Hideaki Anno e produzidos pelo estúdio de animação Gainax (1995). É uma série de

animação pós-apocalíptica que gira em torno de uma organização paramilitar chamada NERV.

Em 2015, quinze anos depois de uma enorme catástrofe denominada “2º impacto”, que teve

consequências como a destruição da Terra e morte de muitos dos seus habitantes, a

organização NERV trabalha para evitar o “terceiro impacto”.

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13

A organização, que tem como líder Gendo Ikari, é regida pela Organização das Nações

Unidas (ONU) e é responsável pela reestruturação da humanidade e as batalhas pela

sobrevivência da raça humana. Tais batalhas envolvem criaturas biocibernéticas – as EVAs,

abreviatura de Evangelion – pilotadas por adolescentes, sob controle da NERV, para combater

seres míticos chamados Anjos, enviados a Terra para aniquilar o que restou da raça humana.

A temática do apocalipse aparece com frequência em narrativas japonesas, e a

tecnologia e robótica estão presentes em diversos títulos da animação japonesa, em especial,

no gênero mecha. A relação entre robôs e animação japonesa tornou-se mais evidente com o

avanço tecnológico que se deu com a reconstrução do Japão após a II Guerra Mundial. A

animação japonesa tornou-se respeitada internacionalmente, e da mesma forma, o campo da

robótica também tem sido estimulado, tornando-se cada vez mais presente no cotidiano da

humanidade. Entretanto, apesar da presença da tecnologia e seu amplo desenvolvimento ter

ocorrido a partir do referido período, em que os valores culturais também foram revistos e a

cultura pop adquire forças e maior visibilidade, tem-se na cultura japonesa um histórico da

relação com os robôs desde o século XVII, representado pelo Karakuri ningyo – considerado

o primeiro robô japonês. Isto, em parte, pode explicar o fascínio e a aceitação dos aparatos

tecnológicos e dos robôs pelo povo japonês (MATTHEWS, 2003-2004).

Em Neon Genesis Evangelion, o avanço da ciência e da tecnologia permite aos

humanos, através do Projeto de Complementação Humana, a construção de ciborgues (EVAs)

e clones, que possam lutar contra os Anjos enviados a Terra para destruir a humanidade. Neste

sentido, as EVAs por si só, e alguns pilotos produzidos pelo referido projeto, são sugestivos de

uma condição pós-humana, onde se tem um contexto de proliferação e convergência de novas

tecnologias com a formação de um novo ser híbrido, maquínico e humano, com perspectivas

de modificação não somente do seu corpo, mas também de sua subjetividade, conforme

entendem alguns autores contemporâneos, como, Haraway (1985), Gray (1996), Hayles

(1996, 1999), Stelarc (1997, 2006), Sibília (2002), Lemos (2002), Santaella (2003), Regis

(2007) e Carvalho (2008).

A série selecionada para análise evidencia ainda uma aproximação e uma relação

muito intensa entre EVAs e pilotos, sugerindo a formação de um corpo híbrido em que não

haveria separação entre o corpo maquínico e o humano, onde a presença de um já pressupõe a

existência do outro. Através da interação, a série permite discutir questões relacionadas aos

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sentimentos, emoções e identidades das pessoas, que só poderão ser afloradas a partir da

hibridação homem-máquina.

Na cultura tradicional japonesa a relação homem-máquina pode ser explicada através

da expressão “mono”, que significa corpo humano e corpo inanimado, conforme observado

nas diversas modalidades de teatro de bonecos, onde não se tem uma clara distinção da

separação entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco, conforme se dá no teatro

kuruma ningyo (SOUZA, 2005).

Os aspectos apresentados acabaram por motivar a pesquisa da referida série de

animação, na busca da compreensão dos aspectos da relação homem-máquina na cultura

japonesa e as discussões contemporâneas sobre as condições pós-humanas.

A hipótese principal da pesquisa é que existe toda uma discussão contemporânea que

aposta na condição pós-humana, mas, ao contrário do que discutem vários autores ocidentais

(SIBÍLIA, 2002; LEMOS, 2002; SANTAELLA, 2003, CARVALHO, 2008), na cultura

japonesa, a construção dos corpos híbridos sempre existiu e, para os japoneses, não se trata de

uma condição pós-humana, e sim, uma condição humana. Logo, a série Neon Genesis

Evangelion sugere a possibilidade de entender a EVA como um ciborgue, mas propõe também

uma categoria distinta que dilui a dicotomia homem-máquina.

Diante do exposto, o objetivo geral da presente dissertação foi identificar e analisar a

linguagem da série de animação Neon Genesis Evangelion, e como esta evidenciou a

hibridação estabelecida entre humano e maquínico. Os objetivos específicos foram: a)

identificar através da série, a relação entre corpo do homem e o corpo maquínico no

desenvolvimento do corpo híbrido; e, b) discutir através da série o significado de corpos

híbridos na cultura japonesa e a condição pós-humana na sociedade contemporânea.

O presente estudo teve como aporte a visão de pesquisadores mencionados

anteriormente, entre outros que discutem as representações de ciborgues e corpos pós-

humanos, e em autores como Marco Souza, Yamaguchi e outros que estudaram as relações

entre os humanos e as máquinas, entre a “coisa” representando o ser inanimado e o ser

animado na concepção da tradição japonesa através da noção de mono. Alguns estudos já

realizados sobre a série, por autores como Amatte Lopes (2006), Mendes (2006), Zaminelli

(2011), serviram também de suporte para a concretização da presente pesquisa.

Na perspectiva de entender mais sobre o corpo híbrido como resultado de cruzamentos

de corpos, informações e interações com o ambiente, e não um lugar onde as informações são

apenas armazenadas tomou-se como referência a teoria corpomídia de Greiner e Katz (2005) e

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autores, como, Clark (2011) – que discute o corpo híbrido como processo de distensão do

corpo – e Damásio (2000) – com suas explicações que relacionam sentimentos às emoções e

que poderiam auxiliar no entendimento da interação corpo-mente à luz da neurobiologia.

Em termos metodológicos, para o desenvolvimento da presente dissertação, foram

utilizados os recortes de alguns episódios da série de animação Neon Genesis Evangelion.

Fez-se ainda uma análise interpretativa visando identificar a relação homem-máquina que se

dá durante as batalhas entre EVAs e Anjos, e a participação do homem e seus conflitos

pessoais. Tais aspectos foram capturados por meio de elementos visuais e textuais existentes

na série.

O presente estudo estruturou-se em dois capítulos principais. No primeiro, “Um breve

histórico da animação japonesa: dos karakuri ningyo aos mechas”, tem-se: uma introdução ao

universo das animações japonesas; um breve panorama do desenvolvimento da animação

japonesa, sua associação com o mangá (os quadrinhos japoneses) e o cinema, além de

possibilitar a compreensão das raízes históricas e culturais do gênero mecha, categoria na qual

a série Neon Genesis Evangelion se insere. O capítulo dedicou-se ainda ao entendimento da

figura do ciborgue, da tecnologia robótica e a da condição pós-humana, por meio de revisão

teórico-conceitual com base em vários autores contemporâneos, confrontando-os com a

representação da relação entre corpos animados e inanimados na tradição cultural japonesa

através da noção de mono.

O segundo capítulo, “Neon Genesis Evangelion: um mundo apocalíptico entre EVAs,

pilotos e Anjos”, discorreu sobre a linguagem da série de animação, evidenciando os episódios

que envolvem a figura da EVA, a sua relação com o homem e a luta com os Anjos diante de

um iminente apocalipse.

Espera-se, com o resultado da presente pesquisa, contribuir para as discussões sobre as

relações entre os seres humanos e as máquinas, e como tal hibridação é vista na cultura

japonesa, em contraste com as reflexões em torno das condições pós-humanas na sociedade

contemporânea ocidental.

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1 UM BREVE HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO JAPONESA: DOS KARAKURI NINGYO

AOS MECHAS

1.1 O desenvolvimento da animação japonesa

A animação japonesa é considerada um dos principais representantes da cultura pop

nipônica pelo mundo. Juntamente com os mangás, os games e a música ou mesmo o cinema

tradicional, os animes, como são também conhecidos, tornaram-se os principais difusores da

cultura japonesa no mundo contemporâneo.

Apesar de ter se estabelecido no ocidente somente após a II Guerra Mundial, entre as

décadas de 1970 e 1980, a animação japonesa é detentora de uma história longa, mas que

sofreu modificação. A animação atual, com todas as características que lhe são pertinentes, foi

impactada por uma rede complexa de informação durante o século XX e, até hoje, continua

em processo.

A própria terminologia empregada para designar animação japonesa sofre

modificações ao longo do seu desenvolvimento.

Estudo realizado por Gan (2009), sobre o significado no Japão do termo “anime”,

descreve a origem do referido termo. De acordo com o autor, em 1910, no final do período

Meiji, as animações estrangeiras começaram a receber especial predileção por parte do

público. Em particular, os filmes de animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl, que

apresentavam o herói “Le fantoche” (Dekobo, como se denominou o garoto herói), tornaram-

se muito populares sob o título japonês de dekobo shingacho (um novo livro de desenhos de

Dekobo). A série de animações rotuladas como “dekobo shingacho” se tornou extremamente

popular, e a expressão em si tornou-se, na época, sinônimo de animação. Posteriormente, a

expressão “senga eiga” (desenhos de linhas de filme) ou “senga kigeki” (desenhos de linhas

de filme cômico) passou a ser utilizada para se referir à produção japonesa de animações.

Na década de 1920, a expressão “mangá eiga” (filme de mangá) começou a ser

utilizada para se referir a animações com uma narrativa dramática. Fazia-se uso ainda do

termo “senga” (desenhos de linhas) para referir-se a animações com diagramas e propósitos

educacionais. Por volta de 1937, os filmes e desenhos animados começaram a ser chamados

de doga (imagens em movimento), mas o termo deixou de ser utilizado após a ocupação

americana no Japão, em 1945.

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17

A palavra “anime” surge pela primeira vez em 1962, em uma revista de cinema

japonesa muito popular, chamada Eiga hyoron. Por volta de 1965, a expressão doga eiga

(imagem em movimento de filme) se tornou popular para designar ‘filme de animação’. A

palavra “japanimation” foi também utilizada entre o final da década de 1970 e o início da

década de 1980, porém, por pouco tempo, por causa da divulgação esparsa das animações

japonesas em países estrangeiros. Atualmente, animação e anime viraram os termos mais

utilizados e estabelecidos internacionalmente para designar o referido tipo de produção

audiovisual (GAN, 2009).

Existem duas correntes que buscam explicar o surgimento da expressão anime. A

primeira, defendida por Frederik L. Schodt (1997) e Alfóns Moliné (2004) sugerem que a

palavra anime seja uma derivação da expressão francesa dessin anime (desenho animado). A

segunda, e mais aceita, acredita que anime seja uma corruptela de animation (animação), do

inglês, falada pelos japoneses como animeeshon (SATO, 2007, p.31).

Em relação ao uso atual do termo “anime”, Gan (2009, p. 35) esclarece que

[…] fora do Japão, anime é usado principalmente como um termo referente à animação feita no Japão. Dentro do Japão, porém, a palavra anime, uma pronúncia abreviada de animação japonesa tem sido amplamente utilizada como uma abreviatura para toda a animação. No entanto, apesar da popularidade crescente e atenção da mídia em todo o mundo, o significado e o uso do termo ainda é ambíguo e não é empregado com um significado uniforme. Há um número de pessoas, especialmente no Japão, que persistem em diferenciar o significado de anime e animação, argumentando que anime é apenas uma parte do maior gênero de animação. Eles afirmam que nem todas as animações produzidas no Japão são de anime, enfatizando o caráter distintivo e o significado das obras que não se conformam com a imagem popular existente do anime.

Hayao Miyazaki, diretor do Estudio Ghibli, um dos principais estúdios de animação no

Japão, famoso por seus filmes de longa-metragem de animação de alta qualidade, explica que

o rápido desenvolvimento da indústria do anime esteve intimamente ligada à rica cultura do

mangá no país, porém, muitas vezes, várias convenções do mangá foram transferidas

diretamente para o anime sem que os artistas procurassem observar experiências diferentes a

fim de criar suas próprias expressões. Aquele diretor relata que não gosta do termo “anime”

porque este representa uma visão estreita de animação que se limita a animação de celuloide,

sem levar em consideração outras técnicas possíveis na expressão de animação.

Em muitas ocasiões, Miyazaki se refere às suas obras como eiga (filmes), observando

que estas são fundamentalmente diferentes do que tem sido chamado de anime (MIYAZAKI,

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18

1998, p. 107; 2008 p. 82 apud GAN, 2009).

Neste sentido, na presente dissertação, utilizou-se, na maior parte das vezes, a

expressão ‘animação japonesa’ – termo mais amplo que não se restringe apenas aos desenhos

animados, mas a toda uma produção audiovisual.

Como o desenvolvimento da animação japonesa está muito relacionado com a história

das artes gráficas japonesas e do mangá (histórias em quadrinhos japoneses), nas linhas a

seguir, descreveu-se o início da história destas artes ‘irmãs’, sem, no entanto, ter a pretensão

de fazer um levantamento histórico profundo sobre o mangá no Japão e como tal forma de

manifestação chegou ao ocidente. Pretende-se aqui apenas apresentar dados que auxiliem na

compreensão do desenvolvimento da animação e possam facilitar o entendimento da série de

animação Neon Genesis Evangelion – objeto central do presente estudo.

Mangá é uma palavra japonesa utilizada para designar histórias em quadrinhos em

geral. É formada por dois ideogramas chineses: o man (漫) - que significa “humor ou algo

que não é sério”, e o gá (画) – que quer dizer “imagem ou desenho”. Durante a era Edo, o

referido termo foi utilizado para denominar desenhos exagerados, que significa literalmente

desenhos malucos. Os japoneses imaginavam manga como algo divertido e leve, como os

desenhos do povo na era Edo (MITSUGO, 2005 apud ROCHA, 2008).

Pode-se considerar que o surgimento do mangá data do século XI, no Japão medieval,

através de desenhos pintados sobre um grande rolo onde as histórias eram contadas à medida

que iam sendo desenrolados. Eram chamados de e-makimono. Estes podem ser considerados a

origem do mangá e de sua estrutura sequencial de narrativa.

Os e-makimono eram muito populares no século XII, e foi em tal período que o monge

chamado Toba (1053-1140) produziu o mais famoso deles: o chojugiga (Figura 1) - desenhos

caricatos de animais e pássaros. Aquele monge desenhava em pergaminhos animais

personificando figuras do meio social: monges e nobres, como crítica aos seus estilos de vida

(MOLINÉ, 2004). Conforme registra Luyten (2000, p. 91-92),

Os e-makimono são considerados a origem das histórias em quadrinhos no Japão. Muito abundantes nos séculos XI e XII, os e-makimono eram desenhos pintados sobre um grande rolo e contavam uma história, cujos temas iam aparecendo gradativamente à medida que ia sendo desenrolado. Dessa maneira, era construída, com estilo original, uma história composta de numerosos desenhos.

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Figura 1 – Fragmentos de pergaminho Chojugiga. Os desenhos eram pintados sobre um rolo de papel ou seda.

Os desenhos de “linhas simples (de influência chinesa) e estilizadas, com personagens

de olhos grandes, surgiram porque a maioria da população era analfabeta no kanji1 e essa era a

melhor maneira de transparecer os sentimentos das personagens sem a utilização de

ideogramas” (FARIA 2004, p.13). Mas, os personagens de olhos grandes só voltam a fazer

sucesso na década de 1950, introduzidos por Osamu Tezuka, tornando-se uma das

características marcantes do mangá e animação japonesa modernos.

Ainda no século XII, surgiram os Kamishibai, que significa “teatro de papel”. Era uma

forma de contar histórias que se originou nos templos budistas do Japão, onde os monges

usavam o e-maki (pergaminhos que combinam imagens e textos) para o público – em sua

maioria, analfabetos. O Kamishibai permaneceu como um método de contar histórias por

séculos, mas ficou mais conhecido, após o seu renascimento, nos anos de 1920 até 1940,

quando contadores de história itinerantes ou kamishibaiya gaito, batiam dois pedaços de

madeira ligados por um cordão para anunciar a sua chegada às várias moradias. As crianças

que comprassem doces conseguiam os melhores lugares na frente do palco. Uma vez

organizada a audiência, as histórias eram encenadas, na maioria das vezes, utilizando-se um

pequeno palco de madeira. As apresentações possuíam muitos detalhes artesanais em que as

1 Kanji é um dos três alfabetos da língua japonesa. O kanji tem origem na China, e sua linguagem pictográfica apresenta-se em forma de ideogramas. Possui mais de 1.900 caracteres (SAITO, 2004, p. 25).

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ilustrações inseridas apresentavam movimento em sua narrativa, representando uma

linguagem bem próxima do teatro e da animação.

O ressurgimento da Kamishibai pode ser associado com a grande depressão dos anos

1920, tornando-se um meio para que os desempregados pudessem ganhar uma quantia

pequena em dinheiro. A tradição foi largamente desestabilizada pelo advento da televisão nos

anos 1950, porém, a metodologia foi recentemente reavivada em bibliotecas e escolas

japonesas como recurso pedagógico (Figura 2).

Figura 2 – Apresentação de artista Kamishibai – reavivado recentemente nas bibliotecas e escolas públicas do Japão como recurso pedagógico.

Foi no período Edo ou Tokugawa (1603-1867), com a arte ukiyo-e, que a palavra

mangá foi utilizada pela primeira vez, em 1814. A palavra Ukiyo-e significa “pinturas do

mundo flutuante” ou “estampa xilográfica”. Eram gravuras feitas a partir de pranchas de

madeira, geralmente de temática cômica e, algumas vezes erótica, que retratavam assuntos da

vida urbana, bem como interpretavam os atores populares do teatro kabuki2, lutas de sumô3,

atividades e cenas das áreas boêmias. Podiam ser encontrados também motivos associados à

natureza, como, por exemplo, flores de cerejeiras (sakura) ou mudanças de estação

(MOLINÉ, 2004).

2 É uma forma de teatro japonês conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem usada por seus atores. 3 É uma luta de origem japonesa, na qual dois lutadores se enfrentam em um ringue de formato circular (sem as “cordas” como as de boxe). O objetivo da luta é derrubar o adversário ou empurrá-lo para fora do ringue.

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O ukiyo-e recebeu destaque entre as artes visuais no final do século XVII, durante a

Era Edo. Katsushika Hokusai, um dos artistas marcantes na arte da xilogravura japonesa e

pintor ukiyou-e, publicou em 1814, o primeiro dos quinze volumes de seu caderno de

desenhos, os quais ficaram conhecidos como Hokusai Mangá, pois, aqueles cadernos

continham os estudos do artista, ou seja, desenhos involuntários ou livres, alusão à tradução

literal da palavra mangá. Sua obra mais importante é a série de gravuras “Trinta e seis vistas

do Monte Fuji” (Figura 3). Figura 3 – À esquerda - fragmento de um dos livros que ficaram conhecidos como Hokusai Manga. A figura à direita, representa a Xilogravura mais famosa da série das “36 Vistas do Monte Fuji” de Hokusai (Hokusai: A Grande Onda e Kanagawa, das “36 vistas do Mount Fuji”, 1823-1829).

Gravett, em seu livro, faz uma analogia entre as pinturas xilográficas ukiyo-e e o

mangá moderno:

As linhas precisas, a composição arrojada e o uso meticuloso de padrões delicados e repetitivos, característicos de todas essas gravuras têm muita proximidade com o mangá, em que o trabalho dinâmico com o traço é a norma e as texturas são aplicadas em tons chapados e sem modulação. A relação é ainda mais clara nos mangás modernos ambientados num passado distante. Nesses casos, os artistas frequentemente fazem referencias conscientes à ukiyo-e e às outras gravuras (GRAVETT, 2006, p. 24).

O autor se refere especificamente ao mangá, mas o conjunto de descrições acima

podem ser aplicadas também à animação. Um exemplo é a animação Program (Um Coração

de Soldado), da série animatrix, lançado em 2003, no qual os produtores do desenho animado

se inspiraram nas pinturas ukiyo-e para compor o ambiente da era feudal japonesa (Figura 4),

utilizando tons chapados, com predominância do matiz preto, estando, portanto, presentes na

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composição da referida animação, a forma, a essência e os caracteres cromáticos da pintura

ukiyo-e (ROCHA, 2008).

Figura 4 - A arte japonesa Ukiyo-e de impressão de gravura do período Edo. A figura à direita é uma representação do episódio 5 – Program (Um coração de soldado), da série de animação Animatrix.

Com a abertura de seus portos e o fim do isolamento durante a Era Meiji (1868-1912),

os japoneses são contaminados por outras culturas, inclusive, no que se refere ao desenho

humorístico japonês. Em 1862, o inglês Charles Wirgamn publicou a revista The Japan

Punch – a primeira revista de humor em estilo ocidental no Japão, inspirada pela revista

semanal britânica Punch. Inicialmente apelidada de punch-e (desenhos punch), foi

gradativamente conquistando os artistas japoneses até que, em 1890, teve o seu nome alterado

para mangá.

No final do século XIX, os japoneses conheceram as strips – tiras – de múltiplos

quadros inspirados em revistas europeias (inglesa, francesa e alemã) e estadunidenses,

iniciando, no referido período, a produção de quadrinhos.

Mas, foi em 1901, que Rakuten Kitazawa produziu Tagosaku to Morukubei no Tokyo

Kenbutsu (A Viagem de Tagosaku e Morukubei a Tóquio) – considerada a primeira história

em quadrinho japonesa.

Apesar da grande importância dos mangás para o desenvolvimento da animação

japonesa, esta teve origem no cinema, do mesmo modo como se deu com a animação no

ocidente.

As plateias do Japão tomaram conhecimento do cinema, por volta de 1896, com a

realização de exibições com aparelhos – como, por exemplo, o cinematógrafo dos irmãos

Lumière – e através da demonstração do sistema de projeção de filmes da Vitascope: empresa

americana formada por Thomas Armat e pelo inventor Thomas Edison. Poucos anos depois, o

Japão já começava a produzir seus próprios filmes mudos (HANDA, 1999).

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A primeira grande produção do cinema japonês ocorre em 1913, quando o

diretor/produtor Shozo Makino uniu-se ao ator Matsunoke Onobe para realizarem a primeira

de várias versões de Chushingura4 (Os 47 Ronin5).

Os primeiros filmes japoneses eram documentários retratando, geralmente, aventuras

de época e história de samurais6 injustiçados, cenas de ruas e danças de gueixas7. Seguiram-se

dramas kabuki8 registrados em película, que eram projetados com o acompanhamento do

benshi: uma pessoa que reproduzia os diálogos do filme, interpretando as vozes dos vários

personagens durante a projeção – uma espécie de dublador ao vivo, que ficava ao lado da tela,

proferindo os diálogos e interpretando as imagens para a plateia (KUSANO, 2008).

Embora o cinema sonoro só tenha surgido em 1932, no cinema mudo nipônico,

diferente do cinema ocidental, sempre havia diálogos e sons produzidos pelo benshi

(HANDA, 1999). Tal fato pode ter influenciado a animação japonesa atualmente existente.

Nos desenhos americanos, os sons das falas são gravados primeiro e depois é feita a

animação. No Japão, o referido processo se dá de forma inversa. As dublagens são feitas

depois dos desenhos prontos. No estúdio Ghibli, dirigido por Hayao Miyazaki, fundado em

1985, além dos espaços para as dublagens, existe um anfiteatro para gravar a trilha sonora dos

desenhos com a participação de um maestro e sua orquestra, executando a música ao mesmo

tempo em que assiste ao desenho para fazer a sincronização.

De acordo com o curador do acervo de filmes do Centro Nacional de Cinema japonês,

Akira Tochigi9, tanto o cinema tradicional quanto a animação foram levados ao Japão como

culturas importadas. Como já referido no início do presente capítulo, os japoneses

conheceram as primeiras animações, por volta de 1910, importadas do ocidente. Eram curtas-

metragens mudos produzidos principalmente por animadores de Nova York, como John

Randolph Bray e Winsor McCay (SATO, 2005, p.30). No mesmo ano, várias animações

estrangeiras, inclusive a animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl, foram importadas

4 É o nome da peça teatral (drama) mais famosa da história japonesa: retrata a história dos 47 ronin e da morte de seu mestre. 5 É a lenda mais famosa do código de honra Samurai: o Bushido. 6 Samurai era como se conhecia o soldado da aristocracia do Japão, entre 1100 a 1867. Suas principais características eram: a grande disciplina, A lealdade e sua grande habilidade com o katana (espada). 7 São mulheres japonesas que estudam a tradição milenar, a arte da sedução, dança e canto, e se caracterizam distintamente pelos trajes e maquiagem tradicionais. 8 Kabuki é uma forma de teatro japonês, conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem utilizada por seus atores. 9 Extraído de texto sobre o cinema silencioso japonês elaborado para a II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, projeto desenvolvido pela cinemateca brasileira. Cf. BRASIL. Ministério da Cultura. Cinemateca brasileira. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br/jornada/filmes_japones_texto2.html>. Acesso em: 14 mar. 2009.

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pelo estúdio Fukuhodo e exibidas no Teatro Imperial Teikokukan, no bairro de Asakusa, em

Tóquio (GAN, 2009).

A novidade motivou os desenhistas japoneses, e os primeiros desenhos animados

nipônicos começaram a ser produzidos ainda na década de 1910 - muitas vezes, por iniciativa

individual de desenhistas. Em 1913, Seitaro Kitayama, a partir de seus primeiros desenhos em

papel e nanquim, conseguiu produzir alguns curtas-metragens, tais como: Saru Kani Kassen

(A Batalha Entre o Macaco e o Caranguejo), de 1917, e Momotaro (O Menino-Pêssego), de

1918 (Figura 5). Ambos tinham por base as fábulas infantis japonesas (SATO, 2005).

Momotaro foi o primeiro desenho animado japonês exibido no exterior (na França).

Em tal período, a limitação de recursos materiais e financeiros do Japão leva os

autores a experimentar várias formas de baratear os custos da produção, o que influenciaria as

características dos desenhos animados, como, por exemplo, o autor Oten Shimokawa, que em

1917, fotografou desenhos feitos em giz em uma lousa para produzir seus experimentos de

animação. No mesmo ano, Shimokawa inaugura a relação entre mangás e animação – que no

futuro viria a se fortalecer – e após certo sucesso em tiras de jornais, lança Imokawa Muzuko

Genkanban no Maki (O conto da zeladora Muzuko Imokawa).

Figura 5 – À esquerda, imagem de A batalha entre o Macaco e o Caranguejo, de Seitaro Kitayama (1917); À direita, representação de Momotaro, (1918).

De acordo com Sato (2005), os anos 1920 foram marcados por uma grande evolução

técnica na animação japonesa, sendo que em 1925, tem-se o lançamento de Uba Sute Yama

(A montanha das idosas abandonadas), produzido por Sanae Yamamoto (cujo nome original

era Zenjiro Yamamoto). Foi o primeiro drama animado japonês, que tinha como tema o

respeito e o cuidado com os idosos – uma espécie de versão curta-metragem em desenho do

filme Narayama-bushi ko (A balada de Narayama), lançado em 1983. Yamamoto produz uma

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série de filmes de animação de tema educativo, e entre suas obras mais representativas, estão:

Usagi to Kame (O Coelho e a Tartaruga, de 1924) e Nippon ichi no Momotaro (Momotaro, o

número 1 do Japão, de 1928), (Figura 6).

Figura 6 – O Coelho e a Tartaruga (1924), figura à esquerda, e Momotaro, o número 1 do Japão (1928), à direita.

Outro pioneiro da produção de desenhos animados foi Noburo Ofuji, sendo seu

primeiro filme Baguda-jo no tozoku (O ladrão do castelo de Baguda, de 1926). Ofuji também

realizou vários filmes de animação com silhuetas, como, por exemplo, Kujira (A baleia), de

1927, e Osekisho (O inspetor da estação), de 1930 – este último, o primeiro desenho animado

sonoro japonês. Em 1937, o mesmo autor criou o primeiro desenho animado colorido

chamado Katsura Hime (A Princesa Katsura).

Ainda em 1927, Yasuji Murata produziu pela primeira vez no Japão, uma animação

nos mesmos métodos das animações americanas: desenhos sobre celulóide e full animation,

fotografando vinte e quatro imagens por segundo. A obra em destaque foi Tako no Hone (Os

ossos do polvo) (SATO, 2005).

Na década de 1930, o crescimento do regime militar até o final da II Guerra Mundial,

influenciou todo o aspecto da vida cotidiana e cultural do Japão. O governo passou a controlar

os estúdios de cinema, de animação e de propaganda. Durante a guerra contra a China, em

1933, todos os cinemas foram obrigados a exibir filmes e desenhos de caráter educacional

militar e propaganda pró-guerra, e animações americanas, como, por exemplo, Betty Boop e

Mickey Mouse, que até então eram muito populares entre os japoneses, foram proibidos.

Porém, apesar da censura e falta de liberdade de expressão, foi no período militar que a

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animação japonesa mais evoluiu tecnicamente, graças ao incentivo financeiro do governo para

a produção do referido material (SATO, 2005).

Assim, tem-se naquele período a minissérie Sankichi Saru (O macaco Sankichi),

produzido por Mitsuyo Seo, entre 1933 e 1935, ilustrando os acontecimentos da época. Na

década seguinte, mais precisamente em 1943, é produzido o primeiro longa-metragem de

animação japonesa pelas mãos de Seo, a qual é chamada de “Momotaro no Umiwashi“, que

retrata a marinha japonesa e sua posição face ao ataque a Pearl Harbour na II Guerra Mundial

(Figura 7).

Figura 7 – Momotaro no Umiwashi (1943): longa-metragem de animação japonesa que retrata a marinha japonesa durante a II Guerra Mundial.

Com o fim da II Guerra Mundial, o Japão sofreu imediatamente um processo de

desmilitarização, e entre as consequências, deu-se a censura em relação ao material

nacionalista ou de propaganda bélica, exatamente o contrário da realidade anterior (LUYTEN,

2005). As mudanças promovidas pela ocupação americana em 1945, transformariam

drasticamente a economia e a cultura do Japão, influenciando até o idioma: antes da influência

norte-americana, os japoneses utilizavam a palavra “doga” (imagens em movimento) para

filmes e desenhos animados. Após tal período, o termo foi substituído pela expressão anime, a

fim de designar os desenhos animados da década de 1950 (SATO, 2005).

Diante da urgência na reestruturação da economia e a política do país, a animação

japonesa (que ainda não era vista como potência industrial) teve sua produção praticamente

interrompida, uma vez que as matérias primas, como, por exemplo, o celuloide, as tintas e os

filmes, eram importados, tornando aquela atividade praticamente inviável devido aos altos

custos ali existentes.

Foi um período em que o povo japonês procurou assimilar o modo de produção

americana e, aos poucos, foi se tornando autossuficiente, agregando a influência vinda do

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exterior a elementos já existentes na sua cultura. Durante anos, o Japão consumiu o que foi

produzido nos Estados Unidos da América (EUA), desenvolvendo aos poucos um estilo

japonês de produzir animação. Os estúdios japoneses aprenderam muito ao observar o estilo

de produção criado na América e, embalados por nomes como Warner Bros e Walt Disney, os

estúdios começaram a se organizar no Japão.

Apesar das dificuldades do pós-guerra, na década de 1950, a produção de animação

apresentou uma melhora significativa. Em 1953, o diretor Noburo Ofuji, exibe no festival de

Cannes o curta-metragem Kujira (A Baleia), e, em 1955, ganha um premio no festival de

Veneza com a produção Yurei Sen (O Navio Fantasma).

Naquela década, o primeiro dos poucos estúdios japoneses a atingir real sucesso foi

Toei Animation Company, fundado em 1956. Era a entrada do Japão na animação

profissional.

No mesmo período, em 1958, Taiji Yabushita, produz a animação Hakujaden (A lenda

da Serpente Branca), pela produtora Toei Animation, sendo o primeiro longa-metragem

colorido (Figura 8). Tinha-se ali a história de um menino que se apaixona por uma menina

que, em outra vida, era uma serpente. Deu-se, então, o início ao desenvolvimento industrial da

animação no País (SATO, 2005, p. 33). Era o primeiro passo para uma nova fase da animação

japonesa, sobretudo, comercial.

Figura 8 –Anime Hakujaden (A lenda da Serpente Branca): o primeiro longa-metragem colorido, produzido por Taiji Yabushita, em 1958.

Muito discretamente, o estudio Toei seguiu a fórmula da Disney, tendo por base suas

criações em histórias populares do Oriente e da Europa, ao apresentar heróis que viviam em

companhia de encantadores animaizinhos. Depois da estreia e sucesso no Japão, as animações

foram distribuídos nos EUA, como se deu com o filme de animação Saiyuki (Alakazan, o

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grande) – um longa-metragem baseado em um conto chinês, lançado no Japão, em 1960. Foi

um dos primeiros filmes de animação a ser lançado nos EUA, em 1961. O desenhista Osamu

Tezuka, que já fazia sucesso com os mangás, foi nomeado diretor do filme pela Toei

Company, embora sua participação tenha sido mais para promoção publicitária. O filme não

fez muito sucesso, o que fez com que a animação japonesa na época desaparecesse das TVs

americanas. Porém, considera-se que a participação de Tezuka naquele filme tenha

contribuído para o seu interesse pela animação, levando-o a fundar o seu próprio estúdio, em

1961.

Naquele período de transformações, Osamu Tezuka adquire grande importância nas

produções de mangá. Conhecido como o pai do estilo mangá e inventor da moderna indústria

japonesa de mangás, o médico e artista inaugura, em 1950, o estilo de desenho conhecido

atualmente: personagens de olhos grandes e expressivos, inspirados nos traços de Walt Disney

(MOLINÉ, 2004). Tezuka fez experiências com o formato dos quadrinhos americanos e

desenvolveu um estilo ainda mais visual, enfatizando gestos e olhares. Para Susan J. Napier10,

o estilo mais visual aparece quando a “ação vazava para os quadrinhos adjacentes,

impregnando-os e possibilitando aos olhos do leitor mover-se de modo mais dinâmico, mais

rápido”. Também introduziu a narrativa longa nos mangás, composta por duzentas páginas, o

que levou a necessidade de segmentar as histórias em vários capítulos, da mesma forma como

ocorre nas novelas transmitidas pela televisão.

Neste sentido, Gravett (2006, p. 28) destaca que Tezuka foi um marco na história do

manga.

Ele foi o principal agente da transformação do mangá, graças à abrangência de gêneros e temas que abordou, à nuances de suas caracterizações, aos seus planos ricos em movimento e, acima de tudo, à sua ênfase na necessidade de uma história envolvente, sem medo de confrontar as questões humanas mais básicas: identidade, perda, morte e injustiça.

Vários títulos de mangá se destacaram em seu trabalho, a saber: Jungle Taitei (Kimba,

o leão branco), de 1950; Tetsuwan Atom (Astro boy), de 1952; Ribbon no Kishi (A Princesa e

o Cavaleiro), de 1953; entre outros.

Porém, foi o contato com Hanna-Barbera Television, no final dos anos 1950, que fez

com que Tezuka observasse o potencial mercado para animação oferecido pela televisão.

10 Entrevista de Susan Napier, pesquisadora de mangá e anime nos EUA, para o making of do DVD Animatrix.

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Estimulado novamente pelo Ocidente, aquele desenhista percebeu que a grande chance de

sucesso estava justamente na televisão, o que o levou a organizar, em 1961, o primeiro

estúdio japonês de animação para a televisão: o Mushi Productions. A partir daí, muitos de

seus mangás foram transformados em animação, contribuindo tanto na estética, técnica e na

temática, quanto na formação de uma indústria. Muito do que caracteriza o mangá inspirou a

composição do que hoje é a animação japonesa, como, por exemplo, os traços característicos

de ambas as mídias. Tezuka agregou aos quadrinhos as técnicas de enquadramento

cinematográfico e animação, que acabaram caracterizando o anime.

Sato (2005, p. 33, 36) define Osamu Tezuka como um divisor de águas nas duas

mídias: nos quadrinhos e na animação, e completa:

Ainda hoje é difícil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu tanto em técnica quanto em forma desde então, mas na essência nada de novo foi criado que não tivesse sido feito antes por ele. [...] – tudo o que hoje caracteriza o anime na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka.

As animações japonesas só chegaram à televisão em 1963, no formato de séries. A

primeira série de animação da televisão japonesa foi Tetsuwan Atomu (Astro Boy,

literalmente, “Poderoso Atomo”), baseado em um mangá de Osamu Tezuka produzido de

abril de 1952 a março de 1968 (Figura 9). Foi um dos primeiros sucessos envolvendo figuras

ligadas à tecnologia ganhando, posteriormente, diversas adaptações de animação para a

televisão. Por ter sido a primeira, tornou-se referência na área. As transmissões tiveram início

a partir de 1963, cujo sucesso deu origem à indústria japonesa de animação, com sucesso

instantâneo no Japão e fora do país, sendo o primeiro momento de internacionalização da

animação japonesa.

Astro Boy era uma pequena criança robô que tinha poderes especiais, mas que não

podia crescer como uma criança normal; tinha vontades próprias, qualidades humanas. Foi

criado por um cientista para ocupar o lugar do filho que morrera em um acidente

automobilístico.

Tezuka foi o primeiro produtor de animações a exportar séries para fora do Japão, ao

assinar, em 1964, um contrato com a rede de televisão norte-americana NBC. A partir daí,

outros estúdios japoneses tomaram o mesmo caminho, passando a exportar suas produções,

principalmente para a Europa (SATO, 2005).

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Figura 9 – Trabalho de Osamu Tezuka: a animação Tetsuwan Atomu (Astro Boy), foi lançada na televisão em 1963; reconhecidamente, um dos primeiros sucessos envolvendo figuras ligadas à tecnologia.

A partir da década de 1970, as animações japonesas se consolidam como ramo da

indústria de entretenimento do Japão. Naquele período, houve uma explosão de títulos com

robôs gigantes, denominados mechas (mékas), controlados por pilotos ou controladores que

entram nas máquinas para exercerem o seu controle. O discurso de muitas destas histórias

reside na possibilidade de uma integração entre o universo dos humanos e dos robôs, onde os

limites de cada um se encontram definidos por meio de graus variáveis de interação do

homem e a máquina. Entre estas, estão: Majingā Zetto (Mazinger Z), de 1972, e Groizer X

(Pirata do Espaço), de 1976, ambos criados por Go Nagai; Yamato (Patrulha Estelar), criado

em 1974, por Leiji Matsumoto; Mobile Suite Gundam, criado em 1979.

Nos anos 1980, através das produções de ficção científica exibidas em canais

japoneses a cabo, o gênero começa a se popularizar pelo mundo, a partir dos EUA, onde os

fãs de ficção científica passam a consumir avidamente tais animações – uma novidade no

gênero sci-fi. Na referida década, dá-se também uma retomada da produção da animação para

o cinema, como o lançamento do filme Akira, do diretor Katsuhiro Otomo, em 1988. Otomo

já era um consagrado desenhista de manga, quando lançou Akira, o que ajudou o seu

patrocínio e a parceria de vários estúdios para a criação do longa-metragem, que mesclou

animação computadorizada e tradicional em uma narrativa futurística cheia de violência.

A partir dos anos 1990, as animações japonesas experimentam uma explosão pelo

mundo e uma rápida penetração no mercado internacional, tornando-se popularizados com as

séries para televisão, sobretudo com Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball.

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Desde os anos 2000, devido à difusão da internet banda larga pelo mundo, a animação

japonesa é impulsionada a níveis inéditos de consumo. O desenvolvimento das novas

tecnologias eletrônicas foi capaz de otimizar a produção das animações e impulsioná-las

através da forma globalizada de consumo por meio da internet, elevando o status da animação

japonesa.

Devido à tal expansão, surgiram no Japão, grandes estúdios, bem como grandes

diretores. O maior exemplo é o Studio Ghibli, fundado em 1985, por Hayao Miyazaki, ex-

estagiário da Toei Company. Miyazaki produziu vários longas, séries de TV e Original Vídeo

Animations (OVAs– animação produzidas para a distribuição em vídeo, não para o cinema,

nem para a televisão) de sucesso. No ocidente, Miyazaki ficou conhecido por duas de suas

belíssimas obras de animação – Sen to Chihiro No Kamikakushi (A Viagem de Chihiro), de

2001, e Hauru No Ugoku Shiro (O Castelo Animado), de 2004 (Figura 10). Ambas

concorreram ao Oscar de melhor animação, sendo que a primeira conquistou o prêmio.

Figura 10 – À esquerda: A Viagem de Chihiro, lançado em 2001, ganhou o Oscar de melhor animação da Academia norte-americana. À direita: O Castelo Animado, lançado em 2004.

No Brasil, as animações japonesas ficaram mais conhecidas desde os meados dos anos

1980, quando algumas emissoras de televisão começaram a exibir séries como Speed Racer,

Zillion e Candy Candy. Porém, foi com a exibição da série de animação Os Cavaleiros do

Zodíaco, nos anos 1990, pela Rede Manchete, que a animação japonesa começou a ganhar

espaço, abrindo as portas para outros sucessos do Japão, como, por exemplo, Sailor Moon,

Dragon Ball, entre outros, que começaram a ser exibidos no Brasil, tanto em emissoras de

televisão aberta como fechada (FARIA, 2007).

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32

Exemplos à parte, devido à grandiosidade da produção, a animação japonesa tornou-se

um produto de exportação, apresentando características próprias, algumas das quais merecem

destaques.

Quando se fala em animação japonesa, logo se recorda de olhos grandes e brilhantes,

corpos longilíneos e cabelos coloridos e espetados. A utilização de ângulos de câmera dando

ênfase à dramaticidade das relações sociais intensifica a proximidade entre o leitor e o

universo psicológico das personagens, potencializando gestos ou olhares. Segundo Ortiz

(2000, p.165), foi um resultado de aperfeiçoamento de técnicas cinematográficas adaptadas ao

papel, por parte dos desenhistas, permitindo que as histórias em quadrinhos e animação

japonesas utilizassem um conjunto de técnicas, filmadas com trilho, para dar a impressão de

movimento, planos longos e ângulos diferenciados das câmeras.

Outra característica marcante das séries de animação japonesa, bem diferente da

maioria das animações ocidentais, é a serialização, ou seja, a história continua de um capítulo

para outro e tem fim, sendo muitas vezes exibidas em temporadas, como as sitcom11

ocidentais, por exemplo.

Além da organização em séries, nas histórias das animações e mangás, o tempo não

para. Diferentemente dos desenhos e quadrinhos americanos, nos quais os heróis têm sempre

a mesma idade e as histórias podem não se alterar com o tempo, sendo até intermináveis, nas

produções japonesas, as histórias acabam. E ainda, os personagens sofrem os efeitos do

tempo, como em Dragon Ball, em que o personagem Goku começa criança, cresce, casa, tem

filhos, envelhece, e, por fim, morre (FARIA, 2007).

Rocha (2008), em seu estudo sobre a arte da animação, atenta para o fato de que as

animações japonesas e mangás possuem um fluxo narrativo alongado em vários capítulos ou

episódios, possibilitando um amadurecimento e desenvolvimento psicológico dos

personagens conforme a história se desenvolve.

Além do padrão geral das animações japonesas e mangás descritos, dependendo da

imaginação do artista criador, os personagens podem apresentar coloridos nos olhos

(vermelho, amarelo, lilás) e nos cabelos, o que possibilita, muitas vezes, identificar os autores

pelo estilo de seus traços, como os de Hayao Miyasaki, autor dos longas-metragens A viagem

11 Sitcom, abreviatura da expressão inglesa situation comedy ("comédia de situação", em uma tradução livre). É um estrangeirismo utilizado para designar uma série de televisão com personagens comuns, onde existem uma ou mais histórias de humor encenadas em ambientes comuns, tais como: família, grupo de amigos, local de trabalho etc.

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33

de Chihiro e O Castelo Animado; Akira Toriyama, autor de Dragon Ball; e, Hideaki Anno, de

Evangelion.

Acerca dos chamativos olhos dos personagens de animação, Freitas (2010, p. 3)

descreve:

A estética do anime é singular. Olhos grandes e expressivos chamam a atenção. O porquê disso, segundo especialistas, é que os olhos são considerados o espelho da alma. Assim sendo, os olhos do desenho devem refletir o que vai por dentro do personagem, ou simplesmente aquilo que ele está sentindo.

Para a animação japonesa, o papel do protagonista ou dos protagonistas, é

fundamental, pois, geralmente, é a partir do protagonista que se desenrolam os conflitos ou se

fixam os objetivos das jornadas fictícias. Como explica Goto (2012), em geral este herói é

movido por uma grande aspiração, que lhe possibilita mostrar sua determinação e valor.

Cada indivíduo traz um conjunto de valores bem construídos. Eles têm objetivos,

ambição, esperança, sonhos e força de vontade para lutar, criando uma identidade entre o

espectador e o personagem. Por mais que o personagem seja irreal ou fictício, com cabelos

azuis, olhos lilás sem pupila, corpos exageradamente alongados, os telespectadores se

identificam com os mesmos, pois estes apresentam emoções e vivências comuns de cada

pessoa. É o que acontece, por exemplo, em Dragon Ball, Pokemon, Naruto, e o piloto Shinji

em Neon Genesis Evangelion, entre muitas outras animações.

Na reflexão sobre a caracterização da animação japonesa, Freitas (2010 apud LEITE,

2011, p. 76) relata: “O realismo dado à retratação da vida é outra característica marcante. Isso

porque o sofrimento é visto pelo povo japonês como algo a ser enfrentado”. E ainda: “O

personagem deve vencer as adversidades, seus próprios medos e fraquezas”. Tal fato pode ser

observado em Neon Genesis Evangelion, quando o piloto Shinji é obrigado a pilotar um robô

chamado EVA, mesmo sem nunca ter exercido a função de piloto e, ao mesmo tempo,

enfrentar a autoridade do pai.

Neste sentido, é comum, em muitas histórias, os personagens serem massacrados ou

judiados, desacreditados e, às vezes, até humilhados, mas são persistentes e não desistem. De

acordo com Rocha (2008), o que chama a atenção do espectador é que, independente dos

assuntos abordados na animação e no mangá, os aspectos sociais, emocionais e

comportamentais das pessoas são refletidos: as relações afetivas e profissionais, problemas

sociais, tais como: desemprego, moradores de rua, bullying, vícios, violência, preconceito, etc.

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E ainda, o fato da maioria das histórias se passarem em locais comuns, como, por exemplo,

escola, ruas, ambientes de trabalho, retratando hábitos corriqueiros como levantar cedo,

estudar, ir para o trabalho, adormecer em trens e metrôs etc., cria uma aproximação e

identidade com o espectador.

Portanto, ter conhecimento, das tradições, crenças, hábitos e valores japoneses é um

fator que permite melhor usufruir e entender este tipo de produção. Conforme ressalta Sato

(2005, p. 41),

[...] embora os animes sejam considerados ‘produto de exportação’ japonês, [...] trazem características próprias que para serem usufruídas e apreciadas em sua globalidade dependem cada vez mais de um profundo conhecimento das tradições, crenças, hábitos e valores dos japoneses, mesmo passando por adaptações para se adequarem ao público de outros países.

Diante do exposto, apesar da influencia ocidental, a animação japonesa reflete muito o

espírito da tradição cultural milenar do povo japonês.

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1.2 As animações japonesas e a cultura robótica: entre os karakuri ningyo, mechas e a

robótica moderna no Japão

Susan Napier, pesquisadora da Universidade de Texas, EUA, em seus estudos sobre

animação japonesa, apresenta a classificação que adotaremos para examinar o gênero. De

acordo com Napier (2001), as animações japonesas podem ser resumidas em três grandes

grupos: festivos, épicos e apocalípticos. As animações classificadas pela autora como festivas,

abrangem produções, cujo tema principal gira em torno de acontecimentos cotidianos, em sua

maior parte ocorridos, no que poderia facilmente ser identificado pelo espectador como

contemporâneo a ele. No caso dos épicos, de uma forma geral, a história se dá no período

correspondente ao Japão Feudal, envolvendo personagens dessa época, como por exemplo,

guerreiros samurais, mercenários, camponeses. E, as animações classificadas como

apocalípticas são, em sua maioria, acontecimentos que ocorrem em futuros não muito

distantes, onde há sempre situações relacionadas à ciência e tecnologia, classe em que se situa

a série de animação Neon Genesis Evangelion, objeto deste estudo.

Na história do Japão, os desastres naturais, ocupações ou ataques de países

estrangeiros, são acontecimentos que estão sempre presentes. Como no mundo real, em clima

de constante reconstrução, nas produções audiovisuais, o país exporta para o mundo

narrativas que abordam com frequência o apocalipse ou a humanidade que luta para

sobreviver em um mundo pós-apocalíptico, onde a capital Tóquio é constantemente atacada

por criaturas malignas, robôs gigantes, grandes catástrofes naturais ou até mesmo doenças que

aniquilam os humanos da terra (ZAMINELLI, 2011).

O termo “apocalipse” vem do grego apokalypsis, e para o cristianismo significa o

último livro do Novo Testamento, no qual, se encontram registradas as revelações sobre o fim

do mundo, feitas a João Evangelista. Pode significar também revelação, profecia12.

Historicamente, o Japão conseguiu provar para o mundo a capacidade de aprender,

reinventar e desenvolver. O lema “Oitsuke, Oikose”, ou seja, “Alcançar, Superar” da Era

Meiji (1868 – 1912), quando ocorreu a abertura dos portos japoneses, parece estar presente

em muitos episódios sofridos pelo país.

Com a explosão das bombas atômicas, em Hiroshima e Nagazaki, ocorridos em 1945,

cidades inteiras foram devastadas muito rapidamente, se aproximando a relatos bíblicos que

preveem a destruição da humanidade.

12 Significado retirado do Dicionário Houaiss, 2001.

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No Japão, a temática do apocalipse aparece, com frequência, em vários gêneros e

linguagens, particularmente, nas obras cientifico-ficcionais. Para Matthews (2003-2004), há

uma corrente de pensamento que defende a existência de uma íntima ligação entre a maneira

japonesa de entender o apocalipse e os episódios de destruição ocorridos no país. A visão

diferenciada dos japoneses em relação aos eventos apocalípticos residiria, também, na

experiência de reconstrução do país vivida logo após a II Guerra Mundial. O povo japonês

vivenciou a experiência de ver tudo destruído e, depois tudo organizado e reconstruído, graças

às intervenções tecnológicas e humanas, o que possibilitou uma elevação do Japão ao status

de potência tecnológica. Obviamente, como lembra Amatte Lopes (2006, p. 30), que “a

experiência de reconstrução não é privilégio do povo japonês, mas ser atacado por bombas

atômicas ainda é uma exclusividade da nação japonesa”.

A convivência com devastações e, a presença marcante da tecnologia no cotidiano

japonês, deve ter contribuído para a aceitação dessas situações, obtendo uma grande

importância nas histórias apocalípticas.

As produções do subgênero Apocalíptico englobam narrativas que estão relacionadas

com a possibilidade de um “fim dos tempos”. Amatte Lopes (2006, p. 30), propõe dois tipos

de animações japonesas que tratam do apocalipse:

A primeira trata de uma destruição iminente onde ainda existe a possibilidade de que esta seja evitada. Na maioria dos casos, assim como nas histórias do subgênero Mecha, o molde do arquétipo do herói, envolvendo a busca por redenção e aprendizado, são motes dessas narrativas. O segundo tipo de abordagem lida com um fato já consumado, enfocando as mudanças causadas pelo evento destrutivo, a adaptação dos sobreviventes e, em geral, uma tentativa de reconstrução daquilo que foi destruído.

Na animação japonesa existem vários títulos que abordam mundos destruídos ou

ameaçados de destruição. Um grande exemplo é a animação Akira (lançado em 1988 pelo

diretor Katsuhiro Otomo), publicado primeiro como mangá, em 1982. A narrativa se passa em

um mundo pós-apocaliptico, no ano de 2019. A cidade de Tóquio é reconstruida após a III

guerra mundial. A capital Neo-Tóquio, vive entre a violência de gangues adolescentes, uma

sociedade com uma juventude alienada e um governo corrupto. Em meio à decadência, a

cidade é ameaçada por jovens com poderes sobrenaturais (Figura 11).

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37

Figura 11 – Akira se passa no ano 2019, após a III Guerra Mundial, na cidade de Tóquio, reconstruída após a II Guerra Mundial.

De acordo com Napier, as animações classificadas como apocalípticos abordam

também, temáticas ligadas à ciência e à tecnologia, que são na verdade, herança da ficção

científica, um gênero pertencente à literatura e às artes cinematográficas (AMATTE NETO,

2006).

Neon Genesis Evangelion é uma série de animação, que apresenta uma temática sobre

o apocalipse, na qual, estão presentes dois grupos ligados ao binômio ciência e tecnologia. As

figuras dos cientistas e dos membros de sua equipe estariam na série, materializando uma

imagem de ciência, enquanto que todos os equipamentos utilizados e produtos frutos de seus

trabalhos (computadores, máquinas, ciborgues, clones etc.), seriam a representação da

tecnologia dentro da animação.

Para Keller (1992, p.25), “o que diferencia a tecnologia da ciência é que a ciência é

sobre descobrir e explicar e a tecnologia é sobre projetar e fazer. Assim, a tecnologia

relaciona-se com a execução e método, entretanto, a tecnologia moderna pede emprestada à

ciência as bases de seu conhecimento”.

Apesar do enquadramento de Neon Genesis Evangelion no grupo dos apocalípticos, a

série também se insere na subdivisão mecha13 (meka) da classificação proposta pelas

produtoras. Mecha é uma subclassificação que engloba produções com a presença de robôs

gigantes controlados por um piloto ou controlador, comuns em algumas obras de ficção

13 Classificação utilizada pelas produtoras dos animes e mangás. Tem uma função mais comercial apresentando maior quantidade de classes, divididas por temática e faixas de público, separadas por sexo e faixas de idade.

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científica, mangá e animação. Uma grande parte das animações japonesas, apresenta mechas

de tamanho gigantesco.

De acordo com Matthews (2003-2004), embora, a animação japonesa e a robótica

tenham se originado e desenvolvido em caminhos diferentes, eles formam uma simbiose

única e multifacetada. Um aspecto interessante da cultura japonesa em relação à essas

representações, é que, ao contrário do ocidente, que demonstra mais dificuldade em aceitar a

crescente ocupação das máquinas, o Japão demonstra maior aceitação dos aparatos

tecnológicos, incluindo os robôs. O autor refere também, que o público japonês demonstra

certo fascínio e um sentimento de que a convivência com as máquinas e robôs, faz parte do

cotidiano. Isso, conforme o autor, possibilita a criação de uma série de imagens das creatures

mechatronics, termo inglês que dá origem ao nome dado aos robôs que aparecem nas

animações japonesas.

O grande desenvolvimento tecnológico no Japão ocorreu após a II Guerra Mundial,

nas décadas de 1950 e 1960, período que coincide com o momento em que os valores

culturais estão sendo revistos e a cultura pop japonesa adquire força, tornando-se cada vez

mais difundida pelo mundo e a tecnologia e seus aparatos passam a fazer parte de várias

linguagens, inclusive da animação. A partir desse período começam a ser representados nas

animações, elementos ligados à ciência e a tecnologia: cientistas, laboratórios, computadores

de última geração e os robôs e suas variantes.

Essas imagens fazem o público imaginar que o interesse do Japão pelo mundo da

robótica começou no período pós guerra. Entretanto, existe na cultura japonesa um histórico

da relação com os robôs desde o século XVII, representado pelo Karakuri ningyo,

considerado o primeiro robô japonês.

Karakuri é uma palavra japonesa de duplo sentido. Pode significar “mecanismo” ou

“truque”, seria um mecanismo feito com o intuito de enganar, como os que os ilusionistas

usam e ningyo, por sua vez, é escrito pela composição de dois caracteres, uma para “pessoa” e

outro para “forma”, seria algo como “em forma de gente”. Literalmente obtem-se uma

composição, que pode servir para definir autômato humanóide: um mecanismo com a forma

de uma pessoa. Mas popularmente, este nome composto pode simplesmente ser traduzido

como “boneco ou fantoche”. Karakuri ningyo tem como principal objetivo, entreter e causar

surpresa nas pessoas, através dos seus gestos, acrobacias ou truques de mágica.

Os primeiros documentos desses bonecos datam do século XVII e constam de

relíquias e anotações sobre sua construção, mas existem histórias de mecanismos em forma de

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bonecos desde o final do período Heian (794 – 1192), e, através de uma lenda do início do

século XII. Conta-se através dessa lenda que um príncipe já idealizava a criação de um

karakuri, em um período de dificuldades pelo qual passava sua comunidade. O príncipe

mandou criar um grande boneco capaz de carregar dois baldes cheios de água, um em cada

braço, para irrigar a plantação arruinada pela seca. A comunidade se uniu e se revezava em

encher os baldes para que o boneco pudesse realizar a sua proeza. Não se sabe a veracidade

desse fato, mas isso mostra a relação muito antiga, e que aproxima os japoneses da robótica14.

No Japão, o karakuri é visto como uma arte. Os bonecos são feitos de madeira e de

forma totalmente artesanal. Receberam uma grande influência dos relógios mecânicos levados

por missionários portugueses para o Japão e se popularizaram durante o século XVI. Embora

estes bonecos não sejam títeres (boneco que se move por cordéis e engonços), eles apresentam

características similares às marionetes, pois são movidas através de dispositivos mecânicos

como: molas, água, ar, areia e mercúrio. Havia também, aqueles movidos à corda e espetos,

recebendo o auxílio humano. Alguns são bonecos autômatos15, ou seja, fantoches ou

marionetes movidos por um mecanismo semelhante ao de relógios.

Pouco tempo depois da criação do karakuri ningyo, o Japão passou por sua época de

isolacionismo, proibindo todo o contato e influência estrangeira. Apesar disso, a tradição do

karakuri continuou. Além disso, utilizando os mecanismos do relógio, que o Japão conhecia

da China, e que também, havia sido importado do ocidente, houve um desenvolvimento na

fabricação, tornando as bonecas cada vez mais complexas, com capacidade de executar uma

variedade cada vez maior de tarefas e divertimentos.

O karakuri ningyo pode ser dividido em três grupos de acordo com suas funções: os

Zashiki karakuri, Dashi karakuri e Butai karakuri.

O primeiro deles são os zashiki karakuri, utilizados em casa para funções domésticas

simples, normalmente para impressionar os visitantes. A primeira boneca karakuri e o modelo

mais famoso é o Chahakobi ningyo, usado para carregar chá. Quando o chá era colocado na

bandeja, o mecanismo era ativado e a boneca começava a andar em direção à visita para servi-

la. Depois que o visitante bebesse o chá, ele colocava o copo de volta na bandeja, o que

novamente ativava o bonequinho, fazendo com que ele voltasse e devolvesse a xícara ao

anfitrião (figura 12). Esta boneca karakuri realiza seis movimentos distintos, utilizando-se

14 Informação obtida através do site KARAKURI.INFO – Karakuri Origins. Disponível em: http://karakuri.info/. Acesso em set/2012. 15 Autómato, em termos técnicos, indica um engenho que consegue realizar determinada tarefa de forma independente, uma vez acionado.

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40

apenas de uma mola espiral. Os Zashiki karakuri são considerados os de mecânica mais

complexa, e o ápice seria o Yumihiki Doji, uma boneca arqueira, que atirava flechas em um

alvo (Figura 13).

Os Dashi karakuri eram usados nos festivais religiosos. Tinham a simbologia de

divindades e, até hoje, continuam sendo utilizados durante os Matsuri (Festivais), sendo

conduzidos em cima de carros alegóricos. No país todo, há mais de 200 carros alegóricos e

mais de 600 bonecos desse tipo.

Figura 12 – Chahakobi ningyo: a boneca karakuri usada para carregar chá. À direita: detalhes da estrutura do Karakuri ningyo, sem os trajes típicos.

Outros tipos são os Butai karakuri feitos para apresentações teatrais conhecidas como

ningyo jyoururi ou ningyo bunraku, e foram responsáveis por popularizar os bonecos entre o

povo japonês da época (Figura 13).

Além de apresentações como as danças, havia também acrobacias e truques de mágica,

ganhando um ar de magia e misticismo. Consta que alguns bonecos aparentam ter vida,

embora tenham movimentos mecânicos, possivelmente devido à magia, lendas e mitologia

que o envolvem16.

16 Informação extraída do site KARAKURI.INFO – Butai Karakuri. Disponível em: http://karakuri.info/. Acesso em set/2012.

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Figura 13 – À esquerda: Zashiki Karakuri, o boneco arqueiro. No centro: Dashi Karakuri, usadas em festivais religiosos; à direita: Butai Karuki preparados para apresentações teatrais.

Entretanto, a popularidade do universo dos bonecos karakuri ganhou mais força na era

Edo, mais precisamente em 1662, quando Oumi Takeda criou o teatro de bonecos e começou

a fazer apresentações teatrais em Doutonbori, província de Osaka, que ficou conhecido como

Takeda Karakuri. As apresentações fizeram grande sucesso e por isso se estenderam por

muitos anos, até 1772, quando fechou o último teatro para apresentação de karakuri ningyo

(HILLIER, 1976, p. 36).

A forma como o karakuri ningyo executa os movimentos de dança está diretamente

relacionada com os gestos e movimentos tradicionais associados às diversas artes teatrais do

Japão, entre as quais o bunraku17 e o kabuki (KUSANO, 2008). Muitas das características da

arte de representar foram também absorvidos pelo teatro de bonecos kuruma ningyo que será

abordado no tópico seguinte.

Não é a intenção deste trabalho, investigar as artes teatrais japonesas, mas sim

observar que existe uma relação destas com as formas de expressão e movimentos

desempenhados no teatro de bonecos autômatos karakuri.

O karakuri ningyo representa papel importante no desenvolvimento dos bonecos

mecânicos, e estaria próximo dos atuais bonecos mecanizados ou robôs.

Na época em que o karakuri ningyo foi criado, não existia nenhum manual do gênero

no mundo para criação de máquinas com forma humana. Nesse sentido, Hanzo Hosokawa,

teve um papel importante no desenvolvimento desses bonecos com sua obra Karakuri-zui, o

livro mais antigo do Japão sobre o assunto, publicado em 1796, na era Edo, com explicações

detalhadas sobre o sistema de funcionamento dos karakuri ningyo.

17 Bunraku é o teatro de bonecos japonês.

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Abaixo, na Figura 14, são mostradas as ilustrações e detalhes das anotações dos

mecanismos internos de bonecos karakuri. Os diagramas são uma visão interna e do conjunto

de uma boneca que serve chá. O interior da boneca parece ter sido feito de madeira, fio e

materiais de mola.

Figura 14 – Detalhes do sistema de funcionamento interno do karakuri ningyo, ilustrados no livro Karakuri-zui.

Dentre os artesãos de karakuri, há que se destacar três principais: Hanzo Yorinao

Hosokawa, Benikichi Ohno e Hisashige Tanaka (considerado mestre das artes mecânicas

durante o período Edo e fundador da Toshiba). O karakuri era rodeado de um misterioso

segredo. Além dos seus criadores, não era permitido a mais ninguém ver seus mecanismos e

como eram construídos. Estes segredos eram vitais e o mestre dos mecanismos do karakuri

era visto como um trabalhador reservado e solitário.

Conforme observado, o karakuri era produzido utilizando-se a criatividade e a técnica

para gerar uma ação. No caso, seria um movimento, um dispositivo, algo que utilizasse o

meio como energia (gravidade, madeira, molas). Portanto, karakuri pode ser entendido como

um mecanismo que dirige uma máquina, e considerado uma das formas originais de robôs.

O objetivo de revisitar o karakuri ningyo foi evidenciar a longa relação da sociedade

japonesa com a robótica.

A tradição karakuri contribuiu diretamente para a modernização industrial do Japão,

manifestando-se também na cultura popular. Talvez isso explique, em parte, o porquê de certo

fascínio do público japonês pelo tema e o orgulho de tudo que se refere a tecnologia que

engendram diferentes linguagens como: o cinema, o mangá e a animação nos quais com muita

frequência, estão presentes os robôs gigantes.

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Na história da animação japonesa, encontram-se diversos títulos pertencentes à

classificação que envolvem robôs, porém, como o recorte deste projeto pretendeu contemplar,

especificamente, a série Neon Genesis Evangelion, foi dada maior ênfase à subdivisão mecha

da classificação proposta pelas produtoras. Fundamentalmente, são histórias que envolvem a

salvação da humanidade de alguma ameaça, terráquea ou não, através da utilização de robôs

capazes de amplificar os poderes de seus controladores.

A palavra mecha (メカmeka), se origina da abreviatura do termo inglês “mechanical”

(mecânico). Mecha é um estilo de animação bem popular no Japão, muito relacionado com a

ficção cientifica. No subgênero mecha, a figura do robô desempenha papel fundamental no

desenvolvimento das histórias, estabelecendo uma relação entre o robô e o piloto, que

funciona, na maioria das vezes, como controlador ou manipulador. Os personagens entram em

robôs gigantes ou máquinas, para enfrentar um inimigo desconhecido. Em geral, são histórias

que envolvem a salvação da humanidade de alguma ameaça através da utilização de robôs

capazes de amplificar os poderes de seus controladores. Essas máquinas podem diversificar-se

muito em tamanho, forma e aparência. A maioria são construções de humanoides (formato

antropomórficos), ou de animais gigantes, cujos principais oponentes, são monstros gigantes

ou outros mechas.

A primeira série de animação mecha foi Mazinger Z, produzida em 1972 por Go

Nagai. A história girava em torno de um robô gigante, controlado por um menino chamado

Koji, para lutar contra alienígenas enviados pelo Dr. Inferno. Mazinger Z tinha a capacidade

de desprender-se do garoto e disparar raios infravermelhos de seu peito. Com o decorrer das

séries, ele adquiriu novos poderes, entre os quais, a capacidade de voar.

Considera-se, no entanto, que a popularidade dos mechas, começou com o surgimento

da série Gundam, em 1979. A saga de Gundam é a série com robôs gigantes, criados para

lutar contra os malfeitores. No futuro distante, o planeta Terra evolui para uma situação de

superpopulação. Os continentes não suportam mais a quantidade de humanos, e a única

solução é lançar a população excedente em colônias autossuficientes pelo espaço. As

colônias, na verdade, são naves cilíndricas gigantescas, batizadas de Slides, movidas por

energia solar e dotadas de atmosfera, solo e gravidade próprias para a subsistência dos

humanos. Esta animação mudou o conceito de mecha, ao introduzir os robôs reais. Estes

desempenham papéis secundários, e o piloto representa uma função mais importante na

história. A série permitiu o desenvolvimento de uma mecânica possível de ser reproduzida

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em forma de brinquedos (Figura 15), na medida em que, executam os mesmos movimentos e

transformações dos robôs da série de TV (MENDES, 2006).

Figura 15 – Brinquedo do Gundam Wing Zero, robô da série Mobile Suite Gundam Wing, que como no desenho animado transforma-se em um avião.

Identifica-se, nas animações japonesas e nos mangás, diferentes tipos de robôs, como

por exemplo, os super robôs e o robô real. O super robô é um termo usado, no mangá e

animação, para descrever um robô gigante, super-potente, extremamente resistente a danos.

As histórias são centralizadas nos robôs, dotados de personalidade e controlados à distância

pelos humanos, considerados seres inferiores. A primeira animação que utilizou o termo super

robô, para representar os padrões do gênero, foi Mazinger Z (Figura 16).

Figura 16 – Mazinger Z: Primeira série de animação mecha, produzida em 1972 por Go Nagai. Mazinger é um representante dos Super Robôs. À direita: Estátua do robô Mazinger Z no Japão.

Por outro lado, nas animações com robô real, os personagens normalmente pilotam

robôs exclusivos, criados especialmente para eles, e o foco, está nos personagens, com

48

Se Astroboy inaugurou, na década de 1960, as animações do gênero mecha, em 1979

estreou na TV japonesa Kidou Senshi Gundam (Mobile Suite Gundam) anime que mudaria o

conceito dos mechas ao introduzir robôs “reais”, ou seja, robôs que possuem uma mecânica

possível de ser reproduzida no mundo real, em brinquedos, na medida em que esses executam

os mesmos movimentos e transformações dos robôs da série de TV. Todos os desenhos

animados da família Gundam foram patrocinados por uma grande empresa de brinquedos

(figura 55).

Figura 55 – Brinquedo do Gundam Wing Zero, robô da série Mobile Suite Gundam Wing, que como no desenho animado transforma-se em um avião. (ART BOOK V, [199-?], p. 34-35)

O outro marco desse estilo corresponde exatamente ao objeto dessa pesquisa, a

série Neon Genesis Evangelion, que em 2005 completou 10 anos.

Em síntese, é possível montar o seguinte quadro resumo:

Page 45: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

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poderes psíquicos, ou habilidades sobre-humanas. O robô torna-se secundário, neste tipo de

animação. A primeira série a introduzir o robô real foi Mobile Suit Gundam (1979), que,

juntamente com The Super Dimension Fortress Macross (1982), formam a base do que mais

tarde foi denominado de anime robô real. (Figura 17).

Figura 17 – A popularidade dos mechas começou com a produção da série Gundam, em 1979. Foi a primeira série a introduzir a idéia de robô real, cujo maior foco está no piloto. No gênero mecha o piloto entra no robô para comandá-lo (círculo amarelo).

Outro marco do estilo mecha corresponde exatamente ao objeto desta pesquisa, a série

Neon Genesis Evangelion, lançada em 1995. Em Neon Genesis Evangelion, o piloto Shinji

comanda um robô gigante, chamado EVA, para destruir seres extra terrestres, os Anjos, que

invadem a terra para aniquilar a humanidade (Figura 18).

Figura 18 – À esquerda: robô gigante EVA comandada pelo piloto Shinji (superior à direita). A figura inferior à esquerda, é a representação de um Anjo que invade a terra para destruir a humanidade.

Page 46: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

46

Além dos mechas, algumas animações e produções audiovisuais envolvem seres mais

independentes que os robôs, sendo representados pelos androides. A palavra androide serve

para designar qualquer ser que tenha a forma de um homem. Entretanto, devido o seu uso em

várias obras de ficção científica, o termo passou a ser usado mais especificamente para

descrever robôs com aparência humana. Estes seres, com aparência humanoide, apresentam

autonomia, dispensando o piloto ou controlador, tornando-o algo parecido com uma

simulação, uma espécie de humano robotizado.

Exemplos destes seres são os androides, que aparecem no manga e na animação

Dragon Ball, de Akira Toriyama, conhecidos como Cell. Em Star Trek: The next Generation,

há um androide semi-humano chamado Data, que possui inteligência, porém ainda não

apresenta emoções (Figura 19).

Figura 19 – Cell, androide que aparece no manga e anime Dragon Ball (à esquerda), e Data, um androide semi-humano de Star Trek: the next generation. Possui inteligência, mas ainda não apresenta emoções (à direita).

O Japão é um dos países líderes em produção de robôs e a sua visão do século XXI

engloba a coexistência de humanos e robôs. Para os japoneses os robôs não constituem só

ferramentas industriais, acessórios domésticos ou brinquedos, mas também uma parte da

cultura, entretenimento e arte.

Nas últimas décadas, o campo da robótica tem sido estimulado pelos avanços

tecnológicos e está se tornando cada vez mais prevalente na sociedade, na indústria e nas

nossas casas.

Máquinas e robôs inteligentes estão se tornando cada vez mais comuns na atualidade,

com milhares de produtos fabricados, muitas vezes, com pouca ou nenhuma participação

humana, sendo manipulados por computadores inteligentes e máquinas.

Page 47: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

47

Cientistas japoneses construíram no ano de 2005, o que dizem ser o androide mais

parecido com humanos - a novidade que imita uma mulher ganhou o nome de “Repliee Q1”

(CHAMBERLAIN, 2005; WHITEHOUSE, 2005). Ela possui uma pele flexível de silicone,

ao contrário do plástico duro, usado em outros protótipos. Vários sensores e motores

permitem que ela se movimente de uma forma mais parecida com os humanos. A androide

pode mover as pálpebras e as mãos, como os humanos, e apresenta movimentos que simulam

a respiração (Figura 20). O professor Hiroshi Ishiguru, da Universidade de Osaka, projetista

da androide, afirmou que, um dia, os androides poderão enganar os humanos, levando-os a

pensar que são todos da mesma espécie. "Eu desenvolvi muitos robôs antes, mas percebi a

importância da aparência. Uma aparência semelhante à dos humanos dá uma forte presença ao

robô" (WHITEHOUSE , 2005).

Figura 20 – A Repliee Q1 possui uma pele flexível de silicone, move pálpebras e mãos como os humanos. Ao lado, o Professor Ishiguro enfatiza a importância da aparência de seus robôs.

Em entrevista publicada por David Whitehouse (2005), da BBC News website (British

Broadcasting Corporation), o professor Ishiguru explicou: "A Repliee Q1 pode interagir com

as pessoas. Pode responder ao toque. Fico satisfeito, mas ainda temos um longo caminho pela

frente", disse Ishiguru. O professor afirmou que poderá ser possível construir um androide

que se passe por humano, mesmo que seja por um período curto. "Um androide pode fazer

isso por um período curto, cinco a dez segundos. Entretanto, se selecionarmos

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cuidadosamente a situação, podemos estender este período para, talvez, dez minutos", disse.

"Mais importante, descobrimos que as pessoas se esquecem que ela é uma androide quando

estão interagindo. Conscientemente é fácil ver que ela é androide, mas, inconscientemente,

reagimos como se ela fosse uma mulher", acrescentou.

A mesma equipe já havia construído o androide Repliee R1, com aparência de uma

menina japonesa de cinco anos de idade. Ela fazia sinais com o braço e se movia em nove

direções diferentes. Possuía sensores, debaixo da pele do braço, que lhe permitiam reações

diversas, conforme as pressões impingidas.

De todos os países desenvolvidos, o Japão detém o recorde de possuir os robôs mais

avançados do setor industrial. As empresas japonesas continuam a deter um monopólio na

produção de robôs industriais, sendo utilizados em fábricas ao redor do mundo. Robôs

humanoides, mais realistas, agora capazes de cantar, dançar e atuar, são utilizados como

exemplos de proezas tecnológicas do Japão. Robôs à disposição do público são, cada vez

mais, capazes de realizar tarefas comuns, em casa e no escritório. Alguns até possuem a

capacidade de cumprir tarefas como, por exemplo, de atendentes, recepcionista e, os

protótipos projetados para cuidar de idosos e deficientes físicos, têm mostrado resultados

interessantes (JAHDHAMI, 2011).

O envelhecimento da população levou a um aumento da demanda por trabalhadores

em saúde e enfermagem - papéis que muitos no Japão não querem exercer – que poderão ser

preenchidos por robôs.

Um dos exemplos mais recentes é um robô fabricado pela Panasonic, capaz de lavar o

cabelo de idosos (PEREIRA, 2012). Outro exemplo é a cama robótica - a RoboticBed®

(Figura 21). Nasceu como uma cama elétrica, mas agora já incorpora funções avançadas, para

auxiliar uma pessoa a passar da cama para uma cadeira de rodas, e dela de volta para a cama,

sem auxílio18. Vários protótipos de exoesqueleto robótico continuam a ser testados,

destinados a aumentar a força física e mobilidade dos idosos.

Além da criação de robôs com capacidade de realizar tarefas cotidianas, a criatividade

dos japoneses, os levaram a inventar um robô que rege uma orquestra sinfônica19 e robôs

18 Informação publicada pela Redação do Site Inovação Tecnológica, em 10 de outubro de 2011. Disponível em: http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=panasonic-robos-hospitais&id=010180111010 Acesso realizado em 14 de maio 2013. 19 Informação publicada no site da UOL-Entretenimento-música, em 14 de maio de 2008. Robô da Honda rege Sinfônica de Detroit. Disponível em: http://musica.uol.com.br/noticias/ap/2008/05/14/robo-da-honda-rege-sinfonica-de-detroit.htm. Acesso realizado em 22 maio 2013.

Page 49: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

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músicos que tocam diversos instrumentos e, juntos, formam uma banda de jazz20 (Figura 22). Figura 21 – À esquerda: Robô que lava cabelo - 24 dedos robóticos oferecem a melhor massagem que se pode obter de um robô. À direita: Cama robótica - O principal objetivo desta cama é dar autonomia a doentes e idosos que vivem sós.

Figura 22 – As figuras superiores representam o robô Asimo, da Honda, regendo a Orquestra Sinfônica de Detroit. Abaixo: apresentação de robôs músicos que tocam jazz, desenvolvidos pela fabricante de carros Toyota.

20 Informação publicada no site Japão em Foco em 4 de fev de 2012. Robôs músicos que tocam jazz – Só no Japão! http://www.japaoemfoco.com/robos-musicos-que-tocam-jazz/#ixzz2VxG8Auex Disponíve l em: ht tp : / /www.japaoemfoco.com/robos -musicos -que - tocam - jazz / . Acesso rea l izado em22 maio 2013.

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O Japão está chegando, cada vez mais, perto de atingir metas que só existiam na ficção

científica. Embora os robôs sejam encontrados em diferentes culturas ao redor do mundo, os

japoneses têm sua própria cultura de lidar com os robôs. A tecnologia foi adotada de diversas

formas pelo povo japonês, entretanto, os robôs ganharam lugar muito especial em seus

corações, tornando-se parte permanente da cultura japonesa (Figura 23).

De acordo com Tymothy Hornyak, há uma grande diferença na maneira como os

japoneses se aproximaram dos robôs. Os nipônicos sentem uma vontade irresistível de tratá-

los como seres, em vez de apenas máquinas sem vida, tornando-os parceiros (HORNYAK,

2006 apud JAHDHAMI, 2011).

O artigo de Jonathan Skillings “No Japão, os robôs também são pessoas”, reflete o

ponto de vista social, e a vontade do povo japonês em ter robôs como seus parceiros de vida

diários (SKILLINGS, 2006 apud JAHDHAMI, 2011).

Figura 23 – As pessoas interagem com os robôs como se fossem humanos. Os japoneses sentem uma vontade irresistível de tratá-los como seres humanos, em vez de apenas máquinas sem vida.

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51

Boa parte das pesquisas afirma que, a principal razão da aceitação da tecnologia

robótica pelos japoneses são devidas às religiões predominantes no Japão: o Xintoísmo e o

Budismo21. No Xintoísmo, a crença no animismo em objetos inanimados se manifesta através

do conceito de kami (deuses). O mundo da natureza tem significados sagrados, representando

deuses, que possuem poderes, como: espíritos da natureza, protetores ancestrais e divindades.

Todos esses elementos são passíveis de possuírem sentimentos, emoções, vontades ou

desejos, e até mesmo inteligência. O principio básico do Xintoísmo evoca harmonia com a

natureza, que é considerada sagrada. Desta forma, a conexão entre a humanidade e a natureza,

que provém do Xintoísmo, e o cultivo das ações positivas sobre a vida humana proporcionado

pelo Budismo, ajudam a explicar a aceitação, pelos japoneses, de robôs em seus meios e a

busca pela construção de máquinas humanoides (GERACI, 2006).

Na cultura japonesa, portanto, a humanidade e a natureza são processos contínuos.

Diferente do ocidente que considera a natureza e a humanidade como uma dicotomia, para os

japoneses, todas as coisas são vivas, todas as coisas são conscientes, ou todas as coisas têm

alma.

Por esse motivo, na tradição japonesa, a relação entre o ser animado e inanimado, o

homem e a máquina, consegue ser explicado através do conceito de mono, onde a presença de

um já pressupõe a presença do outro. O humano e o maquínico se mesclam para a

personificação de um corpo único, em que não se consegue identificar as fronteiras entre o

homem e a máquina. Na religião e na filosofia japonesa, o corpo não pode ser separado da

alma e portanto, o corpo não é descartado em prol da salvação da alma, como é comumente

aceito no ocidente (GERACI, 2006, p. 10).

Outro fator de aceitação da robótica é que, a maioria do povo japonês admira e assiste

muito aos programas de animação japonesa e desenhos animados desde a sua tenra idade,

sendo isso uma das justificativas para que muitos cientistas e engenheiros de robôs

humanoides se inspiram em personagens da animação japonesa para a realização seus

projetos.

Apesar de muitas pesquisas atribuírem o papel da tecnologia e, especialmente da

robótica, ao Japão contemporâneo e a cultura pop, trata-se de um interesse muito mais antigo,

21 Ao longo da história japonesa, estas duas religiões, tem sido as que mais contribuíram para que os japoneses compreendessem a si próprios e ao mundo a que pertencem. O Xintoísmo é a religião tradicional do Japão e o Budismo, é uma religião hindu que chegou ao Japão entre os séculos VI e VII D.C., vinda da Coréia e da China. Informação obtida do site http://www.aikikai.org.br/art_xint_budismo.html.

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52

que encontra fundamento na relação entre humanos e objetos, remontando ao século XII, com

o a produção dos primeiros bonecos mecanizados.

As representações até aqui apresentadas são consideradas máquinas “puras”, sem

nenhuma participação humana em sua configuração corpórea. Porém, a medida que surge a

possibilidade de uma união física entre máquina e humano, tanto na ficção como na vida real,

é que aparece a figura do ciborgue.

A série de animação Neon Genesis Evangelion, se desenvolve num mundo pós-

apocalíptico, onde ciborgues gigantes chamadas EVAs são conduzidas por pilotos

adoslescentes, para combater as criaturas que chegam à terra com o objetivo de aniquilar a

humanidade. Máquinas e humanos se juntam para lutar pela sobrevivência humana, e, em

vários momentos, a série mostra a existência de uma hibridação entre EVAs e pilotos

representando uma relação homem-máquina.

Em Neon Genesis Evangelion a relação entre animado e inanimado se encaixa em um

viés religioso de criação, de dar vida. É como Deus criando o Universo, a Terra, a

humanidade. A série tem toda essa relação animado/inanimado, representado pela relação

humano/máquina, e também, a questão religiosa de criar vida. A criação das EVAs e dos

clones, corresponde a um imaginário religioso, do inanimado ao animado, da máquina ao

humano.

A série de animação é apresentada no capítulo 2, porém, para facilitar o entendimento

e a compreensão da relação entre maquínico e humano, foi realizado, no tópico seguinte, um

breve resgate de como, tradicionalmente, o Japão enxerga a relação homem-máquina, bem

como, procurou-se compreender essa relação, buscando diversos autores contemporâneos que

discutem os ciborgues e a condição pós-humana.

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53

1.3 O corpo híbrido: a tradição japonesa e o pós-humanismo

O Japão é um país símbolo da tradição e famoso por preservar a cultura milenar. Ter

conhecimento das tradições, crenças, hábitos e valores japoneses são fatores que permitem

melhor usufruir e entender as artes e as suas produções audiovisuais.

Desse modo, apesar da influência ocidental, a animação japonesa reflete o espírito da

tradição cultural milenar, encontrando um solo fértil para mesclar a tradição e o novo. Em

relação a esse aspecto, Kusano (1993) e Almeida (2005), apontam que, a animação parece ter

absorvido muito das artes teatrais japonesas e, em particular, dos teatros de bonecos. Além

disso, a presença constante da religião nativa do Japão, o Xintoísmo, mantém a crença de

“espíritos vivos” em objetos inanimados.

Mesclam-se, portanto, mitologia e realidade e a relação homem-natureza e homem-

máquina é tratada de forma mágica, diferentemente do Ocidente.

Assim, nas diversas modalidades de teatro de bonecos japoneses, nunca houve uma

separação entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco. Na cultura japonesa a relação

do ator-manipulador com o objeto manipulado pode ser explicada através de um conceito

milenar que relaciona religião e filosofia. É através da noção de mono que fica claro como se

estabelece essa ligação íntima entre os dois seres. Mono na língua japonesa oral pode ser

traduzido, como objeto ou pessoa, significando ao mesmo tempo, corpo inanimado e corpo

animado, enquanto que na língua japonesa escrita esses dois significados não se confundem,

pois são escritos por ideogramas diferentes (SOUZA, 2005, p.65).

De acordo com o autor, (2005, p. 47), o Japão tem uma tradição de teatro de animação

que apresenta uma variedade de técnicas manipulatórias advindas de vários séculos e que

passou por diferentes fases de formação. Embora não seja possível determinar com precisão a

época exata do seu aparecimento, alguns registros de rituais religiosos que continham certos

elementos teatrais são citados desde o começo da civilização japonesa, através de pequenos

bonecos, que eram manipulados, manualmente, por sacerdotisas, monges ou por devotos em

cerimoniais, celebrações ou festivais. Essas práticas, inicialmente com propósitos religiosos,

são considerados, de acordo com estudiosos modernos, o marco inicial para o teatro de

animação japonesa, pois, mesmo que não tivessem um princípio artístico, eles se expressavam

basicamente através de encenações (BANAITRES, 1999; LANG, 2000; MESCHKE e

SORENSON, 2002, apud SOUZA, 2005, p. 48). Com o passar do tempo, as performances

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animadas começaram a se apresentar com intuito do entretenimento, deixando aos poucos de

lado os preceitos religiosos.

Estudos realizados por Giroux e Suzuki (1991) e Kusano (1993), relatam que no Japão

antigo, até quase o final do século XV, os bonecos eram construídos e utilizados para fins

religiosos. Inicialmente denominados hitogata (formas humanas), só aproximadamente a

partir do ano de 1600 é que começam a ser chamados de ningyo (bonecos), com finalidade

maior de entretenimento.

Portanto no Japão, o teatro de animação está intimamente ligado ao desenvolvimento

de teatro de bonecos e, uma das formas que utiliza a animação de bonecos à vista do público,

é o chamado “Kuruma Ningyo”.

De acordo com Marco Souza (2005), o kuruma ningyo surgiu no final do período Edo

(1603-1867). Tinha como formato inicial uma estrutura muito rudimentar da qual fazia parte

um único manipulador sentado em um tipo de talhão que movimentava dois bonecos

pequenos apenas com as mãos, além de fazer as vozes deles e narrar a história. Uma primeira

grande mudança nessa arte foi realizada por um artista chamado Koryu Nishikawa I (1824-

1927), a partir de 1852, substituindo o talhão por carrinho, passando a ser conhecido pelo

nome de kuruma Ningyo. Neste, o animador fica sentado no carrinho e tem a possibilidade de

se deslocar pelo palco com o boneco. No kuruma Ningyo, cada boneco é animado por

somente um artista.

O carrinho, denominado kuruma em japonês, possui cerca de 20 cm de altura, 25 cm

de comprimento, 15 cm de largura e dispõe de três rodas. Com a ampliação das possibilidades

de deslocamento através do espaço cênico surgem também novas possibilidades gestuais para

os bonecos (SOUZA, 2005). O animador do boneco fica preso ao carrinho e o faz andar

através de suas próprias passadas (Figura 24).

Entretanto, para atuar no Kuruma Ningyo, há um intenso treinamento desde a infância.

Desde a década de 1990, o treinamento se inicia aos cinco anos de idade com o aprendiz

apenas assistindo aos espetáculos e conhecendo através do ponto de vista do público o seu

ofício. Aos doze ou treze anos de idade o aprendiz inicia efetivamente o seu treinamento, com

exercícios corporais que formam seu corpo para as necessidades futuras do animador.

Somente um pouco mais tarde é que ele passa a ter contato direto com os bonecos (ibidem).

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Figura 24 – Cenas do teatro de bonecos Kuruma Ningyo.

A partir de 1994 foi introduzida uma nova característica ao Kuruma Ningyo: a

animação dos pés do boneco com os pés do próprio animador. Sentado no kuruma, os pés do

animador encaixam-se nos calcanhares do boneco e cada passo seu corresponde a um passo

do boneco22 (Figura 25). Assim, os movimentos que impulsionam o deslocamento do boneco

e do carrinho parecem vir do próprio boneco. Além disso, o fato do animador estar ligado

diretamente ao seu boneco, através de seus braços e suas pernas e todo o seu corpo ser

dedicado à função de animar o boneco, permite gestos mais refinados em sua interpretação.

Para Marco Souza,

O estabelecimento dessas relações teatrais através da ligação completa dos membros do sujeito com os membros do objeto deixou os gestos no palco mais largos e vigorosos e com uma precisão muito maior, ressaltando mais ainda a percepção de um corpo que surge da interação entre outros dois corpos [...] (SOUZA, 2005, p.65).

Figura 25 – Cenas do kuruma ningyo. À direita, detalhe do animador sentado no kuruma. 22 As cenas de apresentação do teatro Kuruma Ningyo foram extraídas da internet. <http://www.vncs.ca/wordpress/hachioji-kuruma-ningyo-at-uvic-wed-may-22nd-730pm/ Acesso em 29 nov. 2012.

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56

No kuruma ningyo a relação entre o corpo do animador e o corpo do boneco exige

uma interação perfeita e constante no sentido de dar vida ao boneco. A coexistência entre

estes corpos é uma das bases do Kuruma Ningyo e segundo Souza,

O estilo refinado do Kuruma Ningyo provém de um método no qual a compreensão e a expressão dos fundamentos rítmicos do manipulador e do manipulado exigem uma interação constante entre corpo e objeto que permite com que um se estruture em função do outro. Por isso, para estar em cena no Kuruma Ningyo, corpo e objeto não apenas atuam conjuntamente, mas têm, de fato, que existir, ou melhor, que coexistir para agir como uma mesma ação, como um mesmo empenho expressivo e estético (SOUZA, 2005, p.59).

O animador veste-se inteiramente de negro e transforma-se em uma espécie de sombra

do boneco. Desta maneira, o boneco passa a ter vida através de movimentos que parecem vir

dele mesmo. Para Souza, isto significa que,

O corpo e o objeto, desse jeito, estariam mutuamente conectados através de uma sobreposição que é evidenciada por uma combinação, em certo sentido, tão indistinta (ressoando no sentido de contaminação), que promove uma sensação de indeterminação entre o quanto um conforma ou é conformado pelo outro. No Kuruma Ningyo, portanto, um princípio artístico básico é que não há corpo sem objeto e nem objeto sem corpo (SOUZA, 2005, p.60).

Na tradição japonesa tanto a feitura quanto a manipulação dos objetos seguem

preceitos religiosos e filosóficos, como por exemplo, os princípios representados pelo

dualismo dos bonecos Hitogata e Katashiro23 (SARANDO, 1996 apud SOUZA, 2005, p. 51),

que tiveram seu primeiro registro histórico durante o periodo Heian (794-1112 d.c). Hitogata

significa “forma humana”, e Katashiro significa “forma substituta” (Figura 26). Esses

bonecos são objetos místicos carregados de crenças sagradas usadas como emblemas da

presença de um espírito em ritos de adoração. Acredita-se, mesmo na atualidade, que é a

forma substituta que possui o dom sobrenatural de absorver os malefícios e de curar as

enfermidades das pessoas (SOUZA, 2005, p. 51). No entanto, de acordo com o autor, o

Katashiro, que é a forma substituta, necessita da presença e da conexão com a forma humana,

23 Figuras obtidas dos sites: http://www.oomoto.jp/poColeta/Coletanea6.pdf ; http://www.yushimatenjin.or.jp/pc/saiji/ooharai.htm; Acesso realizado em junho 2013.

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57

o Hitogata para se manifestar e proteger as pessoas ou objetos. O hitogata junto com a forma

substituta assume uma espécie de sombra (kage em japones). Portanto, é através dos bonecos

Hitogata e Katashiro que se pode caracterizar a forma humana como correspondente ao

manipulador, e a forma substituta como correspondente ao objeto acontecendo entre os dois

uma revelação da natureza oculta das coisas (CHIKAMATSU, apud SOUZA, 2005, p.53),

(Figura 26).

Figura 26 – À esquerda: Hitogata (forma humana) e o certificado de purificação pessoal. À direita: Katashiro (forma substituta) e o certificado de purificação material. O Hitogata é um formulário de pedido para purificação espiritual, cujo fundo representa uma figura humana. O Katashiro é o formulário voltado para bens materiais.

Essa relação, de objeto inanimado e animado, pode ser explicado através do conceito

de mono. Objetos (mono inanimados) conectam os elementos visíveis que constituem o

ambiente de um indivíduo (mono animado) com a totalidade invisível do mundo. Na tradição

japonesa, mono se refere às raízes que um objeto tem em ambas as dimensões visíveis e

invisíveis do mundo. E nesse sentido, de acordo com Yamaguchi (1991, p. 8), na cultura

japonesa, a exposição de um objeto ou lugar, por exemplo, “tinham a intenção de fazer os

aspectos invisíveis do mono visíveis por meio do mono materializado. Isso quer dizer que o

que é visível emerge do fundo invisível que circunda um objeto”.

Mono é a expressão da existência orgânica, de um corpo que possui um significado ou

sentimento, mesmo quando representado por um objeto. Um exemplo é o termo yama. A

palavra yama originalmente denotava uma montanha, mas tornou-se associada com o lugar

onde residem as divindades. Desta forma, yama assumiu o sentido de espaço de mediação

entre os humanos e os deuses (YAMAGUCHI, 1991).

Os primitivos acreditavam que nas montanhas, rios, árvores, e em outros elementos da

natureza existiam a presença de espíritos, fato este que originou a personificação de muitos

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58

deuses em formas humanas, os quais eram venerados pelos homens. Essa demonstração pode

ser geralmente, mais viável no espaço do teatro tradicional japonês, onde há sempre um

personagem xamã-sacerdote caracterizado na performance.

O xamã-sacerdote é capaz de perceber a existência de espíritos locais em cada um dos

lugares que visita em suas viagens por todo o país. Suas percepções levam à aparição de

demônios intimamente relacionados com a história ou as lendas do lugar em particular. Esta

capacidade do sacerdote de fazer com que os demônios locais se manifestem é uma evidência

de sua competência para reagir ao chamado de mono (YAMAGUCHI, 1991, p. 8).

A influência do mono resulta também dos lugares em que os objetos são encontrados e

da forma como eles são usados. Greiner, na apresentação do livro de Cecília Saito (2004),

explica que, “para os artista do Mono-ha24, como Suza Kishio, a palavra mono está sempre ao

lado do silencio e a natureza da coisa é sempre anônima. Isso significa que a coisa não é nada

além daquilo ao qual ela está conectada (LUCKEN, 2003:218 apud SAITO, 2004)”. Essas

‘coisas’ também não estão apartadas dos espaços que as rodeiam.

Para Souza (2005, p. 65-66), mono está relacionado a “uma crença nipônica comum

que acredita que um espírito reside nos objetos que as pessoas usam por muitos anos”. A

partir da convivência com os objetos, ocorre um desenvolvimento de uma alma neles, ou a

transferência para eles da alma da pessoa que possui o objeto. O autor, explica um pouco

mais:

Acredita-se através do mono que qualquer dano causado ao objeto, afeta o seu possuidor e de acordo com a convicção popular os seres humanos e os objetos existentes no mundo são entidades com características próprias que devem se complementar para que possam existir em conjunto e beneficiar um ao outro. Pelo viés do mono, os objetos com que as pessoas interagem não são, então, apenas coisas inócuas, eles incorporam sentidos e fazem parte da vida daqueles que convivem com eles.

As crenças religiosas e mitológicas do povo japonês são fatores que contribuem para

esse sentimento popular e talvez esclareça essa amabilidade para com a figura do híbrido. As

religiões mais difundidas são o xintoísmo e o budismo, que cultuam seres míticos, híbridos,

meio humano, meio animal, contribuindo para a aceitação de figuras híbridas meio homem,

meio máquina.

24 Mono-ha é o nome dado ao grupo de artistas do século 20 japoneses. Significa “escola das coisas” constiuindo-se em importante movimentos de arte no Japão.

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59

Na série Neon Genesis Evangelion, o objeto maquínico toma corpo e torna-se uma

estrutura personificada quando associado ao corpo do piloto. Isso nos remete ao conceito de

mono, pois o corpo passa a ter vida através de gestos e movimentos que aparentemente vem

da máquina, mas são regidos pelo piloto. Aqui, de modo semelhante ao kuruma ningyo, o

piloto assume a função de sombra da máquina, inseparáveis do corpo que se move como se

tivesse vida própria.

Portanto, a partir dessa percepção da tradição japonesa de mono procuraremos, no

próximo capítulo, analisar a hibridação que ocorre entre o piloto e seu robô EVA na série de

animação Neon Genesis Evangelion. Para o olhar ocidental, esta relação homem-máquina tem

sido estudada a partir do conceito de pós-humano. No entanto, como observamos

anteriormente, no contexto japonês a relação homem-máquina parte de outras questões.

Em Neon Genesis Evangelion, inicialmente a figura de uma máquina chamada EVA, é

apresentado ao espectador como a representação de um grande e poderoso robô pilotado por

adolescentes. Porém, nos episódios 01 e 02, ao fim da primeira batalha de EVA-unidade 01,

tanto o espectador como o piloto Shinji se deparam com uma criatura diferente. Vemos EVA

recolhida para reparos, e naquele momento o “robô” mostra-se como uma criatura biológica.

Percebe-se que a sua superfície, na verdade, é uma armadura, um invólucro para uma criatura

biológica, munido de próteses e outros aparatos tecnológicos que serviriam para amplificar as

suas forças e a do piloto, mas que também são usados para mantê-lo sob controle humano

(Figura 27). Estamos, portanto, possivelmente diante de um ser híbrido que envolve a união

entre orgânico e inorgânico e que nos remete a figura de um ciborgue.

Figura 27 –Acima, à esquerda: EVA recolhida para reparos. Ao lado, a parte interna da EVA formada por aparatos tecnológicos. Abaixo, à esquerda: EVA observa Shinji como se o identificasse. Ao lado, EVA reage sem nenhum piloto, demonstrando que não se trata de um simples robô.

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60

Na maioria das produções que envolvem ciborgues podemos encontrar seres humanos,

com implantes maquínicos inseridos, com o objetivo de ampliar seus poderes e/ou preservar

sua vida. Podemos citar como exemplo de produções audiovisuais que surge nessa linha, a

série televisiva da década de 1970,O Homem de Seis Milhões de Dólares (1973), ou o filme

Robocop (1987). Em ambos os casos, homens comuns tem suas habilidades ampliadas através

da hibridação com máquinas, tornando-os praticamente indestrutíveis (Figura 28).

Figura 28 – Nas produções que envolvem ciborgues como O Homem de seis milhões de dólares e Robocop, seres humanos apresentam implantes maquínicos para ampliar seus poderes e/ou preservar sua vida.

Em geral, a figura do ciborgue é representada através de um misto de homem e

máquina, no qual o lado humano representa a consciência e os sentimentos e ao lado máquina

cabe a força, a racionalidade e a longevidade.

O termo ciborgue surgiu da contração da expressão “organismo cibernético” (em

inglês CYBernetic ORGanism = cyborg). Atribui-se a Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline o

seu primeiro emprego e definição, em um artigo chamado Cyborgs and space, de 1960

(CLYNES apud GRAY, FIGUEROA-SARRIERA & MENTOS, 1995). Estes autores

consideram ciborgue como um organismo cibernético. Seria “a engenharia da união entre

sistemas”. Ressaltaram a importância de adaptar o homem a ambientes extraterrestres

inóspitos, revelando que sob a figura do ciborgue cultivam-se os sonhos de vencer as barreiras

da exploração espacial. Sua proposta era alterar física e quimicamente o corpo humano de

modo que um astronauta pudesse adaptar-se ao espaço para que ele ficasse “livre para

explorar, criar, pensar e sentir” ao invés de ser obrigado a, “além de pilotar sua nave”, manter-

se “continuamente checando coisas e fazendo ajustes com o objetivo meramente de manter-se

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61

vivo”, condição que o limitava a ser um “escravo da máquina (CLYNES apud MAFFESOLI,

1995, p. 31).

A partir da definição de “união entre sistemas”, muitas outras interpretações foram

construídas, tendo sempre a hibridação como um ponto em comum. De acordo com Chris

Gray (1995), Clynes referiu-se apenas à hibridação entre maquínico e orgânico, mas nas

últimas décadas do século XX, ao mesmo tempo em que, houve uma popularização da idéia

de ciborgue, as definições se tornaram mais amplas e genéricas, dando oportunidade a

diversas abordagens dessa hibridação, tais como, intervenções tecnológicas no organismo,

biotecnologias implantadas por sob a pele, ou as redes e softwares otimizando tarefas

cognitivas.

Uma definição que se tornou clássica foi a proposta apresentada por Donna Haraway,

que em 1985 lançou o Manifesto Ciborgue, um sinalizador de que os estudos dos produtos

tecnológicos ganhariam, cada vez mais importância. Haraway, preocupada com as

transformações sociais, definiu o ciborgue como um cruzamento entre máquina e organismo;

uma criatura da realidade social, mas também da ficção. A autora definiu o ciborgue como

“um organismo cibernético híbrido: é máquina e organismo, uma criatura ligada não só à

realidade social como à ficção. (...) criaturas simultaneamente animal e máquina que habitam

mundos ambiguamente naturais e construídos" (HARAWAY, 1994, p. 243-4).

A pesquisadora apresenta uma idéia diferente de ciborgue, em relação àquela surgida

nos anos 1960. Enquanto o ciborgue de Clynes & Kline, tinha sido concebido como um

‘super-homem’ capaz de sobreviver em ambientes não-terrestres e hostis, Haraway entende o

fenômeno como uma forma de libertação, como possibilidade de um mundo pós-gênero, sem

pretensões de concentração de poder. Segundo Haraway, certos dualismos presentes nas

tradições ocidentais são essenciais às práticas de dominação onde o eu domina todos aqueles

que foram constituídos como outros. Para a autora “a cultura high-tech contesta – de forma

intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o

humano e a máquina.” (HARAWAY, 2000, p. 100). Neste sentido, a definição de Haraway

parece mais próxima dos entendimentos da cultura japonesa, com a ressalva de aderir à

nomeação “pós-humano”.

Em 1995, Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera lançaram um artigo intitulado

“Cyborgology: Constructing the knowledge of Cybernetic Organisms”, no qual, consideraram

ciborgue qualquer pessoa com órgão, membro ou suplemento artificial. Incluíram, também,

todos os imunizados, e, todos os que se utilizavam da psicofarmacologia para pensar ou

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comportarem-se ou sentirem-se melhor.

De acordo com Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera (1995, p. 2),

Este fundir do evoluído e do desenvolvido, esta integração entre construtor e construído, esses sistemas de carne e circuitos inanimados foram chamados de muita coisa: sistemas biônicos, máquina virtuais, ciborgues. São figuras centrais do século XX (...) Há muitos ciborgues entre nós. Qualquer pessoa com um órgão, membro ou suplemento artificial (como um marca-passo), qualquer um reprogramado para resistir a doenças (imunizado) ou drogado para pensar/comportar-se/sentir-se (psicofarmacologia) melhor é tecnicamente um ciborgue.

Dessa forma, o ciborgue, mescla fisicamente novas tecnologias, sendo corrigido e

expandido com próteses de todos os tipos, que ajudam nas deficiências humanas,

potencializam os nossos sentidos e transforma-nos, apresentando uma nova realidade para o

corpo humano.

De acordo com essa visão, o significado de hibridação se torna mais amplo,

considerando todos nós como ciborgues em potencial. Para Katherine Hayles (1996), os

ciborgues podem ser de dois tipos: os técnicos e os metafóricos. Os ciborgues no sentido

técnico incluem pessoas com marca-passos eletrônicos, junções artificiais, sistema automático

de administração de medicamentos, lentes implantadas na córnea, e pele artificial. Para a

autora, estimava-se que esta situação corresponde a cerca de 10% da população dos EUA. Os

outros 90% seriam considerados ciborgues metafóricos só pelo fato de usarem aparatos

técnicos/tecnológicos a fim de possibilitar a realização de uma tarefa como, por exemplo,

quando usamos o teclado do computador ou o joy stick de um videogame conectando um

circuito cibernético com a tela, ou o neurocirurgião guiado por um microscópio de fibra ótica

durante uma cirurgia (HAYLES, ibidem).

André Lemos, identifica ainda dois tipos de ciborgue: o protético e o interpretativo. De

acordo com o autor, ciborgue protético é o indivíduo que tem funções fisiológicas garantidas

por qualquer dispositivo eletrônico ou mecânico, conceito semelhante ao ciborgue técnico de

Hayles. Sua definição para ciborgue interpretativo está diretamente ligada aos meios de

comunicação de massas e à cultura de massa e do espetáculo. Para ele, todos nós ao

utilizarmos qualquer informação, imagem ou conceito que chegou a nós mediado por uma

máquina, para a partir dele construir ou significar algo, nos tornamos ciborgues interpretativos

(LEMOS, 2002, p. 187)

Essas subdivisões e interpretações em torno do conceito de ciborgue ampliam bastante

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as possibilidades de entendimento dessa figura. Para alguns, seríamos todos ciborgues, para

outros, essa nomenclatura se aplicaria apenas àqueles que usam máquinas implantadas no seu

sistema biológico (AMATTE LOPES, 2006).

E o que dizer então da Inteligência Artificial em que os pesquisadores dessa área

almejam remover a mente do cérebro humano e transferí-la para um computador.

Em Mentes e Máquinas (1998, p.138), Teixeira descreve três robôs desenvolvidos no

laboratório de R. Brooks, no Massachusetts Institute of Technology – MIT: Allen, Herbert e

Cog. Os dois primeiros são ciborgues capazes de executar movimentos e tarefas programadas,

entretanto, o terceiro robô citado por Teixeira é o humanoide Cog25, em desenvolvimento no

MIT, motivado pela hipótese de que a inteligência humanoide requer interação dos

humanoides com o mundo. Com forma e capacidade quase humanas, foi projetado para

interagir com o mundo e aprender de forma semelhante à cognição humana, tentando simulá-

la ou replicá-la (Figura 29). Se o projeto for bem sucedido, Cog poderá sentir e pensar como

um ser humano, e o homem terá conseguido fazer as máquinas aprenderem como ele.

Figura 29 – Humanoide Cog, em desenvolvimento no Massachusetts Institute of Technology – MIT. Projetado para ter forma e capacidades quase humanas.

Assim, da mesma forma que na ficção científica, caminhamos para um estado onde

será quase impossível distinguir a separação entre o maquínico e o humano, trazendo o

ciborgue da ficção para o cotidiano.

Estamos vivendo num momento em que as novas tecnologias vêm transformando o

mundo contemporâneo de modo que as possibilidades e perspectivas que se abrem para o

25 Cog. MIT - Humanoides Robotics, 2006. Disponível em: http://www.ai.mit.edu/projects/humanoid-robotics-group/cog/overview.html . Acesso em: dez 2012.

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sujeito parecem se tornar infinitas. Surgem assim, promessas de novos desenvolvimentos na

mistura do orgânico e não orgânico na figura do ciborgue, em busca de um corpo que não

envelhece, de uma mente que se perpetua, de uma vida desvinculada do corpo ou uma vida

virtual.

Essa condição que entende o humano para além de si, através da relação homem

máquina, tem sido considerada uma condição pós-humana, sendo, de uma maneira geral,

definida como “um ser híbrido, uma união de dois elementos - o humano e o tecnológico -

que faz com que o homem ultrapasse as limitações físicas ou mentais expandindo suas

próprias capacidades utilizando-se de artifícios e recursos tecnológicos” (CARVALHO,

2008).

Na condição pós-humana, há um contexto de proliferação e convergência de novas

tecnologias, que por sua vez impacta diretamente em nossa subjetividade e em nossa maneira

de encararmos até a nós mesmos, com a formação de um novo ser humano, como discutem

vários autores contemporâneos (HARAWAY, 1985; GRAY, 1996; HAYLES, 1996, 1999;

SIBILIA, 2002; SANTAELLA, 2003, 2007; FELINTO, 2005).

De acordo com Santaella (2003), o termo pós-humano vem sendo empregado desde o

início dos anos 1990, especialmente por artistas ou teóricos da arte e da cultura. A expressão

tem sido usada para sinalizar as grandes transformações que as novas tecnologias da

comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível

psíquico quanto social e antropológico. Autores como Stelarc (1997, 2006) e Sibília (2002),

defendem a idéia de que se trata de um passo evolutivo da espécie. Essas evoluções se

referem às modificações não apenas mentais, mas também corporais, biomoleculares, pelos

quais o ser humano vem passando. E nesse aspecto, as experiências e o avanço do Projeto

Genoma Humano são exemplos da associação da biotecnologia com a informática, com o

objetivo de decifrar o mapa genético da espécie humana, para descobrir a origem das doenças

genéticas e a busca de tratamento e prevenção. De acordo com o pensamento pós- humanista,

o desenvolvimento biotecnológico consiste também na possibilidade de intervir sobre os

mecanismos da vida, um processo que era lento e exclusivo da seleção natural. A evolução de

uma nova espécie de bionte26 leva bilhões de anos através da seleção natural, enquanto que o

homem precisou de apenas algumas décadas para produzir, a ovelha Dolly, o primeiro ser

projetado artificialmente, através de clonagem genética.

26 Ser vivo, matéria viva desenhada pela seleção natural.

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Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos apontam para as possibilidades de

formas de existência pós-humana, que o estudioso Roy Ascott (2003) prefere chamar de pós-

biológicos devido à emergência de uma era úmida (moist) que nascerá da junção do ser

humano molhado (wet) com o silício seco (dry), especialmente a partir do desenvolvimento

das nanotecnologias que, inseridas abaixo da pele, de forma silenciosa, passarão a interagir

com as moléculas do nosso corpo.

Essa inserção de novas tecnologias, corrigindo e expandindo o nosso organismo com

próteses de todos os tipos, ajuda nas deficiências humanas, potencializa os nossos sentidos e

transforma-nos, apresentando uma nova realidade para o corpo humano. E para um futuro

próximo, pode-se esperar uma grande integração entre o tecido orgânico e a máquina, através

de robôs e da nanotecnologia. Um exemplo disso são as pesquisas desenvolvidas por Bachelet

e Douglas da Universidade de Harvard com os nanorobôs que caçam e destroem células

cancerosas (STAUT, 2012).

Em seu livro “O Homem Pós-Orgânico”, Sibilia pontua que, na era atual, o progresso

científico ameaça acabar com o papel central do humano e o próprio progresso científico

parece tomar o papel central nessa “evolução”. O corpo humano, cada vez mais invadido e

modificado pela tecnologia, e cada vez mais em interação com aparatos técnicos estaria,

segundo os pensadores pós-humanos, tornando-se ultrapassado em relação ao progresso

técnico: É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando “obsoleto”. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário recorrer à atualização tecnológica permanente: impõem- se, assim, os rituais do auto-upgrade cotidiano (SIBILIA, 2002, p. 13).

A autora recorre aos pensamentos do sociólogo português Hermínio Martins, para

explicar que passamos de uma tradição prometéica, da mitologia grega, através do mito

Prometeu, para uma tradição fáustica da mitologia alemã, através do mito de Fausto. Na

tradição prometéica o homem conquista o domínio da técnica e pensa a tecnologia como a

possibilidade de estender e potencializar gradativamente as potencialidades do corpo (sem

aspirar ao infinito, guardando certo respeito pelo que é humanamente possível e pelo que

ainda pertence ao território divino). Em outras palavras: Prometeu forneceu à humanidade a

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66

técnica para que os homens pudessem utilizá-la para desenvolver experimentos, máquinas e

ferramentas. Ao contrário, a tradição fáustica, vê na tecnociência a possível superação do

corpo, a possibilidade de transcender a condição humana: o pós-humano (SIBÍLIA, 2000, p.

13).

De acordo com a lenda popular alemã, cuja origem está nos poemas de Johann Goethe

(1808)27, Fausto é um médico mágico e alquimista que desiludido com o conhecimento de seu

tempo, faz um pacto com o demônio Mefistófeles. O demônio, como parte do contrato,

fornece à Fausto a energia estimuladora da paixão pela técnica e pelo progresso.

Para Sibília,

a tecnociência contemporânea, por ser um saber fáustico, almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo humano, […] As pesquisas em biotecnologia, por exemplo, não se conformam com a realização de meras melhorias cosméticas ou com o aditamento de próteses para os organismos danificados. Não pretendem apenas ampliar ou estender as capacidades do corpo humano, […] enxerga no instrumental tecnocientífico a possibilidade de criar vida. […]. Fáustico, ele pretende exercer um controle total sobre a vida, superando as suas limitações biológicas; inclusive, a mais fatal de todas elas: a mortalidade. (SIBÍLIA, 2000, p. 49-50).

Seguindo esse pensamento, Régis entende o pós-humano como um passo evolutivo da

espécie. “Nesse caso, o prefixo ‘pós’ implica a idéia, não apenas de um estágio posterior,

como também ontologicamente mais avançado da espécie. São nas definições de pós-humano

que encontramos os desejos de superação mais radicais.” (RÉGIS, 2007, p. 3-4).

Na busca dessa superação das limitações biológicas, é possível atingir o

desenvolvimento pós-evolutivo, como podemos observar através das performances realizadas

pelo artista australiano Stelarc (1997, 2006), cujo trabalho explora e estende o conceito de

corpo através da acoplagem de dispositivos protéticos. Para ele o corpo tornou-se obsoleto e

ineficiente: uma estrutura a ser modificada. O autor acredita que se pode ir além da pesquisa

por um estágio mais avançado, indo à busca da imortalidade.

As performances, envolvendo conexões extras corpóreas e inserções através da pele,

são executadas em seu próprio corpo. Stelarc fez várias apresentações no Japão, Europa e

27 A primeira versão era apenas um esboço conhecido como Urfaust (Proto-Fausto). Foi composta em 1775. A versão definitiva só seria escrita e publicada por Goethe no ano de 1808, sob o título Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia).http://pt.wikipedia.org/wiki/Fausto_(Goethe)

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67

Estados Unidos. Algumas de suas performances são: Terceira Mão, Braço Virtual, Corpo

Virtual, Escultura Estomacal, Cabeça Protética, Orelha Extra, Hexapod e Eskeleton (Figura

30).

Figura 30 – Performances executadas por Stelarc.

A Terceira Mão de Stelarc é uma prótese constituída por um braço e uma mão, feitos à

imagem do membro do artista, que se conecta ao seu braço direito natural. A mão protética

possui a capacidade de segurar, soltar, apertar, afrouxar, e é dotada de tato, embora

rudimentar. Com esse experimento, Stelarc (2006) afirma que a pele não pode ser mais vista

como o limite entre o ser humano e o mundo. Atualmente ela está atravessada e penetrada

pela tecnologia. Sua superfície está rompida, demovendo a diferença entre o interior e o

exterior. A pele, como interface, está obsoleta.

Stelarc, ao realizar as performances para validar seus argumentos em prol da

obsolescência do corpo biológico, afirma que,

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Simplesmente o corpo criou um ambiente de informação e tecnologia com o qual não mais consegue lidar. Esse impulso para acumular de forma contínua mais e mais informação criou uma situação na qual a capacidade da córtex humana simplesmente não consegue absorver e processar de forma criativa toda essa informação. Foi necessário criar tecnologia para fazer aquilo que o corpo não mais consegue realizar. Ele criou uma tecnologia que supera em muito algumas capacidades dele mesmo. A única estratégia evolucionista que vejo é, [...] incorporar a tecnologia ao corpo [...] tecnologia ligada simbioticamente e implantada no corpo cria uma nova síntese evolucionária, cria um híbrido humano - o orgânico e o sintético se unindo para criar um novo tipo de energia evolucionária (STELARC, apud MONTEIRO, 2003).

Podemos observar, portanto, que o pensamento fáustico é expresso, por exemplo,

nessa dependência do upgrade do corpo, seja por meio de intervenções cirúrgicas ou pelo

acoplamento cada vez maior com aparatos tecnológicos que permite que a mente e, por

conseguinte o pensamento possa ser analisado através da informática, de impulsos elétricos,

etc.

De acordo com Sibília,

“enquanto as próteses clássicas se inspiravam na metáfora do robô, a tecnociência fáustica de vocação ontológica28 abandona o modelo mecânico para assumir de vez a analogia digital e submeter o organismo ao upgrade informático” (SIBÍLIA, 2002, p. 137).

Portanto, de acordo com essas concepções, pós-humanos seriam uma simbiose de

humanos e inteligência artificial, ou consciências carregadas no computador, ou o resultado

de pequenos, mas profundos aprimoramentos tecnológicos em um humano biológico. O que

se destaca nessas definições é o desejo da superação dos limites do humano, tendo como ápice

o upload da consciência no computador (RÉGIS, 2007).

Para Katherine Hayles, esses processos evolutivos são considerados padrões que

podem ser transmitidos de um meio ao outro, independentemente de um peso, de uma massa

corpórea. Fica implícito que, as diferenças entre homens e máquinas cerebrais são pequenas,

se é que existem. Os homens são “entidades que processam informações e que são

essencialmente similares às máquinas inteligentes” (HAYLES, 1999, p. 7).

Nessa perspectiva, os seres humanos entram numa realidade virtual através do que

Santaella (2003) define como “corpo plugado” que ao conectarem-se a um cabo, a mente

28 Ontologia (em grego ontos e logoi, "conhecimento do ser") é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da realidade, da existência dos entes e das questões metafísicas em geral. Referência disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/ontologia/.

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69

abandona o corpo e vive situações criadas pelo computador. E dessa forma, de acordo com a

autora, não se pode prever nem diagnosticar com muita certeza sobre o que acontece quando

os circuitos eletrônicos penetram no cérebro, misturando-se com a química do corpo.

Essas novas realidades levam a uma reconstituição de conceitos e de interpretações,

fazendo com que os mundos – real e imaginado – fiquem mais próximos, dando uma nova

interpretação à concepção de corpo, o que leva também a geração de novas representações

para esse corpo, agora híbrido.

Em Neon Gênesis Evangelion encontramos um exemplo de representação dessas

novas espécies: EVAs, criaturas cibernéticas, criadas para lutar contra os Anjos que chegam a

terra para destruir a humanidade.

Nossa proposição, no próximo capítulo, foi apresentar a obra, uma história que se

desenvolveu num mundo pós-apocalíptico, examinando onde era possível, na série, identificar

a representação da relação estabelecida entre homem e máquina. A série aborda aspectos

psicológicos do homem e questões de identidade para dar eficácia aos mistérios da narrativa.

O objetivo foi buscar fragmentos que possibilitassem entender a hibridação homem-máquina,

através do conceito de pós-humano e do conceito da tradição japonesa de mono, presentes

nessa série de animação, demonstrando as principais diferenças das duas propostas.

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70

2 NEON GENESIS EVANGELION: UM MUNDO APOCALÍPTICO ENTRE EVAs,

PILOTOS E ANJOS

A série de animação Neon Genesis Evangelion ou, simplesmente, Evangelion, foi

produzida pelo Estudio Gainax, e dirigida por Hideaki Anno, inicialmente, como série de

animação, para depois ser adaptada para a linguagem de mangá.

Neon Genesis Evangelion, em japonês Shin Seki Ibangerion, é uma animação

composta por 26 episódios, que, começou a ser exibida pela TV Tókio, de outubro de 1995 a

março de 1996. Uma compilação de todos os episódios exibidos na TV, exceto os dois

últimos, foi lançada em 1997, com o nome de “Evangelion: death and rebirth” (Shito Shinsei,

em japonês). No mesmo ano, em julho de 1997, a série de animação foi complementada pelo

longa-metragem “The End of Evangelion”, lançado nos cinemas em julho de 199729. Estes

produtos audiovisuais são os pontos de partida de uma gigantesca franquia Evangelion, como,

por exemplo, os mangás, filmes, jogos de video, RPG, música, entre outros, construída graças

ao incrível sucesso da série de animação Neon Genesis Evangelion.

Um ponto marcante da produção de Anno é a personalidade do autor, impressa nas

escolhas feitas por ele. De acordo com as suas declarações (em entrevistas publicadas em sites

e revistas especializadas), verificamos que Anno busca criar em Neon Genesis Evangelion

uma obra autoral, na qual, as suas influências dominantes não vêm da televisão ou de filmes

de ficção, e sim da literatura, da religião e da cultura tradicional japonesa. Para muitos fãs30, a

obra de Anno é a combinação perfeita de idéias de mitos, referências religiosas, mechas, caos

e agências secretas.

Além do próprio nome da série de animação Neon Genesis Evangelion (romanização

do grego, “νέογένεσηευαγγέλιο”, literalmente Evangelho da Nova Era), as influências

religiosas apresentam-se com denominações de objetos, de seres não humanos e entidades

divinas, com referências a passagens bíblicas como Adão e Eva, anjos e apresentação de

símbolos sagrados da religião cristã, tais como, cruz, lança ou manto. São estruturas que

praticamente nasceram com o cristianismo e os representam da forma mais abrangente

possível: o criacionismo, dogmas divinos e cristãos. O símbolo da "Árvore da Vida" provinda

29 The End of Evangelion reúne o que seria a primeira versão dos capítulos finais da série televisiva, os episódios 25 (“Aria”) e 26 (“Sinceridade pra você”), de acordo com a Gainax, produtora do animê. 30 Essa informação pode ser confirmada através de websites mantidos por fãs da série. Em língua portuguesa o website mais visitado é <<http://www.santuariodosanjos.hpg.ig.com.br>>, a partir dele diversos links podem ser encontrados direcionando para outros websites similares.

Page 71: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

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da Cabala31, existente também, com outros nomes e significados semelhantes na cultura

nórdica, por exemplo, estão entremeados nas imagens e narrativas da série. Tal símbolo

aparece logo na abertura da série, chamado de “Sephiroth no ki” (Árvore de Sephiroth),

referindo-se ao Diagrama Sefirótico ou Árvore da Vida (Figura 31), que contém, nas suas

estruturas, as chaves para os segredos do universo, bem como as chaves para os mistérios do

coração e da alma humana. Os ensinamentos cabalísticos explicam as complexidades do

universo material e imaterial, bem como a natureza física e metafísica de toda a humanidade.

Figura 31 – À esquerda: o símbolo da Árvore da Vida, provinda da Cabala. À direita: figuras de Sephiroth no ki, que aparecem na abertura da série Neon genesis Evangelion.

Observou-se ainda que, além dos objetos e símbolos religiosos que aparecem na série,

há todo um imaginário religioso, e referências em torno da alma, que é um símbolo religioso.

O próprio nome da organização secreta SEELE significa “alma” em alemão. A alma é o ser,

representa a identidade, a particularidade, além de ser o indício principal da ligação

humano/divino ou humano/religião. Como símbolo religioso, no cristianismo e no judaísmo, a

alma representa o que difere os seres humanos de outros seres vivos. É a presença da criação

31 Cabala (também Kabbalah, Qabbala, cabbala, cabbalah, kabala, kabalah, kabbala) é uma sabedoria que investiga a natureza divina. Kabbalah é uma palavra de origem hebraica que significa recepção. Informação publicada no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabala. Acesso realizado em maio 2013.

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divina no humano, representando o viés religioso. Em Neon Genesis Evangelion, os robôs

EVAs têm almas, indicando que são muito mais que simples máquinas. A série mostra que o

corpo é frágil, mas a alma persiste mesmo depois da morte. Portanto, a alma é o grande

símbolo desse imaginário religioso.

A grande inovação no universo da animação promovida por essa série foi centrar o

conflito nos problemas pessoais das personagens principais. Desse modo, deslocou o centro

de atenção das lutas, principal enfoque das animações japonesas que seguem a linha mecha,

para o universo humano e psicológico das personagens.

Para este trabalho, foram utilizados alguns episódios da série da animação Neon

Genesis Evangelion, dando ênfase àqueles relacionados à hibridação homem-máquina, e que

será apresentada e discutida a seguir.

A história de Evangelion desenvolve-se em um mundo pós-apocaliptico. Acontece em

2015, quinze anos após o “Segundo Impacto”, nome dado a uma grande explosão no

continente Antártico causada, segundo os dados oficiais, pelo impacto de um meteorito de

grandes dimensões semelhante ao “Primeiro Impacto”, que dizimou toda a população de

dinossauros do planeta. Com a economia em declínio e os impactos ambientais, a população

diminuiu consideravelmente.

A informação correta do “Segundo Impacto” está sob o poder de uma organização

chamada NERV que recebe apoio financeiro e é supervisionada por outra organização secreta

não governamental com poderes de decisão que é a SEELE.

A verdade declarada para o “segundo impacto” é a queda do meteoro, mas na

realidade é que as Nações Unidas escondem o fato de que a Terra não foi atingida por um

meteoro, mas sim atacada por um ser conhecido como Anjo (Angel), ou apóstolo no original

Shito em japonês. De acordo com o Red Cross Book (2009)32, Anjos são as formas de vida

que se originaram de "Lilith", o segundo Anjo. Podem ser de qualquer tamanho ou forma: um

grande octaedro, tão pequeno quanto um vírus ou até mesmo uma sombra sem forma tangível.

Vários são os Anjos enviados para destruir a humanidade: Adão, Lilith, Sachiel, Shamshel,

Ramiel, Gaghiel, Zeruel entre outros.

Na série de animação em estudo, Adão foi o primeiro anjo, o gigante de luz visto na

Antártida. Escrito no Gênesis do Antigo Testamento da Bíblia, Adão foi o primeiro ser

humano criado por Deus a sua semelhança. O rumor de que Adão estaria preso no subsolo da

32 Livro da Cruz Vermelha é o panfleto, autorizado pela Gainax Company, vendido no cinema para aqueles que foram ver o filme “The End of Evangelion”. Contém glossário e comentários sobre a produção.

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central NERV era falso. O gigante no subsolo de fato era Lilith. O verdadeiro Adão é um

embrião trazido da Alemanha. Os cientistas da NERV usaram a Teoria S2 (Super Solenóide)33

para acordá-lo, mas com receio de que todos os Anjos fossem acordados, começaram a

degenerar Adão ao seu estado embrionário, gerando uma liberação de energia que resultou no

Segundo Impacto.

O segundo Anjo é Lilith, o ser de onde toda a vida teve origem, sendo considerada

uma fonte de vida. Como Adão, Lilith é uma Semente da Vida, sendo co-igual a Adão. Os

outros Anjos são descendentes de Adão, mas Lilith é a progenitora dos humanos34. Portanto,

embora Lilith seja considerada o segundo Anjo, de fato, ela não é um Anjo, e sim um humano.

Porém de acordo com versões alternativas35, Lilith é considerada a primeira mulher de Adão.

É referida em diversos textos antigos, assim como no Antigo Testamento da Bíblia. Lilith é

também referida na Cabala como a primeira mulher do bíblico Adão, sendo a antecessora de

Eva.

Por muito tempo Lilith foi incorporada nas profundezas da Terra, e devido às

mudanças das placas tectônicas, foi se instalar numa posição abaixo do que se tornaria

Hakone, Japão, formando a enorme caverna subterrânea denominada “Geofront”.

Em algum momento indeterminado, no passado recente, Lilith foi descoberta pela

SEELE. Foi mantida crucificada, em uma cruz gigante36, no nível mais profundo e secreto da

NERV (Figura 32), e usada como uma fonte renovável de LCL (Link Connected Liquid - algo

como “elo conectado por líquido”) para as Unidades Evangelion (o LCL de fato era o sangue

de Lilith). A SEELE e a NERV usaram Lilith para vários experimentos, em seguida,

intencionalmente deixaram-na crescer, até determinado ponto, com o objetivo de ser usada

para a Instrumentalidade e iniciar o Terceiro Impacto.

33 Um gerador de energia baseado na "Solenoid Theory" (Teoria da Bobina Elétrica). O tempo de operação de uma EVA seria extendido ao infinito. Todos os Anjos funcionam de acordo com a teoria S2. Acesso realizado em jan 2013. 34 Informação obtida do site http://wiki.evageeks.org/Lilith. Acesso realizado em maio 2013. 35 Informação obtida do site Neon Genesis Evangelion – o terceiro impacto. http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Terceiro_Impacto. Acesso realizado em junho de 2013. 36 Há várias teorias tentando explicar o que significa o L.C.L., mas parece que, na verdade, é o que foi chamada de “a sopa da vida”. Informação obtida do site http://evangelionbr.wordpress.com/red-cross-bookglossrio

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Figura 32 –Lilith, considerada a progenitora dos humanos. Seu corpo foi usado para criar EVA-unidade 01 e a piloto Rei Ayanami. Foi mantida crucificada no nível mais profundo e secreto da NERV.

Existem muitos mistérios sobre onde e como a NERV conseguiu obter a Lilith. Ela é

vital para as EVAs. O seu sangue, o LCL, e o seu corpo foi usado para criar a piloto Rei

Ayanami e a EVA-Unidade 01, além de ser o meio para o processo do Terceiro Impacto.

Após quinze anos, os Anjos voltam a terra para desafiar os sobreviventes de uma

humanidade reconstruída em Tokio-3, uma cidade erguida recentemente na área de Hakone,

no Japão.

A cidade de Tókyo-3 é uma fortaleza construída através da mais alta tecnologia e que

suporta qualquer ataque. Foi erguida sobre uma caverna em forma esférica, denominada

Geofront. Com pontos estratégicos, como túneis e armas para combate, a cidade possui

prédios que, em caso de ataque, são recolhidos para o interior da caverna e remontados de

cabeça para baixo (Figura 33).

No Geofront fica a base da Nerv, organização responsável pela construção e controle

de robôs gigantes chamados Evangelions (EVAs), pelo projeto de complementação humana37

e experimentos com clones. É comandada por Gendo Ikari, e administrada pela Organização

das Nações Unidas - ONU. Na organização também trabalham a Major Misato Katsuragi

comandante das ações táticas em defesa da cidade; e a Doutora Ritsuko Akagi (Figura 34),

37 A Complementação Humana pretendia unir todos os seres humanos em um só corpo e uma única consciência.

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responsável pela engenharia, manutenção das EVAs e do sistema informacional de alta

tecnologia chamado MAGI que é o computador cérebro da agência secreta NERV.

Figura 33 –Tokio-3, uma cidade fortaleza erguida sobre uma caverna denominada Geofront. A cidade possui prédios, que em caso de ataque, são recolhidos para o interior da caverna e remontados de cabeça para baixo.

Figura 34 –Da esquerda para a direita: Gendo Ikari, major Misato Katsuragi e doutora Ritsuko Akagi.

As primeiras cenas de Neon Genesis Evangelion mostram um cenário onde aparecem

alguns prédios submersos, aparentemente destruídos há muito tempo, representado por um

ambiente deserto. Ao fundo, ouve-se uma voz comunicando que todos os moradores devem se

dirigir para os seus respectivos abrigos. Metrôs e ruas desertas. Poucos são os sinais de vida

nesse lugar, exceto pela movimentação de veículos militares. Somente uma revoada de um

grupo de pássaros quebra o silêncio. Um carro aparece e a motorista comenta aparentemente

preocupada: “Não devia tê-lo perdido”. Essa é a fala da personagem Misato Katsuragi,

retirado do primeiro episódio da série. Misato é major da operação da NERV e tinha a missão

de encontrar Shinji Ikari, para ser um dos pilotos de EVA.

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Essas primeiras cenas mostram um mundo pós-apocaliptico onde a única arma capaz

de defender os homens são robôs gigantes conhecidos como unidades EVA (Evangelion) e

comandadas por pilotos adolescentes.

EVAs são as armas mais eficientes para combater os Anjos, criaturas que atacam a

terra com o objetivo de chegar ao subsolo da NERV, onde supostamente se encontra Adão, o

primeiro Anjo.

O nome formal da EVA é “Arma de Combate Decisivo de Propósito Genérico em

Forma Humanóide” (em japonês, “Hanyou Ninkei Kessen Heiki – Jinzou Ningen

Ibangerion”). Criadas como resultado de quatorze anos de pesquisa, as EVAs são criaturas

biocibernéticas concebidas a partir do código genético retirados dos restos deixados pelo

primeiro Anjo, chamado Adão, ao chegar a terra. Esse é o motivo pelo qual são chamadas

EVAs, uma alusão a Eva, a primeira mulher criada a partir da costela de Adão segundo a

mitologia judaico-cristã. Embora não se saiba ao certo o que são os Anjos, a NERV tinha

conhecimento do seu poder destrutivo.

A hipótese é a de que tenham sido enviados por Deus para destruir a humanidade,

como uma espécie de “segundo diluvio”, e que estes seres foram previstos pelos Manuscritos

do Mar Morto. Esses manuscritos são coleção de centenas de textos e fragmentos de texto

encontrados em cavernas de Qumran, no Mar Morto, no fim da década de 1940 e durante a

década de 1950, sendo citados na série como sendo a principal fonte de informação da NERV

e da SEELE. Esses manuscritos são considerados a versão mais antiga do livro Torah livro

sagrado do judaísmo, levando, portanto, a pensar na ligação entre Neon Genesis Evangelion e

o judaísmo.

Através dessa hipótese haveria uma estagnação no processo evolutivo da raça humana,

identificada pelo “projeto de complementação humana” da NERV, ou seja, a possibilidade de

“evolução” entre os humanos teria chegado ao limite e a solução estaria nos Anjos.

Obviamente, o sentimento de autopreservação gerou uma reação por parte da humanidade,

levando a criação de EVAs. São os únicos instrumentos que a humanidade dispõe para

enfrentar a ameaça dos Anjos, representando uma esperança de salvação para o mundo pós-

apocalíptico (AMATTE LOPES, 2006).

A série de animação não consegue explicar com clareza o projeto de complementação

humana, mas o assunto é abordado nos episódios 25 e 26. Visa levar a humanidade para outro

patamar, transformando toda a existência humana em um organismo total de forma única.

Através desse projeto toda a raça humana seria destacada de sua forma física, transformando-

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se em uma forma de gel biológico, onde toda a humanidade seria uma única forma de vida e

todas as mentes e almas se tornariam uma só.

Em Evangelion, a biotecnologia se junta com o instrumental informático para a

conquista da imortalidade. O projeto de complementação humana, secretamente desenvolvido

pela NERV poderia ser considerado um projeto de desenvolvimento pós-humano. Através

desse projeto foram concebidas EVAS a partir dos restos deixados pelo primeiro Anjo (Adão)

ao chegar a Terra. Foram também concebidos pilotos, como Ayanami, resultado de várias

clonagens genéticas. Porém, como veremos mais adiante, nesta série EVAs e pilotos clones

apresentam reações e sentimentos característicos de humanos.

Entretanto, nem Shinji e nem o espectador tem ideia, nos primeiros momentos, do que

sejam EVAs, Anjos ou NERV. Ao longo da série, vamos descobrindo os mistérios,

acontecimentos e dúvidas da trama.

Para pilotar essas máquinas gigantes, são escolhidos pilotos humanos, adolescentes,

que por coincidência nasceram no mesmo ano do Segundo Impacto. A escolha é feita pelo

Comitê de Complementação Humana da NERV, cabendo-lhe a decisão de quem pode pilotar

cada uma das unidades EVA.

As unidades EVAs só podem ser pilotadas por adolescentes de 14 anos e que são

órfãos de mãe. A relação EVA-piloto é específica e única para cada um dos pilotos. É como se

cada EVA tivesse sido feita para aquele piloto. EVAS e pilotos representam os dois

personagens focados no recorte desta dissertação: o maquínico e o humano.

Os pilotos adolescentes são denominados de acordo com a ordem em que são

encontrados: primeira, segunda, terceira, quarta criança e assim por diante, apresentadas aqui

por ordem de convocação: Rei Ayanami, Asuka Langley Souryu, Shinji Ikari, nosso

protagonista e Touji Suzuhara.

A história começa quando Shinji Ikari é levado para conhecer a NERV. Lá encontra

seu pai Gendo Ikari, comandante da NERV e do projeto Adão, além do projeto de

Complementação Humana. Quando Shinji chega à NERV, descobre que na verdade seu pai

precisa dele para que ele controle a EVA-Unidade 01 e lute contra outro Anjo que está

atacando a cidade de Neo-Tokyo 3.

Shinji Ikari, o nosso protagonista, é o primeiro piloto a ser apresentado na série, mas é

a “terceira criança” a pilotar uma EVA, a unidade 01. Seu pai é o comandante da NERV,

Gendo Ikari, sendo que, sua mãe, Yui Ikari, foi uma das pesquisadoras-chefe do Projeto EVA.

Presenciou o desaparecimento da própria mãe em 2004, durante uma experiência com a

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Unidade 01, mas era muito novo para lembrar-se do ocorrido. Foi abandonado pelo pai aos

cinco anos de idade, passando a morar com seu professor (sensei) até completar 14 anos

quando é chamado para pilotar a EVA-01 durante o ataque do 3º Anjo. Ao chegar a Neo-

Tokyo 3 passa a morar com sua superiora no comando de operações e tutora legal, Misato

Katsuragi. Shinji tem um caráter introvertido e sempre se preocupa com o que os outros

pensarão dele. Inseguro e complexado tem a tendência de se afastar das pessoas por temer

magoá-las ou ser magoado por elas. Sofre do chamado "Complexo do Porco-Espinho" (Taijin

Kyōfūshō), transtorno psicológico que faz com que seu comportamento seja paradoxal, ao

mesmo tempo ansiando pela proximidade das pessoas, e evitando essa mesma proximidade

com medo de se machucar ou, por sua vez machucar tais pessoas. Seus únicos amigos são o

Toji Suzuhara e Kensuke. Revolta-se ao descobrir que o pai era o comandante da NERV e que

o teria mandado buscar, pois lembra que foi abandonado quando criança.

Outra criança é Rei Ayanami. Ela é chamada de “primeira criança”, pois foi a primeira

a pilotar uma EVA, a unidade 00, e a segunda a ser apresentada na série. Rei é piloto de testes

e parece estar completamente integrada a sua missão. Fala pouco e não questiona diante de

uma ordem, mesmo quando a ordem põe em risco sua integridade física. É aparentemente sem

emoções, tão introvertida quanto Shinji. Rei na verdade é uma série de clones feitos a partir

do que sobrou de Yui Ikari, a mãe de Shinji, que foi absorvida por EVA-01 em um teste de

ativação da unidade. A atual Rei é a terceira clone. A primeira foi morta pela Dra. Naoko

Akagi, criadora do sistema MAGI que em seguida suicida-se. A segunda clone foi morta em

combate contra o 16º Anjo. Sua alma é a mesma, embora a personalidade seja diferente

devido as suas relações com o ambiente.

Asuka Langley Soryu é a “segunda criança” a pilotar um EVA, a unidade 02. É

apresentada somente no episódio 08. Nasceu nos Estados Unidos, mas possui descendência

alemã e japonesa. Apesar de seu grande intelecto é extremamente arrogante e hostil,

principalmente com Shinji, e sua história é tão trágica quanto à das outras crianças; foi criada

por tutores já que seu pai abandonou a ela e a sua mãe, que não suportando essa perda,

enforcou-se. Muito falante e questionadora não aceita ser colocada em segundo plano. Criada

na Alemanha e ao voltar ao Japão, demonstra “estranhar” os costumes orientais.

A “quarta criança” é Touji Suzuhara, piloto da EVA-unidade 04. No começo, Suzuhara

odeia Shinji e o culpa de ferir sua irmã durante a luta contra o 3º Anjo, mas depois se tornam

amigos. Na série, a unidade de Suzuhara é contaminada por um Anjo, momento em que o

capitão Gendou Ikari obriga Shinji a destruir esta unidade. Shinji se recusa, para não ferir o

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amigo piloto, e seu pai isola os comandos da EVA-01, obrigando-o a assistir a destruição da unidade de Suzuhara. Parece que a função da “quarta criança” é desencadear a reação de Shinji contra as ordens de seu pai (Figura 35).

Figura 35 –Os pilotos adolescentes: Shinji Ikari (protagonista), Rei Ayanami, Asuka Soryu e Touji Suzuhara.

Em Neon Genesis Evangelion verifica-se que, nas batalhas entre EVAs e Anjos

supostamente estariam em jogo à continuidade da raça humana. O homem de Evangelion já se

assemelha a sabedoria divina, pois com o conhecimento tecnológico e a ciência necessária

para a sua existência consegue realizar clones, robôs gigantes orgânicos e construir uma

cidade fortaleza com toda a tecnologia para impedir a invasão dos Anjos. E por isso, o homem

tem que enfrentar um Deus furioso com seus Anjos para aniquilar uma humanidade que tenta

se igualar a ele (ZAMINELLI, 2011).

Na série, EVAs são capazes de neutralizar um Campo AT (AT Field – “Absolute

Terror Field” ou Campo de Terror Absoluto)38, uma barreira defensiva praticamente

impenetrável criada pelos Anjos e por EVAs. É justamente por possuírem esta capacidade que

as EVAs são as únicas capazes de derrotar os Anjos.

Mas, o que são EVAs? No primeiro aparecimento de EVA na série, logo no episódio

01, o autor de Neon Genesis Evangelion apresenta uma gigantesca figura, a EVA, que nos faz

pensar em uma máquina, um grande robô, com necessidade de um piloto e de energia para o

seu funcionamento. No episódio 02, ao rememorar a batalha com o Anjo, é mostrado uma

38 Campo de força produzido biologicamente por Anjos e EVAs. As armas convencionais não conseguem penetrar nesse campo. Na psicologia, significa o muro imaginário que os pacientes com ego elevado e autismo produzem.

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EVA que reage sem comandos e sem necessidade de energia externa, mostrando uma

independência que não é característico de uma máquina (Figura 36).

Figura 36 – EVA 01, em pé, observando-se o cabo de energia que o conecta à NERV. No centro e àdireita EVA em posição de ataque.

Vamos percebendo que sua superfície funciona como uma armadura, para uma

criatura biológica que é mantida sob controle humano, e somos levados a entender que se trata

de um híbrido, que envolve a união entre orgânico e maquínico.

Aos poucos, vamos descobrindo que não é uma simples máquina. Esta criatura é um

ser biológico vivo, com máquinas cibernéticas e computadores conectados em seus corpos.

Suas funções surgem de uma interação entre o corpo orgânico e o corpo tecnológico. Estamos

então diante de um ciborgue.

Ao longo da série, também verificamos EVA apresentando uma ligação muito próxima

com o piloto, podendo ser observado nas sequencias em que EVA, ao sentir-se ameaçada,

reage da mesma forma que o piloto, dando a ideia de que existe uma sincronia e

complementariedade entre os dois. Ferimentos e dor ocorridos em EVA são percebidos pelo

piloto, como se vê na figura 37.

Dessa forma, a série apresenta essa figura sob dois pontos de vista: O primeiro, se

considerarmos apenas a junção entre orgânico e inorgânico, por si só EVA já apresenta

características próprias de um ciborgue técnico (Hayles, 1996) ou protético (Lemos, 2002). O

lado orgânico de EVA foi fruto de engenharia genética, produzido pelo projeto de

complementação humana, enquanto que a parte mecânica foi resultado de experiências da

engenharia mecatrônica.

Portanto, ao examinarmos as EVAs sozinhas, sem o piloto verificamos que esses seres

são ciborgues. Possuem DNA retirado de um Anjo, misturado com o DNA de um humano, e

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uma estrutura mecânica. Aparentemente o corpo físico de EVA-01, pilotada por Shinji, foi

fabricado usando-se o DNA de Lilith. Por essa razão, a EVA-01 se transforma na única

substituta de Lilith como ferramenta para a Complementação Humana. Porém, EVA-01

apresenta a alma de Yui Ikari, a mãe do piloto. Yui participou integralmente do Projeto no

Laboratório de Evolução Artificial em Hakone, Japão. Ela serviu como teste para Contato

Experimental da Unidade 01 em 2004, mas desapareceu durante o teste. Shinji fica sabendo

depois que Yui teve suas memórias apagadas e que deu origem a Rei Ayanami, piloto da

Unidade 00 e que também serviu como parte da instrumentação da Unidade 01.

Figura 37 – Sequencia retirada do episódio 02 de Neon Genesis Evangelion – nesta sequencia a Unidade 01 reage em sincronia com o piloto mesmo sem ligação física entre os dois. Dor sentida pela EVA é sentida também pelo piloto.

As unidades EVA apresentam certos equipamentos que os evidenciam como ciborgue,

tais como, aparatos maquínicos localizados na estrutura do plug de entrada39 de onde vem a

energia que lhe confere a capacidade de movimento e que lhe permitem ser operadas por um

piloto humano (Figura 38).

EVA funciona por meio de conexões neurais que se estabelecem entre a máquina e

piloto. Essa ligaçao se dá através do líquido LCL onde o piloto é imerso no plug de entrada

(Figura 39). A conexão neural permite que o piloto transmita suas reaçoes e reflexos a EVA e

vice versa. Recebem autonomia de combate junto com o piloto por meio de um cabo de

energia que o liga eletricamente.

Enquanto os Anjos possuem um motor S² (S² Kikan) (motor Super Solenóide), que é

um órgão localizado no interior do núcleo de um Anjo que lhe confere uma fonte ilimitada de

energia, os Evangelions não nascem com motores S², sendo assim, normalmente, dependentes

de uma fonte externa de energia - energia essa que é fornecida através de um cabo de

39 Estrutura usada para “inserir” os pilotos adolescentes nas unidades EVA - os robôs Evangelion.

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alimentação (cabo umbilical) ou bateria interna.

As imagens abaixo são representações das próteses presentes nas Unidades EVA.

Figura 38 – Detalhes de alguns equipamentos da Unidade EVA. Acima: Plug de entrada e Cabo de força. Abaixo: Travas de segurança que conecta EVA à NERV.

Figura 39 – O piloto é imerso no Plug de entrada ( círculo branco), onde ocorrem as conexões neurais entre EVA e piloto através do líquido LCL. Da esquerda para a direita: plug de entrada; Shinji no plug de entrada dentro da EVA; Shinji no plug de entrada imerso no líquido LCL

No decorrer da série, a função de cada prótese vai sendo revelada ao espectador, como

por exemplo, no episódio 10, quando Azuka entra na lava de um vulcão à procura de um anjo

e a integridade de EVA é garantida através das próteses. Em outros momentos, outras próteses,

como o plug de energia funcionam como limitador da EVA. A cada capítulo vamos

descobrindo, que a tecnologia aplicada a EVA tem a função de conferir-lhe poder, mas

também de controlar os seus instintos.

Na verdade, as unidades EVAs apresentadas desta forma, corresponderiam a corpos

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pós-humanos que na visão de Stelarc representariam um corpo oco. De acordo com o autor, o

corpo tornou-se muito vulnerável, incapaz de acompanhar as máquinas que o próprio homem

criou. "A estratégia deveria ser a de tornar o corpo oco, endurecê-lo e desidratá-lo para fazê-

lo mais durável e menos vulnerável" (STERLARC, 1997, p. 56). Portanto, nessa condição, o

corpo transforma-se em mera ferramenta ou objeto. EVA seria apenas um reservatório para o

piloto.

No entanto, a série mostra também a figura de EVA, sob um segundo aspecto,

associada à figura do piloto.

Nesse momento, EVA aparece como “ampliador” das funções do piloto. Sob esse

ponto de vista, EVA funcionaria como um aparato tecnológico que amplia as potencialidades

de um ser humano. Isso, de acordo com Andy Clark, seria uma forma de distensão do corpo

do piloto e vice versa. De acordo com o autor, as máquinas e as novas tecnologias em contato

com o homem são incorporadas ao corpo como se sempre tivesse feito parte dele. Portanto, o

corpo não acaba no limite onde ele acaba (CLARK, 2011).

Percebe-se que EVA vai além de um simples revestimento de metal e uma arma bélica,

é um ciborgue humanoide que necessita de uma alma dentro de si para exercer seu papel.

Nesse aspecto, muito embora, EVAs se configurem como ciborgues, elas são incompletas. É

como se fossem um invólucro à espera de uma alma, de uma consciência, a espera do seu

piloto.

Por esse prisma, a associação entre EVA e piloto pode ser entendida através da noção

de mono, referido no capítulo anterior. EVA e piloto funcionam como se um estivesse

acoplado ao outro, como um corpo só.

Em vários momentos da série verificamos comportamentos que só se manifestam em

EVA se conectado ao Shinji, e vice versa. Mas, somente gradativamente, ao longo dos

episódios vamos percebendo que se trata de uma hibridação EVA-piloto.

Então, o que é EVA? Shinji faz a pergunta que nós espectadores também gostaríamos

de fazer.

No episódio 7, o piloto de EVA – 01, Shinji Ikari, também pensa sobre isso:

“ O que é a EVA?

O plug de entrada está emitindo um cheiro parecido com sangue,

mas me sinto tão confortável e relaxado aqui!

Por quê?

Agora estou pensando sobre isso: Eu não sei nada sobre EVA”.

Page 84: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

84

Shinji permanece sentado dentro do plug de entrada, ligado eletricamente a EVA por

meio do cabo de eletricidade, uma referencia ao cordão umbilical que os bebês utilizam para

se nutrir no corpo da mãe (RED CROSS BOOK, 1997, p. 20). Posteriormente, o plug de

entrada será preenchido pelo LCL, liquido que se assemelha ao amniótico, em uma referencia

ao útero materno. Assim, a presença materna é representada por EVA – 01 que protege Shinji

tal como uma mãe resguarda seu filho. A explicação é que Yui Ikari foi absorvida por EVA

Unidade 01, tendo sua alma unida a alma de EVA, sendo por isso que esta EVA só aceita

Shinji dentro dela, rejeitando qualquer outra criança. Protegido dentro de EVA, o herói está

pronto para a batalha.

Em outro momento, estamos diante de uma EVA sem controle, mostrando o seu lado

animalesco e autônomo (Figura 40). Sempre que EVA se sente ameaçada o instinto de

sobrevivência sobressai e seu corpo reage em busca da liberdade. Essa reação aparece no

episódio 16, quando EVA dilacera e obtém o motor S2 do Anjo. Ao presenciar a cena, a Dra.

Ritsuko, demonstra dúvidas sobre a sua criação e a função da EVA de proteger a humanidade,

e diz:

“nunca vi a EVA tão assustadora assim [...]

Será que ela está do nosso lado?”

Figura 40 – A figura nos mostra o lado animalesco da EVA ao se libertar do Anjo. EVA dilacera e obtém o motor S2 do Anjo, o que poderá lhe conferir energia ilimitada.

65

“Meu Deus, que monstro nós copiamos?! (...) nunca vi o EVA tão assustador quanto hoje (...)

Será que ele está mesmo do nosso lado?”67

É a partir deste ponto da série, no final do episódio 16, que o espectador é

encaminhado para revelações acerca da figura do EVA. À medida que os fatos se desenrolam

fica mais claro para o espectador essa oposição entre o controle humano e o instinto animal do

EVA. Como podemos ver pela seqüência de frames a seguir, sempre que ocorrem falhas nos

aparatos maquínicos enquanto o EVA está sendo ameaçado o instinto de sobrevivência aflora

na criatura e seu corpo reage tornando-o senhor de si. Temos, de um lado, o controle, o

racional, imposto pelas próteses, e, do outro, o instinto animal que é suprimido por essas

próteses.

67 Fala da Dra. Ritsuko, no episódio 16, logo após presenciar o momento em que o Eva se liberta do 12° Anjo.

Page 85: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

85

Outro momento, é quando EVA, no episódio 19, liberta-se de parte de sua armadura

(Figura 41). Estamos novamente diante de EVA sem controle, sendo explicado no episódio

que ela teria entrado em berserk40. Mesmo quando EVA entra em berserk, o piloto Shinji se

sente confortável.

No estado de berserk a NERV não consegue ter o controle de EVA. Dra. Ritsuko Akagi

fica horrorizada ao ver EVA Unidade 01 totalmente sem controle. Esse comportamento de

EVA poderia ser atribuido ao fato de que ela como mãe estaria protegendo seu filho. Esse

instinto é mostrado na série como sendo também, algo à procura de oportunidades para se

libertar. De acordo com Amatte Lopes (2006, p. 66), “é possível construir um paralelo entre

essa busca por libertação identificada em EVA e a busca por respostas presente, sobretudo, na

figura do piloto Shinji”. Pode significar um momento de revolta de Shinji que não quer ser

apenas um instrumento da NERV para erradicar os seres alienígenas. Isso reforça a

importancia da relação entre EVA e piloto na série, para a manifestação desses sentimentos.

Figura 41 – Momento em que EVA-Unidade 01 entra em berserk. Sem energia, assume o controle de si mesmo. Sequencia retirada do Episódio 19, onde EVA se liberta dos limitadores devorando o Anjo.

40 Berserk é identificado como o momento de fúria que atinge a unidades EVA, onde elas próprias assumem o controle de si.

Page 86: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

86

As análises a partir de agora, passarão a ser em torno da relação humano e maquínico

onde as questões referentes a hibridação são apresentadas e os aspectos relacionados à

subjetividade das personagens ganham importância.

Desde os primeiros episódios da série, o espectador começa a conhecer as inquietações

de Shinji Ikari, o nosso protagonista. Ele se questiona sobre sua identidade e seu papel

enquanto piloto, bem como as razões que o levam a buscar reconhecimento através de EVA.

Shinji é uma pessoa muito insegura e submissa, e não entende o motivo pelo qual foi

designado para assumir o comando de EVA. Porém, se sente confortável e seguro ao pilotar a

EVA.

Aos poucos vamos conhecendo piloto e EVA e a importância da relação humano e

máquínico, como um corpo só, sugerindo a relação de hibridação.

A hibridação - a perda de definição de fronteiras entre EVA e piloto, pode ser

observada em várias sequencias da série, como já referidos nos episódios 01 e 02.

Também é observada no episódio 16, quando o piloto Shinji, dentro da unidade 01, é

mergulhado em um mundo paralelo de devaneios em torno de sua identidade.

Durante esse episódio o espectador é levado a acompanhar os devaneios de Shinji. Ele

continua dentro de EVA. É o momento em que ele vê seu corpo projetado na sua própria

imagem. O devaneio se projeta em um vagão de trem em movimento (Figura 42), que

segundo Amatte Lopes (2006, p. 76), “ pode ser interpretado como uma alusão ao constante

desejo de fuga que acomete o piloto da unidade 01”.

É o que se verifica quando Shinji é transportado à sua imagem aos cinco anos de idade

quando fugiu de seu pai (Figura 42). A personagem que responde aos questionamentos de

Shinji é a projeção da imagem dele com cinco anos de idade. A imagem de abandono pelo

pai, a necessidade de estar junto à mãe, o sentimento de solidão só são aflorados porque o

Shinji estava acoplado a EVA.

Nesse momento não há participação de outros personagens. Tudo o que vemos são os

devaneios do piloto.

Ainda no episódio 16, Shinji perde seu corpo físico dentro do plug de entrada após

conseguir uma sincronizaçao máxima com a unidade 01.

Page 87: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

87

Figura 42 – À esquerda: Shinji é transportado à sua imagem aos cinco anos de idade. O espectador é levado a acompanhar os pensamentos de Shinji. Tudo ocorre em um vagão de trem. À direta: Imagem do abandono de Shinji pelo pai aos aos cinco anos de idade.

De acordo com a teoria exposta na trama, ele perdeu a “borda do ego” e agora está

perdido dentro da própria EVA. Enquanto as medidas vão sendo tomadas do lado de fora, pela

NERV, na tentativa de reverter esse processo, dentro da EVA, Shinji se confronta com seus

pensamentos e suas inquietações. Nesta sequencia, os devaneios de Shinji continuam, mas

evidenciam a importância que a aceitação por parte dos outros tem para ele, agora dando

ênfase aos múltiplos “Eus” que compõem um indivíduo e qual é a relação de Shinji com o seu

papel de piloto, como se observa na fala da personagem Shinji Ikari, retirado do episódio 16:

“Quem é?

Shinji Ikari…

Eu sou Shinji Ikari.

Eu sou você. Este “eu” está dentro de outro “eu”.

O “eu” sempre foi composto por dois “eus”.

Sim, o “eu” que é observado e o “eu” que se observa (…)

Estes diferentes Shinji Ikari formam o verdadeiro Shinji Ikari (…)

Seu medo é dos Shinji Ikari que existe na mente dos outros”.

No episódio 20, a série Neon Genesis Evangelion mostra ao espectador o valor que

Shinji atribui ao seu papel de piloto, e neste momento o confronto no vagão de trem ocorre

com Rei Ayanami.

Nesta seqüência é ela quem questiona:

Page 88: André Noro dos Santos - sapientia.pucsp.br Noro dos... · Figura 16 – Mazinger Z 44 Figura 17 – Gundam 45 Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45 Figura 19 – Cell e Data 46 Figura

88

Rei: “O que é solidão? O que é felicidade?

Por que os outros são gentis com você?”

Shinji: Porque eu sou um piloto da EVA.

Porque eu piloto a EVA eles me tratam bem.

Esta é a razão pela qual existo.

Isso é tudo que constitui minha razão de viver.

Então preciso pilotar a EVA (...)

Certo. Não posso perder.

É como me dizem, eu devo pilotar a EVA.

É como me dizem, eu devo ganhar! Do contrário (...).

(trecho extraído do episódio 20, parte integrante da seqüência “Forma da Mente.

Forma do homem”)

Embora, durante esses devaneios a figura de EVA pouco apareça, sendo

completamente ausente na sequencia em que EVA-unidade 01 confronta o 12oAnjo, pode-se

constatar que sem a presença de EVA essa inserçao ao “mundo interior” do Shinji não teria

sido desencadeado, reforçando assim, a importância da relação de hibridação entre a unidade

01 e o piloto.

Dentro de EVA, o piloto (Shinji) se confronta com seus pensamentos e suas inquietações. Essa perda de materialidade pode ser entendida como a representação da máxima hibridação entre as duas criaturas. É o momento onde o duo, o híbrido, volta momentaneamente a ser um só (AMATTE LOPES, 2005, p. 69).

Verificamos que, nas duas seqüências acima, Shinji trava um diálogo com seus “Eus”,

projetados diante dele, e com outras personagens que o afetam direta ou indiretamente.

Esses episódios mostram alguns momentos da série, onde são retradas as inquietações

das personagens, especialmente do nosso protagonista, em relação as próprias identidades.

Assim como os questionamentos de Shinji, o espectador também é envolvido por questões em

torno da pergunta “quem sou eu?”, “quem é o outro?” , “o que é um humano?”. Isso também

pode ser observado no monólogo da personagem de Ray Ayanami, no episódio 14.

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89

“Da terra vermelha vem o humano, do chão

Nascido do homem e mulher é o humano ���

Cidade... Criação humana;

EVA... Criação humana ���

O que é um humano? Criação de Deus? ��� Criação Humana? ���

As coisas que tenho são minha vida e alma.

Sou um vaso para meu coração.

Entry plug: o trono para a alma ���

Quem é essa? Sou eu? ��� Quem sou eu? O quê sou eu? ���

O quê sou eu? ��� O quê sou eu? ��� O quê sou eu?

Eu sou eu mesma ���. Essa... Essa coisa, sou eu. ��� Essa coisa formada, sou eu. ���

Essa sou eu que pode ser vista ���. Ainda que eu sinta que não sou eu. ���

Muito estranho. Sinto como se meu corpo fosse dissolver.

Não consigo mais me ver…Minha figura está desaparecendo…

Sinto a presença de alguém que não sou eu.

Quem está aí, além de mim?

Ikari-kun (é o Shinji)41

Capitã Katsuragi , Dra Akagi , Colegas,

Piloto da unidade-02, Comandante Ikari

Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você?”

Rei Ayanami, é a piloto resultante de vários processos de clonagens, mas demonstra

sentimentos e questionamentos em relação à própria identidade, como se verifica no episódio

25, quando ela se confronta com os seus diversos clones (Figura 43).

“Quem sou eu? Sou Rei Ayanami.

Quem é você? Você também é Rei Ayanami?

Por que todas essas são eu?

Não sou falsa e nem uma imitação. Eu sou Rei Anayami

Você é um objeto, que pretende ser humana.

Não! Eu sou eu. Eu me tornei eu mesma com a instrumentalidade dos laços e

relacionamentos que existem entre eu e os outros.

Sou formada pela interação com os outros.

A interação com as pessoas e o tempo mudaram meu coração e minha mente [...]”.

41 grifo nosso

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90

Figura 43 – Rei Anayami em seus devaneios em busca da identidade e humanidade. À direita, os diversos clones de Rei Anayami.

As reflexões acima são bons exemplos de como a série retrata as divagações e

pensamentos das personagens sobre a conduta da humanidade e as suas inquietações em

relação as suas próprias identidades e questionamentos psicológicos.

Aspectos psicológicos são apresentados, em relação à presença materna. Apesar da

raiva que Shinji nutre do pai, quando resolve aceitar ser o piloto daEVA – unidade 01, ele diz:

“É…, agora, esse robô está precisando de mim…” . Na verdade, quem precisa da EVA, ou da

mãe, é o piloto, que necessita de alguma coisa que contenha suas emoções.

Pode-se perceber que quando Shinji é transportado para um mundo paralelo, o pai e a

mãe estão presentes de maneira direta ou indireta, o que evidencia o conflito edipiano, uma

referencia da convergência da narrativa de Evangelion e o mito de Édipo Rei. O conflito se

manifesta no rancor que o filho nutriu pelo pai, que se convertem em ódio quando esse o

chama de covarde. É esse ódio que impulsiona o menino para a batalha. A presença paterna

está representada nos pensamentos: “Um robô criado por um pai que me abandonou... [...]

Meu pai nunca mais vai me chamar de covarde.” Nessas frases, Shinji externaliza seu

ressentimento e rancor em relação ao pai que o abandonou.

Mas esses dilemas vividos por Shinji refletem também os conflitos psicológicos atuais

vividos, principalmente, pelos adolescentes, em processo de maturação, quase sempre

baseados na necessidade de serem reconhecidos pela família e pela sociedade.

Em Neon Genesis Evangelion, encontramos um aparente abandono e solidão,

representado pela figura de Shinji que cedo tem de viver sozinho para se preparar para a vida,

estabelecendo uma luta entre pai e filho que é comum, por exemplo, na sociedade japonesa.

Principalmente se o pai é uma pessoa importante, um comandante que desempenha um cargo

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91

superior na profissão. Isto representa uma forte pressão sobre Shinji, que vive um grande

conflito interior por não possuir a atenção de seus pais. No caso desta personagem, mesmo

distante do filho, Gendo IKari não deixa de cumprir sua função paterna, o que,

paradoxalmente, o transforma num modelo para o próprio filho: um homem que cumpre seu

papel social enfrentando e lutando muito para conseguir seu espaço na sociedade.

Acreditando ter sido abandonado pelo pai, Shinji é obrigado a enfrentar o mundo, a

virar adulto e para isto precisa aprender a lutar. A função paterna e social é demonstrar para o

filho que a sociedade é cruel e precisa ser enfrentada, numa visão maniqueísta do mundo, isto

é, da luta entre o bem o mal. Se ficar em casa protegido pela mãe não fará nada da sua vida,

tornando-se uma pessoa sem futuro. Por isso, ele deve ter muita garra e coragem, o que

acrescenta mais um desafio para Shinji — que é ausência da figura materna. Esta é a realidade

dos jovens na sociedade globalizada e que a série procura mostrar.

No livro Red Cross Book (1997, p.6), encontram-se referencias de que,

o grande tema de Evangelion é o “coração das pessoas” (a alma das pessoas). Isso também é uma das atrações da série que não pode ser encontrada em outros trabalhos que envolvem animês. A relação com os outros, o significado da própria existência, o que é “ser…Evangelion” …

Como se observa, todos os sentimentos do piloto Shinji são aflorados, mas ao mesmo

tempo contidos, quando na presença de EVA. O próprio Shinji sabe que sem a EVA ele é um

ser inútil e dispensável. Da mesma forma, EVA só consegue se libertar se acoplado à Shinji,

ressaltando a importância da ligação homem-máquina estabelecida entre as duas personagens.

Podemos interpretar, portanto, que sem a hibridação com a EVA a personagem de

Shinji Ikari não existiria enquanto indivíduo. Ele mesmo, em seus devaneios, considera que o

respeito e os amigos conseguidos são atribuídos à sua ligação a EVA, ou seja, Shinji Ikari sabe

que ele só “significa algo” se ligado a este ser biocibernético que lhe garante características

humanas e sobre-humanas.

Assim, o corpo passa a ter vida através de gestos e movimentos que aparentemente

vem de si, porém é regido pela sua sombra. É como acontece em kuruma ningyo quando o

animador assume a função de sombra do boneco, inseparáveis do corpo que se move como se

tivesse vida própria. Isto significa que “o corpo e o objeto estariam mutuamente conectados”

(SOUZA, 2005, p. 60).

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92

Observa-se que o objeto maquínico toma corpo e torna-se uma estrutura personificada

quando associado ao corpo do piloto. São como imagens que vem de dentro e que se

misturam com as imagens que vem de fora. É como esclarece Greiner e Katz, em relação aos

processos de troca de informação entre o corpo e o ambiente, no qual “a presença de um,

anuncia a possibilidade da presença de outros” (GREINER e KATZ, 2001, p. 72).

Essa forma de ver o corpo híbrido nos remete ao modo como se percebe o corpo na

cultura japonesa, através do conceito de mono. Através dessa percepção, o corpo híbrido não

significa condição pós humana, mas sim uma condição humana.

E isso se reflete na própria relação do Japão com a robótica. Para os japoneses os

robôs também são humanos. No entendimento de Clark (2011), ele não são considerados

simples máquinas ou objetos, mas uma distensão do corpo.

De acordo com Amatte Lopes (2005, p. 81),

A série deixa claro que, para o próprio Shinji Ikari, ele só “significa algo” se ligado a este ser biocibernético que lhe garante características extra-humanas (força, armas, um campo A.T.) e características humanas, como, por exemplo, reconhecimento e respeito por parte dos outros.

Assim, a série Neon Genesis Evangelion, apresenta uma visão de corpo, onde, apesar

de EVA representar uma máquina, que poderia ser considerado um corpo oco, ela deixa de ser

um mero invólucro após a hibridação com o piloto. EVA representa o corpo hospedeiro, e o

piloto se coloca enquanto alma e enquanto mente. É como a representação mãe-filho. O corpo

volta a funcionar como um invólucro sagrado não havendo separação entre o mundo cognitivo

e o subjetivo. EVA e piloto agem integrados como mente e alma, como um só corpo. É

quando os sentimentos e as emoções do piloto e de EVA são aflorados, revelando o estado de

vida dentro do organismo.

Em relação a essa união de corpos Damásio, em seu livro Em busca de Espinosa

(2004), descreve que para o filósofo Espinosa, mente e corpo são manifestações de uma

substância única, apontando o organismo como dotado de tendência natural para sua própria

regulação.

Damásio explica que, para Espinosa, “a idéia de um objeto certamente não pode

ocorrer sem a existência de um corpo e sem a ocorrência de certas modificações nesse corpo,

modificações essas que foram causadas pelo objeto” (DAMÁSIO, 2004, p. 226). Nessas

afirmações Espinosa está especificando um conjunto de dependências funcionais e afirma

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93

que, sem o corpo não há mente.

Conforme escreve Damásio, “precisamos descobrir de que modo as representações do

corpo se tornam subjetivas, de que modo se tornam parte do ser que as possui” (DAMÁSIO,

2000, p. 192). No livro O Mistério da Consciência (2000), o autor esclarece que uma mente

consciente é aquela que é informada simultaneamente das relações do seu próprio organismo

e dos objetos que rodeiam esse organismo.

E nessa perspectiva, Katz e Greiner, ensinam que o corpo híbrido é o resultado de

cruzamentos de corpos, informações e interações com o ambiente, e não um lugar onde as

informações são simplesmente armazenadas. Através da teoria Corpomídia, as autoras

apontam que: “As informações que são capturadas pelo nosso processo perceptivo, passam a fazer parte do corpo de uma maneira bem singular: são transformadas em corpo. O corpo não é um meio por onde as informações simplesmente passam, pois toda a informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas” (KATZ e GREINER, 2005, p. 131).

Para Greiner, o corpo não pode ser considerado apenas um recipiente, mas sim um

processo de trocas com o ambiente, no qual “as informações passam a fazer parte do corpo de

maneira bastante singular: são transformadas em corpo”. As informações que chegam entram

em contato com as que já estão tornando o corpo resultado desse cruzamento (GREINER,

2005, p. 130).

No Japão, os objetos inanimados são revelados através da relação entre o sujeito e o

ambiente, vivenciadas como modos interativos que fazem com que a forma como os

japoneses relacionam-se com a natureza, com o espaço, com a sociedade, com os objetos, uns

com os outros, apontem para uma unificação, conforme indica Okano,

Uma idéia de unidade, uma indistinção de consciência de si e de outro, uma não consciência de si, uma negação da existência de um centro de referência. Desse modo, o sujeito e o objeto se fundem: o objeto não objeta, a alteridade se encontra ausente e a noção do sujeito se perde. É um conceito muito difícil de ser compreendido numa civilização ocidental em que o sujeito, sempre como centro do universo, antropocêntrico, decifra o mundo como alteridade e o objeto se encontra estável, sempre como uma entidade separada do sujeito. A dualidade sujeito-objeto é algo peculiar no pensamento ocidental (OKANO, 2002, p. 42)

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94

A série Neon genesis Evangelion expõe a relação homem-máquina do ponto de vista

da cultura tradicional japonesa. Ao contrário da percepção ocidental que considera a relação

homem-máquina como uma condição pós-humana (SIBÍLIA, 2002; SANTAELLA, 2003), a

série mostra a existência de uma ligação física e mental dos pilotos com seus robôs. Seus

corpos se confundem e se complementam em busca de uma identidade e humanidade.

Homem e máquina se mesclam passando a fazer parte de uma única materialidade. Através da

série, percebemos que Shinji tem o seu valor reconhecido como piloto e como pessoa, quando

associado à máquina. O próprio Shinji entende que é completamente inútil e dispensável sem

a EVA quando ele mesmo diz: “Esta é a razão pelo qual existo”. Assim, de acordo com a série,

sem a hibridação com a EVA a personagem de Shinji Ikari não existiria enquanto indivíduo.

Isso se relaciona com o entendimento de mono presente na cultura tradicional japonesa.

A forma como Hideaki Anno aborda os ciborgues e clones na série, reflete a maneira

como os japoneses percebem a relação com a ciência e a tecnologia. Se observados através

do olhar ocidental, os ciborgues e clones, resultantes do projeto de complementação humana,

poderiam ser considerados pós-humanos; entretanto, de acordo com a cultura japonesa, trata-

se de condições humanas. Isso fica claro, quando em vários episódios da série, é revelada ao

espectador uma independência de EVA mostrando que não se trata de uma característica

maquínica, mas de um robô que se comporta como humano e apresenta emoções. As EVAs,

na verdade, não são robôs, elas não são apenas máquinas de guerra, elas são seres vivos que

servem de ferramenta para a luta contra outros seres vivos, os Anjos. Na série, os Anjos

começam também apenas como máquinas enviadas para exterminar os seres humanos, mas à

medida que o número de Anjos cresce, pode-se verificar que eles evoluíram como o ser

humano. Eles aprenderam, criaram novos métodos de tentar cumprir sua missão.

O mesmo se verifica com Rei Ayanami, a piloto resultante de vários processos de

clonagens. Na série, ela não representa um clone simplesmente, visto que, apresenta

sentimentos e inquietações similares aos humanos em relação à própria identidade.

Portanto, a tecnologia apresentada em Neon Genesis Evangelion se confunde com os

elementos humanos em busca de um “eu” formado não só pela visão que o indivíduo tem de

si, mas também pela visão que os “outros” tem dele. A própria série fornece elementos

capazes de levar o espectador a perceber e sentir que a interação homem-máquina é necessária

para a busca da humanidade e da identidade, como se fosse a imagem materializada no corpo.

Desta forma, conseguimos verificar através desta série, que na cultura japonesa, existe

um sentimento popular através do conceito de mono, de que os seres humanos e os objetos

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95

são entidades, cada um com suas características, mas que devem se complementar para que

possam existir em conjunto e beneficiar um ao outro. Através desse conceito é possível

entender as questões de identidade e humanidade como um processo que é construído na

confluência com agentes culturais, míticos e religiosos, pelo meio e também por uma relação

homem-máquina.

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96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da pesquisa apresentada, percebemos que, embora o objetivo do estudo fosse

identificar a relação homem-máquina através da série de animação japonesa Neon Genesis

Evangelion, fez-se necessário construir um contexto de discussão. A animação japonesa conta

com uma longa história. Conforme o exposto, as primeiras animações chegaram ao Japão por

volta de 1910, trazidas do ocidente graças ao cinema. Os desenhistas japoneses sentiram-se

motivados, iniciando a produção dos primeiros desenhos animados ainda naquela década.

Houve um sistema de convergência durante o processo de constituição das animações

que abarca discussões de linguagem e modos de vida do país. O Japão passou a conviver com

uma quantidade crescente de aparatos tecnológicos, tornando-se referência nos campos da

robótica e informática. É um dos países líder na produção de robôs, e a coexistência de

humanos e robôs sempre foi muito aceita naquela nação.

Apesar de o maior desenvolvimento tecnológico ter ocorrido depois da II Guerra

Mundial, observou-se que o Japão possui um histórico de relação com robôs desde o século

XII, a partir dos karakuri ningyo. Tal proximidade faz com que a tecnologia e seus novos

aparatos sejam abordados por várias linguagens no Japão, ou seja, as animações são apenas

uma faceta de um amplo panorama de experimentações.

Juntamente com a relação precoce do Japão com a robótica, uma característica

importante para a aceitação da tecnologia pelo povo japonês foi a presença da religião nativa

do Japão, o Xintoísmo, que mantém a crença de “espíritos vivos” em objetos inanimados. Os

japoneses contam com uma postura filosófica mais flexível, onde não há limites claros

estabelecidos entre o orgânico e o inorgânico, entre a arte e o entretenimento, e chegam a

admitir a convivência com diferentes formas de vida. Neste sentido, a aproximação entre arte,

religião e filosofia torna factível a aceitação de corpos híbridos.

A hipótese formulada pela presente dissertação é que o desenvolvimento dos corpos

híbridos sempre existiu na cultura japonesa e, ao contrário do que discutem vários autores

ocidentais, para os japoneses, não se trata de uma condição pós-humana. No decorrer da

pesquisa, tanto no que se refere aos estudos de uma história mais geral (do corpo, dos robôs e

da animação), como na análise específica da série de animação Neon Genesis Evangelion, a

especificidade dos entendimentos nipônicos foi se tornando cada vez mais evidente no sentido

de apoiar a hipótese proposta.

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97

Como desdobramento deste trabalho, pretendemos aprofundar no projeto de doutorado

algumas questões que não puderam ser discutidas e detalhadas no tempo desta dissertação.

Alguns dos principais problemas que surgiram durante o processo, sinalizam, por exemplo,

que:

1) A relação entre o corpo e a tecnologia não pode ser entendida a partir da lógica da

“extensão”, mas a partir da lógica da distensão, como propõe a teoria corpomídia de

Katz e Greiner, a partir da interlocução com as discussões do cientista Andy Clark.

2) Nas considerações de alguns neurocientistas ocidentais, como o próprio Clark, a noção

de pós-humanidade também não faz sentido, uma vez que o organismo humano está

sempre em evolução e a inclusão de próteses, bem como as relações entre corpos

animados e inanimados, não compromete a sua humanidade.

3) O tema “corpo-tecnologia” torna-se, portanto, um entre outros aspectos, que

fragilizam a dualidade entre Oriente e Ocidente. As zonas de contaminação parecem

cada vez maiores, dificultando a permanência das linhas abissais que separam essas

culturas.

4) Ao chegar ao Brasil, a cultura das animações japonesas e, de forma mais ampla, o

universo otaku, carrega consigo inquietações mais amplas que não se restringem

apenas a técnicas especificas de como criar um anime ou mangá. Talvez a importação

maciça de jogos, animes, mangás e comportamentos diversos (moda, cosplay, música

pop etc.) inaugurem novas possibilidades de dialogo entre Brasil e Japão,

reorganizando modos de vida e modos de pensar.

O projeto de doutorado ainda está sendo definido, mas certamente será mobilizado por

inquietações que surgiram nos últimos dois anos e pedem por uma continuidade.

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